sábado, 5 de setembro de 2009

Memórias 9

Nyangana
16-4-1976
Começaram as férias. Embora pequenas, só 4 dias, caem-me bem. Qualquer feriado é sempre uma pausa digna de apreço.
À data presente, são as férias da Páscoa! Se bem as comparo, cá na minha mente, com as férias de outrora, em Portugal, que horrendo abismo entre elas se cavou!Nem parecem irmãs!
Talvez...não sei bem! Um caso de bastardia!
Se não fosse o Diário que absorveu o tempo, morreria de pasmo, longe de tudo!
Estivesse com família, ficaria aliviado. Os de Vide- Entre-Vinhas lá estão, na Europa, bem longe daqui: os fugitivos de Angola vivem no Tondoro, a 300 quilómerros.
Como choveu, a estrada é um perigo!

Má sina me persegue, criando à minha volta a negra solidão!
A pesar meu, continua a torturar-me, sem dó nem piedade.
O que vale és tu, amoroso Diário! Desabafo contigo, pois guardas os segredos e recebes as mágoas que a vida me causa!

Vivo para ti, consagrando o meu tempo a alindar-te a face.
Desejo vivamente que saias formoso, adornado, impecável!
Já revi os manuscritos de 1975; de maneira igual, os de 1972; os de 76 vão sendo feitos e alindados; quanto aos de 74, vou já no centésimo

Brevemente serão mil! Ainda este mês ultrapasso o milhar.
Entretanto, se me dás prazer, martirizam também as tuas defici- ências, que desejo, a todo o custo, volver em adornos.

Precisão e clareza, harmonia e ritmo deixam-me, sempre, insatisfeito, quando fixo o teu rosto! Mas eu persisto e morro por ti, pois. na minha solidão, não tenho ninguém, juntinho a mim. Que horror me criou o 25 de Abril! Se fosse apenas a mim!

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Tondoro
17-4-1976
A distância em quilómetros atinge o número 250 ou bastante mais, entre Nyangana e a Missão do Tondoro.

Foi esta, de facto, a caminhada extenuante que ontem venci, após o almoço. Resolvera não vir... Só por 4 dias! Sem nenhum dinheiro, para dispor e, muito menos, para ajudar... pôr o meu carro em estado miserável, capaz de não servir...

Mas, enfim, a mensagem pela radio, enviada suplicante!
A voz do sangue não perde a eloquência! Decidi, pois. revogar os planos! Se ficasse em Nyangana, adiantava bastante a urgente revisão dos manuscritos: mais nada faria, à excepção dos intervalos,votados ao Africânder e à Língua alemã.

Assim, paciência! Também é preciso arejar um pouco e reatar a ligação com os familiares. Isto é grato e desejável!

Após tantos desvios, com altos e baixos, arribei ao Tondoro, mas tão embaçado, que me julgaram doente! Somente poços de água, ao longo da picada!

A roupa exterior não pôde escapar a esta inundação! Há lugares, na picada, semelhantes a campos, em que o arado houvesse agido com fúria louca! Chovera continuamente, por longos dois dias!
Quando isto sucede , há espanto geral e alarmam-se as gentes!
Charcos a montes, por toda a parte! Lama a salpicar!

Enrugamentos, feitos de través: coisas tão horrendas que pôem logo o velho carro em estado miserável! Por isso, todo ele batia como latas desconexas, postas em acção por força diabólica!
O meu corpo, então, ainda mais desafinado!!
Enfim, tudo isto é a vida!
Cheguei e vi os meus. Têm cara de fome: a doença não os larga. Os meúdos todos, numa idade perigosa, em que precisam, com urgência, de alimento bastante...
Tudo isto me dói, porque realmente não posso já remediar
o caso, segundo o meu desejo!

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Tondoro
18-1-1976
Vai chegando ao fim este dia festivo - a Páscoa do Senhor!
Se eu diria, um ano antes, que hoje havia de encontrar-me, no Sudoeste Africano! Bem afirma a Canção :"O mundo dá tanta volta...!"
Ninguém pode prever nem conjecturar o que vai passar-se, ao longo da vida!Só Deus o vê claro, pois é Omnisciente!
O ano passado, receberam-me em Angola, na vila do Chitembo. Este ano, porém, já foi no Sudoeste, onde vivo e trabalho, a partir de Janeiro!
E quando chegar o ano 77? Quem vai saber onde então me encontrarei?! De três lugares, no entanto, um deles há-de ser:
Namíbia ou Portugal ou então o Brasil.

Claro se vê que as minhas conjecturas dependem totalmente do que o Céu destinar: Deus governa o mundo e se seres que o povoam.. Caso seja vivo, respirarei então os ares dum continente:Europa ou África ou talvez a América..

Sendo isto assim, qual deles o melhor? Igmoro a resposta mas, se alguém nos recebesse, em terras de Santa Cruz, ajudando
a colocar-nos, talvez fosse para nós o caminho mais seguro.

Do primo Joaquim é que vai depender o caso em foco.
Ficando em Portugal, a minha confiança residirá, por certo, nalguns bons amigos que tenho no Governo. A antiga amizade será penhor seguro de grande compreensão para os nossos problemas.
Se, ao contrário, por aqui me detivesse, o que não acho provável, mercê do terrorismo, gostaria, a valer, de então caminhar mais para Sul, fugindo assim, à influência da Swapo.
Já se fala nas "minas" que, dentro em breve, i\rão aparecer nas diversas "picadas".
È já noite e começa a refrescar. Foi muito agradável estar com os meus!
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Tondoro
19-4-1976
Seis horas e meia. No silêncio do meu quarto, após haver-me erguido, vou pensando a sério na viagem a fazer!
Daqui a Nyangana, provoca suores frios.! Faltará muito para 300
quilómetros?!.
Foi doce a estadia,recordando velhos tempos bem como cenas belas que aviventam corações, em ampla derrocada! Tudo
esquece, em horas de ventura, para só lembrar o que a memória nos põe, ante os olhos sedentos!

Episódios da infâncis, jogos e folgares, esse lar tão feliz, em que a vida eram rosas... tudo vem ao de cima, retemperando assim a alma angustiada.
Recordar foi grato, porque sendo em comum, vibramos de emoção!
Melodia suave, harmonizada a rigor em que os sons harmónicos se desdobram a tal ponto, que embalam e confortam!
Neste mundo, porém, nada há perdurável, que tudo é fugaz!
Por isso, vou partir, retomando em 20 os deveres habituais.

Vou de novo mergulhar no ambiente das aulas, para ganhar o pão e ajudar os que precisam. A luta prossegue, confiado em Deus que não há-de abandonar-me!
Corra bem a viagem, via Rumdu-Sâmbiu e venha do Brasil uma carta animadora!
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Nyangana
20-4-1976
Após uma viagem, assaz tormentosa, cheguei por fim, à Missão de Nyangana! Não que fosse tarde pois, na verdade, liguei os faróis, só por 30 minutos. Entretanto, como estava a chover, foi o cabo dos trabalhos!

Logo perto do Tondoro, à volta de 15 milhas, surgiram várias covas, todas inundadas, em que forçosamente o carro passaria.
E tão lavadinho que ele estava antes! Parecia outro!
Mas eu, afinal, já isso remonta a épocas distantes, jogo sempre com azar!
Aconteceu o mesmo, da última vez. Escusado é dizer que o Taunus 17 ficou irreconhecível!

Se o piso a trilhar estivesse bom ou algo endurecido, não era ideal, mas ficava tolerável ou então, para dizer, ainda melhor, era infernal! Daqui ao Tondoro, apenas uma vez, por toda a vida!
E eu, já por bem já por mal, fui lá três vezes!

É que a estrada, mesmo endurecida por um sol de rachar, é tão danificada por sulcos transversais, que se torna impossível transitar por ela!
O meu pobre carro, ao longo deste inferno, figura, ao que
julgo, metralhadora ligeira! Quando termino, fico tão abalado, que não posso comigo!
Ora bem Uma vez no Rundu, procurei, com avidez, um posto abastecedor, mas estava fechado. Que fazer então, se não tinha gasolina ?! Fui logo à Missão, onde obtive 10 litros.
Em seguida, encaminhei-me ao Sâmbiu, encontrando ali o Padre Roosmalen, a quem expus logo, em grande pormenor, a minha nova odisseia.
Ofereceu-me 20 litros, chegando assim a Nyangana, já noite fechada.
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Nyangana
21-4-1976
O Taunus 17 pregou-me das suas! De manhã, ao partir, não quis trabalhar! Mais exacto seria: não pôde actuar! Causa para tanto? A velha bateria encontra-se fraca, mas eu julgo, na minha, haver outra razão. Veio-me esta ideia, na fuga de Angola:
atravessou areais, onde o pó o cobria, insinuando-se por dentro.

Lembra-me, pois, que tanto o depósito da própria gasolina, como o tubo condutor acumulam resíduos que impedem, a rigor,
a circulação.
Estarei enganado? Penso que não. Eis-me, pois,ante um caso que
bastante preocupa.Se não passa o combustível ou o faz muito a custo, esgota em breve a fraca bateria.
Assim, realmente, há-de ter acontecido!
Como estava sozinho, cismei longamente, curvado, apreeensivo! Que fazer?!
Era ainda noite, mas a hora urgia.
Recorro ao Eusébio, Irmão serviçal, que já de outras vezes me tem valido. Bato-lhe à porta, mas não acode..Sendo isto assim, vou-me ao Padre Hermes, ainda na cama.

Nisto, aparece o Eusébio, que logo se apressa, afim de ajudar-me.Com ele, vêm mais 4, que se aprontam logo. À segunda retoma, fica pronto em acção.
Podia partir, rumo ao, Katere, onde se ergue o Liceu.

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Nyangana
22-4-1976
Vieram de Lisboa três cartas esperadas. De todas preciso, mas sobretudo uma dentre elas: a que se refere à baixa
Torralta.
Efectivamente, depositara ali uma certa importância e ouvira dizer inúmeras coisas, harto desagradáveis, acerca do capital.
Pelo sim, pelo não, escrevi há dias, rogando vivamente quisessem informar-me, a tal respeito.
Assim aconteceu e fizeram-no logo, sem demora alguma,
sendo razoáveis.
Afinal de contas, a verdade é outra, aceca da Torralta.
Está implicado o novo Governo, pois reuniram os Ministros, afim de concertarem uma plataforma que fosse aceitável.
O montante global é bastante elevado, uma vez que ascende, aproximadamente, a 5 milhões de contos.

Foi já nomeada uma Comissão, para estudar o assunto.
Por esta razão, nem saídas nem entradas: suspenderam os juros;
entrega de capitais e investimentos. Brevemente, ao que dizem,,
sairá um decreto, a regular a questão. Sendo isto assim, nada é
como dizem! É que eu, na verdade, tinha ficado em brasa, quando alguém profetizou: « A Torralta foi ao ar»

Ora, segundo a carta, o próprio Governo, zelador incansável do que é nacional e assim também do povo trabalhador, é que tomou a seu cargo o futuro da Torralta.
Aqueles milhões, assim avultados (5) representam, afinal, o suor e canseiras, limitações várias e grandes poupanças.

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Nyangana
23-4-197
Por volta das 7 horas, chegávamos â Missão, havendo partido, às 5 e 30, da capital do Estado. A viagem, na Ford, é bastante confortável, não obstante o mau piso, que a estrada apresenta.
Quando não chove, tudo vai sofrível, pois a niveladora,
actua diligente, ao longo da via. Ontem, por sinal, depararam-se-nos três.
A capital do Cavango lá estava como dantes: ainda sem alcatrão, com muita poeira no tempo seco e lama que farta, no tempo chuvoso. De cidade capital só o nome se aproveita.

Ali se encontram os Serviços do Estado.
Para mim, exilado, não oferece atractivos, pois quando lá vou, e são muitas as vezes, nada como nem bebo.!

Como gastar aquilo que não tenho?! Por outro lado, se a família precisa, não tenho coragem para comer e beber, tanto mais
que o vencimento é assaz diminuto: apenas 218 randes!

Estive no Banco, onde fiz o meu depósito: meramente 525
randes. É irrisório, por vários motivos, mas que fazer?!
Se nem o pouco aproveito!...
Rende 8%, representando assim um quarto da gasolina que gasto mensalmente!
Após o Banco, fui logo á Missão, onde o Padre Dutman rrecebeu de mim 2 randes e meio, pela gasolina: 2 litros apenas!
Desta maneira, ficou o litro de gasolina a 25 cêntimos, sendo na bomba a 24,Pequena diferença!
Como é da praxe, fiquei sem almoço!
Pode ser que me habitue e chegue a dispensá-lo, num futuro
próximo, Seria maravilhoso e não teria problemas como refugiado.
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Nyangana
24-4-1976
Passando, acaso, em frente à moradia que me cabe agora, de ser professor, no Liceu Shashipapo, fiquei surpreendido, ao notar uma andorinha, pousada no candeeiro.

À hora da canícula, descansava tranquíla, protegida ali pelo beiral, contra os raios do Sol Por cima da porta, avista-se um balão, no interior do qual se anicha a lâmpada.

. Estranhei o facto, por ser inesperado, mas rejubilei, com tanto à-vontade, na minha habitação.
Caso de ousadia ou boa vizinhança?
Há mais vivendas, logo bem perto. Por que não escolheu uma,. entre as outras moradias?!

Predilecção especial?! Magiquei longamente, acerca do caso, experimentando, na alma em festa, um prazer inefável, ao
devassar os segresos daquela avezinha.
Pareceu-me abismada em fundo pensar.
Tenho para mim não haver notado que eu estava passando, embora de automóvel. Segui o meu caminho, ficando lisonjeado com esta preferência.
Além disso, era já uma companhia pois, vivendo só, é-me grato conviver.
Vim-me embora dali, que eram horas de almoço e lá deixei a vizinha repousando no balão. Entretanto, fui pensando, com a mira de acertar no motivo da escolha. O que fora para mim causa enorme de vaidade tornou-se, a breve trecho, razão de conveniência, para a dita andorinha.

Como lá não resido, por algum tempo ainda, a casa é solitária, prestando-se, à maravilha , para fins especiais. Pode ali
abrigar-se de chuvas e calores, em ambiente agradável.
Que melhor estância para fazer os seus planos e reaver energias?!
Não teve mau gosto nem foi por mim só que ela preferiu o dito lugar! Apesar de tudo, sinto-me grato e folgo com o facto, por haver encontrado uma boa companhia.

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Nyangana
25-4-1976 (cont.)
Os dias passavam e, como é habitual, às 6 da manhã, abro logo a porta: há sempre alguma coisa que exige solução.
A última vez, contra a minha expectativa, achei bastante lixo, na soleira da porta. Já um pouco antes o havia notado,mas não ligava. Agora, porém, o caso agravou-se, por subir notavelmente o produto referido.
Despertando-me a atenção o lixo aglomerado, fui levado, no momento, a olhar para cima. Fico espantado!

Em esboço ainda um ninho de andorinha! Boa está ela! A coisa não vai mal! Fixado ali, rentinho à porta! Hesito um momento e concentro-me depois, afim de julgar sobre tal achado.
Por demais é sabido quanto lixo vem dos ninhos! Pois, em nascendo os filhos?!
É, na verdade, um grande bico de obra! Sempre camadas, umas sobre outras, sem escapar um único dia!

Meia dúzia de intestinos se aliviam amiúde! O pior de tudo é o lugar! À porta da entrada!
Veio a sentença, mas foi favorável: o ninho ficaria, Faltou-me coragem. para destruir o que é fruto de amor e efeito de
paciência.
Agora, já vai a meio.. Em tempo breve, estará concluído.
É mais um lar amigo, no qual serão felizes alguns seres implumes!
Deixá-los viver, ao abrigo do beiral, fique embora a testada em condição lastimosa!
Não foi bastante que me privassem a mim de coisa tão bela a que tinha direito?! Não basta que eu sofra a enorme desolação, o abandono rasteiro e o silêncio do túmulo?!

Constrói, pois, o teu lar, andorinha amorosa, porque em vez de má vontade, encontrarás, na vivenda, abrigo e protecção1

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Nyangana
Liceu
26-4-1976

Acabo de preencher um longo impresso, referente à Assistência que o Governo me presta, em caso de enfermidade.
Respeita, além disso, à minha aposentação.

Alegrou-me tal medida, pois a idade e os achaques podem originar-me sérios transtornos.
Por este processo, fico descansado, Em operações medico-curúrgicas,pago somente 20%, havendo iguais descontos , nos
medicamentos.
Para o caso importante da aposentação é também de aproveitar, embora comece tarde.! Cinquenta e oito anos!
Haviam de ser apenas 25!
De facto, levo já 31 consagrados ao Ensino, mas de que prestam?!
Grandes países, com boa Assistêmcia e belas Reformas!
Que me levou a mim a ser tão mesquinho e cheio de cuidados?! Precisamente, a incerteza do meu futuro.O que eu não sofri, durante a vida inteira!
Sobre o que levo dito, há outros aspectos, curiosos também.
Entre eles, situa-se um que passo a indicar: o vencimento anual vai sempre aumentando.Segundo me informaram, é ele acrescido em 210 randes.
Acontece que, ao fim de 1o anos, tem subida notável,
equivalendo o total a 2100 Randes.
Não é de tomar em conta?!

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Nyangana
27-4-1976
A semana passada,comunicaram, no Rundu, que algo
de novo ocorria, no Tondoro.
.Pus-me logo em brasas: com algo de certeza, respeitava aos meus!
Esclareceram tão pouco e em palavras tão escassas, que nãopude inteirar-me do que está sucedendo.

Haveriam decidido regressar a Portugal? Já partiriam ?!
Segundo outras fontes, seria em 24 do mès corrente.É tudo
nebuloso! Sem meios frequentes de comunicação e sem melhor estrada! Que pene eu tenho da minha pobre irmã!

Deixa tudo em Angola: casas e recheio; dividas por cobrar; saúde e alegria; toda a esperança e, além disso, duas filhas mortas!
Que Deus a proteja! Confio, a valer, na sua ajuda.
Eu fico no Sudoeste, Estado do Cavango, para auxiliá-los, durante a crise. É zona de guerrilha ou próxima disso, mas não importa!
Farei o que puder, na mira ansiosa de lenir-lhe o sofrimento.

O futuro dos três filhos, que restam ainda, está comprometido. Estudos sem provas, quero dizer,certificados;
impossibilidade, para continuá-los, na Patria de origem.

Empregarei diligências, para que tudo se normalize.Se o não conseguir, é porque o impossível se ergue ante mim!
Conto, neste passo, com a ajuda celeste. Deus terá pena do nosso calvário e há-de suavizá-lo.
Não nos ensinou a chamar-lhe Pai?! «Pai nosso, que estais no Céu...»
Acaso um pai descura seus filhos?! Não os vemos, neste mundo, obrar prodígios?!
Quanto não fazem os pais terrenos, vendo seus filhos mergulhar na desgraça?! Arriscam a vida , jogando tudo!

Ora, o Pai do Céu em nada fica atrás! Em tudo é grande, belo e perfeito!
Volve, Senhor, um olhar paternal, de misericórdia, para os filhos retornados, em hora tão amarga!

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Liceu
28-4-1976
Decorre um "furo" que agora me serve, para elaborar o paciente Diário, Estou sozinho e alongo o olhar pelo rio Cubango.
Nós, os Portugueses, chamamos-lhe assim. Faz-me lembrar o famoso rio Nilo, porque, sem ele, era impossível residir na zona.

Os refugiados de Angola que se escaparam, pelo Caiundo e rumaram a Caíra, ficam-lhe devendo favores sem conto. Pelo que me respeita, vivi a seu lado o tempo que medeia, entre Agosto passado e o mês em curso.

Quando viajo, é rente a ele que desliza o meu Taunus. Sem
este bom rio, não podíamos viver! Influi no clima que torna suportável; fornece-nos água para cozinhar; é utilizado como via de trânsito; dessedenta o homem como os animais; recebe detritos e dá-lhes sumiço!
Grande amigo, por certo, é o rio Cubango!
Em momentos de tristeza, fixo-o longamente, abrangendo os meus lhos a extensão do horizonte. Nisto, alcanço de igual modo
o afluente Cuito!
Que prazer contemplá-los, aqui lado a lado, quais mansos cordeiros! É belo e chocante, amargo e doce! Tão calmos e serenos... pregando aos homens bondade e mansidão!

À volta deles, há metralha e ódio, canhões e blindados!
Que grande lição para o mundo revolto!

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Nyangana
Liceu
29-4-1976
Ontem, foi realmente superlotado! Às 5 horas, já estava de serviço, conseguindo apenas finalizar a tarefa,às 22!

Não será demais para um simples mortal?!
Tão moído e quebrado eu me encontrava, a essa hora, que tudo me esqueceu, lembrando somente o acto de deitar!

Dezassete horas contínuas, em plena actividade!
Dei 9 aulas seguidas; corrigi, sem detença, 8 Diários meus e fiz o de 29; passei a stenncyl o teste de Maio e à máquina também as
respostas da Prova. Foi, na verdade, um dia bem cheio e harto
pesado, o que o pulmão esquerdo expressou doendo.

Para tomar banho é que o tempo não deu.
À revisão dos tais manuscritos dedico imenso tempo. É de notar,
para já, que alguns dentre eles,me levam meia hora!

Trabalho exaustivo e, por vezes, maçador! Em geral
agradável, demanda, apesar de tudo , enorme esforço e boa vontade. Por outro lado, é faina delicada, que tem oportunidade, nos dias correntes.. A não ser nesta data, vêm -me sérias dúvidas que eu o faça, mais tarde!
Efectivamente, os anos vão caindo e o espírito do homem
acompanha o declínio. Além disso, o ambiente é esplêndido.
Vivo na "Tebaida", onde apenas o silêncio campeia infrene,
rei absoluto e senhor de tudo!
De salientar ainda que a tarefa do Liceu não absorve, em regra, demasiado tempo, uma vez que tenho apenas as turmas do 6º ano.
Embora o livro seja novidade, pouco isso influi.
O que leva mais tempo é, na verdade,elaborar os testes, rever as Provas e lançar os resultados.

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Nyangana
30-4-1976
Hoje, vou ao Rundu, pela terceira vez, no espaço de
três semanas.Tenho ido à quinta-feira, sendo hoje excepção, pois corre já sexta, dia de mau agouro., segundo a crença popular que eu nao perfilho.
É dia de boa estreia, como diz Garrete, no seu livro formoso «Viagens na minha Terra». Foi a uma sexta-feira que se operou a redenção do género humano.
A ida ao Rundu, à quinta-feira, em que se baseia?
Muito simplesmente em o Banco da cidade estar aberto nesse dia.
Tenho, desde há pouco, uma exígua quantia que soma em Randes, 525.
Vale mais pouco do que nada ter!
Hoje, como disse, lá volto eu, para mais um jejum! São de tal cariz os dias que ali passo! Para mais, só volto à noitinha, já rente ao jantar.
Como eu, a tal hora, sou fru gal em extremo, desde que não almoce, tenho o dia estragado!
Dinheiro para gastar é coisa que não avezo! Se eu, a rigor, nem a sede afugento!
É por iso exactamente que admiro os rifões do nosso povo.
Ninguém diga: " Desta água não beberei!"
Certíssimo! A tudo chegaremos, se a vida se alongar!
Mas, enfim, não percamos a Deus, que seremos ricos!

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Nyangana
1-5-1976
Como estava decidido, lá fui ao Rundu, capital do Cavango. Desta vez, acautelei-me um bocado: peguei num cestinho, comprado em Gonçalo ( que palavra saborosa, de ser portuguesa!) e meti-lhe dentro provisão razoável.
Das outrras vezes, ia sem nada, passando o dia inteiro a ver os outros comer.
Não li eu algures uma definição da nossa inteligência? Discordem ou não, que me importa a mim?! Acho-lhe graça e bastante fundamento: "Faculdade que permite, em qualquer ocasião, dar saída imediata a qualquer problema que se levante,"

Fiz também a aplicação: manteiga, queijo e pão, fruta do pomar e até uma fanta! Ora! Foi um regalo!
Como refugiado, a ganhar uns Randes (218!), não foi nada mau!
Sim! O montante indicado não é coisa que assuste!
Caso, talvez, para dizer o seguinte: vale mais a honra que o mesmo proveito!
A verdade, porém, é que tenho regalias. Disso tratei já, na grande capital! Descontam-me logo 4,5 Randes, ao longo do mês e,
mediante isso, pagam-me na doença 80%.

Hei-de fazer, breve. acurada revisão às mazelas todas: a
pleurisia; úlcera e fígado; intestinos e diabetes; vista, ouvidos e
dentes; pele e perna direita, sem esquecer as dores que sinto no
corpo, logo ao levantar.É um bom rosário!
Paguei igualmente, o Seguro do Taunus, para um ano inteiro: 22,60
Como era sexta-feira, ( só a brincar!) tivemos um furo, no camião do Liceu!
Não foi banal, que levou hora e meia, anoitecendo, ao longo do caminho!
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Nyangana
2-5-1976
Foi há poucos dias, na capital do Cavango. Entrara nos Correios, para ali deixar algumas cartas minhas, esperando me entregassem o que havia lá, destinado à Missão.

É já costume velho, quando alguém se desloca, prestar serviços destes, pois no Cavango, não existe recurso. Quem
passa por cá, desejando ser prestável, é que leva o correio.

Pois bem. Aguardava,no interior e, enquanto cismava, entregue a meu pensar, ouvi distintamente, uma voz portuguesa.
Alvorecei-me todo, em corpo e alma! Quem está de fora, talvez não compreenda, mas é assim mesmo!

Pelo que me toca, o facto é verídico. Metido enttre negros, emergi da escuridão.
Bem sei eu, há muito, haver almas branquinhas, em muitos deles, com olhar puro a falar com bondade. Em toda (a)parte, há sempre bom e mau. Este aspecto, porém, não interessa aqui.

Aquela voz, assim melodiosa, não viria do Céu?!
Igual, precisamente, à de minha mãe, quando eu, pequenino, a
escutava, em seus braços!... Que voz tão doce, meiga, encantadora,!
Aqui, só Línguas duras, guturais, arrepiantes!
Pareceu-me bálsamo, atirado a feridas!... Talvez até uma brisa suave, por tarde amena, em Julho quente, na minha terra!
Eu sei lá! Um favo de mel, que a piedade lançou, em boca amargosa!
Deliro?! Mas é esta a realidade! Não sei descrever o estado febricitante, em que fui lançado!
Enamorado? Sim.. do que é português e amo sobretudo!.
Levantei, prestes, olhos sequiosos, deparando-se à frente belos
rostos portugueses: um jovem rapaz, com duas meninas!

Quis eu falar, mas então não pude: a emoção tolheu-me.
Se não fora isso, diria, nessa hora: a mulher portuguesa e a Língua de Camões são, indubitavelmente, as mais belas do mundo!

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Nyangana
3-5-1976
A cor da Pele.
Nunca tercei armas pela cor da noite! Capricho, talvez, da minha parte?
Já antes de ver Pretos, eu tinha problemas, ao comprar vestuário. Trata-se, pois, dum gosto pessoal que nada tem a ver com as raças humanas.
Para mim, não há distinção, marcada pela tez. Até porque
Jesus Cristo morreu, de certo, por todos os homens, sem excluir qualquer detre eles.
Ante a Religião e a sociedade civil, somos todos iguais.
Perante as raças e o papel da inteligência, nem sempre acontece.
Contra mim falo, mas devo reconhecer que há povos superiores.
Quem não admira o povo alemão? É fora de dúvida que somos desiguais. Quem cerceia elogios ao povo judaico? Quem não exalta o povo japonês? Não seremos desiguais, em qualidades preciosas, no campo do trabalho; nos domínios do intelecto; no espírito pronto de iniciativa, como ainda no fruto imediato; e nos meios de produção?!
Assim, também, há desigualdade, entre homem e mulher,
não obstante, já se vê, as modernas teorias emancipalistas!
Desigualdade não significa, necessariamente, inferioridade!
Que diria também do povo grego antigo e do romano?

Perante Deus, a morte do corpo (terreno) e o destino eterno,
somos todos iguais, por sermos filhos do mesmo Pai.
Entretanto, no campo estético,, sem que o faça por desprezo, assiste-me direito, para ter preferências. Se os brancos as têm, já entre si!
Admira, pois, que não seja a preta cobiçada, em geral, para
esposa dum branco?! Demais sabemos nós : os gostos não se discutem!
Isto não é racismo! Só preferências!
Notemos ainda que a beleza moral é um dado valioso!

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Nyangana
4-5-1976
Por que será qe eu sinto menosprezo, quando ponho os olhos na cor da noite? Já vem de longe esta espécie de fobia, face ao escuro.
Gostaria de saber a verdadeira razão, embora me pareça que náo há.de ser fácil descobrir-lhe a causa. De facto, analisamos melhor o que é estrnho a nós.
Até diz o rifão: Ninguém é juiz em causa própria.
Entretanto, vou lançar-me na pesquisa, tentando nisto ficar imparcial
Em primeiro lugar, as cores preferidas, em todo o tempo, foram para mim. o verde e o azul.. São cores suaves que não irritam os olhos nem me fazem nervos! Com elas desce a calma e vem a bonança ao peito em fervura: uma delas aviva em nós a lembrança do Céu; a outra companheira suscita a esperança.
Que doces realidades!
Haverá, neste mundo, coisa melhor?!
Quando morre a esperança, tudo se perde, tudo se acaba!
E o Céu? É o mesmo que gozo, paz e ventura!... À-parte o que aí fica, eu gostei delas, sem olhar a motivos.

Atentando, porém, na fobia acentuada à cor lutuosa, vou
descobri-la talvez em duas causas remotas: era ela a cor imposta aos jovens seminaristas, no seu tempo de estudante, o que tornava o rapaz um velho assisado, por força do envólucro! Tudo era preto_ fato e gravata, peúgas e calçado!
Mortalha já lançada?

Outra causa de peso está relacionada com a doença dos olhos, que me feriu, perigosamente, aos 26 anos.
Esteve iminente a perpétua escuridão!

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Liceu
5-5-1976
" Novos climas experimentados "
Nada existe, no mundo, como ver e viver os casos humanos. Quantas vezes eu lera, na Epopeia Nacional, as famosas palavras que encimam este Diário! Que via nelas, então? Mera beleza formal, o que não era já pouco!
Perfeita harmonia...precisão de linguagem... propriedade inigualável
Hoje, vou mais longe, porque sinto no meu ser, o efeito amarfanhante das tremendas variações!
Quando refugiado, houve temperaturas, com mais de 60 graus.
Agora, no Sudoeste, a partir de ontem, vai um frio de rachar! De dia, aquece forte; de noite e pela manhã, digo à puridade que não é brincadeira! Infiltra-se nos ossos e parece atingir as zonas da alma!
Não sei, realmente, se terei vestuário que lhe sirva de barreira! Tudo surpresas, na vida mortal!
Dói-me a cabeça e os rins assanharam-se ! Estou sozinho e sem nenhum amparo, num país estrangeiro, depois de me roubarem e ser escorraçado!
O que era para mim incentivo de prazer, na terra portuguesa ou sob lusas cores, é aqui indiferente!
Recebi, há pouco, um cheque de Pretória, cujo montante em Randes, vai a 221 Deixou-me apático e sem reacção de qualquer natureza!
Indício do fim?! A idade, somente, não inculca isso, mas
qantos e quantos não morreram mais novos?!

Por estas regiões, o que mais tortura , em ordem ao clima, são, na verdade, as grandes variações, do dia para a noite!
Os que nascem por cá têm mais defesa, verificando~se o mesmo, em rrelação à malária, doença terrível, provocada por mosquitos.
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Nyangana
6-5-1976
Os meus dias.
Como as águas do Cubango, que não vejo deslizar, assim passam meus dias. sem disso aperceber-me, Propus-me rever,logo de uma assentada, os meus originais, arrumados em grupos,havia longo tempo.Por esta razão, passam horas, passam dias e não dou jamais pelo que vai.
Se o dia fosse maior, com 25 horas,aproveitava também, imergindo totalmente na lida assoberbante.
De manhã até à noite, jamais sobeja tempo.

Às, vezes, já noite velha, contemplo o firmamento, harto
surpreendido, pelo aspecto majestoso que então apresenta.
Gostava enormemente de o fixar, por mais tempo, mas nem isso me cabe!
Corto logo, sem piedade, qualquer gosto ou deleite.Sou avaro do tempo e é forçoso aproveitá-lo, custe embora sacrifício!
Com efeito, se agora o não fizesse, julgo fundadamente perderia a ocasião.
O lugar em que resido é como Tebaida, o que permite dispor de qualquer momento livre.
Encerrado entre muros, num trabalho exaustivo, assim correm os meus dias que não vejo passar!
Deixarei coisa útil? Gostaria de fazê-lo!
Pelo menos, envido os esforços que me apontem o alvo.

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Liceu
7-5-1976
Decorre, no momento, a Prova Escrita de Geografia,
a que estou presidindo, na função de vigilante.
Enquamto circnvagam meus olhos buliçosas, pela turm C,
o espírito ausenta-se para terras da Europa, na faixa ocidental.

Sinto agudo espinho, cravado no peito, o qual, por acinte,
se aferra mais e mais, segundo o tempo vai deslizando,
Como estará minha irmã? Bacoreja-me, às vezes, que esteja em Portugal, juntamente com os seus! Antes lá na Pátria que num triste campo de refugiados!
Mesmo assim, que vida terão eles, chegando à terra-mãe, sem dinheiro nem bagagem?! É isto que me aflige!

Se ao menos escrevessem, ficaria ciente do que vai passando, embora mentissem ou, vamos lá, ocultassem o pior!
Tinha já uma expressão que falava de presença, real e autêntica!
Como a vida cruel nos afastou para longe, havendo nós vivido em doce harmonia! Presentes fisicamente, éramo-lo também pelas nossas vontades!

Agora, mudou tudo e eu vivo no exílio!
Sinto claramente faltar-me o terreno, debaixo dos pés e, como árvore, já desenraizada, estou prestes a cair, ao irromper do vendaval!
Lembra-me agora a tirada famosa do escritor latino, aquele
famoso Cícero, belo, imortal:« O tempora, o mores!»
Mudaram-se os tempos, mudaram-se os costumes!

Posso acrescentar que tudo mudou! Até no meu ser eu vejo mudanças, algumas das quais me enchem de pavor!
Haverá madrugada para a noite de breu?!

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Liceu
8-5-1976
Sábado,
Sendo fim de semana, devia ter descanso, mas por falta de costune e abundância de Provas que devo corrigir, lá foi mais um para o número sem fim!
Comecei, à terça-feira, levando pois 5 dias, nesta luta sem tréguas!, É mais árdua a tarefa que em terras angolanas mas, por fim, tudo é passar!
Por este acrescimo de trabalho escolar, afrouxei bastante a longa revisão dos manuscritos.
De lado não os pus, que seria desamor e atraso irreparável, mas
baixei para três o número de unidades que orçava por 10!

Volto agora ao normal, até às Provas de Junho.
Hoje, não consigo a mèdia, pois já são 4 horas e estou fatigado.
Verei, amanhã, o que Deus me reserva.
Valeu-me, neste dia. absorver as faculdades, a ponto de esquecer, ao menos até agora, um triste aniversário - o assassinato bárbaro da sobrinha infeliz!
Foi há um ano, pelas 4 e 8 que o facto ocorreu. Já parece, a meus olhos,, uma longa distância!
Pobre menina!
Que mal faria, inocente como era, para a lançarem no olvido total, com 19 anos?! O tigre-assassino que lhe roubou a existência, andará impune, por terras de Angola!

Dar-se-á o caso de vir a ter um fim igual?!
Não há dúvida! Quem mata, resoluto, sabendo o que faz e havendo premeditado o crime horrendo, não tem direito a ser respeitado, poupando-lhe a vida!
Como?!
Se não respeita a dos outros e é, de facto, um perigo para a sociedade?!...
Um ano sem ela! Deus a temha em glória, que será mais feliz! A cor negra e triste ficou inda mais escura,ante os meus olhos, após o crime hediondo, perpetrado em Angola, por um tigre do mato!
Entretanto, há pretos que são maravilhosos!

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Nyangana
9~5-197
Hoje, vinha o Sol a romper, quando ouvi as 7, no
relógio de parede Olhei, então, deslumbrado, para a curva do horizonte, onde o vi despontar, enquanto as avezinhas, postadas no arvoredo, saudavam, com seus cantos, o romper do novo dia.

Um alvoroço na Terra! É que as noites, agora, após o 4 de Maio, diferem bastante! Assiste, pois, razão à Natureza esfriada, para ansiar vivamente pelos raios solares!
Também eu, por minha vez, encostado ao muro, em frente da piscina, aguardava tremente o dardejar carinhoso dos benéficos raios.
Entrementes, baixo os olhos e dou, como sempre, em terras de Angola! Não posso esquecê-la! Pois ela é tão grande e opera tão fundo, num coração portuguès! Quinhentos anos de negra escravidão! - más línguas o dizem.
Como são injustos! É acto parcial apontar só defeitos, seja em quem for!
E as qualidades?! E o bem que se fez, naquele território?
As cidades mimosas, estradas e pontes, hospitais e escolas?! E o
suor derramado, ao longo de tantos anos, para arrotear e alindar-lhe a paisagem?! E as doenças infecciosas que vitimaram tantos
homens e famílias inteiras, sem proveito nem glória?!

E o trabalho missionário, epopeia de amor, que imortaliza um povo?! E os mortos queridos que ali jazem para sempre, dando jus incontestado´à permanência eterna dos seus descendentes, lá nados e criados?!
Vieram os Cubanos possuir o alheio, habitando moradias que não construíram e cultivando terras que os repelem vivamente, pois estão ensopadas de lágrimas e suor, quando não do sangue de bons portugueses?!
Onde está o Direito, a Lei internacional, o Código das gentes?!
No século XX, recuamos ainda para a barbárie»!

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Nyangana
10-5-1976 (Cont.)
Ao passo que meditava, chorando no meu peito, alongava os olhos.por terras vizinhas, a perder de vista.Chorava, de saudade e mais de compaixão!
Os petos de Angola jamais foram tão pobres como estão esndo, à data presente! Afirmado e grantido por eles próprios! Nem páo nem sossego!

E dizimam-se uns aos outros, como feras do mato! Agora, os cubanos fazem o mesmo. Não enlutam as famílias que são de outros partidos?!Pobres Angolanos!
Ouvi, em desabafo, a menbros conceituados do Governo
Transitório: «Era bem melhor o regime colonial que a presente situação!»
Quantos pretos angolanos foram já trucidados pela guerra civil?!
Falam, então, da guerra colonial?! Esta é uma sombra, comparada, ao que vemos, nos dias presentes!

Divagava eu assim, alheado e triste, pois faz um ano que foi a enterrar a nossa pobre Guida! Lá ficou ela, no campo dos mortos, ensombrada ali pelos eucaliptos, que rodeiam zelosos esse campo tumular, na cidade Silva Porto, em cujo Liceu estudara e sofrera!
Não a colheu a bala mortífera, no degrau da entrada, em frente ao pavlhão que dá para a cidade?!
Deus que tudo vê, sendo Justo e Santo, punirá decerto o crime nefando, uma vez que o juiz ficou amedrontado e pôs em liberdade o negro criminoso!

Pensava eu, imergindo no passado, quando os olhos se poisaram nas fitas prateadas do Cuito e do Cubang. Correm lado a lado, quais mansos cordeiros, aqui mesmo em frente!
Deslumbrante e patético, ao romper do Sol!
Recuei então para a época amargosa, em que fui refugiado.

Lembrei a vinhança do bom rio Cubango e os serviços prestimosos que então me ofertou! Mas, de repente, vem-me ao pensamento um facto macabro! Não sei, de horror, como apresentá-lo!
Para onde levas tu, ó rio Cubango, os cadáveres expulsos da terra
angolana?!
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Nyangana
11-5-1976
Ontem, pelas 21, ouvi o noticiário, referente a Portugal.Foi a radio, RSA que, em Língua Portuguesa, me deixou alvoroçado.
Os retornados aglomeram.se em Lisboa, constituindo um perigo para o nosso Governo.De facto, vociferam, empunham, delirantes, bandeiras escuras e recorrem, dizem eles, a todos os meios, para que seja estudada e bem resolvida a situação que os humilha.
É este, provavelmente, o mais sério problema que o Governo defronta.. Se eles fossem poucos, outro galo cantaria!
Assim,idos de Angola, Moçambique e outros centros, orçará por 1milhão.
Ora, neste caso, represenam um grito a que não podem fechar-se os ouvidos humanos. É força dupla: número e razão!
Exigem eles a criação breve de um Ministério que trate do seu caso.
Quão grave ele é! Tudo perdido!
Quem devia ajudar, nestes graves problemas, eram, sem dúvida, os que estavam no Governo, ao tempo dos tratados que levaram os povos à independência!

Que medidas preventivas foram logo tomadas, para os Brancos não sofrerem e ser indemnizados, em caso de êxodo?!
Um milhão de pessoas que choram e clamam, cheias de fome e de razão, sem futuro para os filhos?!

Com os bens materiais em mãos alheias, não é coisa banal!
O seu grito de angústia deve ser escutado!

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Nyangana
12-5-1976
Nós, europeus, complicamos as coisas, sofrendo, por vezes, sem motivo plausível. Os mesmos Brancos, residentes no Sudoeste, quer vindos da Europa, quer nascidos aqui, já são mais práticos
Não ignoro eu que provêm dos Nórdicos, pois andam por aí
descendentes de Holandeses,Flamengos,Alemães e até de Ingleses.
Admiro a sua atitude e não deixo de louvá-la.
Protestantes ou não, são mais piedosos; não ligam à etiqueta; não se prendem jamais com pequenas coisas! Eu surpreendo-me. Não estou habituado!
Passam pela frente ou ainda pelo meio, com gente aglomerada, mas não se incomodam nem dão grande tempo a escusas ou desculpas. É coisa natural: entrou já nos seus hábitos.
Por exemplo: encontrando-se no Rundu, capital do Cavango,
cumprimentam-se uma vez, mas nunca duas.: uma, à chegada; outra, à saída!.
Entretanto, o qe desejo focar, no Diário de hoje, diz respeito aos pretos..
Há poucos dias, estava eu numa aula, explicando, em pormenor, os exercícios de Inglês, quando certo aluno se leventa da cadeira, tentando em seguida abrir uma janela.
Pensei eu, nessa hora: o rapaz tem calor e não pode suportá-lo!
Entretanto, vejo o rapaz inclinar-se bastante, alongar o pescoço e premir o nariz ,pela banda direita.Um esforço brutal, seguido imediatamente de farto projéctil.
Para gente assim não há problemas!

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Nyamgana
13-5-1976
Voltemos ainda à vaca fria: celibato e casamento.
Dezenas de séculos haviam decorrido, sem que a Igreja transigisse, em questão. de celibato e respectiva dispensa.( a partir do século XII),
Apenas dispensava - e o termo não é exacto - quando se provasse haver sido nula a ordenação de alguém. Em casos destes, não era dispensa, mas a rigor, declaração de nulidade ou seja reconhecer como nulo o que era já de facto.

A lei do celibato manteve-se rígida, após o intransigente Concílio de Elvira ( não ecuménico e só em pequena parte da Igreja Latina ocidental) .
No 3º quartel do século XX, decidiu a Santa Sé alterar a disciplina, respeitante ao celibato. Assaz lentamente e no máximo segredo, exigindo, a princípio, causa para tanto.
Aumentaram logo as deserções, contando-se aos milhares os que pediram a dispensa (80000!).
Atendidos então pela Santa Sé, ficam exonerados e podem casar, se lhes aprouver.

Houve-os ainda que pediram, realmente a exoneração do celibato, mas igualmente exercer o sacerdócio, à maneira do que fazem e sempre fizeram os padres católicos, na Igreja Oriental.

Roma não cedeu. Dispensa, na verdade, mas obriga a retirar.
Já o mesmo não faz, se forem protestantes, voltados para Roma,
pois deixa ordená-los, inda que sejam casados.
Há neste caso tratamento desigual, para o que não acho razão suficiente.
Que levou a Igreja a ceder, em nossos dias, quanto à disciplina? O reconhecimento de uma forte injustiça que durou 16 séculos,,no caso de Roma e da Península Hibérica.
Tanto homem torturado!Tantas agonias, sob os olhos de Deus, que nos deu a liberdade, para os homens a calcarem!
Nota.
Pelo Concílio de Elvira, podiam casar, mas sem relações de tipo sexual
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Nyangana
14-5-1976 (cont.)
A liberdade humana é um dom sagrado e, se Deus a respeita, como ousa o homem erguer-lhe barreiras?!
Convenho, realmente , em que é de respeitar o que haja de bom, para levar o homem a maior perfeição. Um de tantos meios pode ser o celibato, mas voluntário, sem votos perpétuos.
Só Deus é imutável!
Quantas vezes não mudamos, até no msmo dia?! As circunstâncias da vida modificam-se também, e o homem peregrino, enquadrado nelas, cede por fim à pressão exterior.

Por mais que faça, não consegue flutuar: vai mergulhando, lenta, lentamente, por ser constrangido.
Não somos nós um produto do meio , em que fomos criados?!
Não há, julgo eu, contestação plausível.
Quão belo não seria um padre com seu lar, reconhecendo ser essa a vocação genuína?!
O caminho natural da Humanidade não é o celibato, mas o
casamento. Raros são aqueles que renunciam a ele, uma vez colocados em frente da vida! Sempre houve heróis, mas é um número parco. O processo normal não é nem foi o heroísmo das gentes!
Pois se Deus fez o homem, depositando nele a centelha da vida, afim de a transmitir!
Temho a convicção de ser este o caminho, no dia de amanhã.
Então o celibatário dirá orgulhosamente: fui eu que escolhi!
Ninguém me obrigou!
O antigo celibatário ( não me refiro a todos,mas enquadro
certamente a parte maior) quantas vezes não levou uma vida amargurada, incompreendido e sempre solitário, reconhecendo a desoras estar fora do seu trilho!

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Nyangana
15-5-1976 (cont,)
Alguns objectam: aos 24 anos. o homem não sabe o que lhe incumbe fazer?!

Figura ,à primeira vista, um argumento de arromba, mas esfacela-se com prontidão. Realmente, naquela idade, era para sabê-lo, em dadas circunstâncias. Entretanto, devido, como é notório, ao processo habitual de recrutamento, aos meios em que é feito e á maneira de educar, aos 24 anos, era de todo impossível tal decisão.
Que podia fazer um produto artificial,vigiado, ingénuo? Talvez em nosso tenpo o ambiente obsoleto do Seminário já seja outro!

Quando o frequentei, de 1933 a 1943, ia-se para ali, para ser eclesiástico! Ir para lá, sem poder alterar a via inicial! Tese mais falsa e princípio mais absurdo nunca eu achei!

Ser padre ou não!Estudar, a fundo, o caso pessoal está certo!
Os homens, de vez em quando, fazem-nas boas! E dão-lhe com a tal!: «É vontade de Deus!
Estudar a vocação, mas com homens abertos, de larga visão, compreensivos e muito delicados! Criar. porém, ambiente
fechado, com vigilância presente, no interior e no exterior....

.
Atormentar os pais como os priores, por causa da vigilância e dadas referências a comunicar!... Vedar,com rigor, a leitura de romances e, no tempo de aulas, qualquer jornal ou ainda revista, mesmo católicos! Nem interessava que fossem educativos!
Cortar certas folhas aos livros de estudo, porque não eram angélicas! Ainda hoje eu posso mostrar vestígios disso!
Adoptar os Lusíadas, com pontinhos a enramar, em vez de palavras!
Isso ocorria ainda, no Seminátio Maior.Devo esclarecer que os tais pontinhos substituíam palavras.

Educação angélica? Fatalidade e infortúnio... isso talvez
Eu mal sabia que havia mulheres!
Se não tivesse mãe e não houvesse uma irmã, pensaria,acaso que
havia apenas homens! Arriscava-me, pois, a sair deste mundo, na
ignorância total!
Exemplos? Apenas aqueles que impunham a fantasia e criavam no claustro a grande euforia do anorrmal..

Aos 24 anos, era eu ingénuo, sem nenhuma experiência,
ignorando totalmente os contras da existència e atribuindo a Deus o que era, na verdade, capricho dos homens.

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Nyangana
16-5-1976 ( cont. )
Ainda no mesmo campo. em que estou lançado, além das minhas ideias e maneira de sentir, há outro factor deveras
importante
Na província, pelo menos, os aspirantes ao sacerdócio eram
recrutados em meios pobres ou de recursos módicos. Para clareza, vem o que segue: em 1933, Vide-Entre-Vinhas concelho e distrito de Celorico-Guarda, respectivamente, ainda vivia como em tempos de outrora.

Se não, atendamos: a estrada via-se longe, a 4 quilómetros; ao telefone ignorava-se a existência; as fontes que havia eram de mergulho, servindo duas os próprios animais; para Escola, uma casa antiga, com terreno de cultura , até ao beiral, pela banda sul;

na área da Assistência, basta dizer que, em Julho e Agosto,
era rara a criança que não balançasse entre a vida e a morte, a ponto de chamar-se ao mês de Julho " o mês dos Anjos".

Quanto a higiene pública, só o presbitério dispunha de retrete, mas táo rudimentar e sem condições, que fazia espanto!
Quanto a luz: em treva perpétua, durante a noite, assim continuou, desde os tempos de Noé, até ao 3º quartel do século XX!
Ilustração e cultura.
Havia 3 ou 4, entre os mais antigos que sabiam ler,destruindo-se o efeito, por não haver jornais, livros ou revistas.
Religião e Moral.
Ambiente sadio e puritano.
A parte moral assim continuava, no distante Seminário que eu, rapaz ainda, com mãe absorvente ( e maravilhosa)frequentava à data.
Poderia haver,um dia mais tarde, o que é significado pela útil palavra "maturidade"?
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Nyangana
17-5-1976
.Há situações que passam despercebidàs, mas nem por isso deixam de molestar-nos! É talvez um drama, passado à nossa beira, mas que vem reflectir-se, dentro de nós! Inquietação e grande alvoroço, fadiga , enjoo!...

Em tais momentos, a angústia cescente prostra a nossa alma, vencendo-a inteiramengte! Se viesse remédo! Mas onde está?! Que rumo seguir?! Ideias não faltam, mas pô-las em prática?

E a vida martiriza, ao passo que outros se vão divertindo!
Entretanto, alguém que outros vêem cerca tenta sorrir e luta denodado, por maneira inglória.
O fruto sibilino das linhas que aí ficam origina para todos maçada tremenda! Eu, porém. que não gosto de charadas, vou prestar auxílio, sem mais delongas!

Foi uma visita ou melhor diria, várias visitas, pois havia, nessa hora, 3 modalidades. Muita animação, troca de impressões, risos muito francos, e deveras joviais, diversas Línguas e fartura de comida.
Entretanto, coube-me a pouca sorte de ficar vizinho do mais gárrulo de todos. Quando assim é, dói-me logo a cabeça e, por mais que faça, luto sempre em vão.
O pior de tudo não é isso,não!
Havia desvãos que faziam pensar!Aquela boca enorme, transformara-se em reduto, a bombardear os pobres assistentes!
Perdigotos em barda cruzavam-se nos ares, ao passo que eu, apoucado e confuso, dava um jeito ao braço, que servisse de anteparo.
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Nyangana
18-5-1976
Uma noite má! Certas notícias avolumam os males e tornam as pessoas ineptas para a vida! Afinal, quanto andava enganado! Julgando, ingenuamente, que a minha família se encontrava em Lisboa, há coisa de três semanas, vim a saber ontem que a sua residência é Grootfontein! Que grande espiga!

Oh! sorte adversa! Ainda outro campo de concentração?! Vai já para um ano, em tal inferno! É um crime nefando, contra a Humanidade! Só têm pele e ossos! Inspiram compaixão! Não
bastaria o assassínio da Guida?! Que grande seca! Se tivessem dinheiro, onde estariam já?!

Tenho para mim que ali houve truque! Pois se estavam no Tondoro, ao abrigo da Missão! Era muito melhor! Fiquei nervoso e em cima de brasas! Como estarão esses infelizes?!

Esperava carta, lá de Portugal, dia após dia. Por que não veio então, de Grootfontein? Ando intrigado! Ao mesmo tempo, se é como julgo, não penso bem, do caso exposto! Não me
informarem, logo a seguir! Provavelmente, não tiveram ainda oportunidade!
Quem os desalojou?! Para quê?! Se não havia transporte, que se meteu de permeio, para os enterrar, ainda em vida?!
Minha irmã não escreve! Palavra de honra, que não sei, de
momento, o que hei-de pensar!
A verdade pura é que fico doente,, em circunstâncias destas!

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Nyangana
19-5-1976
Estou agora ansioso porque chegue o Sr, Bispo.
Anda em visita às Missões do Cavango e deslocou-se, há pouco,
deixando Vinduque, para esta função.

Sexta ou sábado, vai aparecer aqui em Nyangana. Fio dele
somente a solução inadiável do caso que me atormenta: a minha
família, mais uma vez, num campo triste de refugiados! Que horror!
O que eu lutei, para tirá-los breve , do primeiro campo, lá no Catuitui!Livrei-os do segundo e agora não sei por que arte diabólica, aparecem, num terceiro!

Quanto melhor não estavam eles, na Missão do Tondoro! Ando intrigado e não consigo dormir! Perdi o apetite!
Sem informações não sei o que pensar! Não vindo D.Rudolf, ainda esta semana me ponho a caminho! Mas devo aproveitar, porque ele, se quiser, pode ser útil, ajudando-me no caso

Que tenho em vista, ao encontrar-me com ele?
Vários objectivos: pedir-lhe intenções, para dar à Missão; rogar-lhe ainda interferência pessoal, com vista certeira ao abandono do campo; obter prontamente qualquer trabalho, para meu cunhado e minha irmã; expor-lhe o caso, referente às passagens e falta de dinheiro, para custeá-las.

Arranjando trabalho, poderemos conseguir o que tanto desejamos: regressar a Portugal.
Trará ele a salvação aos pobres refugiados?! Tanto furo que há!
Como terão passado?! Nem alimentos nem vestuário! Que triste situação! Virá o remédio, por meio do Prelado?!

Não é meu intento onerar os outros, mas tão somente consegur trabalho, para obtermos o necessário.
Ficam no campo os que nada têm: nem dinheiro nem amigos nem valimento! Não pode ser! Há-de haver uma saída!
O grande mal foi virmos tarde!
Quantos e quantos estão hoje a trabalhar, na África do Sul!
Vieram logo nos primeiros tempos!

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Nyangana
20-5-1976
É quinta-feira! Hoje ou amamhã, visitaria, decerto, o
campo de refugiados, mas não posso fazê-lo! Situações do diabo!

Estou agora peado e não tenho solução! De facto, indo lá. perco talvez a melhor ocasião, para entrevistar o Bispo de Vinduque. Seria um desastre! É que eu, na verdade, espero firmemente que me ajude, neste passo.

Virá ele hoje? Amanhã ou depois?
Resposta certa é coisa inexistente! Razão bem forte que me obriga, desde logo, a não sair daqui.Trará o Prelado a salvção?! Deus o inspire. que a vida presente é insuportavel!

Só de lembrar-me que tenho a família num acampamento,
- ao que dizem, no Rundu - fico deprimido e assaz angustiado!
Dirigiam-se todos ao avião, mas tiveram de ficar. Não sei que foi! Armadilha? Resolução por eles tomada? Quem me dera saber!
Vou empregar todos os meios. para os arrancar daquele
tormento! Enquanto o não fizer, não consigo dormir.
Horas e horas eu levo reflectindo, sobre o caso deplorável.
Há um ano já! Que situação lastimosa! Onde tudo falta! Nem
roupa bastante nem comodidade! E o alimento?! Que inferno, Senhor!
Para ganhar o Céu, é preciso tanto?!
O Céu vale tudo, bem o sei eu, mas é tão duro viver assim !
Esfacela-se a alma, só de pensar, num campo destes!
Apenas deserdados ali se encontram, indefinidamente!

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Nyangana
21-5-1976
Hoje, perdi o receio.: afastei apreensões e falei Inglês para todo o Liceu. Após a leitura - um passo de S, Marcos - saí da timidez e fiz o comentário. Foi no Grande Largo, em frente do Liceu., estando ali professores e alunos.

Haviam hasteado a bandeira do Cavango e acabavam de cantar o hino do Estado.
Da minha parte, sendo a primeira vez, estava receoso, pois em tais casos, acho que é fácil a gente enganar-se: uma palavra que não vem ao de cima... uma construção que já não lembra...
mil pequenas ocorrências , nada agradáveis!

Afinal de contas, o caso saiu bem, não obstante o nervosismo que então se apoderou da minha pessoa.
A causa disso residiu primariamente na escassez de luz. Era ainda cedo, pelo que havia, bem entendido, falta de claridade.

Em 200 pessoas, se ao menos 10 tivessem aproveitado, já me dava por contente.
Quanto a receios. a primeira vez é que é pior! Perdido o temor, tudo vai por diantte. O Reitor achou bem, mas disse que demorei: não há espaço, em geral, para ultrapassar os 5 minutos.
Prometi ser breve, para a outra vez.
Entenderiam eles o meu Inglês? Refiro-me aos alunos, cuja preperação deixa a desejar, neste idioma, Já o caso não sucede em Africânder!
Regiões há, na África Austral, em que a primeira Língua é o Inglês,
Aqui, no Cavango, sucede o contrário: o primeiro lugar cabe ao Africânder.
Se um dia a Swapo tomar o poder, tenho para mim que o
Africânder será proibido.

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Nyangana
22-5-1976
Seis e meia. Chego à janela, sendo logo colhidi pela fresca aragem, que, nesta época, é aguda e penetrante.
As avezinhas cantam animosas porque, lá no horizonte, vêem já luzir o sorriso da aurora.
É sábado hoje e encontra.-se entre nós o Bispo diocesano, que reside em Vinduque.. Vou fiar dele a solução dos meus problemas.
Entretanto, ignoro em cheio até que ponto serei atendido.. Poderá realizar o que tanto me perturba? Terá ele vontade e boa disposição?
Ontem, ao serão, fez-me perguntas, acerca de minha irmã e restante família.
O Padre Roosmalen, que reside no Sâmbiu, deve ter-lhe falado sobre este assunto. Assim mo tinha prometido.
Afinal de contas, para o grande Brasil não vai mais ninguém!
O problema agora é o dinheiro das passagens. Somos seis! Levo quase dois anos para ganhá-lo! Meu cunhado, sem trabalho!
Que grande trapalhada! O pior de tudo nem será isso! É que eles,
afinal, saem doentes! Talvez inutilizados para a vida inteira!

Como virão do tal acampamento, em que agora os meteram?! Estou ansioso por saber como vivem, na hora que passa. Terão eles fome ou ainda frio?!
Sem roupa bastante é um beco sem saída!

Se o bispo de Vinduque me prestasse ajuda, conseguindo trabalho para dois ou três! Ao menos, para o cunhado! Mas a coisa é tão incerta como o nosso futuro!
Que pode esperar-se, do lugar, em que vivo?!
O mesmo que em Angola? Talvez pior?!
Deus seja connosco, em tão grave situação! Só Ele, realmente, é que pode valer-nos!
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Nyangana
23-5-1976
" Os Ventos da História "
A querida Angola cortou relações com Portugal, alegando a propósito, que a imprensa portuguesa se revela hostil ao MPLA.

Desconheço em pormenor o que se tem passado, mas ontem, às 21,ouvi o comentário da RDP, verificando, por modo certo, que se lamenta a grave ocorrência, por várias razões e até por falta de motivo.
Também eu a lamento, de maneira. profunda.
Queira ou não queira o MPLA, Angola é filha dilecta do meu Portugal, asim como o Brasil e outras partes do mundo.

Quinhentos anos de permanência é tempo suficiente, para deixar na alma um traço indelével, de modo especial, quando está em causa o povo português.

Por onde vão passando os filhos de Viriato, assimilam as gentes e são assimilados. Baixam eles,afinal , e fazem subir os subalternos. É um caldeamento, verdadeiro e profundo.
Por mais que tentem. não há forma nenhuma de apagar esses traços, porque estão impressos na própria alma.

Ter relaçóes com todos os povos até acho bem, mas interrompê-las com Portugal julgo escandaloso!
Alguém, no mundo, compreende Angola melhor que Portugal?!
Alguém.no Planeta aprecia os Angolanos como os Portugueses?!
O meu país ama esta pátria, porque é filha muito amada!
Anda por lá o espírito vivo de tantos heróis! Grita e clama, eternamente, o sangue lusitano, bem como as lágrimas, suores e canseiras , a vida e a morte de santos Missionários e Missionárias que se entregaram a ela, para a dignificar!

Lê-se isto nos livros, mas eu veifiquei-o, no próprio solo, onde permaneci e lidei com as gentes, ao longo de três anos, na
Escola Técnica de Silva Porto.

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Nyangana
24-5-1976

Ouvi, há momentos, Agostinho Neto, falando aosaos activistas.
Pelo sotaque, ninguém vai dizer que ele é indígena. Uma bela pronúnca que não tem defeitos! E a connstrução da frase?! Um artista perfeito! Há outra coisa que admiro também: o condão inigualável de fazer-se compreender, seja por quem for!

Julgo, na minha , que deve ser esse um dote sem par e o
maior de todos, no chefe angolano.

Quanto à substância daquilo que expôs, apreciei-o também,
pois mostrou equilíbrio e bastante sensatez.. Houve passos importantes que ele focou, de modo especial:

1. a política a seguir, no Estado de Angola, não será ditada por agentes exteriores, dando ele e o governo a sua orientação; 2. os portugueses que desejarem voltar poderão fazê-lo, se não foram criminosos ou então violentos. Não poderão jamais armar-se em patrões, havendo de integrar~-se no contexto angolano.
Achei isso bem.
Referiu-se ainda às suas relações com Portugal, as quais estão suspensas. Insinuou depois que serão reatadas, logo que os responsáveis olhem as coisas devidamente.

Juntou, em apêndice, que alguns partidos tentaram ingerir-se na vida angolana.
Também não acho razoável, mas foi somente um dos partidos,segundo me consta, Ora, em tal caso, não é o governo: muito menos Portugal!
Que muito em breve seja tudo sanado, haja colaboração e
relações amistosas.
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Nyangana
25-5-1976
Uma boa notícia! Ontem, ao jantar, disse o Padre Hermes:"Pedi ao nosso Bispo que fosse avistar-se com a sua família. Ele, amanhã, visita decerto o campo de refugiados."

Como eu revelasse alguma hesitação, por causa do idioma,
apessou-se a dizer: "Faz-se acompanhar da Irmã Etilde,"

Fiquei radiante, porque esta Irmã sabe Português e conhece
já a minha família. Estas relações vêm do Cuangar e continuaram, depois, na Missão do Tondoro, no Sudoeste Africano.

Disse-me ainda que vão chegar, da Alemanha, cobertores em barda, encomendados pelo Sr,. Bispo.
Seria excelente e impagável que meu cunhdo Martins arranjasse
trabalho, fosse ainda em Vinduque.

Era longe daqui, mas não interessava.
O bispado, ali, tem três ou quatro quintas: um furo maravilhoso
Ignoro, realmente se admitem brancos., devido ao apartheid e à
política actual.
Seria para mim enorme consolo e dia festivo, quando o soubesse. Refiro-me ao emprego e a trabalho útil para a família.

Bem me tenho mexido mas, arté ao presente, nada consegui do que mais desejava, quanto ao assunto.
Diz o povo: Nem sempre o diabo está atrás da porta! Pode ser que agora ele tenha já saído!
Para o coelho infeliz que ontem morreu é que estava, realmene atrás da porta!
Venho muito cedo, precisamente à hora em que tais bichos
procuram alimento. É uma desgraça! Encandeia-os a luz e
atiram-se para a morte, como se fossem autênticos heróis!
A primeira vítima era colossal! A de hoje deixei-a na estrada

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Nyangana
26-5-1976
Regressei do Liceu à minha residência.
Das aulas que tinha dei apenas seis, pois me disseram que podia vir-me embora. Palavras santas! Não esperei um segundo!
Tão movido fiquei e fora de mim, que me esqueci do livro e
caderno respectivo.
Vamos ter agora um espaço razoável, para descansar, visto que as aulas reabrem somente, no dia 1 de Junho. Nada censurável este belo repouso!

Amanhã, é dia santo: Ascensão do Senhor!; depois, a seguir, é feriado escolar; sábado e Domingo - fim de semana; segunda-feira, - comemoração da independência, na União Sul Africana.
Isto,afinal, quer dizer simplesmente que o mès está findo, para efeito de aulas.

Em recebendo o meu vencimento, respeitante a Maio, aproxima-se de 1ooo o montante em randes! Uma fortuna! O que faz ser pobre! Se Deus, na verdade, estiver comigo é que sou um
ricalhaço!
Que mais podem, com efeito, pobres refugiados?! De migalhas vivemos nós e nada mais!
Alguns dentre nós nem migalhas adquirem1.
Nós somos 6, Só para viagens, precisamos, de pronto, cerca
de 3000!. Quando os ganharei, com frouxo vencimento?!
Quem me dera hoje um carro que fosse para o Rundu!
Visitaria o campo, onde há só misérias! Se não fora a assistência dos Sul Africanos, toda aquela gente.desprovida de meios, estaria condenada!
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Nyangana
27-5-1976
Estou no meu quarto, descansado e tranquílo. porque hoje não há aulas. Apesar de tudo, o trabalho continua. Já revi manuscritos, em número de 12, São agora 11,3o. Ãs 7 e 3o, já estava em acçáo .
É um labor de paciência que exige concentração e força de vontade.Vou no mês de Agosto de 74. Alguns dias mais e ficam arrumados , a partir já, de 71. Quer isto dizer que, no final de 76,
terei finalizado os originais de 5 anos.
Quando acabarei? Esta lufa-lufa mete, de facto, as costas para dentro!
Os de 76 são menos trabalhosos, porque uso de mais cuidado, ao lançá-los no papel.. Os anteriores, porém, eram escritos, com certo descuido , não me lembrando então que, no
futuro, ia ser um calvário a sua revisão.

Despreocupado e harto animoso, lançava no papel o que
dia a dia me tinha impressionado, sem fazer grande caso da forma literária., como também da caligrafia.
Agora. porém, actuo de outro modo. "Gato escaldado de água fria tem medo!"
Se eu,às vezes, para ler uma palavra, gasto olhos e paciència!

Isso, na verdade, é o que me aborrece!
Quanto ao mais, não é difícil. Uma ou outra construção dá-me às vezes que cismar e requer paciência, para a moldar com outra forma
Aparece, também, de vez em quando, uma frase incorrecta, sendo arredondamentos o que mais falta. Caem.me bem, para que o ritmo seja diferente.
Que vai acontecer-vos, diários meus? Tantas horas levastes, para expor, com verdade, o meu passado inteiro, de altos e baixos, numa ànsia ingente de alindar-vos a face!

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Nyangana
28-5-1976
Leio, por hábito, jornais ingleses, apreciando sobremodo
o Southern Cross. Publicado que é, semanalmente, refere em pormenor a vida da Igreja, não lhe importando ser pro ou contra.

Eu, então, acho muita graça, já que em Portugal, era tudo censurado, não vindo a lume o que fosse deslustroso.
Após o tal 25 de 74, não sei o que se passa.
Entendo, na minha, que assim é melhor, quer dizer, a maneira exposta no jornal inglès de Cape Town.

Em tempos idos, havia em Portugal, duas graves censuras: uma, da Igreja, outra do Estado. A consequência disto era ver só, em dado sentido, ignorando tudo o mais.
Se viesse do Céu tal informação e respectiva censura! Sendo ela humana, a coisa é diferente!

Podem os homens enganar-se, alguma vez, e lá vamos nós, com eles a guiar-nos! Por outro lado, é privar da liberdade, porque o meu caminho hei-de ser eu que tenho de escolhê-lo. Sendo outro a impô-lo, aquilo que se faz vai contra a liberdade, pois temos de aceitar o que outrem prefere, tem como ideal e obriga a fazer
Seja embora equilibrada tal orientação, posso alguma vez, não gostar dela, pois não sou obrigado, por modo nenhum, a aceitar e preferir o que outrem deseja: não sou escravo nem vendi jamais o meu direito de opção
Se Deus mo outorgou, Ele somente é que pode tirar-mo!

Pois o dito jornal dizia, sem rebuço, que um bispo do Canadá está ordenando homens casados, contra a vontade e o sentir de Roma. É já o futuro que se antecipa.
Pessoalmente, acho muito bem. Devia,no entanto, informar previamente, o Vaticano
Se há-de ser ao tarde, por que não ser agora já?!
Se é, num continente, por que não em outro?! O Mestre divino deixou-nos o exemplo. Por que hão-de os homene fazer ao invés?!

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Nyangana
29-5-1976
Eça de Queiroz.

Afirma o crítico, João Gaspar Simões, que a primeira obra de Arte da nossa Literatura são 0s Lusíadas, vindo logo em seguida os Maias de Eça.
Este livro foi muito discutido e, de modo geral, não teve o placet da crítica lusa, pois se trata, a rigor, dum inventário da vida lisboeta, na alta burguesia e na aristocracia.

Muita gente se doeu e muita outra ainda se escandalizou.
Uns, talvez, por servirem ali de tipo físico; outros ainda, de tipo
moral. Haja vista Bulhão Pato, nos caracteres externos, para não
falar de outros mais.
Entretanto, o que mais pesou naquela sociedade, foi o incesto grosseiro de Carlos Maia.
Motivo de forte escândalo, ergueu logo protestos
A imprensa lusa, à-parte, bem entendido, alguns amigos, harto dedicados, ou se calou ou então veio prestes verberar o seu livro.
O autor, nesta obra, não seguiu , estritamente, os princípios da Escola. Há também romanesco, disperso na intriga

Atacara ele o subjectivismo, na célebre Conferência , efectuada no Casino.Apesar de tudo, serve-se agora de tal meio, como já fizera nas Prosas Bárbaras, no Mandarim e na Relíquia.

Aqui, aparece um hipócrita, ambicioso e beato, que se entrega, rotineiro, a práticas religiosas, para apnhar os bens de uma tia devota. Em digressão, pela Terra Santa, representa-se-lhe o drama da Paixão do Senhor que ele narra, como artista.
É isto realismo e objectividade?!
Não falo já de certas irreverências, lubrico- religiosas, nas quais o autor descai, imperdoavelmente em tal baixeza, que raro terá igual

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Nyangana
30-5-1976
Eça de Queiroz
Recmendara sinceridade, na dita Conferência. empregando a expressão " ver verdadeiro " Entretanto, nenhum escritor, pelo menos que eu saiba, jamais viu tão falso, como Eça de Queiroz.

Sempre, sempre, de máscara afivelada, pondo nos outros o que havia em si, por que não encetava o caminho da emenda, no campo moral, tentando seguir, com todo o rigor, os preceitos da escola?!
Casado que foi, em 1885, começa logo a fazer literatura de boa acomodação ao novo estado. A filha cobiçada ao Conde de Rezende, é aristocrata. Por isso, não critica a aristocracia.

A Dona Emília possui bons haveres, pelo que não fere já os endinheirados.Onde está, pois, a "Cruzada do homem de bem?!"
"Viveu de leve,escreveu de leve e morreu de leve",comentou ele, à morte precoce de Júlio Dinis, autor da Morgadinha

Por que é que então escreveu A Cidade e as Serras, que são no fundo um tipo de Morgadinha?! Vê-se, desde logo, à primeira mirada, que tudo ali é artificial! O autor em causa diz o que não sente, pois nas cartas da época revela sincero os sentimentos de outrora, a respeito de Portugal e das suas gentes.

O conhecido Jacinto da Cidade e as Serras não pssa de um títere , como a Luísa do Primo Basílio.O Mandarim como a Relíquia são, indubitavelmente, Novelas alegóricas, em que o autor foi deveras infiel aos ideais da escola; a Casa de Ramires
representa, de igual modo, funda traição, visto que o romance é mais subjectivo do que real.
Há quem enxergue nas Vidas dos Sanotos, uma nítida viragem de carácter moral, mas pelas cartas, sabe-se claro haver tido em vista arranjar dinheiro, num país de beatério

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Nyangana
31-5-1976
Eça de Queiroz.

Gaspar Simões atribui os desmandos , nas personagens de Eça, ao
instável complexo de bastardia, No fundo, é o caso pessoal que se
ergue imperioso, a comandar toda a intriga das obras queirozianas,
Isto se verifica no Crime do Padre Amaro, no Primo Basílio e também nos Maias..
O Padre Amaro, sensual e timorato seria o pai de Eça; a famosa Amélia, ingénua e ardente, seria a mãe do escritor.

Se nos voltamo agora para o Primo Basílio, divisamos em Luísa verdadeiro títere, no seu romance, a mulher volúvel que lhe lembra sua mãe... a fêmea esquentada , que põe o sexo para além da honra.
Nos Maias, reproduz Carlos o drama pessoal, de muito perto.
Efectivamente, Carlos da Maia lança-se no incesto como

arrastado por uma força fatal, à qual também Eduarda não consegue resistir. Sempre o pai e a mãe que o não desejaram, logo na concepção nem o quiseram presente, qundo veio à luz.

É de notar que só foi legitimado, aos 40 anos, por motivo
forçoso do casamento com D, Emília, que era filha do Conde de
Rezende.
Por que o não legitimaram nem lhe permitiram o convívio dos irmãos, muito antes do enlace?
Os pais do romancista casaram somente 5 anos depois que o
escritor nasceu.
Teríamos, pois,um Eça evoltado, fruto fatal a carne e do sangue, e não do amor; um escritor fino, divorciado da vida,
fazendo da mulher o pior dos conceitos.

Escritor realista e chefe de escola, havendo afirmado que iria ver
verdadeiro, ser também singelo e igual a si mesmo, pondo de parte a leve fantasia e o mesmo subjectivismo, pasou a vida a mentir, ainda após o enlace.
Jamais tirou a máscara, imprimindo assim à vida um duplo sentido, em que a amarga ironia perpassa e fica

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Nyangana
1-6-1976
Eça de Queiroz.
Dissera o grande estilista. numa carta famosa, a um dos seus admiradores - Teófilo Braga - salvo erro possível, que a
sociedade precisava, sem falta, da "bengalada do homem de bem",
para corrigir-se.

Nesse caso preciso, o homem de bem, o censor dos costumes, o
verberador zeloso de desmandos atrevidos e aleivosias morais, seria o próprio Eça.

Pergunto eu: donde lhe vinha autoridade bastante, para tal missão, se o problema sexual, segundo as suas obras, não sofre moderação nem apresenta saída honrosa?! O Crime do Padre Amaro,
os Maias famosos e o Primo Basílio não passam, a rigor, de um estendal de misérias, em que não surge castigo nem se encontra solução para os casos melindrosos, que ali se estadeiam.

Sendo isto assim, nem corrigiu nem moralizou! Bem ao
contrário!
O amor em que não cria, a força ingente do sexo que lhe dera origem, uma veemência nunca imaginada de extrema ousadia, para se vingar do nascimento ou ainda melhor, das circunstâncias dele é, possivelmente, o motivo básico de todos os seus romances.
Não vem a ser, como opinaram já alguns críticos seus, a
vingança desta classe ou daqueloutra.
Salva-se, na verdade, o artista incomparável, hipócrita e manhoso que atraiçoa os ideais da escola realista.à qual preside.

Social e moralmente, a obra escrita é falsa, repelente e condenável. Só pela morte põe dique ao sacrilégio ( Amélia );
ao horrendo incesto Maias); ao adultério ( Luísa.
Luísa, Amélia e Carlos morrem naturalmente, sem qualquer desaire, motivado por desmandos!
Sendo isto assim, vale a pena pecar e ser desleal! Bela doutrina!

Não é assim que diz o Evangelho nem é por tal processo que a sociedade melhora! Pelo contrário, quanto escreveu é novo
convite à negra traição.!

Realmente, se apenas a morte separa os culpados e ela passa na vida, como facto banal de segunda ordem, continuando os demais a viver sem remorso, onde reside então o efeito salutar, da bengalada, quero eu dizer, a moralidade, como pretende fazer-nos ver?!
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Nyangana
2-6-1976
Eça de Queiroz
Para este romancista, a nossa razão não comanda os actos, mas
é o instinto e os danados apetites que entram em acção, como se
o homem nascesse amarrado a vis paixões ou sujeito, desde sempre, a um destino fatal.
Nestas circunstâncias, não seria possível libertar-se disso.
Entretanto, a sua tese é falsa e por demais absurda.

Sabemos, há muito, por experiência orópria, que o ser humano é livre e pode libertar-se de paixões violentas: basta querer e rogar a Deus que esteja a seu lado.
Evidentemente, se o homem luta só, concordo em absoluto
que nada consegue. Embora não haja determinismo nem fatalidade, é certo e sabido que a nossa natureza, já decaída e harto debilitada pela falta original, não consegue o equilíbrio nem se impõe aos apetites.
No entanto, considerar o homem, no estado natural como
besta pura, é um erro profundo. Efectivamente, sendo ele um composto de alma e corpo, é um ser imortal, remido por Jesus Cristo..
O que o homem não pode , pelas forças naturais, é-lhe facultado pela graça do Senhor. Por isso, exactamente, a tese de Queiroz, além de repugnante , é também falsa, na própria essência.
As conversões aos milhares, com estrondo operadas, ao longo dos séculos, são formal desmentido à tese do romancista.
Podia, pois, e devia apresentar o desfecho geral , de maneira diferente, para dar a"bengalada de homem de bem"( correctivo adequado a costumes e desmandos).

Pela maneira como ele o fez , sem castigo nem emenda,
continuando os pecadores e escandalosos a viver tranquílos, (Amaro, Basílio, Maia e Maria Eduarda), a obra escrita é mais um incentivo ao pecado e ao vício que a tal bengalada do homem de bem.
Por que é que difamou as mulheres portuguesas, em seus
romances?! Serão todas assim?! Minha mãe e minha irmã não
fazem parte da lista! Como elas há milhões!
A mulher é logo santificada na própria maternidade, que Deus abençoa, não sendo pecaminosa. Raros são os casos que
formem excepção, por maneira durável e permanente.

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Nyangana
3-6-1976
A semana derradeira, fui pessoalmente ao campo de refugiados, É um lugar triste que não gosto de ver, pois só misérias ali se patenteiam.
Entretanto, como lá vive minha própria irmã, filhos e marido, foi um dia feliz e cheio de alegria. Andava ansioso por saber como estavam, Agora, sosseguei um pouco, uma vez que, do mais necessário não têm carência.
Bem hajam, pois, a África do Sul e os bons Missionários da Congregação OMI O que mais estranham é a falta de frutas, no
estado natural, e de hortaliças frescas.
Quanto ao mais, lá vão indo, por Deus. Se não fosse, realmente, a ajuda recebida, esperava-os a morte, em alto desespero
Passam de 2000, contando os brancos, pretos e mulatos.
Parti do Katere, no carro do Liceu, não sabendo, a rigor, onde era o campo. Junto à via de Grootfontein - era somente o que eu sabia.
Atravessámos o Rundu, capital do Cavango; cortámos depois rumo a Grootfontein, avistando em seguida a Base Militar,
a 5 quilómetros; percorridos mais 11, deparou-se-nos, à esquerda, o aludido campo.
Inúmeras tendas, próprias de campismo, se erguiam, por todo o lado, cercadas, a toda a volta, por enorme vedação.
É proibido entrar, sem ordem expressa , e fecha às 15 e 30.

Quem ali vive não pode ausentar-se. Precisa licença.
Um corpo de tropa estaciona, à direita, logo ao portão.
Fui atendido ali pelo Major do Exército, que autorizou a entrada, sem ir à Polícia.
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Nyangana
4-6-1976 (cont.)
Uma vez no interior, disseram-me logo que o nome dado -
Carlos Martins - não era conhecido. Fosse eu dar, pessoalmente,
um giro pelo campo! Assim aconteceu
Às primeiras impressões, julguei erradamente que náo
estivessem! Talvez em Portugal! Decidi-me, no entanto e comecei
as pesqisas.
Olho à direita; olho depois , em frente... Afundam-se os pés, no extenso areal, que é já escaldante!

,Acertei, afinal, com a direcção, pois era era xactamente do
lado esquerdo que os meus se enconravam. A pouco mais de 1oo metros!
Entretanto, como via só pretos, inclinava-me bastante a seguir outro rumo. Neste momomento, avisto minha irmã que,
primeiro ainda, se apercebera da minha presença. Foi grande a alegria de nos termos encontrado. Vivem, pois, a 130 quilómetros
da Missão de Nyangana.

Trocando impressões, contaram suas mágoas, expondo a causa de não terem seguido, rumo a Portugal. Fora culpa da Polícia que atrasara 2 dias. De outro modo esteriam já, na terra amada,
Entre as novidades, uma apavorou-me! Quantos se encontravam, na Missão do Cuangar, vivendo antes connosco,
sempre lado a lado, cerca de meio ano, tinham sido assassinados!
Parece milagre estarmos vivos!
Deus-Providência continue a proteger-nos, afim de chegarmos ao termo final.
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Nyangana
5-6-1976 (cont.)
Aquela notícia deixou-me varado! Todos mortos! Nem um
escapou!.Esta é forte! O que nos esperava, se não tínhamos fugido, em hora oportuna!
Ao saber do que estava ocrrendo, fiquei inactivo , dando a impressão de que tudo estagnava: coração e língua,.. a mesma
respiração!...Podia lá ser! Estivéramos todos alguns meses seguidos,vivendo e sofrendo os mesmos problemas, sentindo a uníssono e comungando também nas mesmas aspirações!

Prostrados, sim, desprovidos de tudo, pobres como Lázaro,
confiando apenas em Deus do Céu, mas havia em nós todos uma luzinha débil que jamais se apagara: escapar à morte, sobreviver,
iniciando,depois, outro género de vida!.

Ali aguardámos, até que um dia eu fugi para o Sudoeste, preparando também a fuga dos meus!
A Missão do Tondoro, a 330 quilómetros da Missão do
Cuangar, receber-nos-ia, em caso de perigo

Os meus familiares, vendo-se forçados pelos assassínios,
seriam acolhidos naquele refúgio. Mas era delicado! A Polícia do Rundu não autorizava! Em caso de perigo, ainda haveria tempo de escapar à morte?" Andava eu em brasas, por causa disso!

Um belo dia, arranco no Taunus, exponho a situação ao
Padre Roosmalen, na Missão do Sâmbiu e eis-nos logo, a caminho do Rundu, para ouvir a Polícia, acerca do caso.

Remate breve: ir eu ao Cuangar e trazê-los em seguida.
De caminho já, passei pelo Tondoro, onde o Padre Manfred me
aguardava já.
Qual não é o meu espanto, quando ele me diz: "Já cá estão!"
"Os que ficaram, lá no Cuangar foram todos assassinados!"
Até perdi a fala!
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Nyangana
6-6-1976
Seis e 45, pela África do Sul.
Vai rompendo a aurora, que as aves anunciam, postadas nas árvores.Manhã fresquinha, ( é tempo de cacimbo) tudo espreita o Sol e o saúda logo, com grande efusão.

Quando ele chegar, sorri a Naturez, depondo-se em breve agasalhos e mantos.
De todos os seres os que mais rejubilam são as avezinhas.
Que sinfonia amorosa não vai já subindo palas cercanias do rio
Cubango! Cada uma a seu modo expressa e modula em trilos
esfuziantes, a ansiedade e a alegria!
Também eu próprio me volto , nesta hora, para os astros saudosos, que de longe estão brilhando.
A distância de alguns é tão desmedida, que não posso alcançá-la, ainda em pensamento!Levou-os a morte, impiedosa e crua, em torvelinhos e minazes procelas, para onde o meu olhar se perdesse e abismasse!
Estão, aqui em frente,imagens a tinta, que eu olho ansiado, com imensa tristeza!
Outros vivem, neste mundo, mas a sorte cruel veio abrir largo fosso, entre eles e mim.
Rundu, cidade, capital do Cavango, estrada longa e assaz poeirenta, a caminho já, de Grootfontein! Que me dizeis vós, sobre o acampamento?Para lá, sim, me vai o coração, repartido e torturado!
Vide-Entre-Vinhas, em terras da Guarda, berço encantado, onde vi, um dia, a primeira luz, no lindo Portugal, onde estão agora os entes queridos!
Fotografias mudas, por que não falais?!

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Nyangana
7-6-1976
Ontem, precisamente, chegou o camião que transporta combustível para as Missões do Cavango.
É motorista um Irmão delicado, que vive no Caprive, Missão
Católica, sita em Andara. Passa ele aqui frequentes vezes e, sendo prestável, aguardamos alegres que nos visite.

Agora, porém, aguardava-o já com ansiedade.
Preparara umas coisas, destinadas ao Rundu, em cujo acampamento se encontrava minha irmã, Enchi a mala grande, comprada em Belmonte, (Portugal), Quase tudo vestuário.

Como agora há frio, inportam agasalhos e roupas de lã.
Vão sem medida várias espécies e talhos diferentes e. se alguma coisa não servir, a rigor, aparece muita gente que pode aproveitá-la.
Junto com a roupa meti o seguinte: laranjas e bolos, uma bola pequena e um belo ring..Faltavam outras coisas, mas não houve já tempo.
Colocámos a mala, no alto do camião, onde era assaz difícil encontrar espaço. De facto, atulhado com tambores, até à extremidade, quase vi jeito de nada fazer-se1
Entretanto, lá conseguimos.
Ainda neste dia vai chegar ao Rundu. O padre Dutman, assistente deste campo, levá-la - á, pois, ao seu destino.
Que chegue lá breve, para que os destinatários aproveitem já e muito se alegrem.
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Nyangana
8-6-1976
" Andar à frente do fogo"
A expressão não é minha.. Ouvi-a, não há muito, a um amigo holandês., que reside no Sâmbiu. Está bem observado.

Acrescentava ele:" Se o meu amigo vivesse no Zaire ou então
na Zâmbia, seria bem melhor! Aqui, porém, é muito perigoso, visto que o incêndio parte do Nortee vem para Sul."
Não pude contestar, mas que posso eu fazer, se fui obrigado
a seguir tal caminho?! Para norte, impossível rumar, quando em Agosto de 1975 arranquei de Angola. Mesmo agora não é muito fácil agir assim.
Estarei condenado, por minha triste sorte, a andar sempre em frente?! Que eu tenho fogo por todos os lados: em Angola, há terrorismo, contra o MPLA; Zâmbia e Moçambique, contra a Rodésia; no Ovambo, contra a África do Sul: tenho só uma fronteira que me pode proteger. Mas está tão longe! Só daqui a Vinduque, 800 quilómetros!

Quando, finalmente, será permitido sossegar a cabeça e
dormir descansado?! Isto não sucede, porque a pobre Humanidade sofre e agoniza! A ambição e a injustiça campeiam livremente ou já campearam, no remoto passado. Agora vêm, como é natural, funestos resultados. É duro para todos, mas ao mesmo tempo, tornou-se imprescindível.
Se não houvesse reacção, que viria a ser dos infelizes?! Só é grande pena que os bem instalados não se movam de outro modo!
A violência é condenável, mas não havendo outro meio...
Triste remédio!
Gandi e Luther King pregaram sempre e até defenderam a não violência. Seria, talvez, o melhor caminho! A Humanidade, porém, já perdeu as estribeiras e não sofre, por mais tempo, nem tem paciência!
Entretanto, era esta, de facto, a única via a ser trilhada!

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Nyangana
9-6-197
A 26 do corrente,começam as férias, pondo assim termo ao 2º período. Estendem-se apenas até12 de Julho, para no dia 13, darmos início a outra época.
Amanhã, principiam já os Testes, a que demos, em Angola o nome de frequências.
Os meus alunos despacham-se primeiro. Por esta razão é que o fim de semana já foi agitado, cabendo-me outro, não menos vivo.
As máquinas de escrever não têm descanso, em tais ocasiões.
Matraqueiam estrondeando, a todo momento, na ânsia veemente de aprontarem bem os exercícios. Se fazem dor de cabeça a quem as manobra, mais ainda incomodam os que as ouvem de perto.
Aconteceu de manhã. Assaz atarefado, intentava corrigir a
Prova do copiógrafo, quando houve de arrostar com o dito matraqueio que bastante me enervou. Além disso, tive ainda achegas que deram certa cor à reles sinfonia: um colega meu sorvia constantemente, ao ritmo da máquina ; outro, distraído, batia no chão, com uma varinha; outros ainda conversavam animados ou bocejavam, com alta frequêcia.

Nesta hora precisa, veio-me à ideia como há-de ser pesada a vida comunitária! Afigura-se impossível! A mim, julgo eu,
esperava-me, decerto, a protecção segura dum Manicómio!

Capricho de uns; incompreensão de muitos outros; taras em
disfarce; veleidadezinhas; excentricidades; critérios opostos...
Que grande maçada!
Por que detesto assim a vida social e particularmente a de
comunidade?
Fruto provável do ambiente em família, sempre humano e calmo; educação apertada, silenciosa, constrangida, no tempo de Internato; orgulho peculiar.
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Nyangana
10-6-1976
Começo as tarefas, antes de romper o Sol radioso. Com efeito, só neste momento vai surgindo a aurrora. Isto diz apenas que trabalho duas horas, antes de o Sol romper no horizonte.

Por um lado, é melhor, que fica a tarde livre; por outro. há contras que se avolumam, no tocante a mim: a pleurisia, na Serra da Estrela , não fará o pulmão refilar, com azedume?!

Agora, no cacimbo, pelo fresco da manhã, não me falta receio! Isto é bom, talvez, para gente nova, que não esteja afectada! Para mim, porém, o caso é diferente. Se não fosse lembrar-me de que tenho família, num campo de refugiados, não
me sujeitava a este regime!

Os meúdos, coitadinhos, sem futuro nenhum! Iniciada a carreira, para triunfar, tudo lhes cortaram: haveres e estudos, o lar e a pátria!
Nem se apercebem, devidamente, da enorme tragédia em que foram lançados! Que tristeza! Como é de lamentar um destino assim! Incumbe-me ajudá-los, em quanto puder! É isso, na verdade, que me violenta e faz sujeitat a todo o sacrifício.

Deus me fortaleça, para levar a cruz,até ao fim.
Havendo saúde, não me custaria o esforço dispendido. pois tudo faria, da melhor vontade. Entretanto, as mazelas agravam-se e
aumentam em número.
Como será, pois o futuro que me aguarda?!
Deus é quem sabe!
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Nyangana
11-6-1976
Sete horas da manhã.! Seis em Portugal.
Vigio, de momento, o Ponto de Agricultura. Nem Sol ainda temos!
Presente aos alunos que lançam nas folhas a prova do seu esforço e escrevem, diligentes, centenas de palavras. o meu espírito anda por longe: Portugal e Angola ocupam-no todo.

Angola! Angola! Braseiro intenso que não poupaste os laços que nos uniam a ti!Angola de Quinhentos que ficaste portuguesa, até ao fim dos séculos, ainda que más línguas digam o contrário!
Angola inesquecível que foste berço e túmulo de quem eu tanto amava!.
Ceifaste-a precisamente, quando a vida lhe sorria... quando o sonho, de asa leve, beijava docemente o seu leito de virgem, em noites luarentas que envolviam Silva Porto! Aih! Passado gostoso que jamais voltarás! Onde encontrarei aquele anjo adorado, que era luz e alma, no lar do Chitembo?!

No Céu apenas que ele fez-se para os bons. Se não fosse esta crença, era eterna a minha dor!
Sei, naverdade, que ela é feliz, pois trocou ali a sua vida amarga
por um mumdo bem melhor-
Liceu de Silva Porto! Liceu Silva Cunha! Tu lhe recebeste
o derradeiro alento e presenceaste, de modo igual, o bárbaro crime!
Que o sangue inocente derramado à tua porta, não caia sobre Angola: seja antes penhor de ventura sem igual para o povo angolano.
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Nyangana
12-6-1976
Comecei o labor, às 7 e 30, após breve dejejum, terminando somente, às dez e um quarto, vem a dizer, às 22 e 15
minutos.
Havia já muito que não fazia assim! É quase uma proeza! De facto, excedi-me um bocado! A necessidade obriga a tanto: ver os testes de Junho e clssificá-los, para logo em seguida tirar percentagens e lançar os dados, nas folhas próprias. É trabalho árduo que leva muitas horas.

Por outro lado, a revisão dos meus diários, à média de 10,
,
tolhe-me, a rigor, os tempos livres, não ficando espaço para outras coisas.Pois hoje desligava apenas, quando ia comer ou tomar banho ou ainda rezar!

Devo ter laborado à volta de 14 horas! No entanto, ficam-me ainda os Pontos enormes das turmas B e C, o que vale a dizer metade ou quase isso, pois que, na verdade, só a interpretação é que arrumei de vez!!
Por todas as razões, ignoro, efectivamente, o que seja a rigor, um fim de semana!
Nem espaço ficou, parra descansar, uns minutos que fossem!
Que isto, na zona, sem nada a fazer, havia de ser bonito!
Um deserto ingerido ou coisa aproximada!
Os pretos lá andam, na vida rotineira,falando Dirico, a língua nativa.
Brancos há poucos e são estrangeiros!
Por esta razão, impõe-se a valer, um trabalho absorvente!

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Nyangana
13-6-1976
Como as férias se aproximam, já mudou o ambiente.
Em 24, cessam de todo as actividades, encaminhando-se as gentes à casa amiga, onde alguém espera, de sorriso nos lábios, e
grande alvoroço, no peito sedento.
Em 13 de Julho,, nova empreitada, que chamamos, em geral, 3º período.
Entretanto, as féria para mim já perderam fascínio.
Houvesse dinheiro, deslocava-me talvez à África do Sul, para visitar as grandes cidades: Joanesburgo e Pretória, Cabo e Durban e outras mais.
Apreciaria imenso ver, com meus olhos, as grandes realizações que este povo inteligente e empreendedor um dia concebeu e levou a bom termo. Arejava o espírito que bastante deprimido se encontra agora!

Mas,assim, ir para onde? Sem dinheiro no bolso, sem amigos nem pátria, que esta não é minha!...
Corrido de Angola, onde ficou aquilo que ganhei, honradamente!
Admitido, por esmola, às sopas da Missão! Tolerado aqui e
recebido como professor, num país estranho, em que o Inglès bem como o Africânder são línguas oficiais!


Como tudo perde o brilho, mudando as circunstâncias!
Em Angola, acolhi-as logo, com entusiasmo, pois o Chitembo era o meu lar! Tudo ali me sorria! Mas férias, aqui,no Sudoeste
Africano!
Vou para o deserto?! No deserto andei eu quase toda a existência! Primeiramente, a solidão vigiada; agora, por fim, a
solidão no vácuo!
Se, ao menos, o bom Deus me fosse acompanhando, já eu
decerto não andava sozinho!

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Nyangana- Liceu
14-6-1976
Enquanto vigio a prova de Matemática, vou lançando
algumas notas, sobre os factos observados que mais chamam a
atenção. Os temas são diversos, acerca da vida, surgindo de fora
ou nascendo em mim.

Leventando os olhos, deparou-se-me um titulo, a encabeçar
enorme caderno: Examination Book. Foi o bastante, para me
espraiar, remontando o espírito a épocas distantes.Que voltas e reviravoltas o mundo não dá!

Quem diria,há 20 séculos, sendo tomado a sério, que junto ao rio Cubango, em terras do Sudoeste, se usaria uma palavra que nos lembra o Lácio, berço famoso do povo romano?!
"Examination" vem do Latim: examinatione(m)
Como se vê, é a mesma palavra, havendo só caído a terminação
"em", atónica.
Anda aqui, sem dúvida, a influência prodigiosa desse povo
guerreiro, empreendedor e dado às Artes como às Ciências que
bebeu no Tigre e tinha por capital a cidade Roma.
Nesta hora, o meu espírito recorda, um tanto emocionado, a
expansão romana , a invasão da Inglaterra pelos Normandos e o
alto papel civilizador, que a Grã-Bretanha exerceu, através do mundo.
As palavras, portanto, não são letra morta, quando os nossos olhos se abrem de vez. Elas falam, realmente, com eloquência. historiando ao vivo a existência do homem, sobre a face da Terra.

Colonizou o povo romano extensas regiões, no mundo de então, as quais ainda hoje, se orgulham, a valer, da sua presença.
Os povos de África, não sei porquê, odeiam de morte os colonizadores, sem fazer distinção, entre a gente de bem e aquela que o não é; entre o bem e o mal; a verdade e a mentira.

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Liceu
15-6-1976.
Ontem, às 19, rumava pressuroso â sala de jantar, quando avisto no ar uma luz vermelha, acompanhada, em ritmo, de enorme ruído. Supus, desde logo que fosse um helicóptero e não me enganava. Segui a luz com os olhos, mas logo a perdi, visto que o aparelho curvou em seguida, o que muito surpreedeu.

Entretanto, o ruído aumentava, após haver-se atenuado,
dando a impressão de que circundava o casario local, procurando aterrar.. E foi assim.
Acorremos todos, em alta desordem, pois havia de tratar-se de caso bem grave. Qual o meu espanto, ao ver de lá sair numerosa tropa, em ambiente calado e modos apressados. Veio prestes negra ideia: estará iminente um grande ataque?! Virão acaso tomar posições?!
Errara, já se vê, pois em seguida, tiram duas camas, em que vinham doentes ou cadáveres talvez.
Novo pressentimento: houve combate e, posivelmente, vêm feridos para o nosso Hospital! Nada!
Que seria... que não seria?!
Afinal, tinha sido um desastre, ocorrido na estrada, bem perto do Liceu
Um português chocara, infelizmente, com um carro do
exército. Fiquei emocionado, porque o meu patrício tinha
expirado!
O outro infeliz ia ser internado!

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Nyangana
16-6-1976

Na última visita ao campo de refugiados, perguntou minha irmã:
"Aonde vais passar as próximas férias?"

Não tive resposta que desse à pergunta. Melhor: respondi, com lentidão e alguma tristeza: vou passá-las ao Chitembo, que é o meu lar, à data presente.
Também ela ficou triste. É que o Chitembo morreu de vez e não volta mais para o nosso viver. O Chitembo é Angola, e a vida aqui tornou-se um inferno.

Chitembo amado, que recordas tristemente um passado tão belo!
Por que razão havíamos de deixar-te, se as nossas raízes mergulham no teu solo?! Se o nosso viver decorria bonançoso, em teu seio ardente?! É melhor esquecer e não memorar o que tanto amámos!
Nesta hora, porém, já sei aonde vou, durante o mês de Julho. Se Deus quiser, partirei daqui, a 25 de Junho, demandando a capital,
para tratar os dentes.

Terei boa companhia, o nosso Padre Baetsen, residente em
Nyangana, que ali se encaminha, em serviço da Missão. Prevejo, desde já, que ficarei hospedado, na casa dos Oblatos, o que, para
mim, há-de ser magnífico! De outra maneira, não era possível!

Gastar dinheiro! Se a minha família precisa tanto!
Soube, ontem de noite, que uma Imã Religiosa é dentista, em Vinduque. Que bom seria, se tudo obtivesse, gratuitamente!
Verei, então, o que a Providência me vai proporcionar!

Ao mesmo tempo, conhecerei novas terras, embora no Sudoeste!
Que isto, realmente, não é África do Sul! Venha, pois, sem tardança o dia 25! Os meus dentes enfermos já se negam ao trabalho!
Cá me fica o sentido no campo de refugiados!

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Nyangana
17-6-1976
O perigo das vacas, ao longo da picada.
Mais um desastre, ocorrido na picada! Que tristeza! Portugueses
mortos! Eram refugiados, no campo do Caprive! Tinham ido ao Rundu, num carro militar. Já de regresso, aqui perto do Liceu, teve fim a sua vida, tão ingloriamente!

Alguns talvez escapem, de modo especial o que foi para Pretória!Assistência não faltou, pois seguiu de helicóptero.
Infellizes portugueses! Não bastava já o infortúnio sem par,
que lhes batera à porta?! Tinham a vida, único bem que restava ainda, e até esse deixaram, em terras do Cavango!

Desastradas famílias! Fugiram de Angola, afim de escapar à morte cruel, e esta seguia-os, inclemente, impiedosa!
Informaram ontem que não foi embate nem algo de semelhante com encontro de viaturas: simplesmente de vacas! Crande trapalhada! Com medo ando eu, desde que vim!

Dormem na picada; repousam ali; dejectam lá e fazem tudo
quanto apetece! Eu penso três vezes no mal e desgraça que o gado representa para os motoristas! Surgem animais de todos os lados, a qualquer hora! Para este gado, não há barreiras nem sequer pastor!
Que pode esperar-se?! Por que é que as autoridades não obrigam os donos, exigindo pastor que vigie o gado?! Por que não levam as reses para os seus cabanais, durante a noite?!

Ficarei eu, um dia, também sepultado, naquele dormitório?!
Quem me paga o dano?! Bem me acautelo! Quanto a velocidade,
pelo menos de noite, orça pelos 50, quando não menos!

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Nyangana
18-6-1976
Dois colegas docentes partiram hoje mesmo, para não voltar, mas guardo os seus nomes: Mr. Gous e Mr, Smith.
Ascende a três o número deles, a partir de janeiro.
Para mim, este facto não é caso banal.Fico emocionado e, se não
choro ao vivo, as lágrimas prontas assomam nos olhos.

Eram bons rapazes que serviram no exército e, ao mesmo tempo, instruíam os negros a quem davam aulas.
Universitários, seus modos gentis. prestabilidade e boa camaradagem foram sempre timbre que muito os impôs.
Esta manhã abriram corteses a porta da sala, em que eu lecccionava, aguardando fardados e harto alegres.

Supondo logo o que estava em causa. pois já entre nós havia substitutos, levantei-me prestesmente, afim de os saudar, aparentando alegria, A verdade, porém, é que eu fiquei triste.
ao lembrar-me ali do que estava sucedendo.

Cá no exterior, olhei para outros que se haviam despedido, verificando bem se era visível a sua tristeza. Pareceu-me que não.
Serei eu, por ventura, diferente dos mais? Que sina é esta, para acompanhar-me a todo lugar, fazendo-me sofrer, por mim e pelos outros?!
Terei vivido muito? Assim o creio eu, pois na verdade, viver é sofrer. Aquele que não chorou, não sofreu nem penou... que não amou nem odiou... esse tal não viveu.
Qual suíno que engorda, enlambuzado, na escura pocilga,
passa ele neste mundo, em que não deixa vestígios.
Talvez mais útil um pobre animal!

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Nyangana
19-6-1976
Em 1917, a Virgem Senhora veio do Céu, à Terra
Portuguesa, aparecendo como é sabido, a três pastorinhos, na
Cova da Iria. Trazia consigo importante mensagem: pedir aos
Portugueses oração e penitência, espalhando pelo mundo essa pia devoção.
Após seis apariçóes, entre Maio e Outubro, constou sem
demora que havia um segredo, confiado a Lúcia pela Virgem Maria, Foi-se revelando, a pouco e pouco, mas a última parte não é conhecida.
Dirá ela respeito aos sucessos de Angola? Estará incluído o
mundo português? Palpita-me que sim! Previsto, quiçá, o derrube do Regime e fatais consequências?

Se assim foi, então Portugal não viveu a mensagem e sofreu o castigo, melhor talvez, recebeu aviso, em lugar de castigo, pois este é reservado para a outra vida. Que pena então!
É triste e lamentável não havermos atendido à voz da Senhora!

Que sofrimento atroz, grande e incalculável! Que horrorosa desgraça caiu sobre nós! Será isto o fim?! Calculo que não! Quem pode saber o que o negro futuro nos reserva ainda?!
Os bens perdidos; a família assassinada; a alegria esmorecida,
a fome e o frio; a insegurança; o trato desumano!

Cortejo longo e sem fim de miséria e desgraças!
Que a Virgem tenha pena da gente lusitana, infeliz e desditosa!

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Nyangana
20-6-1076
Oito menos 15. Os sinos da Missão repicam festivos,
derramando assim, pelo arredor, sua voz jubilosa. É Domingo, afinal, e há forte razão, para a festa de hoje: comemora-se no sítio, o Corpo de Deus.
A mim faz-me espécie! Em Portugal, é dia santo de guarda e realiza-se o festejo no dia conveniente, isto é, em quinta-feira.
Desde ante-ontem, erguem-se no largo, diversas bandeiras, que
ostentam várias cores..Quando as vi, fiquei intrigado, pois era sexta-feira e não via razão que fosse bastante a justificá-las.

Por outro lado, não ostentam imagens ou qualquer desenho:
é pano liso que tem somente o formato de bandeiras. Houve de perguntar, que andava perturbado e não me vinha à ideia o que pudesse estar por trás daquilo.

Trata-se, afinal, de assinalar o percurso da grande procissão.
Em Portugal, eram deslumbrantes tais procissões. O que
havia de melhor, em questão de vestuário, era estreado, nesse mesmo dia. Haja vista Pinhel. As alfaias mais vistosas, que as igrejas possuíam, vinham todas para a rua, em sentida homenagem ao Senhor Humanado!

Câmaras e Municípios , com suas ricas insígnias, marcavam presença, em grande aparato. Aqui, não é dia santo!
Compreendo agora a razão por que chamam Portugal terra da Virgem e do Santíssimo.

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Liceu
21-6-1976
Ontem foi, na verdade, um dia especial, com ar acentuado para ter sequência, duramte a noite. Um dente a doer é
coisa vulgar! Sucedia em Portugal, com bastante frequência. Agora, porém, afim de variar, são dois, ao mesmo tempo. Bela sinfonia!
Por esta razão, foi um dia desigual! Passei-o inteiramente
abarcando a face, do lado esquerdo e o maxilar da mesma banda.
Metia dó a mim próprio! Um dente molar, a que a placa se prende, e outro incisivo: ambos de baixo e do mesmo lado!

Uma coisa a propósito: agora me lembro de que este lado é màrtir! O meu olho esquerdo; ouvido esquerdo e pulmão esquerdo! Forte desgraça! Só tenho uma excepção que me possa
defender: a perna direita algo afectada, e não a esquerda!

Lá vou a Vinduque, no dia 25, na esperança fagueira de encontrar remédio para os males da existtência! Se não, vem a
morte que a tudo póe talho!
Voltando aos dentes, que me trazem prostrado, o Padre Baetsen condoeu-se de mim, pedindo à enfermeira ajuda e medicina.
Muito gentilmente deu-me logo comprimidos, para tomar um, a ver o efeito. Caso não chegasse, tomaria outro, antes de dormir, Fiquei só com um, pois surtiu efeito, permitindo assim que repousasse, de noite.
O meu pensamento centra-se em Vinduque. Santo António me acompanhe e ajude no intento.

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Nyangana
22-6-1976
Amanhã é final de período e, passado outro dia, lá vou eu para Vinduque. Quinta-feira, já fico livre, Pedi ao Reitor
me dispensasse de actividades, o que fez gentilmente. Em razão disso, pelas 13 e 20 de amanhã, estou em férias.Não seriam más, se não fosse por doença, a ida a Vinduque.

.Os dentes, extenuados, havendo realizado a sua tarefa, por longo tempo, recusam-se agora a continuar. Por esta razão, devo atendê-los, pondo-os à margem. Bem me custa isso, porque nada iguala os que Deus-Providência me dispensou. Além do mais, há o ralar importuno da extraccão.

Apenas os caninos se encomtram, possivelmente, em estado razoável. Ficarão só os 4? Veremos, na capital, a opnião da dentista. A Irmã Hermana é que vai encarregar-se de resolver o caso entre mãos.
Tenho prenúncios de que nada vou gastar, o que é muio bom nesta ocasiao! Poupar é o lema! No fim do mês, terei acumulado
12oo randes. se nada gastar com as minhas mazelas. Entretanto, sendo preciso, que rem«edio tenho eu?!

Precisava revisão todo o meu organismo! Pagando-me, na verdade 80%, é de aproveitar! O que faz na vida a necessidade! Ou melhor: o que fazem os homens! Ter dinheiro na Torralta e, na hora mais crítica, não poder utilizá-lo! Será crível,realmente?!

Mas,enfim, aguentar e cara alegre se, em boa verdade, eu for
capaz!
Entretanto, lavro aqui o meu protesto: por lei nenhuma, deste mundo ou do outro, eu podia ser privado daquilo que precisava e só a mim pertencia.

Quando no Catuitui, vitimado pela fome, e sujeito à morte,
pedi à Torralta o fruto do meu suor e efeito de poupança, foi-me recusado. E eu sem nada a que pudesse ater-me, havia de morrer, se estranhos de longe não me ajudassem.

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Liceu
23-6-1976
Na Revista "To the Point", li há dias um artigo que
me deixou a transpirar! Reflecti e meditei, seguindo-se depois um longo cismar.
Sobre Portugal, dizia aquele órgão coisas arrepiantes., como pot exemplo: banca rota certa; situação igual à de 1580; integração na Espanha.
Fiquei revoltado e pensei longamente na justeza do artigo.
Havia, além destas, outras asserções, que já me passaram, mas guardei fundo as três apresentadas. Seria crível?!

Não terá Portugal, em hora tão grave, homens capazes que livrem o país de cair na humilhação?! Se era para isso, que o deixassem estar! Mas eu não posso crer! Entre os Portugueses, há-de haver ainda quem seja crente, assaz generoso, sacrificado e bom patriota , afim de evitar à minha Pátria a maior degradação!
Por outro lado, achei a local bastante exagerada e um pouco
tendenciosa.
Porquê?! Ignoro as causas. Se outras não houvesse, para criar sensação e interessar o público! Não é assim,afinal, que os leitores aumentam e , do mesmo passo, vai subindo o capital?1

É desagradável fazer tais juízos, mas o ccaso é tão grave e assume, desde logo, tais proporções, que se torna impossível conservar-me indiferente.
Repudio, indignado, qualquer dos três pontos! Um juízo sensato não pode certamente, induzir tais dislates!
Integração na Espanha?! Só dum louco varrido!

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Nyangana
24-6-1976
Integração na Espanha! Considero isto um ultrage grave à honra portuguesa! Que o diga um estrangeiro é lamentável; que se ja um português, é escandaloso, inadmissível!

Oito séculos de vida e pujante existência, com feitos gloriosos e uma Literatura, rica e brilhante, que em certos domínios,, fica a par das mais belas, são títulos nobres que individualizam e conferem jus e cunho de etrnidade..
Uma Pátria eleita, como foi Portugal, haveria, neste mundo, causa tão forte,que fosse capaz, que pudesse riscá-la do concerto das naçóes?
Existiria, no globo, factor de influência ou voz desbragada, que pedisse ou inspirasse a destruição pronta do nosso Portugal?!
Absurdo! Contra- senso! Idiotice!

Portugal é eterno, como eterna a sua obra!
Ressussitariam os mortos, de tamanha afronta,se alguém o propusesse! Um ser aniquilado, mantendo a vida e a mesma consciência! Deixar de ser! Viver sem norte, ao sabor de estranhos! Negar-se a si próprio!
Se tal acontecesse, o que Deus não permita, decidia logo naturalizar-me, onde quer que estivesse.

Entre os absurdos, ficaria bem este, com poso de chefia.
No momento preciso, em que se respira a independência por todos os lugares,ia o meu país integrar-se na Espanha!
A sua alma é indestrutível!
Fiquei horrorizado, só de ler o artigo!. Se eu fora assinante,, pediria me riscassem, para não ver o meu nome envolto em afrontas"
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Windhoek
25-6-1976
Partimos, já ontem, da Missão de Nyangana, âs 12 e 35, rumo a Grootfontein que dista nada menos de 380 bem medidos quilómetros. Do Rundu para cá , era tudo novidade, pois vira apenas o campo de refugiados. Apesa de tudo, nada há para admirar, uma vez que a paisagem é monótona e triste.

Arbustos espinhosos, de cor verde.negra, mais ou menos carregada, , segundo o lugar, onde vegetam a custo.

Já bastante perto de Grootfontein, a 20 quilómetros, aparece realmente uma novidade: a estrada asfaltada!
Chegados à povoação, habitada por brancos, surge outra novidade: o alegre comboio!
Em seguida, cortámos à direita. Mal vencemos 10 quilómetros, sorri-nos logo a Missão Católica, Maria Bronn, onde pernoitámos: eu e padre Baetsen, e Irmã Margaret.
Dormiu-se confortável, embora o frio da quadra viesse deslustrar a bela hospedagem.

Hoje, de manhã, após o dejejum, levantámos ferro. Eram 9 menos 15. Esqueceu-me há pouco, fazer alusão à passagem de fronteira, entre o Estado do Cavango e o do Sudoeste Africano. É,na verdade, como se fossem nações.
Veio depois Ottavi e sua farta cadeia de largas montanhas, já longe de Grootfontein, segundo-se Otjivarongo, em cuja Missão nos deram o almoço

Sempre bem recebidos, rumámos a Okahandjia, onde um belo café caiu â maravilha..
Restava, por fim, a última etapa, já bastante reduzida - 70 -quilómetros. Vinduque aparece, acolhedora e risonha, na pessoa informal do Bispo ds didade.
Assim finalizou, com belos augúrios , o dia 25

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Vinduque
26-6-1976
Às 8 e 3o, aguardava eu, no Consultório a chegada de
de alguém.A Irmã Dentista marcara essa hora, para atender-me.,.
Demorando-se uns momentos, enchi-me de nervos, ao lembrar
certos casos, que ficaram logo para escarmenta. Haja vista o da Guarda, que levou 4 horas.
É caso inédito e parece uma história., mas garanto e porfio que foi real!
Entretanto, ela chega., examinando os dentes: uma raiz e dois a doer.
Uma placa metálica , difícil de trabalhar! Seguidamente, arranjou logo massa, para tirar as formas e meteu-mas na boca, uma de cada vez
Realizado já o primeiro acto, que foi fastidioso, com dores insuportáveis no maxilar,inferior,mandou-me sair, para voltar outra vez,às 4 da tarde.. Aguardo, pois essa hora, para extracção de alguns dentes
Neste comenos, como padre Baetsen fosse ao Mercado, fui
com ele, percorrendo juntos a Avenida principl - a Kaiser Strasse -. tráfego de carros, movimento de peões, animação e ruído.
De tudo o que observei ficou uma impressão: a população branca revela apreensão e tornou-se, há muito, pouco expansiva; a gente nativa, pelo contrário,expande-se a capricho, girando sempre alegre e descontraída, ao longo dos passeios.
Quanto a folclore, marcam as ciganas, È gente que não cede!
Vestidos amplos, arrastando pelo chão, um xaile curtnho e lenços na cabeça, de bicos à frente.
Se vamos para as cores, variam com a idade.
Nas pessoas adultas, é amarela; as que são jovens optam pela verde, por ser cor de esperança.

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Vinduque
27-6-1976
Hoje, posso já falar da magnífica tarde que ontem passei. Como estava previsto, lá fui segunda vez, para continuar as minhas diligências, relativas aos dentes.

Correu tudo ao invés daquilo que eu jujgava: dores que horrorizaram e brocagem dos dentes. Não foi, bem entendido, para obturações, mas unicamente para a massa aderir. Ali estive, pois, cerca de hora e meia, em grande tormento e funda ansiedade.
O molar grande, esquerdo, inferior, não queria abdicar de seus direitos antigos. A cada arremetida, largava um pedacito e
ficava indiferente,
Dizia a Irmã:" Poor father"
Então, eu já não sabia que devesse fazer. Parecia, nessa hora, que o meu pescoço iria voar, para todo o sempre! Puxões violentos, sacudidos, inúteis... assaltos imprevistos,de um modo e de outro... vários instrumentos a influir na tortura!

" Poor father! Poor father!!",lamentava a Irmã.
E os instrumentos revezavam~se breve: ora um, ora outro!
Enquanto isto passava, as lágrimas corriam, pelas faces macilentas que ficavam banhadas!

Os olhos tristes nunca mais se abriram e julgava ser então o fim da minha vida!
Quando, finalmente, diz a nossa Irmã " finish" dou um ai fundo e
abro os olhos, mas lentamente, receando ali maior desgraça!
Estava o caso arrumado! Entretanto as cavidades sangraram, ao longo da noite e no dia seguinte, molestando-me a valer!, não obstante os comprimidos que já tinha ingerido.

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Vinduque
28-6-1976
Hoje,:foi um dia em cheio: estive no Dentista, após a
Eucaristia; o sapateiro consertou-me os sapatos, pelo que desembolsei 5,15 randes; encomendei nova chave, para a porta do Taunus; recebi do Sr, Bispo grossa encomenda de 300 intenções; depositei no Barklay cerca de 500 randes; entreguei o
relógio, para nova corda, limpeza e óleo;

Corre bem a vida, embora haja frio. A prova do facto é que, em
pleno dia, me encontro juntinho ao irradiador. Se não fosse ele,
ficava gelado!
Por modo geral, é tudo bastante caro,exceptuando. ao que parece, fato e calçado. A chave aludida não foi dispendiosa, já que levaram apenas 75 cêntimos ( 24$00 ) .

Entretanto, os protectores, para os meus sapatos, se é que eles, na verdade, merecem tal nome, dada a sua exiguidade,custaram 30 cêntimos ( 9$00 e 60 centavos) Isto foi lume!. As meias solas, à volta de 4 randes e 85.
Dei uns giros a pé, ao longo da Kaiser Strassa que, afinal de contas, é o ponto de encontro, onde passa toda a gente.
O grande comércio acha-se ali, por ser,de facto a rua mais longa. central e concorrida.

Quanto a monumentos, vi apenas um, dedicado ao fundador.
Ergue-se o dito junto ao Município, com esta inscrição: "Curt von
François,founder of this town.1890".
Templos católicos há três somente, inccluindo a catedral. Os
demais são todos protestantes, da confissão luterana
Hospitais há três, estando um deles anexo à Catedral,

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Vinduque
29-6-1976
Lá veio hoje um dia soalheiro. Por esta razão, fui dar
um giro, afastando-me da Kaiser Strasse, Cheguei, porém, à
conclusão de que não vale a pena, uma vez que não desperta,
interesse de maior.
Voltei, pois, à Kaiser Strasse.Todo o comércio ali se acha,
Amigos e conhecidos é procurá-los, no dito lugar.

À primeira vista, dá-me a impressaão de uma cidade pequena, já
que andando alguns passos, no sentido transversal, quer dizer,
perpendicularmente à rua principal, vêem-se desde logo, pequenos
montes, embora surjam casas, dispersas,no horizonte.

Entretanto, para os seus habitantes ( 50000), deve estender-se a
perder de vista, jamais sendo os prédios baixos, por via de regra,
Arranha-céus também os há, conquanto sejam poucos.

Os próprios armazéns e super-mercados não vão além da cave,
rés do chão e 1ºandar.
Justifica-se o facto por duas razões: Clima de extremos e
abundância de terreno,

A nota mais colorida que o folclore apresenta vem das
Religiões e das ciganas. Quanto a elas, despertam a atenção, pelo
modo original e deveras antagónico. Tudo o mais é batido e assaz
coçado.
Quanto a psiquismo, notei amiúde o olhar agudo e sempre
vigilante do vendedor conturbado, que nos espreita de dentro,
com ar de aflição
Para exibicionismo, nada há como as ciganas, ombreando com
elas certas pretas janotas, que desejam também fazer boa figura

******
Vinduque
30-6-1976.
Comunicou hoje o Sr.Bispo que alguém me procurou,, com
fins de visita.Mostrei-me surpreendido, pois ninguém conheço na
capital.
Trata-se, afinal, do Sr. Mateus, lider considerado, na
Comunidade lusa desta cidade. Reside, há anos aqui e ficou de
encontrar-me, no próximo Domingo, ao fim da MIssa.
Pode acontecer que arrange trabalho para meu cunhado.. Um
sonho?
Há sonhos que, âs vezes, se tornam realidades.Vamos ver, porém, o que isto dará!
Quanto a cuidados, o trabalho realmente não é comigo.
Trouxe alguns livros para leitura bem como Diários, para rever,
mas nada fiz e, possivelmente, nada farei.

Satura-se a gente com aulas e exerc´cios. Ao chegarem as férias
é preciso arejar e distrair o espírito Demais, aquela região, onde eu
trabalho,, figura um deserto! Ali, não há nada! Só já longe, fora do
Estado, é que se encontra o que é necessário, em grande
abundância, Digo eu "longe", pois Grootfontein dista da Missão
muito para cima de 400 quilómetros.

O tráfego rodoviário é já bastante, principalmente, a
determinadas horas- Fora da cidade, é ele intenso até Grootfontein.
Uma vez ultrapassada esta cidade, vem a estrada sem asfalto, em
que o pó e os buracos dominam o ambiente.
Para a semana, se Deus quiser, lá vamos regressar!.

******
Vinduque
1-7-1976

Cento e setenta famílias regressaram a Angola! Deus acompanhe e
guarde essa gente, mas tenho para mim que é cedo ainda, como
decisão. Se não fossem já, perdiam o direito àquilo que possuíam.
Não sei, na verdade, que doutrina é essa! Perder o direito àquilo
que se ganhou. de maneira honrada?!

Eu tenho por intocáveis os bens adquiridos, com o suor do meu
rosto! São fruto do meu trabalho, das minhas canseiras, privações e
renúncias.
Navalhadas no Direito? Manha e prepotência? Latrocínios a
montes? Roubo e manigâncias?

Quem nos há-de julgar é o Supremo Juiz de vivos e mortos. Eu
creio no seu amor e na Providencia que a todos ampara!

Voltar para Angola? Quantos e quantos gostariam de fazê-lo!
Não há segurança! Faltam garantias! É preciso paz, muito respeito,
confiança no Poder!
Não continua a medonha guerrilha, levada a efeito pelos
Movimentos de Libertação?!

Ao abrigo das cidades, talvez seja possível organizar a vida mas,
fora delas, há perigo de assaltos,violações e desmandos.

Quando iremos nós à querida Angola, segundo vamos também a
diversas partes, sem receio algum de mal-estar?! Sem ouvir insultos
e palavras ofensivas?! Onde é respeitado aquilo que não
roubámos?!
Guerra de tribos, guerra de ambições! Guerra maldita de
violências e ódios, soprados de fora, quano acabarás?!

Ambição e vaidade, língua perversa, e deturpaçao,insinuações
maldosas, quando terminará o vosso reinado?!

Não há, por ventura ,coisas mais úteis para gastar o tempo e
dispender a vida?! A dizer mal constrói-se o futuro?!
Demolindo apenas, ergue-se a nação?!

É fácil e cómodo atirar pedradas, sobretudo a indefesos: mais
honesto e prudente lançar mãos à obra, aproveitando sempre o que
já existe ou tentando melhorálo!

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Vinduque
2-7-1976
Há já três dias que o Sol nos visita, depondo a máscara,
medonha e feia que aterra as gentes!
Aí pelas 10 horas, é sempre um regalo sair à rua e dar umas voltinhas na Kaiser Strasse, ponto de reunião e lugar de encontros! Isso tenho feito, pois dentro de casa, é frio de rachar!

Entretanto, ao soar das 15, pouco mais ou menos, urge debandar,
que, às 16, não há quem aguente.
Estas digressões repetem os motivos, sistematicamente:
armazéns recheados, mercados soberbos, onde há tudo, tudo quanto a gente precisa; objectos de luxo, que atraem os olhares, mas causam mal-estar, pela alta dos preços;

tráfego ordeiro, sem haver turbulências, esperando todos que chegue a sua hora, sem qualquer atropelo; senhoras esticadas, talhadas a rigor e sempre feitas de uma só peça, ostentando vaidosas a sua roupagem e belos adereços; meninas presumidas que expõem ao sol aquilo que a decência e o mesmo recato mandam ocultar;

pretas e mulatas que passaram a manhã a puxar o cabelo, exibem agora os "altos e baixos", em ar de desafio, às congéneres brancas; rapazes cabeludos a passear também, harto desoprimidos, gozando a vida na paz da inconscência;

velhinhos, já trémulos, chupados e franzidos, quais múmias animadas, a passar também, oprimidos e surpresos, de quanto se oferece à vista cansada!

Surpreendeu-me em extremo alentado casal, já passante dos 70, no super-mercado do hotel Kalahari.
Em movimentos bem sincronizados, pareciam, salvo seja, dois grandes balancés
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Vinduque
3-7-1976
Escrevo na biblioteca do Paço Episcopal. Virada a Poente,
é um regalo estar aqui, das 15 às 17. Suas amplas janelas
permitem entrada aos raios solares, dando a impressão de que o vento mudou
Infelizmente, dura bem pouco, visto que, às 18, é já de fugir! Refugio-me então ,no quarto fronteiriço, mais frio ainda. O que vale então é o irradiador, com três resistências, o qual gera bem-estar e faz desejável a estadia no local:

Aqui, na biblioteca, rodeiam-me velhos livrros, quase todos eles em Alemão. Nem admira, pois a Língua falada, neste quarteirão é, realmente a alemã.
Aí,na cidade, falam-se três: Inglês, Africânder e também Alemão
Não me refiro, bem entendido, às línguas nativas que, segundo consta, são em número de 15, no Sudoeste Africano.
O bispo católico é também alemão e pertence aos Oblatos de Maria Imaculada - OMI.
É um Prelado moderno, compreensivo e deveras humano.
Eu, que vim de Portugal, habituado como estava, à herança da Meia Idade, não deixo de admirar e, porque não dizer, pasmar até de quanto observo.

Um bispo da época, sem etiqueta que fuma e bebe com toda a gente, embora moderado; que lida com os padres , sendo
um entre iguais e oferecendo cigarros; que ri também e folga com todos, pondo-os à-vontade e criando ambiente, que atrai e
conforta;
que provê sempre às necessidades e, em vez de tirar, ainda acrescenta; que veste e calça, a capricho seu, não olhando à cor nem ligando jamais a exterioridades.
Confesso, desde já, em boa verdade,que é um mundo diferente, bem mais humano e apetecível do havia presenciado, na Península Hibérica.
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Vinduque
4-7-1976
Ultimei ontem o caso aborrecido que me trouxe, de longe a esta cidade.: tratar os dentes.
Tive horas largas de suma apreensão que bastante apoquentaram, julgando erradamente que voltaria pior. Eram
tantas as dores, apesar do tratamento, que cheguei, por vezes, a desanimar. É que havia dois dentes que me afligiam também,
após a intervenção, incluindo neste número o que prende a placa..
Dava isto que pensar!
A religiosa dentista fez todos os possíveis e tratou-me sempre,
verdade seja, com desvelo e carinho. Encantou-me, realmente, a sua gentileza, solicitude e cuidado!
Cinco vezes sem falta é que tive de lá ir.
Que seria de mim, se não fosse ajudarem-me?! A longa viagem
( 1700 quilómetros); consultas - 5; vários remédios; extracção de
dentes; adaptações na placa; junção de novos dentes; estadia gratuita.
Devo muitas atenções ao bispo de Vinduque e aos PP Oblatos. Nunca esperei os 15 dias, assim passados, em Vinduque.
Hoje somente vou entrar em ligação com a Colõnia lusa,
residente na cidade. Será bom precedente. Quando voltar, já tenho mais campo, sendo então possível distrair-me um pouco mais e trocarmos impressões.

Pode assim criar-se nova linha de acção e talvez, se não me engano, um futuro diferente, para mim e família,
Deus intervenha, guiando os meus passos!

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Vinduque
5-7-1976

Às 16 horas, no dia de ontem, celebrei na Catedral para os portugueses, aqui residentes. Juntaram-se muitos, como era de
esperar, ultrapassando o número 100. Alguns não vieram, por falta de notícia.
Até comunhões houve bastantes.
No fim do acto, relacionei-me com algumas famílias, recordando, a propósito, o Sr. Mateus e o Sr, Ribeiro.

O primeiro deles ia fazer anos, convidando-me logo para tomar parte no copo de água. Aceitei, de bom grado, proporcionando-me todos um serão agradável. Houve boa música, vinho do Porto, um bolo volumoso e vários acessórios.
Conversámos longamente, pondo sempre em foco a tragédia consumada que Portugal e o seu império acabam de viver.
Fiquei maravilhado com tanta franqueza e sinceridade,
reveladas neste encontro.
Vai a mais de 300 o número de lusos aqui na cidade.

Voltando ao Sr. Mateu,s, disse ele. à puridade, serem já 48 as suas primaveras. É natural de Angola, onde trabalhou, por 26 anos.
Reside aqui, vai já para 13, havendo instalado uma serralharia que já desmomtou, enviando-a breve para Potugal,
aonnde nunca foi. O seu valor será agora de 22000 randes.
O Sr, Ribeiro era, noutros tempos, agente da DGS, em terras de Angola, e trabalha na cidade.
Receiam o futuro, vivendo apreensivos

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Vinduque
6-7-1976
Regressei há momentos dum pequeno giro que dou habitualmente, após o almoço.O interor das vivendas é bastante frio, na época presente, razão a ponderar que nos leva amiúde a procurar o Sol, cá no exterior.

Saindo, pois, observam-se coisas e medita-se, às vezes. Hoje até
chorei. Vi,sem esperar, um casal português, no Banco
Barclays. O que chamou a atenção foram duas palavras, entoadas
ali pelo marido que saiu brevemente.

Ela ficou, e eu, como é natural, fixei-a discretamente, segundo-lhe os movimentos.
Pessoa de meia idade, ostentava no rosto, sobretudo nos olhos, sinais evidentes de grande apreensão.

Eram olhos receosos, investigadores, olhos que se abrem desmesuradamene, como usam de ser os das pobres crianças, ao
ficarem sozinhas, com passoas estranhas.
Lia-se claramente um drama profundo, nos seus movimentos. Como se,realmente, fora criminosa, tentando fugir de tudo e todos, ela dava a impressão de estar comprometida.

E eu pergunto, no seio da minha alma : qual o seu crime?
Haver trabalhado tão arduamente e ver em mãos alheias o fruto do
seu esforço?!
Ser banida e expulsa de sua própria terra, deixar casa e lar, sendo
obrigada a voltar-lhe as costas?
Gostaria imenso de falar com ela, mas a coragem é que faltou!
Por que temeis, portugueses honrados?! Os criminosos não fostes
vós!
O nosso Deus que é bom Pai, há-de ajudar-vos e fazer justiça.
Os homens, na verdade, só chegam, por fim, até onde Ele quer
Atingido o risco, apaga-se a voz, sendo inútil o seu ódio. Por tal
razão, cessa logo tudo!
O 25 de Abril, risonho e fagueiro, foi empolgado por mãos
criminosas!
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Vinduque
7-7-1976
Passeando a pé, ao longo do jardim, fiquei surpreendido,ao
topar um abrigo, com legenda bilingue: Inglês e Africânder.
Tratava-se afinal. dum monumento.
à primeira vista, fugurava uma estufa e, por não ter lido, mil
suposições acudiram logo.

Procurei flores, em plantas mimosas, mas nem vestígio!
Matéria acinzentada, num tom escuro, mais ou menos carregado
junto com pedras de sílex, era tudo o que os olhos divisavam, lá no interior.
Fez-me aquilo espécie
Interor recatado e vedação tão perfeita, que nem a humidade ali pode entrar, é caso original e dá voltas ao miolo!
Fui-me às legendas. Seria, provavelmente, o caminho acertado.,
caso entendesse o que estava exarado, em frente de mim.

Preferi, naturalmente, a Língua inglesa. Não vou fazer citações,
que me encontro afastado,mas tão somente dar linhas gerais.
Trata-se, reza ela, dos ossos dum elefante, ali abatido por
um homem pré- histórico, no ano recuado 3200. antes de Jesus Cristo
Faz macaquinhos no cérebro curioso, a data precisa que ali se exarou! Diz ainda a legenda que foram feitas 14 análises, para
determinarem, com todo o rigor, a sua antiguidade.
Radio Carbon 14 analyses.

Eles que o dizem, eles o entendem!
Registo o que vi.Eu é que não minto! Recordo também que a dita
legenda faz ainda alusão a instrumentos de pedra, que vemos
disseminados, no meio dos ossos
Que durreza a dos ossos!

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Vinduque
8-7-\976
Amanhã, segundo parece, arrancamos de Vinduque. Já não
é sem tempo, visto que cerra a nossa quinzena! Evidentemente,
esta cidade, em questão de férias, é melhor que Nyangana: há mais
distacções! Entretanto, não pude,realmente, satisfazer-me, não
obstante me porem â-vontade e haver aqui óptimas pessoas.

Factores houve que se opuseram firmes à minha tranquilidade:
enorme apreensão, no tocante à família, por não saber ao certo onde
se encontra; frio que sobeja, descendo hoje a 1 negativo; falta de
vestuário, acomodado à estação; sensível atraso dos meus trabalhos,
no que toca a Diários e sua revisão; ignorância total das moradias,
onde residem os portugueses.

Entretanto, se nada fiz, pelo menos descansei. Havia mais de 1
mês que andava a comer pouco: os dentes o exigiam. Ficava sempre
com fome. Apenas ontem saí daquele ritmo.
Se o meu Alemão chegasse já para acompanhar, falando com
alguém, outraseria a minha vida aqui. Mas ainda é pobre: só muito
de espaço!
Lucrei alguma coisa, apesar de tudo: estou melhor dos dentes
que se aguentarão, assim o creio eu, por mais três anos. Veremos,
pois, como diz o cego.
Vamos sair, logo de manhã, chegando talvez no fim da semana!
Posso agora dizer que já vi a capital do Sudoeste Africano.

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Vinduque
9-7-1976
Há três igrejas, católicas romanas, aqui na cidade: a
Catedral,Pioneers Park e klein Windhoek. São logo. pois, três
freguesias. Os demais brancos ou são protestantes ou da igreja
reformada, originária da Holanda..
O bispo de toda a área reside na cidade, visitando anualmente
as Missões Católicas do Sudoeste Africano.

Pertence o Prelado aos zelosos Oblatos de Maria Imaculada,
(OMI),cujo fundador nesceu em Marselha (sul de França)
Os padres Missionários, sob jurisdição, são todos alemães,
à excepção de 5, originários da Holanda.

O Estado do Cavango é o mais povoado,, já quw a população
vai quase a metade, em toda a Namíbia.
Como se vê, esta imensa região é mal povoada, pois regista apenas
1 magro habitante, por quilómetro quadrado.

A população total não chege a 1 miilhão, ficando-se por746000.
Na conferência da capital, só as etnias estão representadas: não os
Partidos. É mais prático assim, visto que eles ascendem a 32. Por
outro lado, o Caprive e o Cavango mão têm partidos.

A Língua mais falada, no domínio comercial, é decerto oAlemão.
Nos actos oficiais,asim como nas Escolas, é o Inglês bem como o
Africânder.
Regiões aí há, nas quais prevalece a Lígua Inglesa; noutras,
porém é o Africânder. No entanto, são ambas oficiais.

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Nyangana
10-7-1976
Regressei ao meu "lar"após um dia em viagem,que veio
cerrar-se na Missão do Sânbbiu, a 80 quilómetros da Missão de
Nyangana
A falta de gasolina e os os nossos bons amigos que ali nos
receberam, levaram-nos , desde logo a tomar a resolução: ficar e
dormir.
O padre Roosmalem é um anjo humanizado. mas agora me
lembro de que estou a começar, por ode, realmente, devia concluir.
Vamos ao princi pio, observando a lógica.

Às 5 da manhã, estava eu a pé,com fato de Verão e temperatura
abaixo de zero. No dia anterior, marcara o termómetro 1 grau
negativo,mas ontem, ao que vimos, havia mais frio. Sempre a
tremer, que a roupa leve não ajudava!

Lembrei-me então de que era refugiado! Enfiei-me, pois, na
carrinha Chevrolet que, por estar frio, não pegara.Valeu-nos, para
logo, o terreno declivoso.
Postos em marcha, após a refeição, com o padre Henning, Vigário
Geral, alcançámos breve a estrada de Okaandja.

Encantados da vida, eu e padre Baetsen, Missionário holandês,
iniciávamos alegres o extenso percurso, quando repentinamente
perdemos em cheio a visibilidade. É nevoeiro, disse eu, habituado
como estava aos nevoeiros cerrados da Serra da Estrela.

Experimentando, com as escovas do Guarda-vento, notámos que
roçavam, arrastando-se ali bem penosamente.

Que havia de ser? Congelação do vapor de água. Que podíamos nós
esperar então, com temperaturas abaixo zero?! O remédio foi
parar.Eu é que, realmente, estava pelos cabelos, tiritado de frio.

Contra a força não há resistência! O meu colega, sempre bem
disposto e conversador foi quem valeu! Encostou a carrinha o mais
que pôde, preparando um cigarro, para distrair

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Nyangana
11-7-1976 (cont.)
O que sucedeu à nossa Chevrolet não foi caso único, pois
ao longo da via, outros carros mais estavam parados.Alguns deles,
porém, deslizavam pela estrada, como se nada houvesse ocorrido,
Questão de aquecimento, já se deixa ver!

Passados minutos, divisávamos já bem a faixa de rodagem,
enquanto se notava, por maneira clara, aumento sensível da
temperatura, no interior do carro. Foi uma alegria verificar este
facto!
Eis-nos, pois, em marcha, afim de vencermos 800 quilómetros!
Surge-nos Doebra e logo Okahadja., mas apenas em acenos. Rumar
a Otjivarongo!
Aqui, sim, fizemos paragem, para aliviar o nosso físico e meter
"carburante".Que bem caiu ele no estômago gelado!

Troca de impressões, um telegrama para a Holanda, gasolina
pronta para o veículo e toca de seguir, que o tempo não espera! .
Vencidos que foram alguns quilómetros, surgem as momtanhas
em cadeias sem fim.

"Ottavi mountains", diz o padre Baetsen.Vieram logo ideias,
associadas, em breve, com terroristas, A temida Suapo vai fazendo
avarias, utilizando as montanhas, para fugir à tropa.
À vista de Ottavi, cortámos à esquerda, para ir a Tsumeb, a
cidade mineira. Aqui almoçámos em belo Restaurante, com rica
esplanada.
O alvo, agora, é Grootfontein.

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Nyangana
12-7-1976 (cont.)
Grootfontein significa para nós, que vivemos no Katere, o
fim innmediato da civilização, uma vez que ali tudo acaba já:
caminho de ferro; estrada asfaltada e tudo o mais!

Quando chegamos ao termo, vindo para norte, assalta-nos logo
penosa sensação, pelo mal iminente: longa picada, sinónimo
irritante de estrada com buracos e falta de tudo, para a gente
abastecr-se
Por esta razão, com toda a certeza, aproveitou Padre Baetsen
aquela oportunidade, abastecendo-se ali de quanto precisava.
Em seguida, pusemo-nos em marcha .

Agora o meu alvo é o acampamento, sito apenas a 16
quilómetros, antes do Rundu.
Os meus olhos cravam-se amiúde nos marcos da estrada, chegando
por fim ao suspirado local.

Obtenho informações de um Oficial, mas deu-se então o que eu
mais temia: minha irmã saíra. Havia já partido para a terra amada!
Fiqiei triste e pensativo, de os não encontrar mas, por outro lado,
uma certa alegria me invadiu também. Estão na sua terra! Para
mim, era assaz doloroso vê-los em campos desta natureza.

Que Deus os ajude! Agora, aguardo ansioso notícias de todos.
Nada ali fazendo, seguimos viagem até ao Rundu, voando
prestesmente para a Missão do Sâmbiu, onde fomos recebidos pelo
Padre Roosmalen.
Estávamos â-vontade, como se fora, decerto, o lar de todos nós!
Como é bom e sedativo o convívio de alguém, quando fala a
confiança e ri a amizade
******
Nyangana
13-7-1976
Regressei do Liceu, onde por Deus, iniciámos já o terceiro
período.Os alunos eram poucos, o que levou o Reito a dar-nos
feriado, aguardando, no entanto, que chegue o meio-dia..

É prático assim, visto que amanhã estarão quase todos. Dar
matéria nova, sem acompanharem, obriga a repetir, o que
é perder tempo e lidar em vão.

O dia de hoje foi assinalado por dois factos opostos: carta de
minha irmã, que já chegou à Pátria; uma barreira de pedras que
danificaram o pobre Taunus.
Como era de noite, ao findar uma curva, só me apercebi do
obstáculo danoso, quando estava sobre ele. Aborrecimento e
revolta simultânea, pois o carro, em seguida, fazia já ruído.

Enfiaram-me então a carapuça, dizendo peremptórios serem
jogos de crianças. Verdade no caso ou esboço de assalto? Foi
este, na verdade, o primeiro desgosto que me atingiu, cá no
Sudoeste!
A carta de minha irmã era já esperada, com ansiedade, pois
nada sabia, após saírem do Rundu. Hoje ou amanhã, vou já
responder.
Afinal. enviaram-nos logo para Trás-os-Montes, pois vivem
agora. em Pedras Salgadas. Fica a povoação não longe de Chaves
e Vila Real.
Chegaram bem ao termo, embora a longa viagem fosse bastante
penosa. A comida não é má e têm dois quartos.
Do mal o menos!
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Nyangana
14-7-1976
Voltando uma vez mais à carta de ninha irmã, foi lida e
relida, após dias de amargura, em que estive esperando. No emtanto
uma conclusão bastante amarga ,tirei do coteúdo.

Quanto ali se diz é tudo bem vindo e, de modo nenhum eu posso
dizer que não interessa. Apesar de tudo, o que mais apreciava, é que
não veio.
Narrar a viagem, com trabalhos â mistura, fica bem e satisfaz que
ansiava por sabê-lo, em grande pormenor. Falar de seus encobtros,
na cidade Lisboa ou de Africanistas que já encontraram, lá para
Vide, é assunto secundário, se bem o comparo com outros muitos,a
que não alude.

Em plena igualdade, quanto a circunstâncias, viriam outros
primeiro e de modo nenhum podiam tomar-lhes o lugar devido.
Eu preferia decerto que me falasses do teu agregado, referindo-te
bem a cada um dos membros.

Nada haver´para dizer?! Mas o que mais senti e quase me feriu,
ainda está para vir.
Nem uma palavra que revele saudade ou traduza, ao menos, leve
amargura, por eu ficar só! Eu que sofri tamto e estrano a fundo, a
falta de todos vós!
O espinho mais se crava, atendendo prestesmente a que fiquei no
Cavango, região semi-desértica, somente para ajudar.vos, caso
fosse necessário!
Faço grandes madugadas, só para servir-vos, no infortúnio! ...
Mas agora vejo bem que a nobre gratidão é palavra esvaziada e sem
nenhum sentido!
Estarei enganado? O tempo o dirá!

******
Nyangana
15-7-1976
O velho Taunus, comprado em 1962, estranha a fundo a
rodovia desta região. Bem pena me faz, mas a solução?!
Necessidade obriga! Se tivesse dinheiro, para comprar viatura, mais
adequada a esta via! Isso. porém, náo é comigo! Se nem mando
repará-lo!
Trepidação no volante ... avaria nas luzes... panela rompida, no
embate duma pedra, absorve- choques já inoperante e não sei que
mais!
Foi uma pena haver de utilizá-lo, em picadas lastimosas! No
tempo das chuvas, há lama por toda a parte;Nem quero falar de
buracos e sulcos, ao longo da picada nem do gado perigoso que
ali passa a noite!
Quando vêm as secas, é poeira que sobeja!

Coisa irritante o problema do gado: Nao vejo isto em parte
alguma! Gado sem pastor! Durante o dia, há visibilidade,
mas por noite fora?!
Que vida a minha! Obrigado a comer daquilo que não gosto!
Compelido também a não deixar transluzir aquilo que sinto!

É contra os meus princípios, estabelecidos há muito já!
Quanto durará este meu purgatório?!Só linguas estranhas!, 11 de
nativos que não entendo nem prezo! ( refiro-me às línguas!).
Só gentes remotas que não ligam importância nem sequer
transmitem calor algum!
******AQUI
Nyangana
16-7-1976
Em conversa amiga com Mr.Snyman, fiquei agora ao par
de várias coisas que passo a registar.
Quanto ao meu lugar, no próximo ano, depende de Mr, Burger,
Secretário do Ensino para o Cavango.

É natural e até de esperar que fique onde estou, mas pode acontecer
mudarem-me depois para outro sítio.
Sucedendo isso, há mais dois Liceus, no Estado, em que trabalho:
Rundu e Tondoro
Por uma parte, seria bem melhor um dos outros dois, mas por
outro lado, já estou bastante preso. O Reitor é bom homem e
sinto-me bem , na Nissão de Nyangana.

Gostaria de ficar dois anos mais
Acrescentou ainda o citado colega estarem projectados mais dois
Liceus: um em Andara, - extremo sudoeste; outro, após o Rundu -
30 quilómetros, a caminho do Tondoro

A maior dificuldade reside, ao que pensa, no professorado que
não quer os lugares! Não há estradas, faltam distracções e a
população é constituída somente por negros. Além disso, é lugar
semi-desértico, de tudo afastado.

O lugar do Cavango é contíguo do Ovambo, pela banda Este e
limita com Angola , pela banda Sul.
Dizem ser ele muito mais evoluído e reunir, seguramente, quase
metade na populaão do Sudoeste Africano.
Será, por isso mesmo que o terrorismo é ali mais activo
Fiqiei também sabendo que se eleva 7 o númrro de etnias, na
África do Sul .
Coisas mirabolantes , para os que vêm de longe habitar estes
páramos.
******
Nyangana
17-7-1976
Faço tantos planos, acerca do futuro, que neles me enredo,
sem ver saída. Quantos anos ainda lutatrei no Sudoeste, , afim de
granjear as pobres migalhas que o governo de Pretória resolveu
oferecer-me? Dependerá,julgo eu, de vãrio factores.

Em primeiro lugar, desempanha, na verdade, acção importante o
rumo das coisas, no meu país.
Se o governo actual, em que pomos confiança, me devolver o
dinheiro que guardo, na Torralta, será menor, com certeza, o
número de anos a passar, no Cavango..

Região assim árida, apavora a só ideia de uma longa estadia.
Deserto,à minha volta e dentro de mim! Viera de Portugal. fugindo
à solidão e lancei-me, por meu mal,, noutra ainda maior.

Castigado por Deus, ao ter eu em vista rumo diferente?Aviso do
Céu. para melhorar os meus própruos actos? Cruz e peso da vida
nos segue, a toda a hora? Quanto mais se lhe foge mais pesada se
torna?
Deus é quem sabe. A nós, compete, decerto, aprender a lição,
extraindo dela o efeito devido.
Verdadeiro o provérbio: O homem põe e Deus dispõe!. Se eu me
convencer de que é Deus actuando, aceitarei de bom grado, as
próprias decepções, logros e fiascos.

De outra maneira, continuarei a lutar por um futuro humano,
aceitável e condigno.
Também tenho em mente ajudar os infelizes, caso haja meios,
para cumprir este meu desejo. A família mais chegada ocupa, neste
aspecto, o primeiro lugar

******
Nyangana
18-7-1976
Efectuou-se um " retiro",na Missão de Nyangana.
Tomaram parte nele Religiosos e Padres, havendo também Irmãs
da Congregação. Algumas dentre elas trajam à civil, ninguém
distinguindo, pelo vestuário, que se doaram a Deus.
Achei interessante o que para mim foi grande surpresa.

Habituado em Portugal ao modelo ultrapassado de"retiro sem fala",
segui com atenção esta norma actualizada.

Sentia, no meu país, que algo estava errado, mas a boca não se
abria, que a formosa liberdade, para comunicar o que pensava, fora
em tempos decepada.
O Seminário a tolhera primeiro, marcando-me a fronte, para
seguir tão só o que outrem imaginava.
Com os padres alemães e holandeses que missionam o Sudoeste,
a coisa é diferente, em toda a extensão e profundidade.

Falam e conversam, fazem, a capricho, leituras estranhas, ouvem
noticiários, fumam e bebem, trajam como querem.
Não é isto maiis humano e consentâneo à psicologia?!

No entanto, concentram-se, nas horas designadas, fazendo
devoções, com unção e piedade.
Comparando agora "o clássico processo" com o moderno,
acho este encantador e bem mais atraente e com mais fruto
espiritual.
Nos retiros da Guarda, reinava o silêncio, de maneira total,
criando-se do jeito, ambiente inadequado, para os tempos modernos
em que há mais lisura e sinceridade.

A vida hoje é diferente da antiga: a extroversão caracteriza a fundo
a nossa época e o homem quer ser livre como Deus o criou.
Se algo contraria os sinsis do nosso tempo, fica logo ultrapassado e
já não tem lugar.
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Nyangana
19-7-1976
A minha solidão é maior do que nunca!Será possível viver
deste modo?! E será credível operar-se mudança!.À minha roda, só
estrangeiros que não se entendem nem eu os compreendo!

Vivo ensimesmado, não falo com outrem e ninguém, por aí , se
dirige a mim. Este viver é quase absurdo., impossível e trágico.
Praticamente, ando sem falar, dia e noite , noite e dia!
Será crível? Pode não ser, mas é verdade!

Como foi isto?! O 25 de Abril, os sucessos de Angola, a situação
indecisa que vigora em Portugal! Que grande maçada!...Se cá
houvesse alguns portugueses! Mas não! É tudo estranho! Tudo
ininteligível. Alguns deles falam Inglês,mas fogem sempre para o
Africânder.( 60%)
A mim não convém expressar-me em Inglès, porque desaprendo.
Quanto ao Africânder, é cedo ainda para acompanhar a conversa
normal! Se eu gostasse da língua... mas ela é tão feia! Tão gutural e
incacterística! Tão mal soante e desprovida de qualquer atractivo!
É uma língua nova, ainda em formação.

Por outro lado, está condenada, previamente!
Artificial como é, usada também por colonialistas, odiados ao
máximo e indesejados, por causa do apartheid, tem por isso mesmo
de acabar um dia, para vigorar a língua inglesa.

Além disso, não é idioma que intesesse alguém, fora do Sudoeste.
Se não caíssem os brancos!...Descendentes de Ingleses são 40%
De Alemão já sei um bocado. Isto me facilita a aprendizagem
do Africânder.
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Nyangana
20-7-1976
"Julgamento de camaradas"
Assisti, pela radio, aos interrogatórios,chegando-me pena dos
atingidos. Tratava-se, afinal, de um caso de assassínio. Um
elemento do povo fora abatido por uma bala do exército.

Avaliando o caso, pelas respostas que os réus apresentavam, um
grupo de soldados saíra do quartel, em busca do comandante.
A certa altura, um elemento do povo bateu num pioneiro a quem
deu logo tremenda bofetada, Foi nesta ocasião que o soldado o
alvejou
Ignoro, por enquanto. o correr do julgamento, não sabendo, pois,
qual o desfecho e as penalidades que atingiram os culpados.
Entretanto, cumpre-me agora fazer um comentário.

.Insinuei mais acima que os ditos soldados me encheram de pena.
Eu condeno o homicídio e não posso tolerá-lo. Vou mais longe até:
quem mata outro, sabendo o que faz e procedendo a frio, com
premeditação, deve morrer.
Se não respeita,afinal, a vida alheia, criando na sociedade
grande mal-estar e intranquilidade, não tem nenhum direito a que
respeitem a sua.
"Sabendo o que faz..."

Qual será,na verdade, o grau de formação de que os soldados
podem dispor? Que fizeram eles, durante vários anos?
Matar, extorquir, roubar e assaltar, Tenho isto para mim:
a culpabilidade não é como parece, à primeira vista.

A formação que tiveram e os hábitos adquiridos fizeram desses
É o que há-de suceder aos bandos terroristas, quando os seus chefes
e dirigentes não sejam moderados, prudentes, circunspectos.

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Nyangana
21-7-1976

Ando agora a rever Diários passados. Que viver desconsolado
o que então era o meu! Que pesada cruz se fixara, nos meus
ombros, para vergá-los pronto e atirar-me ao chão!

Que triste sina a do homem, a sofrer do próximo aleivosias
tamanhas que envergonham as gentes e causam a morte!
Razões para tanto? Vaidade ferida, orgulho balofo e atribuição
de poderes que estão, afinaj, fora da órbita!

Chamei Deus em ajuda, para minha defesa, livrando o meu ser
da voragem e da morte! A última palavra é pertença do Céu, que
o nosso Deus é justo e vinga os inocentes.
Vingado estou eu, que o 25 de Abril destronou o "pavão".
Gostava de vê-lo, mas não de bem perto, que a baba emitida podia
atingir-me! Folgaria de fixaá-lo. no rosto de mentira que sempre
ostentou, dizendo-lhe apenas: vês, empertigado, figura de Satanás
e encarnação de mil diabos negros?"
O Céu me vingou de teu sujo proceder!

Capitalista balofo,invólucro de matéria que para nada presta,
apeou-te a Revolução, cuspindo tua cara e pondo-te na rua!

Ai tens a recompensa de tanta vilania, tiranete cruel, irritante e
vil de tantos corações! Se não subisses tanto, era bem menor o
trambolhão que deste, mas o teu orgulho a ninguém poupava. Aí
tens a recompensa de tanto exorbitar!

Não foi preciso julgarem-te, nos tribunais de além-túmulo"
Ainda neste mundu recebeste a punição!
Abaixa, então, a proa, que sopra vento contrário! Detesto, sim.
teu louco agir, embora te não odeie, por não ser cristão.

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Nyangana
22-7-1976
Disseram-me em Vinduque, nas férias de Junho, que alguns
autures lusos tinham sido eliminados. Deu-me um baque no peito o
coraão alertado. Antes de saber quem eram os escribas, sofri logo
por todos a afronta aludida e levada a cabo.

Admito, na verdade, que haja alguns autores, cujas ideias
maléficas sejam pasto deletério. para o cidadão. Isto aplica-se mais
no campo religioso,moral e social..Parece-me bem que lá, em
Portugal, pouco haverá disso.

Perguntando eu, pois, quais os atingidos, citaram-me Camões.
Estremeci, de horror! O maior poeta, nascido em Portugal! O
autor egrégio da mais bela obra-prima que se escreveu, neste
mundo! O arquitecto imortal da Epopeia Lusitana, a Epopeia
Nacional !
É um crime sem perdão lançar no olvido quem foi, é e será
sempre a encarnação mais perfeita da alma portuguesa. Quem tanto
amou e logo xaltou a Pátria lusa! Quem defendeu e glorificou os
supremos valores que não podemos eliminar"

Protesto de longe, mas brado intensamente, com toda a minha
alma! Essa maravilha inimitável e grande... essa glória dum povo
e orgulho de uma raça não pode esquecer-se!
Não canta ele os feitos gloriosos do povo português?!
Negá-lo é negar Portugal!

Vivam os Lusíadas, obra formosa, bela, imortal; grito penetrante,
eassaz eloquente ; padrão de bronze eterno; penhor e garantia da
nossa independência e direito à liberdade!

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Nyangana
23-7-1976
Ideias que aterram. Após aquele dia, em que a pedra saltou
avariando o escape, ideias bem tristes me vão acabrunhando.

A"barreira,"na estrada, em plena escuridão, deixou-me perplexo e
cheio de pavor.Na verdade,se atendo ao lugar e tenho bem presente
que o terrorismo já me está cercando, por todos os lados,é caso
temer!.
Se fosse de dia, embora o perigo ainda subsistisse, já o caso era
outro! Mas durante a noite! Cada sombra e cada vulto, ao longo do
caminho, é o perigo tncarnado, em ar de ameaça!
Sendo vultos humanos, afiguram-se logo verdadeiros terroristas,
mensageiros da morte.

Evadi-me de Angola, fugindo à dura sorte: virá ela ao meu
encontro, em terras do Sudoeste?! O receio mais grave provém das
minas! É que, em nossos dias, esse engenho fatal que a Rússia
fabrica, está dentro duma caixa, feita de madeira!

Quando usavam metal, era facil detectá-las. Agora, porém, o
diabo do inferno alterou o processo!
Por esta razão, espreita-me a "negra", em todo lugar.
Se Deus me não guarda, os homens devoram-me., porque feia
malícia é o seu alimento.
Ambição e vaidade, inveja e orgulho que o diabo gerou,
constituem, na verdade, motivo de pavor.
Que o Céu me proteja!.
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Nyangana
24-7-1976
Tomou ontem posse o novo Governo. O mundo português segue atentamente o curso da História, pois anseia ardentemente
que Portugal se levante.
O 25 de Abril de 1974, que surgiu risonho e prometedor, nada
fez ainda que mereça adesão e ganhe elogios.Irá, desta vez, ganhar
o nosso apoio s conquistar simpatia? Espero que sim.
Os dois anos que passaram, encheram-nos de luto: assaltantes e
assassinos campearam infrenes; honestidade e honra não foram
respeitadas; milhares de portugueses a chorar amargamente;

o tesouro público a ficar exaurido; a História de Portugaj , em seus
heróis e santos notáveis, a ser ultrajada; os vivos de agora a sentir
vergonha de ser portugueses e os mortos, em seus túmulos, a
estremecerem, de horror e espanto!
Praza a Deus -Providência que agora comece a era renovadora.
O governo actual é do meu agrado, pois o Socialismo, não caindo
no exagero e tendo homens capazes, é um sistema ideal, para bem
do povo.
Que os novos elementos, bons colaboradores, se mostrem à
altura da ha hora presente, que reclama deles bastante esforço e
generosidade.
Se, por enorme absurdo, o meu país seguisse a marcha para o
abismo, seria o fim da Pátria ( estremeço , de horror!)
Podia ser também caminho directo para nova Ditadura, o que não
convinha agora.. Ia ser férrea, pesada e severa!

Bons portugueses que em Lisboa presidis ao destino de Portugal, a
Pátria, de luto, clama por vós.
Todos nós confiamos na vossa honestidade, esforço prestimoso e
ardente patriotismo.
******
Nyangana
25-7-1976
É domingo. Comecei a rever, às 8 da manhã, acabando agora,
a média habitual: 1o. Levou-me a tarefa duas horas e meia. Assim passo
o meu tempo, aqui no Sudoeste, região estéril e seca, onde plantas
espinhosas me cercam de todo lado..

Há dias, em Vinduque, li curioso o título dum livro: Sudoeste, país
situado entre dois desertos Bem se vê, realmente, que assim haja de ser!.
Não é ele semi-desértico?! Choveu apenas três meses: Janeiro e
Fevereiro, seguindo-se Março.

Agora, é tudo pó, a infiltrar-se nos móveis, penetrando em tudo,
haja embora cuidado! Ao vê-lo em montões, os objectos guardados,
pergunto, surpreendido: como foi possível entrar ele aqui?

A verdade, porém, incontestável e crua é que ele está presente!,
A atmosfera, por seu lado, é também só poeira.
Como é possível aos bons padres Missionários e aos bons
Religiosos de ambos os sexos, viver aqui na zona, durante a vida
inteira? Só por nobre ideal! Quanto a mim, estou saturado!.
Por causa da família, ficarei dois anos, após o corrente.
Seriam, pois, três, na grande solidão. Até pode acontecer abreviar-se o
tempo!
O terrorismo agrava-se, multiplicando os recursos.
O Sudoeste, a África do Sul e a própria Rodésia - uma grande incógnita!
Só Deus é que sabe o que o futuro trará.

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Nyangana
26-7-1976
Ontem à noite, procurava diligente um posto emissor.Eis
senão quando ouço rezar, em Língua portuguesa, com pronúncia do meu
"ninho!. Fiquei delirante e pus-me a escutar, sabendo-me aquilo a favo
de mel.".Que doçura é esta, a inundar o peito,, quando ouvimos ciciar a
língua mágica de nossa mãe!

Perguntei aos meus botões, algo intrigado, que estação era aquela.
Tinha que ser português o locutor -oficiante, pois o sotaque era igual ao
meu. Resposta não veio e eu encantava-me , de poder encontrá-la.
Esperei , pois, algum tempo mais, afim de que alguém elucidasse no
caso
Afinal, era Luanda! Que surpresa agradável!
Emissora Católica, difundimdo em Angola orações de paz! Que
momentos ditosos! Mas, entãõ, as coisas lá dentro, não são
como dizem!...
Marxismo e Bolchevismo... palavras difundidas, julgando nós,
erradamente, que o estrngeiro é quem manda ali!...

Por outro lado, ouvi há dias o Chefe, ecglarecendo os ouvintes, dizer
em alta voz: "Fizeram-se, de facto, algumas nacionalizações,mas
admitimos também a propriedade privada!"
Estas palavras que não são textuais, pertencem, com efeito, ao
Presidente Neto.
Pelo que vejo, deformaram-se conceitos, fazendo nós ideia falsa do
que vai por Angola!
Oxalá reine a paz e Deus seja louvado, na parcela tão amada de
expressão portuguesa! Chamo assim, amoroso, às parcelas do Império,
que se desentranhou em várias nações, e fala a doce Língua de quem me
gerou!
Quem me dera em Silva Porto, onde vivi três anos!

******
Nyangana
27-7-1976
Vai quase no fim este mês de Julho! Em tendo o ordenado que
vem mais chorudo, embora pequeno, ultrapasso os 2000!
Ao pensar nisto, deliro e rejubilo!

Como é triste a situação de quem vive de migalhas! Seja embora pouco.
afigura-se muito! Estes randes que amealho são fruto bem amargo de
actividades que exerço,em circunstâncias tais, que me enchem de
horror! Posso dizer, sem mentira alguma, que é o pão mais duro que a
vida me ofertou!
Aos 58, levantar, de madrugada, três longas horas, antes do Sol!
Após isso, atravessar pelo escuro, uma região de selvagens, onde a
morte me espreita, em cada lanço da estrada! Nãouço e leio o que fazem
diariamwnte os medonhos terroristas?!
Entretanto, o afecto profundo que tenho a minha irmã e a desgraça
que a atingiu,no mais íntimo da alma, dispõem-me a tudo seja ainda à
morte!
Este dinheiro que, ao tempo, granjeio, pois que sou favorecido
pela Missão Católica, é mais dela que meu. Amealho e poupo. Dão-me
hospedagem e oferecem gasolina, podendo assim reunir quanto ganho
no Cavango.
Receberei, de futuro, mais 1o%: em randes , equivalem a duas
centenas mais 54 e 14 cêntimos. É pouco, sim, mas chega para nós!
Ante os meus olhos, estão os desalojados que tudo perderam!
Que Deus lhes conserve, no meio de tanta dor, a esperança fagueira de
melhor futuro.
Irmã saudosa, depois da minha morte, lê os meus Diários, para veres
claramente que, nas horas amargas, eu estava contigo!

******
Nyangana
28-7-1976
Comecei hoje a rever os Diários de 7o. Conservo ainda a média
habitual. Entre eles achei um que deveras me encanta: 18-1.1970.
É que nem todos me agradam. A prova disso reside nas palavras que
vou substituindo.
Se, na verdade, me encanta, é por duas razões: ritmo perfeito e beleza
de conceitos. Olhando para ele, após a revisão noto, com surpresa, que
pouco emende. A maior parte das vezes, tal não sucede! Aih! Como
é bom rever o passado! Viver aqueles momentos que o tempo destruiu
opera na minha alma um tanto de milagre.

Graças Vos dou, meu Deus, pelo poder criador que lançastes em mim!
Que, a bem dizer, isto é criar! Não havia de ser?! Dar vida ao que
morreu... animar o que passou e, de tal modo o fazer que , de novo me
alegro ou choro também.
Como atenuar a minha solidão?! Distraio comigo, revivendo o
passado, aquele tempo suave que foi meu e so meu e me faz vibrar
ainda.
Quando abatido, reanimo e avivento, operando-se na alma poderosa
mudança.
Penso muitas vezes que é grande infelicidade não ter filhos meus!
Agora, reparo eu que não é bem assim!!
Tenho filhos, tenho e nao são muito poucos! Que são os meus
Diários senão filhos adorados?!

Não saíram talvez das fundas entranhas da minha alma ardente?! Não
os amo eu, revendo-me neles e procurando alindá-los , cada vez que os
miro?! Não vão eles proectar-me, ao longo dos séculos, transmitindo a
mensagem tal qual a gerei?!

Quero a bom querer que estes filhos amados não desdigam de mim e
levem ao mundo uma boa parcela de verdade e justiça, compreensão e
amor, claridade e tolerância
******
Nyangana-Liceu
29-7-1976
As últimas aulas foram hojq suprimidas: veio o raio
X,. para exame aos pulmões.Fazia-se o mesmo, lá em Portugal, mas há
4 anos que não sou observado. Decorreram já 7, que tive a pleurisia.
em grau extremo, no pulmão esquerdo.

Haverá,por má sorte, algo a lamentar? Levo quase um ano a viver
como exilado. Em Agosto próximo,cerram-se 12 meses, que deixei
Silva Porto. Desde esse tempo, fui sempre refugiado, passando às vezes,
certas privações .
Entretanto, não me convenço de que o pior me aconteça.
Desde Janeiro, que vivo na Missão, onde me oferecem quanto preciso.

Muto apetite foi coisa irreal, durante a vida., mas faço por comer,
obrigando-me a tanto, por necessidade, É certo e sabido que, durante
um mês, devido à boca e assim aos dentes, fui mal provido, mas
emseguida, julgo na minha haver recuperado.

Poderá estar fraco o pulmão esquerdo, mas bacilo de Kok entendo
não haver. O exame o dirá: Na verdade, preciso de trabalhar, pois a
velhice já se proxima!

Tinha,realmente, parcas economias, no país natal, mas ao presente
ignoro,de facto, o que terá sucedido, mercê da Revolução.
"O seguro morreu de velho."
Além do mais, não esqueço minha irmã..que saiu de Angola sem
nada levar.
O Céu a proteja e vele por mim.

******
Nyangana
30-7-1976
Vai hoje o Diário acerca do clima, aqui na região.
Em 17 do mês corrente, apercebi-me , sem o esperar. de que o tempo
afinal havia já mudado. ou que, pelo menos, apresentava indícios.

Senti mais calor do que era habitual, a partir de Maio.
Para mim, tudo é novidade, em região semi-desértica. Foram, pois. ao
que observo, três meses de frio, embora, na verdade, a última qunzena
já fosse moderada. Por isso, amanhã, vou mudar o vestuário, passando
`à reserva a roupa do frio. Pelo que observo, há três meses de chuva:
Janeiro e Fevereiro, a que segue Março, e outros tantos de frio - Maio
Junho e Julho.

Para a minha saúde, o pior tempo foi este, por haver, de facto,
mudanças inesperadas, ao longo do dia. Durante a noite, arrefece
bastante, descendo o termómetro abaixo de zero.
Ao longo do dia, aquece fortemente,
Icnoro até se aguento as mudanças, por causa dos pulmões. Agora é tudo
poeira a infiltrar-se em toda a parte Nem sabemos, decerto, como isso
acontece!
Fecham-se os objectos e aparecem branqueados. Deve ser pelo vento
que o facto se consuma!

Os próprios automóveis , ao fim de uma semana, estão irreconhecíveis! De nada serve o cuidado extremo em fechar as portas e as janelas!
Chega-se, por vezes, a desanimar, com tanta poeira!
Ao longo das estradas, parece nevoeiro, tolhendo, por completo a
visibilidade.
Horrorizo-me e tremo com a picada assim!, ao viajar sozinho!
Parece um bloqueio, havendo a toda a hora perigo iminente de sair-nos
boi pela,pel direita.

******
Nyangana
31-7-1976
Adivinhar alguém é fruto proibido: sabemo-lo há muito. De
outro modo, faz hoje 4 anos, seguiria outro rumo. Consequências do
facto?
A saudosa Guida estaria connosco, não tendo por companhia os
vermes do túmulo. a tortura diminuía, ficando talvez em 5o%; os
danos materiais eram, por igual, atenuadissimos.
Entretanto, só Deus prevê, melhor diria - vê o futuro.
Quatro anos a cerrar-se, após o dia fatal que me trouxe ao Chitembo,
distrito do Bié.
Voei para Luanda, num avião da TAP, Vinha delirante, nessa tarde memorável de 1972: visitar a família e voar de avião, pela primeira vez!
Só avioneta eu tinha experimentado. Conhecer usos novos!
Ouvir outras Línguas! Contemplar extasiado paisagens maravilhosas!
Delírio, por certo, mas tudo fumo, pelo que sucedeu! Ah! Se eu não
vinha! Em vez disso, convencer os meus a deixar Angola, esperando por
eles, na velha Europa!

Nessa altura, era fácil em extremo arranjar emprego, fosse para quem
fosse. Mas tudo passou, como num filme, trágico e breve, irremediável,
assaz pavoroso!
" Burro morto... cevada ao rabo!
Nada tenho a fazer, porque é tarde em excesso! Por outro lado, foi
campo largo de abundante experiência, embora espinhosa!
Avalio mais claro o sofrimento alheio; além disso, também eu
aproveitei, oferecendo a Deus tudo quanto penei, em satisfação dos
meus pecados.
******
Nyangana
1--8-1973

Começa, a partir de hoje o oitavo mês.
Se remonto ao passado, farta bagagem logo enxergo, já de alegria, já de
tristeza.. Fixemos, para já, 2 dias memoráveis 4 e 15.
Agosto - 4
1943

Data precisa da primeira Eucaristia, celebrada por mim, em Vide-Entre
-Vinhas!
Como o tempo se esvai!
Quem mais rejubilou, nesse dia triunfal, foram os meus pais que viram
realizado o sonho antigo e coroados de êxito seus trabalhos e canseiras.

Agosto - 15
1965

Ocorrência lastimosa, em Dax - França: um carro vem de frente e
entesta contra o meu. Não há mortos: só danos materiais

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