quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Memórias 5

INTRODUÇÃO E PREFÁCIO (V. MEMÓRIAS 1 )
Silva Porto
1-3-1973
Desta vez, a Guida amuou, sendo agora difícil acareá-la de novo.
Ralhara com ela, em frente da Técnica, junto ao Liceu, na hora exacta em que as outras liceais andavam no recreio. Por outro lado, exasperei-me um pouco, levantando a voz, pois o estado nervoso assim determinou.
Vendo-a mal disposta e até inconsolável, mudei a atitude, procurando breve falar ao sentimento e acarinhando-a.
Tudo isto que digo parecia infrutífero.

Então, Guida, não tens confiança no teu padrinho?
A estas palavras, volve pressurosa: Tenho! Não havia de ter?!
Era já diverso o tom amargurado, nas últimas palavras.
Eu,nessa hora, acrescentei logo: hás-de aclarar por que andas assim.
- Eu sei muito bem que sou a causa de tudo. Para que hei-de esclarecer? Aborrecê-lo-ia muito mais ainda.
- Eu não me aborreço, como já te provei.
Ela, então, harmonizando a voz e tentando ser gentil, desabafou: É que o padrinho trata-me afinal como bebé.
Sensibilizei-me e quase concordei.

Vai já nos 18, o que é razão bastante para eu comedir-me, tanto nas palavras como nas acções, de modo especial, em lugares e situações. que a possam humilhar.

Por tal razão, pus termo à conversa, rematando assim: reconheço, afinal, que, sendo embora castigo, fui um pouco além, por ser em , público, mas prometo emendar-me, se tu fizeres o mesmo, em ordem aos teus actos

Silva Porto
2-3-1973
Grandes motivos para regozijo! O maior, porém, reside no facto de as aulas terminarem, para iniciarmos as férias de Março. Até me parece que volto ao passado! Ir para férias era delirante, nos tempos de rapaz!
Há já muitos anos, esse entusiasmo desvaneceu-se, por não saber, de facto, para onde caminhava: Lisboa? Paris? Bruxelas? Outras cidades, criadoras e mágicas?

Havendo ali de tudo, faltava-me quase tudo.
A essência das férias, o que as fazia sedutoras, morrera havia muito, pois estava sozinho!
Sem um coração de mãe ou de irmã ou um peito de filha, tenho para mim que o mundo é triste e não dá felicidade.

Ainda há pouco, juntinho à casa, onde a Guida se hospeda, verifiquei tal facto: o Doutor Rui Tavares juntamente com a esposa, contemplavam a filha, mocetona já feita e de linhas elegantes, fixando-a arroubados e vendo compensação para todos os trabalhos.
Seria bastante o olhar amoroso, banhado em sorriso, que estava lançando aos autores de seus dias.
Causavam, de facto, grande emulação aqueles pais tão felizes!
Reside, ali, o segredo e o sonho que fazem da vida um estímulo forte, para arrostar com as dificuldades e, do mesmo passo, transpor as barreiras.
É o lar saudoso... a chama que o envolve... a magia suave dum amor sincero, devotado... criador!
Tudo o que menciono alvoroça os estudantes. Também a mim se estende, embora só em parte, a grande euforia que reina agora. A vila do Chitembo lembra-me o passado.

Chitembo
3-3-1973
Havendo início, pelas 8 horas, findei a tarefa somente às 15. Esteve reunido o Corpo Docente, pelo que estas horas decorreram lentas e harto pesadas.

Dar notas de período é coisa ingrata. Acertar médias, tirar percentagens, fazer us mapas e contar as faltas... eu sei lá o número de coisas, para arrumar!

Classificar, rigorosamente, para ser equitativo, gera cuidados.
Verificar as provas, que vão aproximar-se da centena e meia, exige paciência e grande tenacidade, mas tudo pssa, na vida presente e, quando a morte nos bata à porta, finda a existência, de modo igual.

Não obstante começarem as férias ( talvez por isso mesmo!), pesado e amargo foi o último sábado. Um período lectivo como este correu, exige descanso e tranquilidade.
Por outro lado, estava desejoso, suspirando vivamente que terminasse a dita reunião, para chegar com dia, ao termo da viagem.
Fazê-lo de noite, quase infunde terror! Um furo de pneus, temerosos encontros, assaltos de bandidos, coisas ainda que não podem prever-se!...

Era preciso também levar a Guida e o mano Carlitos, para a terra natal, onde eu passaria as férias de Março.
Pelas razões que agora apresento, nunca mais acabava a longa série dessas reuniões! Quem espera desespera!
Tudo ali fazia nervos! Qualquer obstáculo ou séria dificuldade.

Chitembo
4-3-1973
Primeiro Domingo. passado na vilória, em férias de Março. Esta razão dá azo a um percurso, rumo ao Capolo. Sendo Capelão da Colónia Penal.devo ir lá todos os Domingos.

O caso, agora, complica-se um tanto, por não ser directa a viagem projectada. Vou de automóvel até Cachingues que dista apenas 50 quilómetros. Por ser via asfaltada, é fácil percorrê-la. Dali em diante surgem os trabalhos!
De Cachingues à Missão, vão 3o quilómetros que me fazem cismar!
Poços frequentes de água e lamas, constituem obstáculo a que eu me apresente, a horas cristãs. Entretanto, na generalidade, não é do pior. Mesmo assim, exigem boa vista, para tentear o carro de transporte, deixando a meio os fatídicos poços.

Enfim, com grandes trabalhos, lá chegámos ao destino. eu e o cunhado.
Os derradeiros 15 quilómetros são torturantes. A carrinha da Colónia e o hábil motorista de nome Gonçalves conseguem vencer e ultrapassar todas as barreiras

Um carro de bois não era capaz de transitar por ali. Aquilo só visto! Há poços tão grandes, que parecem lagos! Os desníveis do lastro e os buracos frequentes causam estremeções e geram pavor, não falando já nos embates violentos contra os encostos.

Por fim, lá surge o Capolo e a Colónia Penal!
Respirar bem fundo, com a sensação de grande alívio, em frente do templo!
Já se ouve nítida a voz do sino.
Magotes de pretos, sentados no relvado, aguardam pacientes a nossa chegada.
Saudações... alguns cumprimentos... apresentaçóes!
Há Missa e cantares, ali executados pelos nativos.
Em seguida, um rico almoço, em casa do Secretário,João Correia Alves!
Após isto, regresso ao Chitembo

Chitembo
5-3-1973
Uma dor no fígado tolheu-me o sono, durante a noite, originando, como é natural, incómodo grave e vivo alvoroço. Após longa vigília que se foi arrastando, iniciei, pois, o novo dia, sem esperança de quaisquer melhoras.
Por volta das 4 horas, já tarde fora, o sofrimento aumentou, vendo-me obrigado a ir para a cama.

Nada revelei, mas quando sucede, vem a desconfiança, A mana Agusta, suspeitando já, entra calada no quarto de hóspedes e, após breves palavras, ( posso entrar?), surge logo a pergunta:

Afinal, que é que tens? Sentes-te mal? O almoço em causa?! Estas e outras frases vieram, desde logo. a talho de foice, num crescente de carinho que me sensibilizou, em alto grau.

Com este jeito, é mais fácil viver!
Estando sozinho, a braços com a dor, tendo apenas à volta gentes assalariadas, como seria angustiante percorrer, sem ânimo, os caminhos da vida!

Após a mana veio meu cunhado, sem faltar a Guida e os outros irmãos. Este calor, humano e suave, começou de actuar.
Água mineral e boas companhias, a rodear o leito fizeram, em breve, melhorar um pouco.

È bom,na verdade, ser estremecido por quem nos ama. Os seres estranhos não falam à alma nem sabem influir no grande mistério que é o nosso coração.
Nada há no mundo que iguale a família, quando reina entre os membros devotado amor e boa compreensão

Chitembo
6-3-1973
Decorreram serenas as férias de Março. Como é belo viver assim! Estou a reviver, julgando, na minha, que voltei ao passado! Como nessa data me sentia feliz!
Passaram os anos, ultrapassando os meus 5o e já boa parte da última década.
Sentia-me, por isso, velho e cansado, em meio da solidão. Agora, é diferente! À minha volta, noto carinho, protecção e amparo.
Na dor e na alegria, no prazer ou sofrimento, aparecem logo os grandes amiguinhos, integrando-se também.

Ainda hoje a Guida, crendo erradamente haver-me aborrecido, veio logo até mim, afim de esclarecer-se. Agradou-me a atitude e fiquei satisfeito, pela gentileza que é também gratidão.
Enfim, nem tudo é mau, no mundo em que vivo.
Há espinhos, decerto, que nunca faltam mas, de permeio, encontro flores de aroma inebriante.
Deus me conserve o ambiente carinhoso, em que estou mergulhado, pois é meio eficaz, para evitar o pior.
Velho, sem ninguém,... alvo fatal da rabulice humana,
ludibriado e desiludido... que viria depois?!
Não esqueço jamais a dose carregada, expressa em palavras da Língua latina: Vae solis! (ai de quem é só!).
Desvinculado o ser, fica sem raízes que o prendam à vida e carece de estímulo para existir e lutar juntamente

Chitembo
7-3-1973
Com tinta da China e magro pincel, fazia a Guida enorme borrão, na escrita de alguém, disseminada, em postal ilustrado.
Enorme, disse eu, porque abrangia a página toda.Que haveria por baixo que alguma vez não pudesse revelar-se a olhos
discretos, prudentes e amigos?!

Expressões de amor? Inconveniências, filhas de loucura, irreflexão e leviandade? Palavras sinceras, impostas e ditadas pelo coração? Termos levianos , para serem olvidados, na primeira hora?

De tudo, provavelmente , haveria um pouco mas, fosse como fosse, o meu coração ficou atingido, nas fibras mais íntimas por causa, já se vê, desse negro borrão, feio e disforme! Melhor diria " borrões, "pois o caso repetiu-se, vezer seguidas.

Haveria, ali, realmente,ditos sinceros, filhos lídimos de nobres sentimentos? Fazer.lhes aquilo o mesmo é que lançá-los no olvido.
Eu diria até " cuspir-lhes em cima!
Ainda agora a mão treme,ao lançar estas notas, pois nada do que é humano julgo estranho a mim!

Poderei eu esquecer esse momento cruel, em que baixava ao olvido uma bela expressão, carinhosa e meiga, feita de ternura?!

Olvido negro, filho genuíno da morte e da angústia que dilaceras cruel o meu coração, embora o autor não tenha sido eu!

Morte real, opressiva e lamentável que avassalas fundo este meu peito, agora horrorizado, perante o facto! Postergar de saudades e fortes emoções que fizeram sangrar o coração de alguém?!
Se fosse tudo mentira?!
Mas, afinal, quem pode garanti-lo!

Chitembo
8-3-1973
Ocorreu ante-ontem e não posso, claro está, deixã-lo no olvido: foi o aniversário do nascimento de minha santa mãe que
fazia 86, pertencendo a este mundo. Assim, encontrando-se há
muito na terra da verdade, onde não existe passado nem futuro,
ignoro, pois, como hei-de contar.

Tendo nascido em 1887, era agora exactamente que o seu aniversário vinha a ocorrer.
Há só 8 anos que foi desta vida e parece-me já
imensidade, no tempo.
Como é possível darem-se aí tais separações?!
A mãe adorada separa-se do filho e por tais meios o caso se opera,
que nada,cá em baixo, os pode reunir ou sequer aproximar!

Há outras mulheres , com idade igual, que vivem felizes, junto de quem amam- Ela, porém, já foi há tanto, para as bandas do Poente!
Que saudade eu tenho, nesta hora plangente de amargura e solidão!
Quisera ser feliz... ver de longe, embora, uma aparência de
ventura... uma sombra que fosse, ainda a sonhar! Mas, como tudo falha, sinto na verdade a alma a sangrar, mercê dos acúleos que me ferem, no caminho.
Quanto tempo durará esta marcha funéria que me leva à morte?!
Deus me proteja! É Ele,na vardade, a grande esperança.

Chitembo
9-3-1973
É condão meu, sina bem triste e assaz deplorável indispor comigo as pesoas que mais amo. Nunca o tive em mira.
Apesar de tudo. como se eu, na verdade,o intentasse, orientam-se as coisas no pior sentido, ocasionando algum mal-estar e gerando, às vezes, profunda amargura.

Quanto sofro com isto!
Que azarento eu sou! Por que não julgo melhor e não deixo levar-me pelo sentimento, em vez de basear-me na pura razão?!

Aih razão! Razão e consciência!
Tanto me puxaram por elas ambas, esquecendo então que eu era homem e só homem terreno, que hoje as duas se encontram enfermas!
Exacerbamento de potências afectivas, pelo recalcamento a que foram sujeitas, durante anos e anos! Olvidaram, por certo, os meus pedagogos, que eu era carnal e muito sensível, estribando-se apenas no lado angelical que sofre concorrência!

Educar anjos para a vida terrena! Se vivemos tanto, à base dos sentidos! Se vemos apenas montões de carne a pesar brutalmente!
Não quero negar o valor da razão e da própria conscência, pois que sem elas não teria sentido a vida humana!
O que eu intento é isto:
A educação do homem não deve estribar-se, unicamente em dados abstractos.

Chitembo
10-3-1973
Noite-pesadelo

Bem quis eu repousar, mas não consegui. Às 2 da manhã, já estava de vigília, havendo pois de aguardar 5 longas horas, para erguer-me da cama. Quão lentas foram! Nunca mais enxergava a luz da manhã, através da janela!
Olhando amiúde, julgava. no meu íntimo que romperia mais cedo a luz matutina,desanuviando o espírito e, do mesmo passo,
arejando o coração.
Mais uma consulta ao pequeno relógio, mas nada feito! Lorpa, insensível, apático e mudo, ante o meu sofrer, continuava indiferente a sua marcha tranquíla!

Esperei longamente o ansiado alvorecer. Benigno e calmo, assomou à janela, apresentando ar tímido, algo indeciso,
É esta, pois, a manhã deste dia, em que vão decorrendo as férias de Março e tenho no peito férrea cinta que aperta e constrange.
A minha cabeça inclina-se para a folha, ainda em branco,
enquanto surge na base mal-estar característico, sinal de cansaço.

Como irradiar esta angústia inquietante e dissipar este mal
absorvente?! Dentro em breve, já o saberei. Nada aí há que não tenha solução.
Se não me engano, está possivelmente ao meu alcance.
Empregarei os meios a ela conducentes.
Ser humano e razoável; perdoar tudo, sendo generoso; esperar e amar, afastando o egoísmo e dando preferência à formosa caridade!.

Não ser pessimista e acender no peito um luzeiro forte que me guie a mim e aproveite igualmente aos outros mortais

Chitembo
11-3-1973
Missa dominical, aqui na vilória, por não ir ao Capolo.
A carrinha velha da Colónia Penal ertá na oficina,
aonde já foi centenas de vezes.
Por carência de transporte, fiquei no Chitembo, onde celebrei.

Enorme, sem dúvida, a minha decepção! Na igreja local, meia dúzia de pessoas!

Em ambiente de comércio, atende-se apenas a negócio e lucro, interessando pouco os assuntos momentosos de cunho espiritual. Emtretanto, é confrangedor verificar tal caso, porquanto o Domingo é o dia do Senhor.

Não bastam, afinal, os outros seis dias, para se ocuparem da
vida material?! Não terá Deus-Pai autoridade bastante,para impor-se aos homens?!
O Senhor de tudo fica no olvido, posto assim à margem?!

Que tristeza me invadiu, quando os meus olhos percorreram o templo! Só alguns pretos e minguado número de brancos europeus!
Onde os homens da vila e que pensam eles da vida eterna?!

Que afazeres os prendem tão forçosamente,que descurem
sem pejo o acto mais belo da nossa Religião?!

Não é o próprio coração que a tanto nos impele?!
Não somos nós obrigados a prestar devidamente o culto a Deus?!
Postergar tal dever ou então subestimá-lo é sintoma bem triste!
Matéria somente?! Esta decompõe-se, enquanto o espírito é indestrutível
Verei novo Sol erguer-se no horizonte, espancando as trevas que dominam os espíritos?! Que barreiras são estas, para não se guardar o dia do Senhor?!
De Deus não tenho pena, que Ele é perfeito: dos homens, sim, que andam obcecados, não querendo ver!

Chitembo
12-3-1873
Havia já dias que a Guida se queixava. À mesa, então, era um calvário!
Um dos molares com grande abertura , logo ao centro, era motivo de enorme apreensão. O alimento, penetrando breve no orifício, causava dor aguda, quase insuportável

Um dia,após outro, passava o tempo, morosamente, sem dar atalho ao caso amargurante. Hoje, porém, as coisas agravaram-se e houve de tomar-se resolução pronta: ir a Cachingues, para o Enfermeiro extrair o dente.
Propus a ideia, mas ela firme, alegou que não ia, sendo vão teimar.
O pungir da agulha volteava-lhe o miolo.Apanhara medo, em
tempos de criança. Tratando-se, pois, de levar injecções, apavorava-se logo.

Contrapus eu a minha argumentação, usando astúcia e muita
paciência, mas julguei, de início, que tudo seria vão.
Estava disposto, nessa hora decisiva, a lançar na mesa os
melhores trunfos, pois sei muito bem o que é sofrer, por dentes arruinados.
Insisti com demora em que ela era tímida e bastante fraca,
pondo em evidência que era vergonhoso saberem lá fora o que se
estava passando.

Por fim, tomou a decisão, lndo preparar-se.
Largando às 9, ao fim de meia hora, estávamos no termo.
Chamado o Enfermeiro, não se fez esperar.
Exigiu a pequena certo produto, para adormentar a gengiva local,
antes da picada

Respondeu que não tinha nem era preciso , mas eu fiz sinal
tentando iludi-la com outra coisa.
Então sossegou, só perdendo a calma. no momento crucial.
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Chitembo
13-3-1973
Morreu o Anselmo!

Natural de Cachingues, era o ídolo de todos. Assaz consternados choram abundante amigos e parentes. o seu passamento. Deixa viuva a esposa, aos 18 anos; desamparada a filhinha, que não pode
ainda aperceber-se, a rigor, da grande tragédia.

Gastaram seus pais incalculáveis montantes, segundo corre voz.
Há quem arrisque a soma volumosa de 5oo contos!
Por fim, já desiludidos, recorreram então ao Padre Lima, cuja fama soara.
Melhorou um pouco, mas a hora final estava chegada.
Ouvi estarrecido uma coisa alarmante, acerca da causa que motivara o desfecho daquela tragédia.

Fora ele à Metrópole, havia dois anos, no intuito de casar.
A nativa, porém, a quem ele um dia jurara fidelidade e legara descendente, é que não se conformou.
O Anselmo volta a Cachingues, mas ela espuma de raiva:
não pode tolerar o que julga traição.

Uma vez no povoado, foi ele em breve ao encontro da amante, aproveitando uma farra nocturna.
Isto mesmo, diz o povo, havia de ocasionar a eliminação
Ela, despeitada, arranjou então uma dose mortal que operasse a longo tempo, a qual teve agora o terrível desfecho.

A esta hora, já se encontra sepultado e nada há no mundo que
possa, alguma vez, restituir-lhe a vida.
Quem semeia ventos, diz o velho rifão, colhe tempestades

Chitembo
14-3-1973
Férias de Março!

Tão desejadas, vão afinal quase em meio! Como tudo o que é bom
correm velozmente, deixando atrás de si um rasto de saudade que jamais se apaga.
Quem dera, sendo possível, que não acabassem!
Sonho?! Ilusão?! Teria, acaso, hipótese a vida humana, sem trabalho e pão?! Para viver,impõe-se lutar. E quantas vezes o combate sai duro e deveras amargo!

É plano divino que a nossa existência, cá neste mundo, seja
trabalhosa, a servir de penitência e paga ao Eterno, pelo mal que
fazemos.
As dívidas morais, deficiências e manhas, devem saldar-se, com todo o rigor, mundando a consciência, o mais breve possível.
Postergar este assunto ou tentar esquecê-lo é dar provas
inequívocas de grande insensatez.

Não devo, pois, almejar por férias sem fim, já que o dever me impõe o trabalho e as dificuldades requerem esforço.
Passarei então os dias que faltam, no remanso ideal, à entrada da vila, na companhia dos meus familiares. Acabadas que sejam as férias desejadas, regressarei feliz, para retomar o fio da meada.
Interesse no caso?
Sem dúvida alguma! Há sempre disso, uma vez que é preciso metal em barda, para enfrentar a vida terrena e levar com isso existência
digna.
Penso igualmente nos problemas alheios, tentando ultimar e viver a fundo a realização dum sonho belo que me acompanha há muito já-

Chitembo
15-3-1973
A doce Aninha, para seu pai, era causa bastante de orgulho e vaidade. O hábil fotógrafo de Celorico da Beira, que todos
conheciam pelo nome de Fábio, sentia prazer em falar de sua filha.


As maneiras gentis, o ar superior, ao fumar o cigarro, a graça
do andar e o vaporoso de seus ademans, tudo isso e o mais faziam vibrar o coração paterno.

Futurava para ela o autor de seus dias um porvir brilhante.
Casamento rico havia de impô-la, no meio social.
Vogava, pois, em mar de bonança o barco triunfal de pai e filha.
Mas não há bem que sempre dure, como reza o prolóquio.

Verificou-se o dito, por modo terrível, nestes seres amigos. agora tão felizes.
Para tanto, aparece um dia, na vila de Celorico, o agente da
desgraça: um rapaz calculado, maroto e desonesto, que se apresenta desligado e sem compromisso. Ela gostou imenso do
elegante rapaz, que lhe falou um dia, em casamento.

Dias se passaram, em maré crescente, julgando a pequena haver entrado no paraíso.
A tempestade, porém, surgiu em breve.
Após grande intimidade, resolve, sem demora, a viagem a Lisboa,
garantindo e porfiando escreveria amiúde, com promessa firme de
regreso em breve.

Cartas, no entanto, só vieram duas, lendo ela o seguinte, na derradeira: " Não quero iludir-te, durante mais tempo. Eu sou casado. Se quiseres vir, ficarás servente de minha mulher".
Um tiro no peito foi o desfecho de tamanho engano e cegueira de amor

Chitembo
16-3-1973 (cont.)
"Estavas, linda Inês, posta em sossego"

Assim estava também a ditosa Aninha. Esperava, a princípio,
com enlevo de alma, enorme ansiedade e arroubamento; seguidamente, com ar de tristeza, porque as notícias já escasseavam-

A primeira missiva deixava-lhe na alma a esperança fagueira de dias felizes; a última delas abria-lhe o inferno. Poderei imaginar o grande tormento dessa hora amarga?!
" Não quero iludir-te, por mais tempo! Sou homem casado. O mais que posso fazer é admitir-te no contexto familiar, como servente
Que tragédia sem nome! Que amarga desilusão! Haverá palavras, neste pobre mundo, que exprimam o fel da carta assassina?! Assunto verídico, acomodado sem dúvida a qualquer
obra-prima de género trágico!

Esperar o céu e vir o inferno! Esperar ternura, com alvoroço, no peito ansiado, vendo em cada estrela um sorriso divinal... para
enxergar depois ( que digo eu !) a carranca mais disforme da
repulsa e do escárnio!

Como eu tenho pena da menina desditosa! Nunca a vi nem sonhei, mas sei que existiu e muito sofreu! É quanto basta!
Entendo, à maravilha, a sua linguagem, que é universal, por ser humana!
Compreendo os seus ais que saem do peito, em enorme cachão
e ressoam no ouvido, com fortes vibrações de imensa dor!

Foi há mais de 20 anos, mas a dor é eterna, pelo que traduz
e por servir de lição a este pobre mundo!
A madrasta ansiosa abre logo a carta, mostrando-a breve ao
pobre marido, em grande alvoroço.
Vem logo a decisão: Aninha, logo de tarde preciso falar-te!
O peito daquele homem é, de momento, perfeito vulcão!

Nuvens bem densas vão-se acastelando, no horizonte escuro do seu viver! Sai, pela manhã, demorando o regresso. Pensa a fundo e muito a sério no que vai dizer à filha estremecida, que apresenta já visíveis sinais de seio habitado.
Entretanto, ao chegar a casa e antes de entrar, ouve claramente uma voz suplicante: Pai, perdoa-me!

Logo em seguida, breve detonação e um baque tremendo!
Aninha era um cadáver, com outro no seio.

Chitembo
17-3-1973
Lições em Férias

Harto aborrecidas para certos alunos; detestáveis para outros!
Entretanto, necessidade obriga. Quem não trabalha, com amor e vontade, ao longo do ano, que pode esperar?! Virá sem fadiga o que importa fazer?!

É o caso da Guida, sobrinha e afilhada. Quatro horas diárias é a média habitual, que já se vai prolongando por 15 dias, em tempo de férias: Português e História, Inglês e Francês que afinal constituem
boa parte do currículo.

Desejando ela formar-se em Letras, não pode, com certeza, ficar à tangente, nas matérias aludidas.
Ora, acontece, afinal, ter duas negativas: Português e Inglês. Sendo

isto assim, impõe-se desde já uma luta sem tréguas, para suprir
aquelas deficiências, obviando a certas faltas.
Há-de pesar-lhe tal exercício, uma vez que é imposto, mas urge que o faça, por necessidade.

Á Língua Portuguesa consagramos duas horas.
A causa disto foram, julgo eu, dois anos péssimos, num ambiente detestável, e más companhias que operaram breve, em seu espírito
ruínas sem conto.
Agora, vá de limar bicos e arestas, procurando ansiosa uma
via diferente.
Empenhados na tarefa, consagramo-nos a ela, de alma e coração.

Chitembo
18-3-1973
Ida ao Capolo

Por estar em férias, vou no meu Taunus, pela estrada de Cachingues, onde me desvio, em procura da Missão. Aqui, sem falta, aguarda-me sempre a carrinha paciente da Colónia Penal.

Arrancando nós, às 8 e 10, deslizamos em seguida a 9o
horários, pela estrada asfaltada, Que bela via! Vem logo o desejo de acelerarmais e mais ainda, elevando a média para 150!

Apesar de tudo, é coisa que não faço! Para andar tranquílo
há-de ele orçar pelos 90 quilómetros, dando 80,90,100.
É evidente que, levando pressa, carrega-se mais no acelerador, indo o ponteiro a 120.
Preparando uma subida, já o tenho visto nos 130. Isso,
porém, não é habitual,
A 80 à hora, dá logo a impressão de que o Taunus dorme.
Entretanto, para ir tranquílo, é a marcha ideal, nas estradas de Angola.« De vagar, que tenho pressa»

O tráfego é pouco, e as vias esplêndidas. Surge a tentação que não nos larga um momento.
Ontem, pois, havendo chegado ao lugar de Cachingues, rumei
para a gasolina, afim de abastecer-me de algum combustível.
Vem logo o servente, que acciona a alavanca, oferecendo então um belo passatempo a quem não leve pressa.
Logo em seguida, fazer caras à Missão, desviando o curso para a direita, à saída de Cachingues.
Acaba o asfalto.
De vez em quando, há desníveis fundos e poços de água. Impõe-se desde logo. vista de lince e mãos adestradas
.
Ás 9.30 justas, avista-se já, no horizonte azulado, a parte cimeira na igreja da Missão. Arrumar o carro,à sombra de uma árvore e seguir logo, em direcção ao Capolo.

.Chitembo
19-3-1973
O Diário precedente não foi ultimado, uma vez que, ao
chegar à Missão, de nada mais se tratou.

Estacionado o veículo, debaixo de uma árvore, eu e o Martins
metemo-nos ao capim, entestando logo com a igreja local.

Vagueámos, ali, pelas cercanias, deslocando os olhos, ao perto e ao longe, para avistarmos a carrinha do Capolo. Não estava ainda.
Parar é morrer! Toca de girar, seguindo em frente, pelo trilho habitual.
Agora tudo é sombra! Dois renques enormes de copadas mangueiras formam para logo extenso túnel que nos esconde e oferta sombra. Autêntica delícia, pelo tempo do calor! Interminável já parecia mas, pega que pega, chegámos ao termo, ao fim de um quarto de hora
E o nosso transporte?! Nem vestígio dele!
Avaria no camimho? Esperamos confiados.

Ao lado, ergue-se a custo um velho moinho. Ali, exactamente, afeiçoou-se um tronco e vá de sentar! Logo abaixo, oscila uma ponte, arruinada e perigosa, que põe estremeções, no peito de quem passa, indo em camião.

Leve ruído, ainda ao longe, interrompe o diálogo e corta o repouso. Ia ser da carrinha, provavelmente! Avançando um pouco,
depara-se então (imaginem!) o camião do Capolo, em apuros extremos, para sair daquele pontão, oscilante e avelhado!

A muito custo, lá se despachou, instalando-nos à frente,
para o resto da viagem. Quatro homens cheios, apertados e torcidos como reles sardinha, em pobre canastra!
Lá vão eles agora, aos encontrões, à mercê de poços, lamaçais e desníveis!

Oscilações tão largas, violentas e temíveis, jamais em vida, eu
tinha experimentado! Aquilo só visto e suportado!

Palavras e jeito para descrever, escasseiam, de momento!
Calcado e moído como centeio, em dia de sol ardente, os ossos escangalhados e a camisa encharcada, arribámos, finalmente, à Colónia Penal

Chitembo
20-3-1973
Fazia hoje os seus 87 e já faleceu há 21! Conheço aí
fora pessoas mais velhas. Somente ele, ai de mim, havia de partir, deixando-me só! Que falta me faz a sua presença! Bondade genuína e protectora! Sorriso meigo e tranquilizante!

Mas é assim a morte horrenda:
violento furacão, disfarçado e atrevido que nos alcança na hora, em que estamos descuidados!
Por esta razão, vi-me despojado, ainda em verdes anos, de quem tanto amava!
O dia de hoje é inolvidável, pois tenho presente, em ar de perenidade, a figura tão grata do meu querido pai.


Ostenta-se aqui, bem perto de mim, à cabeceira, onde se avistam outras fotografias, rodeando a sua. A uns separa-os a morte; a outros, a distância. O meu coração juntou-os aqui.
Que momentos saudosos!
As lágrimas apontam, quentes e vivas, para afogar em pranto a
mágoa eterna que reside em meu peito!

Aqui estão, pois, as figuras amadas que repousam no Céu,
tão longe de mim, do meu sofrimento, da minha solidão!

Às vezes falam, em jeito de murmúrio, mas eu ouço nítida a sua voz dolente, que é dulcificante para o meu coração.
Jamais ouvi outras que assim me encantassem, logrando no silêncio o que outras não podem, elevando o tom.
Ficai sempre comigo, figuras tão amadas,belas e queridas!

Chitembo
21-3-1973

Ida inesperada à capital do Bié.

Alguns documentos, de certa urgência,vieram provocar-me esta saída. Há coincidências que perdem a graça. Este mês é de férias e, como tal, exclui canseiras.
A mim, no entanto,sucedeu-me o invés: registos de correio,
prazos que expiram, impressos duplicados, seguros de vida e outras coisas mais.
Por triste sorte, no mês de repouso! Nem praia, afinal nem descanso nem férias!
Vamos lá ver se corre melhor tudo, no ano que vem! Assim o espero!
Hoje, foi de lufa-lufa! Arranquei da vila, às 6 e 20, para estar em Silva Porto, às 8 horas.É o momento adequado, pois então abrem as lojas, assim como os Bancos.

Fui logo ao Correio, onde tinha já uma carta registada: autorização, procedente de Luanda, para transferir algum dinheiro.

Enviei logo o necessário, para o A, Clube, livrando-me assim de um peso incómodo. Foram apenas os 406$00 que deixaram de pesar, na minha algibeira.
Em seguida, fui ao Banco de Angola, para obter ali duas autorizações: dinheiro a pagar às duas Companhias dos meus seguros: Fidelidade e Pátria. Expirou o prazo há coisa de um mês e,
por má sorte, ainda as coisas estão neste pé!

Julgando, afinal, que levava tudo quanto era preciso, informaram no Banco ser em duplicado. Que sarilhada!
Mais impressos ainda, duas cartas mais, informação, dada na Fazenda e outras diligências...
Já não tenho paciência!
Tanta dificuldade, só para dispor daquilo que é meu, que sou obrigado a desistir!

Chitembo
22-3-1973
As férias de Março escoaram-se breve. Não sei por que enguiço rodam apressadas, mal deixando na memória sinais da passagem. Influência do meio? Desejo imenso de que elas se prolonguem? Cansaço da vida e falta de paciência?

De tudo um pouco. Já não saberei às quantas ando?
Efeitos nefastos, devido à mudança? Apego à família e ao mesmo
ambiente que agora me cerca?

!O que sei,na verdade, é que não chego a tomar-lhes o gosto.
Pouco mais de 8 dias e ei-las terminadas!

Era bom proseguir, sem haver incómodo. Dormir tranquílo, sem chamadas telefónicas ou missivas estonteantes! Limitar os
desejos, contentando-me de pouco! Esse pouco, afinal, já seria bastante.Ganho honradamente, fruto de canseiras e poupanças estritas.

Entretanto, de que pode valer-me? Saúde perdida! Alegria também!
O que me apetece é aquilo que faz mal. Será pura verdade
o que diz o colega, de nome Acácio?

Lembra-me essa frase e o próprio sorriso, acompanhante:" Aquilo que é bom ou faz mal ou é pecado!"
Que horrível situação! Será isso, realmente?!
Quem é que disse que era pecado? Foi Deus ou os homens?

Se foi Ele decerto, não devo contestar, porque Ele é Santo,
Justo e Sábio.
Se foram os homens, penso primeiro, agindo em seguida.
Mais papistas ainda que o mesmo Papa?!

Não devo esquecer-me de que fizeram, por vezes, bastantes asneiras, em matéria disciplinar!

Chitembo
23-3-1973
Preparando já o acto eleitoral.

Depois de amanhã, são as eleições. Reina, portanto, grande inquietação, entre as gentes da Província.
Levando isto em conta, fez o Governador adequada alocução, pelas 20 horas., elucidando o Estado Angolano, sobre o momento, social e político
Afirmou ele que só os portugueses, sem intromissão de elementos estranhos, devem organizar-se e resolver equitativamente,o que lhes respeita.

Convidou a todos, sem excepção, a votar sem falta nos elementos propostos, com a certeza absoluta de que tudo, afinal, foi ponderado, com realismo e bastante seriedade.
Trata-se de formar uma ampla sociedade, multi-racial, em que
todos colaborem,com proveito geral.

Com estas eleições que se antolham promissoras e cheias de fé num porvir risonho,vai o Estado Angolano dar um passo agigantado, na sua autonomia, já bastante amplificada.

Provido que está, na hora actual, de Assembleia Legislativa e de Junta Consultiva, começa vida nova, em que dispõe já de órgãos de soberania, embora fique ligada à Mãe- Pátria pelo Governador

Nota-se arrogância, em certos pretos, e também alguns brancos, por estarem descontentes ou serem ambiciosos.
Portanto, segundo o Governador, os bons portugueses não devem hesitar, lembrando-se, a propósito, de que a melhor política é a do Governo
Os brancos traidores terão de lamentar a sua estupidez e carpir ingloriamente as consequências funestas da falta de senso

Às eleições com alma, por uma Angola maior e mais progressiva,
honra e glória do nosso Portugal e triunfo completo dos altos ideais que são humanitários e quase sagrados, não obstante os ventos que sopram de fora e tentam enganar o povo angolano.

Chitembo
24-3-1973
Escrevo na rua,sentado num degrau, tendo por secretária os meus próprios joelhos. Assim, ao fresco, vou rabiscando estas breves Memórias que surgem espontâneas do intimo da alma.
De vez em quando, levanto os olhos, porque ouço alguém e chega a meus ouvidos o amoroso tom de saudações, em língua portuguesa. Que os pretos daqui já vão utilizando o nosso idioma,
embora o façam. de maneira geral, com sotaque próprio.

Agora mesmo verifico isto, sentindo no peito incontida alegria.
São madrugadores.. Pelas 6 horas, quando não antes, já se
vêem formigar, por atalhos e sendas, encaminhando-se às lavras.

Ali têm os indígenas o seu ganha-pão: milho e feijão, batata e o mais, que depois irão vender, na loja mais próxima. Com o produto, levarão para a cubata o que é necessário : vestuário e sal, e peixe
seco.
Parcos no alimento, vivem de pouco e sem aspirações.
Lá para guardar é que eles não estão! Chapa ganha, chapa gasta!
Não vivem tristes nem cultivam, de facto, a melancolia.

Cantam e bailam, folgam e riem. Um pano qualquer lhes tapa as formas, atando-o breve, sem requintes de elegância, tendo em pouco a sua higiene.
Eles e elas, sem distinção, fumam seu cachimbo, voluptuosamente. Aprecio-lhes o viver, tão singelo e natural que, às vezes, causa inveja!
Na realidade, que é que torna o homem deveras infeliz?
Não é, exactamente a ambição desenfreada?!Querer sempre mais e não poder alcançá-lo!.

Quando passo nos quimbos, vejo tudo à mistura, em convívio franco, esfuziante e amistoso! Grandes e pequenos; bois e cabras;
bodes e porcos, galinhas e galos.
Não há cerimónia! Uns sentados; outros de pé; outros ainda, recostados ou jacentes.

Sem mobiliário, sem higiene e sem dinheiro, eles vivem tranquílos e são felizes! A pequena cubata limita seus desejos e é suficiente
para cantarem a vida.
.
Chitembo
25-3-1973
Dezoito e meia. Uma tarde nevoenta, harto indesejável
e assaz carregada.
Leccionando a Guida no seu Inglês, recebo um pedido, a meia voz: é do Carlitos. Atendo gostoso e, após havê-lo feito, encaminho-me ao quarto, logo a dois metros.

A Emissora de Quinchasa e bem assim a de Brasaville fazem comentários sobre as eleições, a Assemleia Legislativa e a Junta Consultiva. Despertavam assim a curiosidade a todos os Angolanos.
Ora, como tinha o meu radio ali à mão. era provável esperar um pedido.
Caminho açodado, na mira de o trazer, e, ao sair da porta, fico
preso de lado. Um prego saliente apanha-me a camisa que vestira, neste dia, pela primeira vez. Fico desolado!

Como é que uma peça de mero vestuário pode ser motivo de grande alegria e, ao mesmo tempo, causa enorme de prostração?!
Parece fantasia, mas é assim mesmo!

Já não tive coragem para mais diligências!
Ninharias! Mas é isto a vida! Como ela se apresenta e é vivida!
Encontrara-a um dia, em Nova Lisboa, sendo-me oferecida por deferência.
Lavada e passada, era coisa chique. Mirava-me nela e, por ser adequada à zona climática, enchia-me em pleno a fantasia.

Cor de neve! Botões a brilhar!.Tamanho e feitio a quadrar-me bem! Verdadeiro achado!
Vai, então, por azar, logo um talho enorme que afastou a alegria do meu coração!

Chitembo
26-3-1973
Segunda-feira. Últimos dias, em época de férias, com tempo desagradável e chuva sem fim! Isto que passa já me vai aborrecendo. Ouvia dizer, por cá, que terminavam as chuvas e, durante Março, já pouco nos molhávamos.

Afinal de contas, foi tudo ao contrário! Pelo menos aqui tem
chovido a rodos. Que grande azar! Eu que tanto aprecio o tempo bom, quando estou em férias! Sou muito azarento!

Para mais, sendo este o fim da temporada, era meu desejo que fosse reconfortante, rico e fecundo em motivos agradáveis.

De facto, a 2 de Abril, pegamos de novo: recomeçam as aullas da Escola Técnica e, junto com elas, bem entendido, os graves problemas! Os nossos alunos é que deviam tê-los, mas como agora anda tudo ao contrário, verifica-se o exposto!

Certo é, pois, que de hoje a oito dias, já estou agarrado aos livros de Inglês, com vista certeira a dar cumprimento á minha tarefa

Chego a ter desejo que as férias se prolonguem. O ambiente familiar e os anos de magistério são grandes factores que me encaminham logo para o alvo apontado. Mas urge trabalhar, sempre e melhor!
Sinto imenso prazer em lutar dia a dia, por uma Angola maior.
Não será belo ajudar quem precisa?!
Deste modo, exactamente, se escorraça a preguiça, dando nobre sentido à nossa existência.
Mãos, pois, à obra e preguiça fora! Enquanto é dia, urge aproveitar!
,
Chitembo
27-3-1973
Foi a 25 do mês corrente. A caminho do Capolo, ofereceu-se-me à vista singular espectáculo. Grupos diversos caminhavam folgazões, ao longo da estrada, com intuito de votar.

Pretos e mulatos de exóticos trajos, falavam e riam, apressando o passo,. Eu, então, olhava complacente e, muitas vezes, com olhos de afecto.
Que sentimento profundo os levava ali e que viam eles no acto a praticar? Esperança. talvez, de melhores dias. Não há que duvidar! É o que percorre a mente do Chefe, sua esposa e filhos, a
quem deseja criar um futuro melhor.

Entre os vários objectos de que eles, então, faziam acompanhar-se, figurava o pau, quando não o javite.
É este, a propósito, um machado curioso, que transportam sempre.

Faz as mesmas vezes de bengala ou cacete, servindo ao mesmo tempo como objecto de adorno. É caso para dizer: útil e agradável!
Parece-me talvez que não é elegante, Por não estar habituado ao exótico objecto?

Acho desengraçado o seu encabamento, embora reconheça que oferece vantagens.
Quanto ao cabo, nada a opor!

O que apresenta inestético é aquela região, onde vai fixar-se a parte cortante. Pronunciada em excesso, figura mal ruim que estendeu enormemente o seu raio de acção.
Voltando uma vez mais à sua indumentária, levam os indígenas camisa branca, toda engelhada, sendo a cor algo indefinida.
No tocante ao calçado, é outro assunto. A maioria deles não usa disso, habituados como estão a calcorrear , sempre descalços,
léguas sem fim.

A crosta formada, ao longo do tempo,é bastante dura, para suportarem as longas caminhadas. Nada, afinal, lhes faz impressão

Rachados embora, principalmente nos calcanhares, oferecem os pés tamanha resistência, que não temem dureza nem objectos agudos.
Gostei de os ver, assim esfuziantes.
Alimentação e indumentária quase nada os preocupa, levando em tudo uma existência quase primitiva
.
Chitembo (cont,)
28-3-1973
De tudo quanto vi, ao longo do percurso, rumo a Cachingues, o que mais cativou e logo prendeu a minha atenção.
foram, sem dúvida, as autoridades, com berrantes divisas.
Ostentavam alguns pretos chapéus esbranquiçados, de cor duvidosa. O resto do trajo era vulgar.

Aquele chapéu. no entanto, grava-se na retina, de maneira indelével. Arredondado e harto espesso, afigura-se tormento para este clima. Apesar de tudo, fazem gosto naquilo, sentindo prazer e, ao mesmo tempo, enorme vaidade, em trajar daquele modo.

Vindo a talho de foice, disseram-me então que se trata de seculos, Estes são homens com mais de 40 anos e constituem o que eles chamam Assembleia Consultiva dos aldeamentos indígenas

A autoridade branca nada pode resolver, sem que os ditos elementos sejam ouvidos.
Faz de tribunal, assembleia legislativa e órgão consultivo.

Há dois dias somente.presenciei no quintal, uma demonstração. Ali, exactamente, sob o grande pinheiro que o ensombra e alinda, sentavam-se 11 homens, tendo a seu lado uma mulher que fora denunciada.
Era, sem dúvida um pequeno tribunal, sem o dispêndio que tais órgãos acarretam, em povos civilizados.

A mulher em causa aproveitara-se, em tempos, da ausência do marido, para juntar-se a outro homem de quem teve um filho.

Era este, realmente, o corpo de delito.
O agravado receberia do chamado intruso 700$00, ficando a criança para o pai adoptivo.
Assim se faz justiça, em terras de Angola, à sombra amiga de
uma árvore secular ( em geral, uma mulemba.)

Sentados no chão, ouvem atentos a opinião do soba, ou então do seculo mais antigo, sendo este apoiado com palmas estrondosas
pelos seus partidários.

Voltando uma vez mais ao percurso de Domingo, havia alguns que ostentavam divisas - eram os regedores; outros ainda apresentavam fitas - eram os sobas























Chitembo
29-3-1973
A roda incansável do tempo a viver gira velozmente, num eixo adelgaçado, roubando-me vida,atracções e esperamças.

É como ladrão calculado e arguto, a quem não falta arrojo nem
a manha escasseia. De um dia em outro dia , não sei realmente como se escoaram as férias de de Março, que vai tocando no fim.

Quem irá arrancar-me ao remanso ideal, em que serena decorre a minha existência?! Nada me falta daquilo que é possível ou então grato.
Verificadas que foram as circunstâncias várias que me acompanharam, nenhum outro lugar é mais adequado, para eu comsumir o resto da vida.
Alvo de solicitude e fulcro de interesse , vejo-me agora rodeado de carinho e todos me estimam.

Como é tarde em excesso, para eu constituir um lar pessoal,
urge, na verdade, que eu adira a este, onde não me consideram
como estranho ou molesto.Sentindo-me à-vontade, fico desanuviado e reputo-me feliz, na certeza repousante de que todos me acarinham.
Da minha parte, não sou impertinente, originando mal-estar ou
aborrecimento! Exigente para quê?! Vivi sempre modesto! Por que razão ia agora mudar?! Se não é ideal o meu viver, é o melhor que poderia encontrar.
A nossa Guida transformou-me bastante, dando-me prazer a sua companhia. que antes me indispunha, de vez em quando.
Mercê, claro está, de várias circunstâncias, é, na verdade,
companhia ideal e bem assim minha irmã
.
3 Chitembo
30-3-1973
Hoje ou amanhã, já chega a encomenda. Espero-a ansioso, pois me faz imensa falta.

De que é que se trata,afinal de contas? Simples calças - uns seis pares - que mandei acanhar. Não podia usá-las. Foi preciso estreitar em 8 centímetros, afim de as vestir.
Outras havia que tinham 10 a mais.

Grande maçada!.Feitas há três anos, quando havia engordado, excessivamente, não foram estreadas. À data presente, nem com cinto podia aguentá-las! Inadequadas e autênticos sacos!

Em tempo de Carnaval, seriam sofríveis.
Vi-me, pois, obrigado,neste passo ingrato, a recorrer ao Meste Coelho, modesto alfaiate, que trabalha nesta vila.

Já mandou as do casaco e parece estarem bem.
O volume da cinta, engrossando as ancas,já desapareceu.

Dizem.à puridade que estão esplêndidas.
Como efeito directo de tal mudança, houve de gastar 360$00!
Era bem dispensável! Se o não fizesse, passaria por lorpa e até pacóvio! Falta-me coragem, para ser desfrutado!

Como se vê, foi um dinheiro bem aplicado que livrou de apupos, carnavalescos, a minha pessoa.
Deus dê saúde e longa vida ao bom alfaiate, para continuar a sua tarefa e livrar as gentes destes apuros.

Tondoro ( Namíbia)
31-3-1973
Lá se vai embora o mês de Março e com ele vão também esperanças e logros.

Como é desolador o nosso viver,neste forno africano. derretendo lentamente a substância musculosa! O Sol ardente vai-nos queimando e os mosquitos vorazes chupam gulosos o sangue dos brancos.
Este clima e este céu infundem na minha alma denso nevoeiro de imensa tristeza.
Ignorando o futuro e receando vivamente o dia de amanhã, os nossos olhos amarguram-se prestes, perdendo breve o seu próprio brilho.
Como sair do braseiro, há tanto já , sem vislumbre de esperança? O homem tirano, como a Natureza a escorraçarem-nos para longe deles!
Quem dera um lugar, onde a gente repousasse! Existirá, por ventura?! Para além da morte a certeza é firme.

Quanto a este mundo, já duvido seriamente.
Para nós, foragidos, conforto humano é coisa inexistente!
Escapámos, a custo, dum perigo iminente, para meter-nos em outro, maior talvez. Pois não é a Namíbia alvo de atenções , que intentam, por qualquer meio, incendiar e destruir?!
O mundo inteiro converge e alimenta seu ódio contra a África do do Sul!
Estamos, pois, no braseiro que já queima, à volta, pondo em
grave risco a nossa existência
Que Deus se compadeça de todos os espoliados!

1-4-1973
Dia de Enganos

Para uns, bem feliz; para outros, doloroso!
Há certos lugares, em que a data não coincide, pois ocorre a 1 de Maio. Entretanto, de um modo ou de outro, não perde a natureza.
Será tal dia símbolo verdadeiro? Não é a vida autêntico engano...logro total?! Tantas ânsias fundas, todas sem eco no peito de alguém!
Tantos sonhos lindos que breve se dissiparam!
Qual nuvem carreagada, ao tocar-lhe o Sol, tudo se foi! Enganos e logros, enormes decepções! Tal é o rosário da vida que passa veloz e já não volta!
Aspirações altas que ficam a meio... desejos veementes que vemos gorados, ideais apaixonantes fenecidos e mortos, bem precocemente!
Contamos viver largo, fazendo finca-pé no que é transotório e,,em breve tempo, vem a morte cruel, rindo às gargalhadas , sobre os nossos planos e alta aspiração
Não é isto um engano?!

O mais desairoso e refinado de todos os logros!
Que tem de belo a vida que enleve e acalente?! Qie sentimento estável ou que amor duradouro veio jamais bafejar a existência humana?!

De tudo o que vi, só o bem me encantou! Só Deus me foi leal.
É verdade também haver, no mundo volúvel, um amor constante, que não degenera nem pode esquecer - o amor de mãe!

Hoje, porém. que vemos tudo a corromper-se e logo findar,fica-me a impressão de que só Deus se aproveita e pouco mais! Este, sim, que não muda jamais. Clemente e Bom, muito Paciente e Misericordioso, Justo e Santo, oferece, na verdade, estímulo forte que logo nos prende.
No fim de tudo. pois, salva-se a beleza, a verdade e o amor
que têm Deus como fonte.
Tudo o mais é mentira, com raras excepções.
Silva Porto
2-4-1973
Recomeçaram as aulas, Após um mês de férias, passadas em conforto, no remanso do Chitembo, cá estou de novo,qual valentão, para retomar o fio da meada, que se encontrava inactivo.

Afirmar convicto que trago desejo de trabalhar com afinco, não
será bem exacto, pelo simples motivo de não achar ambiente. Apesar de tudo, cumprirei o meu dever, pois a consciência a tanto me obriga.
Em vez de 4 aulas foram 3 apenas.
 quarta-feira, não pude estar presente, por dois ou três minutos que cheguei atrasado.
Aquilo é uma malta! Já estava no recinto, quando a sirene se fez ouvir. Esperaram por mim? Foi num relâmpago!

Se fossem tais para as entradas! Mas não! Pressentindo eles que me encomtrava a caminho,fugiram, logo, às sete partidas! Isto faz descrer e leva-me em parte a esmorecer um tanto ou quanto!

Se eles, de facto,não querem aulas!
E é, para mais, uma turma fraca! Creio ser das piores! Não me refiro aqui ao comportamento!
Foi um desconsolo!
Para quem vive a sua profissão é uma punhalada!
Secção agrícola B, que razão tinhas tu, para assim fugir? É desse modo que se ganha o pão?! Será com poltrões que famílias e pátrias vão contar, no remoto porvir?!

Grandes mariolas, acabais de revelar-vos! Apareça-me um dia
algum fora de horas, pedindo mansamente que lhe permita a
entrada!. Assim é que se aprende!
Aproveitarei a boa lição que me fica, decerto, para escarmenta!
Não ponho mais na carta que tresanda a bafio!

Silva Porto

3-4-1973
Aos 28 anos, já lhe chamam avó! Não é vulgar, como também não é de crer muito facilmente. Apesar de tudo, o facto ocorrelu, na zona do Chitembo., onde uma pequena foi mãe aos 14.
.
Entre brancos, não seria tão fácil, já que se resguardam, um
pouco mais,na matéris em causa.

Pelo menos,era assim,nos velhos tempos. Em nossos dias. a mulher civilizada está passando um pano, sobre as altas virtudes que a tornavam respeitada.
Nem todas lerão pela mesma cartilha, mas há bastantes que assim o fazem.
Entre pretas, se o caso não é geral, surge pelo menos com bastante frequência.

Elas não têm decerto,o conceito elevado que Jesus Cristo lançou no mundo,acerca da pureza e da castidade. Por outro lado, segundo a mente delas, é preciso. realmente, ganhar a vida, para ajudar os parentes.
Por esta razão, ao chegar a puberdade, ouve-se aos pais a frase do costume: «Vai para o ganho!»
Se aparece um branco, apresentam-se logo, para assumir encargos: em geral, de lavadeiras.
Outras, porém, nem encargos desejam: vendem-se logo. pura e simplesmente.
Moças aí há que vestem os pais e mobilam as cubatas, com
o produio da vida fácil.

A brancos civilizados, sob o influxo de tipo religioso, antolha-se o
facto como anomalia. A eles, porém, que vivem de outro espírito e
navegam em outras águas, afigura-se o caso como acto banal e
bastante cheio de naturalidade. Foi assim, no passado: assim
continuará.

Silva Porto
4-4-1973
Intuitos de Presente
Sempre fiz projectos e. se alguns realizei, outros houve também que não passaram do mero embrião. Os que dependiam
apenas de mim, quando senhor da minha vontade, viram sem,
dúvida realização; aqueles.porém, que já se prendiam com terceiras
pessoas, ficaram gorados,por via de regra.

Actualmente, vivo um sonho que deveras me encanta e prende â vida, honradamente. Começará por lições e boa asistência
na preparação. Só desta maneira as coisas vão bem.O meio dissipa, levando os jovens em sentido contrário.

Se tudo correr bem, alugo uma casa, onde passamos todos a viver em família. Será então mais fácil vigiar o estudo e acompanhá-lo.
Evitaremos assim o efeito pernicioso das más companhias e do próprio ambiente, em que vivem mergulhados.

Silva Porto
5-4-1973
Passei agora mesmo, em frente do quarto.
Eram 6.30. Ele, o Padre Acácio, dera uma queda, no Domingo passado, em plena Catedral. Uma síncope? Escorregamento?

Ignoro a causa. O certo, porém, é que foi à cama e o caso em
si, embora não grave, assustou altamente.
Nestas circunstâncias, é presumível que as suas atitudes sofram mudança.
Terá estranhado a pouca frequência de pessoas amigas
ou julgadas como tais. Apesar de tudo, no meio dos logros e
desilusões de toda a sorte, que a vida apresenta, há sempre alguma coisa, que se mantém firme, resistindo tenazmente a
quaisquer vicissitudes e passando à margem do que é banal.

Pena é, realmente, que se trate de animais.
Pois foi precisamente o que eu vi esta manhã. Ao traço da porta,
concentrada e paciente, enroscava-se triste a cadela fiel do Seminário.
Terá dormido ali?
Ensimesmada e harto alheia, parecia dormir. Aquilo, porém. não era sono.
A alma dos cães é séria realidade.Reacções químicas de pura
matéria não geram dadicações nem provocam, entrega.
Existe, de facto, nos própriod animais, algo diferente da matéria bruta.

Chamem-lhe alma ou dêem lhe outro nome, a verdade incontestável é que algo existe que se extrema claramente da
matéria inerte.
Por outro lado, aquilo emocionou-me: terá o animal notado a diferença? Estranhará, por certo, a vida anormal de quem muito lhe dava em apreço e estima?
Compensação razoável para tanto desamor, verificado entre os homens?!
Escreveu alguém: Quanto mais conheço os homens mais gosto dos cães!
Também me não esquece o remate impressionante de certo Médico
a exercer em Pinhel.
«Dizes tu, meu amigo, que nada me falta, porque sou rico e tenho muitos amigos! Estás enganado! Quanto aos amigos, só um é fiel, Deitado a meus pés, aguarda sempre e não me atraiçoa, Este, sim, é meu amigo!»

Silva Porto
6-4-1973
Ocorreu ontem, por volta das 14, na ida para o Liceu.
A nossa Guida seguia pelo asfalto, enquanto dois carros, ao
que julgo, da tropa, figuravam, na aparência, tentar alcançá-la.

Comunicaram- me o facto, hoje de tarde.
Fiquei exasperado, como é natural. Isto levou-a a supor, embora erradamente, que fosse contra ela. Afinal, a pessoa visada era
diferente.
Enervou-me a conjectura. que logo me assaltou: originar-se dali uma situação algo delicada, no tocante à menina.

Ela afirmou, peremptória, que não tinha contribuído nem dera, ao tempo, qualquer aceitação, Isto serenou-me.

Declarou ainda que certo alferes dissera no Chitembo, ser ela cautelosa, por causa dos pais, mas em Silva Porto seria diferente.
Pelo que vejo, andavam os ociosos tentando a sorte que não
correu favorável. Pelo menos, assim julgo eu.

Segundo me parece, os informes obtidos, na vila do Chitembo, terão sido,em parte, algo desfavoráveis à nossa Guida.
Factos deturpados; intenções malsinadas, pontos ampliados e muito coloridos...
Desta maneira, haviam de tentar a exploração do caso.
Inquietei-me bastante, ao saber do ocorrido, embora reconheça haver sido exagerado.
Entretanto, urge, a valer, afastar o vento, para lugar distante,
não venha por aí vento malsão enodoar a candura da meúda inocente.
Tomarei a coisa bastante a sério, já que foi, no passado, causa eficiente de perder o ano. e andar nervosa.

Silva Porto
7-4-1973
Foi ontem, na Técnica. Decorria, nessa altura a lição
de Inglês.
Tudo ia normal,até que uma frase, por mim apresentada. originou escarcéu. Era como segue: ela estava a olhar para as orelhas longas de um burro muito grande.

Não por ser dificil, o Licinio encravou, e, por mais que tentasse, vieram só disparates
A malta brava, pelos seus representantes, começou logo a aproveitar-se do caso, e o facto presente não seria para menos..

Efectivamente, a frase referida acomodava-se bem a um
qui pro quo. O Carreira, sabendo-o, entra logo a explorar.
Isto excita-me os nervos, tanto mais que,sendo fim de semana, há, por via de regra um tanto de nervosismo.
Ouvi uma vez; depois, outra e outra.

Quando eu, por fim, não podia já conter-me, sucedeu o imprevisto:
chamei ali estúpido ao sujeito em causa, terminando por dizer que
era falta grave de camaradagem e filantropia.
Enguliram em seco, fazendo em seguida, como se,realmente, nada lhes tocasse.
Mercê do ocorrido, vibrei intensamente, subindo-me à tez o rubor denunciante,
Bom. A coisa passara e o sinal do fim acabava de soar.
Apressei-me a concluir, em ordem à saída, o que faço habitualmente , com muita presteza.

Não fora assim, e os meus alunos, ansiosos de ar livre e saturados já de nada fazerem, iriam pedir-me logo contas rigorosas.
Dobrara com empenho o limiar da porta, seguindo em frente, pelo vasto corredor, quando ouço nítida uma voz escabreada, tentando irritar-me.
Qual raio vertiginoso, volto para trás, na mira dum castigo, mas, como por encanto, era tudo silêncio.

Silva Porto
8-4-1973
Em tempo de Férias

Em Vila Nova que chamam de Mil Fontes,veraneavam tranquílos
vários grupos de amigos a quem a vida corria de feição. Entre eles
se achava o actual Secretário da Colónia Penal( Capolo Angola)
João Correia Alves e a extremosa esposa, Maria Agusta Martins.
Alves.
Em conversa amena, após o almoço, contaram hoje o que sucedeu
há muito, nessa praia distante, ao sul de Portugal.

Cheios de bondade e calor humano, tocados altamente de
verdadeira emoção, relatavam os dois, em termos dolentes, o que
seus olhos presenciavam ali:

Três meninas lutavam, ingloriamente,já longe da costa, tentando em
ânsias de enorme desespero,

escapar à morte.Uma delas já perdera o alento, vogando enmtão ao
sabor da corrente que a levava para longe. Da praia afastada,
olhavam consternadas, diversas pessoas, não havendo ninguém
que se atirasse ao mar, para salvar aquelas infelizes.

Nisto, Dona Agusta e vários senhores arriscam a vida , em
prol das mais próximas. Da terceira, porém, ninguém queria
abeirar-se: era longe demais e a corrente fortíssima. Voltar-se-ia ,
acaso, de tal aventura?

Eis senão quando o bom João Correia , numa circunstância
de grande emergência, com heroísmo sem par, se lança mar fora,
demandando a infeliz. Tenta arrastá-la, fixando-a pelos cabelos,
mas a força da corrente invalidava a manobra.

Resolve então levá-la aos encontrões, diante de si,
coneguindo salvá-la da morte iminente.
No abismo, porém, já estava dormindo o sono derradeiro aquele que a adorava, com enlevo e ternura.´

Silva Porto
9-4-1990
Esta semana e outra ainda, ficamos desde logo na Páscoa do Senhor. Para mim, são já 55. Embora me não lembre
de todas as outras, por ser impossível, é já volumosa a cifra que
lembro, bastante saudoso.

Vai distante a infância, de que guardo somente o perfume inebriante, A adolescência tranquíla deslizou também, por modo subtil, passando, já se vê, quase despercebida.

Veio a nubilidade e logo a mocidade,cujas lembranças ainda persistem, gravando-se na alma os êxitos de então.
Foi a minha vida algo serventuária, mas com tudo isso, derramou odor suave, que não posso olvidar.

E a maturidade, esse tempo nefasto, em que só tardiamente é que abri os olhos?! Cheio de pasmo e grande horror, tudo olhei com espanto!
Vi-me, de pronto. num mundo artificial, que eu, na verdade, não tinha construído! Olhei-o com desdém, por ter verificado que não era o meu nem tão pouco o desejava.

Por que me encerraram, não querendo ficar preso?!
Errónea compreensão da existência humana e seus graves problemas? Desatenção lastimosa aos direitos dos outros?

Falta amarga de recursos económicos?
Interpretação, algo viciada, leviana e lastimosa, para o heroísmo?
De tudo houve um pouco. Assim o creio eu.

Mais que certo é isto: a poeira de tempos idos, esse aroma grato, mimoso e subtil que me enlevava, em criança, tudo se evolara como por encanto!
Crise de fé? Genuína descrença?
Não. Sempre acreditei
Censuro os homens pelo mal que me fizeram. mas creio em
Deus e procuro amá-lO.

Silva Porto
10-4-1973
«Na casa de quem joga pouca alegria mora»

A mais cega e despótica de todas as paixões, assim disse já
Camilo Castolo Branco, no seu formoso livro " As três Irmãs"

Vício horroroso, que tudo leva para hasta pública,se não
troca vilmente os entes mais queridos pelo ignóbil metal, quehá-de
alimentar a paixão dominante!
Haja pão, quer o não haja, faça frio ou calor,tremam e chorem
os rebentos de amor, nada isso importa.

Alegar faltas? Para quê?! É letra morta
Sustentar o desejo é que interessa, primariamente.
Vendem as jóias, penhoram os objectos, desfaz-se o homem
do que ama e preza.

Ante o arremesso de suas paixões, nada há que se imponha ou
faça resistência. Amor e ternura, carinho e afecto abismou-se tudo
na voragem da paixão! Assaz detestável. quando não infamante e
ruinoso v'icio!
Como será possível afastar alguém da execranda tavolagem?!
Haverá aí querer e energia bastante, para arrostar com o inimigo?!

Deus-Pai me livre de tal presença que odeio vivamente!
Fortificar a vontade humana, esclarecer o espírito enfermo e
arranjar também substituição,hão-de ser, na verdade, os meios
naturais, utilizados na luta.
Além destes, hão-de ter-se em conta, os sobrenaturais:
oração e boas obras, frequência dos Sacramentos e mortificação.
Sem estas armas, não podemos vencer!

Silva Porto
11-4-1973
Mulher que dá ouvidos ao homem e cidadela que queparlamentar estão para se entregar"
Ouvi isto no Capolo, distrito do Bié, em fim de semana. Por achá-
-lo curioso, tratei logo de anotá-lo, para não esquecer
É pura realidade aquilo que manifesta.

:Na verdade, se a mulher atende ao que o homem diz; lhe dá
aceitação, tomando em conta as suas observações; se pensa
nele, tentando agradar-lhe; se põe esmero em tudo o que faz,
afim de chamar a sua atenção, está pendente dele: não precisa
o tal de fazer esforço,para tê-la ao serviço, no que aprouver-lhe.

Tudo reside, evidentemente, no interesse que alimenta e
preserva, levando-a desde logo a ser foco e alvo de preocupações,
em ordem a outrem.
" Quem ama não dorme"
Razão é esta pela qual não sossega nem jamais tem repouso. Alimento e sorriso, distracção e prazer só nele se encontram
ou com ele juntamente. Assim o diiz há muito a sabeoria do nosso
povo. " Está para se entregar!"

Postas assim as coisas, fará ele depois o que intentar.
Quanto à cidadela,o mesmo se passa.
Querer ela entrar em negociações é o primeiro passo para a
rendição.
Se não for ainda isso. o caminho está aberto. Entrar, de facto
em negociações, é o mesmo que abdicar, pondo logo à margem
firmes propósitos que as sérias dificuldades ou a falta grave de
patriotismo não deixam realizar.
Quando, porém se conserva resouta, jamais abre as portas ao
feroz inimigo que ali a cobiça nem franqueia a entrada a quem quer
que seja,
Numa palavra: a mulher e a cidadela devem cerrar as portas
para não darem azo a que possam falar

Silva Porto ????????????????????????????
12-4-1973
Punhaladas que matam.

Em 9 do corrente, pelas 21, ocorreu, na cidade, uma coisa dolorosa,
cujos efeitos me tocam de perto. Relatada em 1o, persiste e aviva-
se.
A nossa Guida que um Alferes cortejava, recebem em cheio o
gojpe mais fundo que pode imaginar-se.
Viera de Luanda o esperado Orfeão, para dar um espectáculo,
oferecendo gratuitos lugares na cidade.
Pedindo autorização, não ousei negar-lha, uma vez que a
pequena se comporta bem.

Em companhia da colega Nely, encaminha-se à Primor, onde
presencia, em sumo desalento, revoltante episódio. Em vez do
encontro, deveras almejado, a que o afecto a leveva, sérias
dificuldades , com altos problemas se originaram então: vê o dito
sujeito abraçado à noiva!

Ela que se encantara! Ela que havia sonhado com mundos
belos e cheios de fascínio,onde a fantasia devaneia e se regala,
tem, perante os olhos, a certeza do malogro!
Sujeito dos infernos, por que não serves o próprio diabo?

Por que não houve um tufão violento , que te levasse daqui para
para lugar distante?! Junto de nós, a tua presença é odiosa. Por
ser hipócrita e falsa, deixa rasto de sangue. Ela odeia-te de morte,
como deixa escrito em seu Diário e eu, por modo igual, odeio os
teus actos.
Por que a seguias, então, levando-a crer,. erradamente, num
amor irreal?! Vou fazer-te sentir como és asqueroso, ante pessoas
honradas!

Silva Porto
13-4-1973
Hoje, sinto, de facto, a alma angustiada, e o corpo
deprimido. Maneiras verificadas abriram, no meu peito, vazio de tal
ordem, que é nada o esforço, tentando preenchê-lo.
É já tão exíguo o mundo afectivo, de que estou cercado, tão
circunscrita a esfera do amor em que vivo imerso, que mais e mais
estremece o coração doente, ao convencer-me de que vivo sozinho

Julgo, por vezes, que não é bem assim, mediante provas
raras, que muito aprecio. Outras vezes, porém, ferve-me o inferno
em alto cachão, ao pensar, de longe, que talvez me engane.

Quando isto ocorre, vai-se o gosto de viver, sentindo claramente a
alma desfalecer.
Não será o amor a grande amarra e o vivo estímulo que
prendem à vida?!
Sem o amor o coração não vive. Vita cordis est amor - escreveu
S.Tomás. Serve de alimento, para ele se manter.

Eu sei, na verdade, que há um pouco de exagero, devido é
claro ao meu estado de espírito. Dormir ou repousar não é comigo.
Vivo algo inquieto, nervoso, angustiado!
A dúvida cruel amarfanha o meu ser, nvolvendo-o logo em cinta de
ferro
Esta minha dúvida não tem como objecto os problemas do
Além que sempre acarinhei.
Tudo aquilo, porém, como o restante, é motivo que me
prostra e rouba a ventura.
Quando a suspeita me entra na alma, cria-se o inferno,
tirando-me o sono e o gosto de viver. Exagero? Talvez seja isso,
mas sinto dor imensa e a náusea da vida apodera-se de mim
Silva Porto
14-4-1990
À medida exacta que o tempo avança, cada vez é maior
o desejo que me invade. Poderei realizá-lo, sem ir contra o Céu?

Tê-lo-á Deus proibido? A quem vou eu dar-me'? Será possível
acaso, viver de outro modo, no tocante a mim? Serei, por ventura,
um caso excepcional? Que fizeram os homens, pondo o seu veto?

Mais papistas,afinal, que o próprio Fundador?! Teorias não me
levam, aos 55 anos! Fui nelas, realmente, em data recuada,quando
os meus olhos ainda estavam cerrados, para a vida terrena que
não pude viver!
Não foram banhados pelo sol da liberdade!
Esranhos se aproveitaram, convertendo a minha vida em autêntico
martírio.
Só tarde abri os olhos e tão tarde já era, que não pude recuar!
Em 1943, sonharia alguém com a profunda mudança que mais
tarde se operou?!
Só intransigência... pesada, incompreensível, se não tirânica!
Passados 20 anos, o assunto veio à baila, para ser tratado,já
humanamente.
Até ali, fora sempre vedado esse direito e com tanto rigor se
cumpria a lei, fabricada pelos homens ,no século XII, que não
admitia quaisquer excepções.
Sem dúvida alguma, a Igreja Católica exorbitara de seus
poderes.

O Fundador Celeste jamais determinou o infortúnio de
alguém, Aconselhou, mas nunca impôs; chamou casados ao
Sacerdócio; o primeiro Papa, escolhido por Ele, era casado;
Jesus Cristo era servido à mesa pela sogra de S. Pedro; em S.
Paulo,no Novo Testamento, há esta frase, de sentido geral: os que
não puderem façam o casamento; ainda em S. Paulo: os Apóstolos
levam consigo «mulheres esposas»; Antigo Testamento:
Crescei e multiplicai-vos.

A proibição só foi decretada no século XII.
O Papa actual: O sentimento do amor não pode ser recalcado.
Sendo isto assim. achei-me a breve trecho num beco sem
saída! Fardo tão pesado, que me estava esmagando!
Jamais realizei o meu destino terrestre, por cavarem a ruína em que
jazo desde sempre.
Com que direito fiquei defraudado?!
Restituí-me a liberdade que é minha e não vossa! Dom gratuito do
Senhor, apenas Ele é que pode tirar-mo!

Quem dentre os homens pode arrogar-se um direito assim?!
A alma humana tem fome de amor, este amor humano que é néctar e ventura, enleio e presença, esteio firme e calor dulcificante!!
O próprio Deus foi quem o criou , lançando-o Ele mesmo em nossa allma.

Capolo
15-4-1973
Sete horas menos 15.

Em sala enorme e bem arejada, com o Sol espreitando, pela banda esquerda e mostrando-se a custo, por entre nuvens densas, escrevo o meu Diário que outro mérito não tem que o de ser verdadeiro, sincero e lavado, como o peito donde sai; dolente e magoado, como a alma que o dita.
Tudo é grande, vasto e amplo, em volta de mim: só o meu coração, por não sei que desdita, é que sente em cheio a ideia de pequenez!
Grande e majestoso este céu que me cobre; vasto e imenso o horizonte sem fim; pujante de vida , fecunda, abençoada ,esta várzea criadora que se desventra , amiúde, em generosidade, abundância e fartura.
Apenas eu constituo excepção. É por isso., na verdade, que me sinto pequeno,envergonhado e triste.
A casa, onde estou, com amplas divisões, acusa-me de ingénuo e ri-se de mim.
A vida é amor: sem este não há vida!
Por outro lado, amar na solidão é coisa absurda e até impossível!

Supõe mais que um e detesta, já se vê, o isolamento! Este é muito
bom, mas para cenobitas que, mergulhados em Deus, prescindem da matéria e dedenham, firmemente de quanto os rodeia.

Eu, porém, não gosto disso.
Criticá-lo não ouso, mas realmente não é bom para mim!,
Sozinho aqui, mas porquê?! Fui eu, decerto,que propus o caminho?! Como?! Se eu não gosto dele?! Porque estou assim?!

Não adoro eu o lar saudoso?!
Não me prende laço forte â família que não tenho?
Não detesto eu o processo educativo que me foi ministrado?!
Por que estou aqui só. revoltado e triste?!

Silva Porto
16-4-1973
A vida hoje é bem diferente! A cabou, de facto a solidão, finou-se a amargura, foi-se embora, de vez, o meu isolamento!
O céu tem outra cor; o horizonte é acariciador; a mesma natureza
harto acolhedora!
Sinto a alma renascer e no peito acender-se uma viva
labareda... a existência inquietante volver-se em fascínio! Que foi
então o que hoje ocorreu?
Aproximei-me dos meus, quero dizer, daqueles que amo e
de quem julgo também ser amado. O Carlos e a Guida trazem-me
os dois a vida suspensa: vê-los a ambos é ver a claridade; sorrirem-
me um dia é bafejo do Céu!; ajudarem-me espontâneos é ser alvo
de ternura; interessar-se por mim, indizível prazer que é néctar do
Céu!
Tão pobre do que é humano e que o Céu deixou na Terra por
geral património, que admira, pois, me sinta feliz, com amostras
embora?
O Carlos Alberto é bondoso e prestável, meigo e dócil; a
Maria Margarida, desde que me foi entregue e confiada à minha
guarda, constitui o ideal, para dar fim ao viver solitário.

Tem dado, bastas vezes, provas de confiança e mostra, sem
dúvida querer-me também. Desanuvia logo o meu débil espírito, ao
ver-me caído; abeira-se de mim, ao notar alguma vez que me isolo
dos ;outros; confia segredos e aceita alegre a minha direcção.

Nada há, neste mundo, que possa valer o carinho da família,
compreensiva e harto solícita.

Silva Porto
17-4-1973
Um belo Domingo, por tarde amena, levantámos ferro,
da Colónia Penal e fomos direitos ao Caninguir. O secretário da
extensa Colónia, sempre gentil e oficioso, ofereceu-me um rico
passeio, através de matagais, por sítios ermos e desconhecidos.

Claro se torna que logo aceitei, ficando alvoroçado, pelas muitas
novidades que certo nos traria. De facto, assim foi.
Começando na picada, irregular e tortuosa, e acabando
finalmente nos morros de salalé, que são nota pitoresca, é tudo
original e digno de atenção.

Acrobacias, feitas ao volante foram das melhores. Algumas
vezes, era tal a inclinação, que nos dava nervos, julgando ali, se
virasse a carrinha e nos fizesse míseros, em pleno matagal. Quanto
a salalé, nem é bom falar!

Desconheço inteiramente a vida e os hábitos de tão curioso
e maléfico insecto. Ao longo dos séculoa, não obstante a
exiguidade que apresenta o seu corpo, levou a efeito morros
enormes, em cujo topo se ergue, geralmente, um arbusto viçoso.

De notar ainda que, nas suas vertentes, medra capim,
bastante virente, cujas raízes buscam gulosas o adubo apetecido,
no interior do morro.
Fiquei bem ciente de que os tais insectos elaboram um
produto que torna impermeável o interor da sua habitação.

Por outro lado, se acontece alguma vez aluírem tais morros, para
efeito de culturas, é de ver então o milho crescendo, verde e
viçoso, a formar ali contraste flagrante com outras sementes, logo
vizinhas.
Nesta conversa, deveras curiosa, decorria o passeio, quando surge
a Chicala, pequeno aldeamento, a 9 quilómetros.
O patrício Meia Onça veio logo a sorrir, mostrando
amplamente os seus dentes de ouro e oferecendo seus belos
préstimos.

Silva Porto
18-4-1973
Em pleno mato, na via arruinada que leva ao Mutumbo.

Consta haver ali uma base militar. É forte pena que as vias de
acesso estejam realmente impossibilitadas de oferecer préstimos.
Por entre bissapas e alto capim, rodamos, já se vê, a fraca
velocidade, tanto mais que se deparam amplos atoleiros, quando
não depressões, harto profundas, inundadas pela água.
A mais terrível de todas encontra-se a poucos metros do
lugar procurado - o Caninguir.

Deu-nos que pensar, não sendo muito fácil descobrir, com
acerto, o rumo a tomar,para não sofrermos alguma decepção.
Aventurar, preferindo o centro? Mas é temeridade, porque o fundo,
ali, ninguém o conhece, entre os presentes.
Preferir as bermas? É o que desperta maior atracção, crendo
todos ser mais acessível a borda esquerda, pela qual optãmos.
.
Mas há tanta lama! Notam-se ainda vestígios claros de
resvalamento! Olhamos bem... tornamos a olhar, quando se
deparam, logo à nossa frente, vestígios de carro que passara por
ali.
Foi a salvação! Segundo informaram, quem seguiu pela
outra borda ficou lá retido, saindo apenas por meio de tractor.

O patrício condutor João Coreia Alves, fez a manobra, com
enorme dextreza, podendo o Land Rowver portar-se como barco.
Mais uns passos em frente e eis-nos logo em vasta esplanada,
rodeada de capim. viçoso e alto.

Aqui e além, alfaias agrícolas: tractores e furgonetas,
grandes camiões e para rematar, um engenho assombroso
para cereais: corta, debulha,ensaca, etc.
Custou a bela quantia de 5oo contos!
.
Silva Porto
19-4-1973
Encontro-me agora, no lugar do Caninguir. A 2
quilómetros, situa-se a embala de nome igual,onde vive um soba
que recebe como príncipe os brancos visitantes.

Aqui, afinal, só um largo enorme, bastante alindado com
alfaias agrícolas, tendo a seu lado a morada confortável do
fazendeiro Morais.
Ao chegar a companha, ele não estava, mas logo foi dito
que não ia demorar..
Efectivamente, volvidos instantes, lá surge uma carrinha,
a cujo volante vinha colado o senhor Morais. Era, de facto, o
abastado fazendeiro, em trajos de lida, cheio de suor, poeira e
cansaço.
Desalinhado um pouco em seu cabelo e um tanto
descomposto, olhou-nos logo com interesse. É que ele, de facto, já
conhecia o noso condutor e alguns funcionários da Colónia Penal.

Cumprimentos efusivos. apertos de mão e alguns abraços!
Fazem-se breve as apresentações, e a nossa atenção volta-se logo
para as culturas soberbas que ao lado vicejam.

O hábil proprietário fala de seus planos, lamentando sincero
não haver perdido o medo, ao lançar à terra a semente promissora.
O ano corrente vai ser esplêndido. Cento e cinquenta hectares,
destinados ao milho; 180 para o arroz, não falando já em outros
produtos de menor importância,como ervilha e batata, feijão e o
mais.
Entalados nas órbitas seus olhos faiscantes vão logo
sinalizando reacçõea e mudanças no cenário psíquico.
Entregara-se à terra, ia para 13 anos.
A criação de gado também o encanta, de modo especial, mas o
fraco reside, sem dúvida, na agricuitura.

Chitembo
20-4-1973
Reviver o passado, quando ele é grato, origina
refrigério e dá consolo. Às vezes, porém, as coisas são outras.
Foi o caso lastimoso de segunda-feira, no regresso do Capolo.

Algumas novidades, no tocante a Silva Porto a à nossa Guida
que agora mais que nunca é objecto de cuidados.

F'ora ela ao baile dos Encontristas, sem prévia licença.
Indispôs-me este caso, de ter sido levada por certa pessoa que não
tinha autoridade. Bastaram, para tanto, palavras de garantia,
alegadas à data, para a dobrarem, inteiramente.

Sem permissão, decide-se pronto, ao dizer-lhe alguém que
tomava sobre si a responsabilidade.
Como podia tomá-la, sem pedido nem outorga?!
Aborreceu-me o facto, extremamente, pois fora proibida, por causa
das más notas.

O pior de tudo, porém, foi o que sucedeu!
Um tal sujeito, agarotado, que só do nome se vale, resolveu tomar
parte no dito baile. Ora, havendo-se dado o que nem ouso lembrar,
era natural que a nossa Guida, ao notar-lhe a presença, tratasse
em breve de pôr-se ao fresco para muito longe

Apesar de tudo, com grande espanto, cá da minha parte,
deixou-se ficar, até ao final, recusando embora vários convites para
dançar.
Isto foi horrível! Verdadeiro impudor! Eu, no caso dela, cuspia-
lhe no rosto e fugia horrorizado.
Em boa verdade, tal casta de gente não merece outra coisa.
Ela, porém, não obstante o ultrage que lhe fizera o sujeito,
querendo gozar a vida, sem fim de casamento, permaneceu ali.
qual estátua animada, assistindo ao baile e à comédia irritante.
Se voltar a repetir, vai sair-lhe caro!

Chitembo
21-4-1973
Embora em remanso que me faz reviver, não gozei
cabalmente a amostra de férias. Quatro dias apenas, cerceados
ainda pela ida ao Capolo. pareceram ninharia!
Que bem eu me sinto, aqui no Chitembo!

O passado regressa, o coração al voroça-se e a velhice
teimosa receia avançar. Apesar de tudo. os graves incómodos
renovaram-se ainda e tive de aguentar-me.

Difícil coisa aturar alguém sua própria pessoa.Que o faça
aos outros não se afigura caso tão árduo, mas aplicá-lo a si não sei
que dizer, a tal respeito!
Cheguei. por vezes, a desanimar, com tal situação!
Durante o dia , mau era de facto. mas durante a noite aquilo era
pior!
Como dormir, recobrando energias? Uma hora e outra, e
sempre a mesma coisa!
Virar para um lado , experimentar do outro, sem que os ponteiros
avancem o que a gente quer! E aquela dor esquisita, sem diminuir
e com persistência!
Despertando alta noite, não volto, já se vê, a conciliar o sono!
Questão de bexiga? Estômago ou fígado? Intestinos ainda, para
acompanhar? O que é certo, na verdade, é que, após a urina, fica
sempre aquela dor, espraiada pelo ventre e não me deixa pôr olho!

E tanto urge trabalhar! Lembrei-me dum cancro!
Minha irmã tentou logo remover essa ideia temerosa, argumentando
com engenho. Quase me convenceu! Logo em seguida, um
chazinho quente de barbas de milho operou maravilhas!

Ele tem, na verdade, algo de bom, pois adormeci, acordando
somente, volvidas cinco horas!
Abençoado chá!

Silva Porto
22-4-1973
É Domingo de Páscoa, festa cristã, a que assisto. em Angola, pela primeira vez. Digo francamente haver passado por mim quase despercebida. Não sei como foi, mas é pura realidade.
Um dia como os outros, desconsolado e triste,soturno e melancólico.
Vivê-lo em cheio? Recordá-lo saudoso,,sem haver coisa alguma que a tal se opusesse?

Levantei-me um pouco tarde, o que me fez rodar em voltas e mais voltas, numa andança louca e endemoninhada! Deixou-me doente! Que maçada erguer cedo. em manhãs de Domingo!

Quem dera, alguma vez, ter ao menos o bastante, para não
viver, à maneita de escravo! Mas, enfim, a vida não é sempre o que a gente deseja!
É preciso lutar, vendo embora, desolado, faltar o terreno, debaixo dos pés.
Lá fui ao Capolo, neste dia memorãvel! Só no caminho, à volta de 4 horas, para 60 quilómetros! Será isto viver?! Levado por carências, é mister desde logo sacrificar o descanso, não ter um dia meu e acorrentar-me à vida, como sendo escravo.

Poças e bolas, para tal existência! Onde estão os meus direitos?! Só terei deveres, como foi ensinado, em tempo de Internato?!
Que devo eu à vida, para assim me torturar e forçar-me a tal ponto?!
Não sou, por ventura, como os outros homens, que talham seu caminho, lançando-se felizes no mister por que optaram?! Por que razão plausível, eu havia, pois,de ser diferente?! Não é a vida, já de si própria , uma cruz pesada?!
Por que artes e manhas veio o próprio diabo, com forma humana, atormentar a minha pessoa?!

Silva Porto \
23-4-1973
Primeira aula de Inglês ao Curso F.F. após as férias de 4 dias. Mal acabava de entrar na sala de aula, apresenta-se um grupo a pedir-me dispensa. Fico espantado, sacudindo pronto a responsabilidade e apelando logo para o nosso Director

Em breve surgiu ele, escliarecendo então que apenas um grupo de 3 ou 4 podiam ausentar-se.
De que é que se tratava, afinal de contas?
Morrera, de facto, a mãe da Maria Amélia! Fiquei estarrecido! Como eu sinto fundo, no corpo e na alma, o peso ingente de um facto assim!
Falecer em verdes anos aquela que nos gerou e viveu a nosso lado, já nas horas felizes já nas desconcertantes!...
Aquela menina é bastante gentil. Como aluna é fraca, mas cativante e educada. Fica órfã de mãe, aos 14 anos.

Que grande tristeza e quanta amargura isso não lhe causa!
Desamparada como erva solitária, que no trilho é calcada!
Condoí-me até âs lágrimas e só por vergonha é que não fiz ruído.
Assomaram atrevidas e não pude contê-las!

Expandiu-se a minha alma que vibra fortemente em casos do teor.Amanhã, por Deus, vou dar-lhe os sentimentos, comungando assim, na sua grande mágoa.
Pobre Maria Amélia!Tão mimosinha e cheia de carinho,vê-se
agora sem alento,no mar encapelado, onde brama a tempestade!
, .
Chitembo
24-4-1973
Mais um ano vai passar, por sobre o empréstimo à Firma M, S. Foi há 7 anos, entrando o capital no montante aproximado de 400 contos. Perfaz-se agora um total de 680 ou
cerca disso.
Gostaria imenso que devolvessem breve, ao menos metade,
se não mrsmo a importância, na sua totalidade.
..
A 8% não será muito mau.O caso, porém, é que não chega talvez , para cobrir devidamente a desvalorização.
O dinheiro, na verdade, não está no seu lugar! Deve aplicar-se em obras diversas que sejam garantia do valor real, quando o não excedam.
É asneira, pois, fazer como eu, deixando os capitais
indefinidamente, a render um lucro que redunda em prejuízo.

Por demais eu sabia o destino a dar-lhe, se não tivesse presente a incerteza do futuro.. Por isto me fico de braços caídos,
sem tomar pronto resolução definitiva.
Convidam-me em extremo as rendas de casa, no meio angolano.
Até aqui, em Silva Porto, embora meio pequeno, são
consideráveis.
Construir prédios?
Em boa verdade,um edifício, algo razoável, com rés-do-chão e dois ou três andares,, garantia a exiatência para os dias da velhice.

Mas quem pode jogar nesta funda incerteza, deveras angustiante que já nos acabrunha e assaz entristece? Apesar de
tudo, vem-me a tentação de arriscar metade.Se este falhasse, contaria já se vê. com a parte restante. que, afinal é modesta!

Silva Porto
25-4-1973
Há muito já que ansiava pelo cacimbo ( tempo seco e frio ) Desde Setembro, eram constantes longas chuvadas, acompanhadas sempre de medonhos trovões que punham, num átomo, os cabelos em pé. Infundem respeito aos que vêm da Europa, sendo aquilo em jeito de estreia.

Não havendo pára-raios, então é o cúmulo.
Em caso afirmativo, decresce o nervosismo, embora persista, como é natural, certo mal-estar que não deixa ter paz nem o sono visitar-nos.
De Setembro a Janeiro, com o Taunus em Lisboa, foi grande a tragédia, sobretudo pelo escuro!
Com aulas nocturnas, sabe Deus a que horas, sob chuva a cântaros, acompanhada a relâmpagos e medonhos trovões, que são de espantar!...
Aquilo só visto e experimentado!
Ver-me constrangido a fechar o guarda-chuva, para não servir-me de pára-raios! Aparar, em seguida, a água em torrentes, sem ver
palmo de terra, numa zona de guerrilha! Levava uma lâmpada, mas lligá-la então, seria arriscado, por causa do terrorismo!
E não era so isso!
A velha picada era um alagão, com lama salpicante e poços frequentes, onde eu tinha de cair! Não podia mais! Fui então a Lisboa, em Janeiro passado,dando assim remate ao que era imposível.
Em 17 do corrente, olhei pela janela e notei, desde logo,, coisa maravilhosa! O Sol, na verdade, parecia já outro! Que pureza
de céu e que brilho deslumbrante!
Recordei então, com funda saudade, as belas manhãs, claras,
inolvidáveis, em 1972, primeiro dos meses, passados em Angola,na
vila do Chitembo
Levantava-me cedo, caminhando pela estrada, sem medida nem regra, ao longo da via. Perdia-me então em sonhos belos que
não tinham fim. Creio aproximar-se uma época igual. Mal eu pensava que do negro inferno havia de surgir o 25 de Abril a que
Melo Antunes chamou TRAGÉDIA.

Como anseio vivamente pelas manhãs de vertigem, que entornam em minha alma caudais imensos de luz, inundando-me o
peito e, ao mesmo tempo, saciando o coração!

Silva Porto
26-4-1973
Que fazer agora ao magro dinheiro que meu grande esforço logrou amealhar, para os dias longínquos de enfermidade
e também de velhice?
Não deve continuar, segundo o costume: em Firma ou Banco.
Desvaloriza-se notavelmente e, em vez de aumentar, diminui antes,
a olhos visto.
Urge, pois, encontrar desde já saída proveitosa, afim de obviar a tais desacertos, que devo tomar na sevida conta.
Não me passa a ideia, assaz acarinhada:
: investir uma parte, no Estado de Angola, e outra na Metrópole.

Preferir a construção à agro-pecuária?
Aquela não a julgo desacertada. De facto, em cidade regular,com
visos de progresso, as fontes de receita iriam avolumar-se, em pouco tempo.

Um prédio em Silva Porto ou melhor ainda, em Nova Lisboa,
seria, talvez um caminho seguro e bastante proveitoso. É uma cidade em franco progresso, esperando brevemente a criação
maravilhosa da Universidade. Faculdades já existem.
Por este processo, estudavam os sobrinhos,tirando facilmente cursos universitários.
Haveria também casa, para habitar e lucro bastante para as despesas, no dia a dia.Parece-me bem que seria o ideal.
O múnus de professor e leccionador ia facultar capital
utilizável que, por sua vez, redundaria em cultura e promoção familiar.
Após isto, ajudaria tambeém obras sociais e de caridade.
Trago, pois em mente um prédio modesto, segundo este esquema
Armazém franco; 1º e 2º andar; sótão de quartos.
Talvez o conseguisse por 600 contos

Silva Porto
27-4.1973
O montante em dinheiro eleva-se agora a 1200 contos.,segundo me parece. Todo ele, naverdade, é fruto bem amargo de longas vigílias e forçada poupança. Se alguém o roubar ou causar-lhe empate, há-de transformar-se em fogo destruidor.

Está nele a minha alma , suores e canseiras; o que eu havia de comer; o descanso que não tive; os passeios que não dei e tudo
aquilo de que sempre me privei.
Obriguei-me a exageros, mercê de enfermidades e males terríveis que sempre me afligiram.
Chegado a este ponto, querendo a valer que o modesto pé de meia sirva nobres fins, desejo orientá-lo de maneira sensata.

Calculo sejam estas as migalhas reunidas: Firma M. S. 670
contos; Banco Portuguès do Atlântico : 503: Pinto e Sotto Mayor
(Nova Lisboa; 12,5oo contos; o mesmo em Silva Porto; + 40 contos.
Uma existência bem escravizada, que nada me trouxe de positivo!
A lição proveitosa dos primeiros tempos é que agiu fortemente
Aos 26 anos, sem dinheiro nem prestígio, desprotegido e um
tanto enfermo, encontrei-me sozinho, nas garras do diabo!
Foi dura a lição, porquanto simples e bondoso, eu não acreditava que houvesse maldade nem homens corrompidos,
que torcessem tudo em seu proveito.

Como então não havia assistência de espécie alguma, e os
Serviços Médicos fossem explorados privadamente, julguei-me perdido! Tinha assim na minha frente um porvir carregado e harto
ameaçador, em toda a extensão

Silva Porto
28-4-1973
Fim de semana. Quando este se aproxima, enorme sensaçãp de bem-estar e paz invade o meu ser, É como bálsamo vertido no peito, onde actua eficazmente.

Após uma semana de lufa-lufa, em que se repete a mesma coisa, por modo invariável, sobrevém forçosamente pesada carga de nervos, que não é fácil já, remover ou dissipar.
A cabeça de aturdida, faz-se molesta; a respiração torna-se
ofegante; o corpo, deprimido.

Vem logo o desejo de fugir do local. e jamais voltar! Mas o pão da subsistência?! Parar não faz sentido! Ganhar meios de vida,
ocupar o tempo, de maneira útil e preencher em globo os momentos da existência, tal é o fim do trabalho

Se não fosse ele, como havia de aborrecer-me! Por outro lado, é um meio de me eleva,r no campo moral, pagando eu assim, com dor e martírio,, aqiela dívida ingente que vou contraindo, perante Deus e a eternidade.

Esplêndido meio de purificação, para satisfazer, na balança de Deus, o que tenho em dívida.
Bendito sejas, pois. trabalho honroso, que nobilitas o homem e o preparas, devidamente, para cidadão da Pátria Santa!
Se, às vezes ,te maldigo, é porque tu escravizas, fazendo-me servo: não, senhor que ordena!

Gostava de trabalhar. pois isso é meritório, mas fazê-lo, realmente, com moderação e de tal maneira que tu fosses, na verdade, meio de ventura! Assim, porém, tomaste-me nas garras,
empolgando-me com fúria, para jamais viver em liberdade!..

Capolo
29-4-1973
Encontro-me de novo a 60 e tal quilómetros da cidade onde vivo, o que sempre acontece, em fim de semana.
Quem diria, outrora,que eu viria este ano passar o fim de semana à Colónia Penal! Como o Orbe dá voltas!
Por outro lado, que diferentes são das que nós imaginávamos,
em tempo de criança!
Para mim, é exílio, separação violenta, solução que pesa, e fardo ingente que só, a muito custo, vou suportando!
Não qie me desestimem, pois que, na verdade, me acarinham e apoiam, usando de gentileza que um tanto me desvanece!
Mas, se eu adoro a família e tenho enorme apreço pelo encanto do lar, que prezarei eu tanto como esta realidade,
fascinante obcessiva?!
Por isso é que, haja o que houver, nada me encanta, logo que me afaste dos entes queridos..

Cheguei há pouco e já tenho no peito a ferida a sangrar. A
saudade aviventa-se e o coração elanguesce! Sinto-me já bastante deprinido, ansiando vivamente pela grata manhã de segunda-feira!

A meúda e o pequeno estão mais presentes, na solidão do Capolo.

Se ao menos agora tivesse um deles! Mas não! Continuo sozinho, como sempre andei, arrastando assim, ingloriamente e contra vontade, o ónus indesejável que me puseram aos ombros!
Nos dias que passam, devia sacudi-lo, atirando com ele!

Quando verei, mais uma vez , os grandes amiguinhos?
É bela a paisagem que agora me circunda e se estende ao longe, a perder de vista! Casinhas térreas que são um mimo;

campos em flor que deleitam a alma; cultura e regas; progresso e técnica; pecuária diversa...Tudo isto adoro, mas não me sorri.

Silva Porto
30-4-1973
Regressei do exílio para o árduo trabalho, necessário à vida. Entretanto, é absorvente, se não despótico, amarfanhante,
impiedoso até.
Numa quadra lastimosa, de enorme confusão, em que ninguém se entende; num tempo esquisito, em que se fala de direitos, ignorando os deveres. é difícil em extremo exercer em paz uma actividade.
Unicamente os que a urgência força e não têm outro meio de triunfar na vida, são capazes de aguentar embates assim.

Não é este o meu caso, bem entendido! Entretanto, como desejo a fundo socorrer os do meu sangue e outros ainda, que precisem de mim, entrego-me a Deus e confio-me à sorte. Deixar correr, fechando sempre os olhos, não tenho estofo que bem se adapte.

Não duvido eu que é ingrato o meu papel e até inútil, provavelmente, uma vez que os outros não façam também a mesma coisa.
Entretanto, prosseguirei, lutando a valer por uma Angola formosa , para elevar este povo amistoso; por uma cultura, bastante mais bela que se imponha e alicie, gerando para logo indivíduos capazes.

Se nem tudo conseguir, algo hei-de obter.
Oito são as turmas a que dou aulas de Inglês, Duas são agregadas: Electricidade e grupo de Mecânica.

Oriundos todos de mil procedências, mesclados afinal de todas as cores e de hábitos excêntricos ( alguns pelo menos ) algo condenáveis, devo exercitar-me, na paciência, para conseguir levá-los a bom termo, preparando-os bem para o amanhã.

Palavrinhas doces não as julgo eficientes, para adoptar como processo.
Um misto bem firme de exigência e compreensão há-de trazer, com certeza, frutos sazonados..
Quando será isto? Talvez mais depressa do que eu próprio suponho

Silva Porto
1-5-1973
Recordando o fim de Abril, revivo com interesse a última visita à Prisão do Capolo.
Cheguei um pouco tarde, porquanto os reclusos haviam já
entrado, mas isso não obstou a que ficasse uma hora, no interior da Prisão.
O conhecido pinto,r de nome Sequeira, recluso também, ao pressentir-me no interior, veio logo ter comigo, para troca de impressões, que o perturbam de momento.

Tem graves problemas, todos relacionados com o seu casamento.Além disso.há o caso molesto das transferências: uns vão para a Metrópole; outros, para Luanda; outros ainda, para Malanje. Não descansa um momento, enquanto não chegar a sua
deslocação.
Optaria, diz ele, por Silva Porto.
È uma cidade: tem outras condições, em ordem ao trabalho e à própria aquisição de materiaid necessários, pois ele é pintor.
Mil aspectos variados, dignos de nota!

Revelou o pintor ser adventista, julgando talvez que eu ia ralhar ou que, pelo menos, ficaria descontente. Confidenciou ainda que, devido certamente ao estado de espírito, não sente disposição para dar-se ao trabalho, ainda mesmo, na arte preferida.

: Não parece mau rapaz e mostra vivo desejo de regenerar-se.
Fiz-lhe ver largamente que deve em tudo seguir a conscência: ler,
observar e deduzir. Eu cá sou aberto e muito humano.

Ele, por si, desejava continuar, mas o guarda-vigilante
fez-lhe sinal, que ele respeitou imediatamente, despedindo-se logo
com muita presteza e rara amabilidade.
Hoje é Domingo, murmurou ele, com ar jovial, seguindo o seu caminho.
.
Silva Porto
2-5-1973
Intrigado andava eu, havia muit já. Ouvira falar no ,Cruzeiro do Sul e, de igual modo, no Triângulo Austral.

Vira-os desenhados a lindas cores , em livros e cadernos; eu
próprio me ocupara de tal assunto, quando nas aulas ensinava asNaturais aos alunos da Metrópole
Ver, porém, esses astros como eles são, na realidade, jamais me fora dado. Mas o dia chegou, ao fim de muitos anos.

Em Angola, já desde Agosto passado, olhara o céu limpo,
muitíssimas vezes, sem lograr pôr a vista nas constelações.
A última diligência fizera-a no Capolo. a derradeira vez, em fim de
semana
Creio tê-las avistado mas, ficando inseguro, joguei desta vez,com mais segurança.
Em companhia do amigo Padre Vaz, no passeio da noite, fiz-lhe sentir quanto eu lamentava não haver descoberto o Cruzeiro do
Sul.
Palavras não eram ditas, trava-me do braço, dizendo pressuroso: Vamos ali fora! Há-de vê-lo com certeza, ainda esta noite!
Meu dito, meu feito! Arrancámos, num átomo, para o campo de jogos, que se encontrava, nessa hora, muito bem iluminado. Como isto não convinha, pois fazia diminuir o poder de observação, manda Padre Vaz desligar o quadro, ficando a zona inteira em pleno escuro.

Neste passo exacto, olha para o céu, colocando a mão direita em forma de pala. Puxando-me para si, com a certeza firme de Mestre abalizado, elucida prestimoso: Vê, meu amigo, aquelas três janelas, sobre a cozinha do Seminário-Colégio?

Aprumado e ansioso, respondo afirmativo.
- Imagine agora uma perpendicular à que se encontra no meio e prolongue-a depois até à Via Láctea.

Eu, então acompanho diligente o olhar do meu colega, avistando logo,cheio de prazer, o Cruzeiro do Sul, pela primeira vez.

Silva Porto
3-5-1973
O tempo e o lugar afastam-me impiedosos de vivas realidades, que me tornaram feliz, em tempos de criança.
Aih!, dia de Santa Cruz, o que vens relembrar-me!
Realidade saudosa que há muito se esvaiu, no céu da minha vida!

Era esse , para mim, o dia mais feliz do ano inteiro! No que reside, às vezes. a ventura de alguém! Jogar a péla, de manhã até à noite,
afim de ganhar, amealhando alguma coisa! Já se via bem claro um dos pontos fulcrais da minha psicologia e das minhas tendências: grangear bens, para entesourar!

Seria crime? Que o diga o Pai do Céu, para eu acreditar. No que os homens cêem tenho sérias dúvidas. Por que havia de ser crime?!
Ganhar honestamente, à custa de sacrifício e muito esforço, havia dr ser pecado?!
Tanto pecado que os homens decretaram para os seus irmãos!
O certo, porém, é que eu me entregava, de alma e coração, ao jogo da péla. Quanto amor e cuidado eu punha no acto!

Atirando-a, do pêlo, rastejava a pelota, para ninguém a apanhar, antes de ir ao chão. Do outro lado, agilidade e presteza e
até rabulice, para neutralizar o meu adversário.
Que proeza então era "matar" o adversário, que não lograva jamais alcançar-me em tentos!

Chegava o meio-dia, sem me aperceber!
Refeição? Para quê o repasto, se eu tinha a alma concentrada no jogo?! Uma partida... logo outra ainda e muitas mais, todas seguidas!
Era este, na verdade, o meu apetite e não outro diferente!
Grande, insaciável, desmedido até!
A tostão apenas... às vezes a dois... suprema delícia!
Perder, então, não era comigo!
Desta maneira, amealhava uns escudos, neste dia tão amado, em que dispunha de mim, até o Sol declinar e se esconder no Poente!
Saíra, de manhãzinha, levando comigo as " cruzes das cearas" que só ia colocar, já noite cerrada!.

Silva Porto
4-5-1973
Que dias amargos eu passo agora, aqui em Silva Porto!
Se fossem apenas dias! Infelizmente, são dias e noites! Já era sobejo levar eu, dia a dia, o fardo existencial, penando e gemendo,
enquanto brilha no céu a luz do nosso Deus, mas tornar-se mais pesado, quando os vivos tudo esquecem, é suprema desgraça.

Dormir! Isso não é comigo"!
Seria grato, seria,olvidando no escuro minhas mágoas e pesares!
A noite passada, que eu assentava em recuperar,veio dizer-me impiedosa que outros males piores aguardam para já a minha existência! Causa de tudo isto? Sei lá! Talvez a comida que
temperam a seu modo, não olhando jamais à dor alheia!

IInfeliz que eu sou! Ninguém toma a sério o meu caso especial!
Sou olhado agora como roda avariada , em máquina velha
que serve apenas para incomodarÉ isto viver? Além disso, outros planos acarinho que não delxam realizar. Serão apenas sonhos?

Pelo menos, são coisas que eu amo e pretendo viver, num mundo reduzido e com certo encanto! Apesar de tudo. nem isso, afinal, é permitido!
Fechando-me as portas: sinto-me isolado e até desditoso!
Que fazer assim?Apresentam-me a existência de aspecto carregado, ao que eu não acho graça nem beleza nenhuma.

Fujo de tudo e afasto-me de todos., para não incomodá-los.
Afigura-se ásvezes ser um morto entre vivos que nada me dizem
e a quem não ihteresso.
Pode ser até que me odeiem fumdamente, porque a minha presença lhes não é grata
Mas que fiz eu, para dar ensejo a tal ambiente?
Será este, afinal, o meu triste destino?.
..
Capolo
5-5-1873
Dezoito e dois. É noite já e acabam de soar, na torre esbelta da pequena igreja sonoras badaladas que chamam os fiéis à reza do terço.
Decorre, ao tempo, o mês de Maria. Foi, de facto, em Maio, que a Senhora do Rosário falou aos pastorinhos.
Daqui a meia hora, vamos, pois, à igreja, para render homenagem à Senhora de Fátima.

Bem preciso é que, numa época triste de materialismo,
absorvente e obcessivo. haja crentes destemidos, e fiéis bem formados, que balancem com seus actos o enorme desperdício e
alto desleixo que apresenta o semelhante, em extremo abandalhado.
Se não fossem eles, varrer.se-ia em breve, da face da Terra,
o último sopro, genuíno e firme, de espiritualidade. Hoje, vivem
exactamente quais entes sem rumo. Domina o erotismo e, fora dele, nada mais se avista.

Heroísmo e renúncia, dedicação generosa e espírito nobre de sacrifício foram, há muito. postos à margem.

Ai de quem se ligue a pessoas que pratiquem! É logo escarnecido e votado ao ostracismo! O que inspire elevação e
nobreza de sentimentos é metido a ridículo e posto à margem, como velharia que só merece desprezo.

Admiro, pois, estas almas fiéis que, num mundo perverso,
corrompido e falso, arrostam ousadas com o desdém e prosseguem resolutas, sem nada ligar a mostrs diabólicas.

Lá vou então presidir ao Rosário, para que a Senhora nos consiga de Deus uma fé mais viva , devoção mais sólida, espírito
mais pronto, resoluto e decidido.
Mãos postas a rezar podem bem mais que os próprios tanques!
Participação

Capolo
6-5-1973 Ex,º SENHOR COMANDANTE MILITAR
de
Silva Porto

Havendo ocorrido, aqui na cidade, coisas lamentáveis e muito de censurar com o Alferes J,T.C.M. em relação a uma menor de quem
sou familiar e estou encarregado, venho chamar-lhe a atenção para o que passo a expor:

Solicito de Vª Exª o especial favor de serem tomadas eficientes medidas, para que deixe em breve de persegui-la,
aproximando-se da casa onde está hospedada; não seguindo os carros em que ela viaja nem passando tangentes, ao longo da rua.

Para elucidar Vª Exª, acrescento o seguinte: o aludido Alferes, que é Miliciano, já tempos antes procurava a pequena , à maneira de um rapaz, com fim de casamento, levando ela a sério as suas atitudes.
Houve encontros diversos, chegando a convidá-la para ir de automóvel, deslizando na estrada, a velocidade incrível.
Ainda mais: uma vez, tentou abusar dela, só o não fazendo, por encontrar resistência.
Não se lembrou o dito Alferes que ela é filha de gente honrada e tem decerto quem a defenda, podendo, se necessário,
fazer-lhe a vida cara.
Por fim, a Margarida convenceu-se, por inteiro, de que era mal intencionado, quando a procurava, olhando para ela como se, realmente, fora da rua.
Ora, ele vai casar, como já sei, por informação que veio de longe. Apesar disso, continua leviano, a seguir a pequena que ficou traumatizada.
Que acontece?
O nervosismo que fundo a tomou e que ele ainda aviva, continuando segui-la, faz perigar-lhe a débil saúde e arriscar também o ano lectivo.
Além disso, o pai que já sabe também o que se passou,
arde em fúria incontida, podendo ocasionar algo desagradável.
Como prezo o nosso Exército, para que não haja nódoa capaz de afeiar qualquer dos elementos, trago esta exposição ao conhecimento de Vª Exª.
Esperando breve ser atendido e agradecendo antecipadamente, subscrevo-me com muito apreço e consideração

Silva Porto
7-5-1973
Recordo emocionado uma tarde inesquecível que passei no Capolo.
Foi ontem, precisamente, que o patrício Monteiro, no recinto exterior da Prisão Correccional, me pôs ao corrente de uma grande tragédia,cheio de tristeza, com lágrimas nos olhos.

Que acento ele punha no tom de voz! Que sufixos mimosos ajeitava cuidadoso! Que profundos ais se escapavam de seus lábios!
Dobrou recentemente o cabo dos 50, mas a rigor aparenta mais 10!
É guarda antigo, na Prisão Correccional, onde vive acasalado com uma preta, ainda jovem (24 anos).
Passou em Luanda os primeiros 13 anos, do que fala com saudade, sentindo prazer em rememorar o que experimentou, na dita cidade.

Falou de inúmeras coisas, mas uma houve que jamais esquecerei: a morte simultânea de 3 filhinhos que ele adorava. Foi causa para tanto uma intoxicação.
Como brilham seus olhos, reproduzindo as feições ou vendo seus contornos! Como vibra intensamente, sempre que entoa seus dizeres inocentes!
"Como eu trabalhava com intenso ardor, na minha chitaca, deveras querida! Para eles era quanto eu fazia!"

Tamanha eloquência tocou-me em extremo!
As lágrimas surgiram, com grande presteza , não havendo barreira que pudesse contê-las!

Naquele rosto escuro, enegrecido e queimado pelo sol africano e percorrido já por fundas rugas, não se espera, de improviso, tanto brilho no olhar nem tamanha inflexão no manejo da voz!

Mas ele estava na minha frente, relatando em pormeno o que fora, na verdade, vida e alegria, na sua existência.
Encaminhava-se ele para a chitaca ( fazenda no mato ) e, ao
sentir-se indeciso, por não acertar com a vereda a seguir, volta logo a casa, deveras aborrecido.
Nunca se enganara, até ao dia fatalJá perto da moradia, olha para a porta, força-a com a mão, escuta um segundo, mas nada ouve!
"Foi a mãe que saiu e levou os petizes "segredou ele para os seus botões.
A este pensamento, encosta-se ao lado, esperando longamente!
Se ele adivinhasse!... No interior da vivenda, jaziam 3 crianças, de corpinho ainda quente.
Era o que tinha,neste pobre mundo e perdera para sempre o
bom guarda Monteiro

Silva Porto
8-5-1973 (cont,)

Este pai amoroso de 3 filhos mortos, que naquela hora, poderia salvar, permanece ali juntinho, aguardando ansioso o momento de voltarem, juntamente com a mãe. É esta uma preta que ele admira e preza, pela sua dedicação.

A situação anormal é assunto vulgar que o não preocupa.
" Somos homens", diz ele, convencido altamente de que não era possível qualquer outro arranjo.
"Golpe mais fundo já não posso vir a ter, no decurso desta vida. Como arrebatado, passa logo a descrever, em miúdo pormenor, as feições de cada um, repetindo os dizeres, e vivendo as emoções.
A chitaca é nossa, não é paizinho?
Sim, é para vós que eu trabalho,... para vós, que eu vivo!
O paizinho morre?
Sim, o dia virá, mas vós todos ficais na chitaca , que eu hei-de alindar, por ser para vós!

Neste passo exacto, sua face enegrecida, pela ardência do
Sol, perde toda a expressão, durante um momento, enquanto desafoga a alma angustiada.

" Quem diria então que seriam eles a morrer primeiro! Meus filhinhos! Encontrei-os mortos: dois, na caminha; o mais pequenino, por não poder subir, estava no chão!Coitadinho!"

Quando faz referência a qualquer parte do seu corpo em botão, usa habitualmente o diminutivo.
" A cabecinha...aqueles pezinhos...... as perninhas mimosas...
os lindos olhinhos!..."
Que pai amoroso! Como eu gosto dele! O rosto obscuro e vincado de rugas... o aspecto carregado, triste e deprimido, leva
a deduzir nada haver aí capaz de alegrá-lo!

Vive para um sonho de imensa tristeza, realidade poderosa que forte o domina e tenta apagá-lo
O passado, pelo que tem de horrível, é a sua vida , a cada hora que passa.
" E eu, afinal, que podia salvá-los! Que fazia ali, esperando, esperando?!
Por que não forcei a porta cerrada,voando com presteza ao encontro urgente dos meus filhinhos?!
Morreram intoxicados pelo fumo dos papéis que puseram a arder!
Horrível destino! Infanda sorte a dum pai infeliz que fica sem ninguém!

Silva Porto
9-5-1973
Ocorreu o facto, entre as1o e as 11. A nossa Guida encontrava-se, ao tempo, no " Canto do Jardim", onde se ganha má
fama e aonde não raro. se dirigem tropas e certos guedelhudos
para a conversa banal.
Passei casualmente, o que a trouxe logo ao meu encontro, ridente e bem disposta.

Fiz sentir-lhe pronto a minha reprovação, por ter desobedecido, alegando ela que estava para sair, rumo à Biblioteca, onde prepara as lições diárias; que fora ali apenas, afim de furtar-se à vista do Liceu .que não consente fumo, perto do edifício.

Transigi benignamente, supondo crédulo que ela fosse em breve, para o lugar referido.
Fui depois ao Banco , tratei das minhas coisas, sentando-me em seguida. à sombrade uma árvore.
Aproximando-se a hora da aula seguinte, voltei decidido pelo mesmo caminho.

Esperava-me então uma grande surpresa: avistando-me de longe, ao fazer caras ao dito jardim, esgueirou-se num pronto, seguindo como seta, ao longo do passeio.

Apercebi-me logo de quanto ocorria.
Desobedecera, já se deixa ver e, apanhada em flagrante, fugia a toda a pressa, tentando esconder-se, para que eu a não visse.

Silva Porto
1o-5-1973
O Ponto escrito de Inglês 2º ( 4º antigo ), foi entregue há pouco. Afigura-se odioso o processo indesejável, como tudo se passa.
Tantas horas dispendidas a ajudar nos atrasos! Tanto interesse! Tanta ansiedade! Apesar de tudo, apenas medíocres! Como se o diabo se metesse em tudo isto! É que o assunto vai de mal a pior!
Aspirações que albergava e tanto acarinhei vão ficando goradas!
A pequena ouve bem e compreende até, mas não retém, sendo pois inconveniente exigir-lhe muito mais do que ela pode.

Queixa-se de dores, imclusive da cabeça!
Também o coração lhe dá imensos cuidados, pois há muito que sofre dele.

A vista em crise e a perna esquerda! Os dentes falhados e outras coisas mais! Pobre meúda! Tantos males a afligi-la, impedindo acintosos que realize o seu desejo e prepare o futuro!
Grande logro vai ser e tremendo infortúnio, se perde uma vez mais o 4º ano liceal!

O tempo roda breve e não se detém um momento que seja!
Apesar de tudo e mesmo contra tudo, prosseguiremos na luta da vida, pois querer é poder! A vitória certa é de quem persiste!

Silva Porto
11-5-1973
O Governador visita o Bié.

Grande animação domina a juventude que, em todo o tempo, dá alma ao que passa. É ela a vida, movimento e cor, neste mundo vário, em que o cepticismo e a negra desilusão atingem os adultos
a quem trazem, num pronto, fala e movimentos.

Embora descreia um tanto ou quanto dos seus ideais, na hora que passa, ela impressiona-me, com o seu dinamismo, sua presença acariciadora e confiança ilimitada. Sinto o peito aquecer, neste grande regelo, em que ando há anos!
Será longa a idade, aos 55 anos? É que as desilusões são já numerosas!
Gosto de mergulhar em banhos de luz, aquecendo-me à-vontade em seu fogo ardente! Será, na verdade, apenas fantasia?!

Não era eu assim. em tempos decorridos?!
Não fui o mesmo. através das gerações?! E é também o que vale, para dar â vida interesse e movimento!

O que fazia curiosa, alegre e divertida a paisagem humana, era certamente o colorido dos rostos.
Havia-os ali de todas as cores, formas e tamanhos: pretos e brancos, albinos e mulatos, cabritos e cafusos.
Tanta variedade, que não cheguei a distinguir entre uns e outros!
Pouco mais de meio ano, residindo aqui, no Estado de Angola, que poderei eu fazer?! Nação prodigiosa e multi-racial! Que melhor argumento daquele que eu vi?! Todos à mistura, sem qualquer repugnância nem má vontade,sempre lado a lado, ombro com ombro!
Nem uma palavra , algo ofensiva! Todos punham sua mira numa coisa apenas: ver bem pertinho o Governador Geral. que visita o Bié, espalhando à sua volta sorrisos e promessas. Depois... os três dias de "borla" que muito bem caíram na malta estudantil.

Capolo
12-5-1973
Cheguei de Silva Porto. Já escrevo o meu Diário, cumprindo a palavra sem laivos de mentira. Não dizemoa por ela o que vai sucedendo , todos os dias? Ora, como eu jamais gostei de mentir, lanço no papel toda a casta de impressões, quer
boas quer más.
Assim é feita a vida: insignificâncias que ora nos agradam ora entristecem!.
Se tudo fosse bom ,era tão indesejável como sendo tudo mau.
Parece absurdo, mas é verdade.
Quem pode tragar a horrível monotonia?!
Que seja feita apenas de coisas desejáveis também não adianta.

Deduzimos então que o bom e o mau, fazendo alternância, lá se vão tolerando. Já tive na vida momentos de náusea, como também de grande euforia. Os primeiros dentre eles foram mais duradouros.
Mas isso que importa?! " Viveu-se, pode-se morrer"(Madalena
no Frei Luís de Sousa)

Navego em tais águas. Vivi a felicidade em grau intensivo, mais de cunho espiritual do que material. Que me importa o resto, se foi indesejável?! Vivi intensamente horas
inolvidáveis.

O que importa é viver, ainda que seja breve a sua duração.
Uma hora assim vale bem por mil outras: decerto vai nela quanto a alma deseja. É um forte vibrar, em que tudo se harmoniza, para assim auferirmos um efeito melhor.

Esquece, pois, minha alma a importuna existência, mergulhando bem fundo no fugaz e momentâneo de uma hora que foi tua!.

Absorve, a plenos haustos, o perfume que ficou, para inebriar-te o caminho longo que urge trilhar. Prossigamos, então,
confiados firmemente em que, de vez em quando, o dia rompe belo, espancando num relance a treva circundante!

Capolo
13-5-1973
Procissão das Velas

Decorreu, bem entendido, na forma costumada. Para tanto, satisfazer caprichos e pequenas vaidades pois, caso contrário, azedavam-se os ânimos. Por isso, lá vai o cortejo, percorrendo lentamente becos e vielas e, além disso, contornando pocilgas!

Ai do Oficiante que se negue a tal coisa! Vítima fatal de crítica e censuras é alvo de desprezo e objecto de mofa.
Lá fui eu, pois, contrariado e desgostoso, satisfazer o quê?!
A verdadeira devoção?! Sendo assim, faria o sacrifício.

Na verdade, em fim de semana, preciso repouso!
Entretanto, depara-se-me logo tamanha estopada! Foram
quase três horas! Por amor â Mãe do Céu, fui-me ajeitando, embora, já se vê, com muita dificuldade.

O sapato esquerdo torturava-me o pé; as pernas enfermas quase recusavam suportar o corpo. Que fazer então?! Nada, já se vê, porque eu, nessa hora, era vítima empolgada, pelo
grande frenesim daquela multidão!
Duas procissões... duas homilias e, finalmente, uma Ceia Eucarística.
Não sei, a rigor, como pude aguentar! Mas agora vou sofrer-lhe os efeitos maléficos! Se não fosse tão longa. até gostaria
daquela função!
A imagem da Senhora percorreu em sorriso as galerias do interior desta Prisão, em belo andor, transportado que foi pelos reclusos. Uma réstea de luz, num mar de trevas!
Que a Virgem de Fátima os tenha abençoado, levando algum bálsamo a seus corações!

Aqui em cima, na povoação, foi logo em seguida.
A natureza juntava-se a nós. O céu imaculado, com miríades de luzes, brilhantes e vivas, acompanhava, no alto, o cortejo da Terra. com velinhas de cera.
Rezou-se o Terço à Virgem, intervalando os mistérios de cantos harmoniosos.
Assim decorreu a luzida homenagem à Virgem Senhora que do Alto nos abençoa, tornando a nossa vida muito mais generosa, prestável e cristã.

Chitembo
14-5-1973
Vi o nosso pinheiro e rejubilou o meu coração.

Altaneiro, esguio, apruma-se ali , no quintal da vivenda, oferecendo a todos a sombra amiga e refrigeramte.
Ao deixar Silva Porto, ainda longe daqui, trago-o já no pensamento, figurando-lhe os contornos e procurando enxergá-lo, na linha do horizonte.

Entretanto, como tudo o que é belo, faz-se desejado, sentindo enorme gosto em negacear e furtar-se à vista. O Taunus, porém, a 100 ou 120, prega-lhe acintoso ligeira partida: quando mal se precata, já os olhos o colheram!

O seu perfi é amado, porque lembra desde logo, outra bela presença. Aqui residem, com efeito, os entes queridos, cujo sangue e amizade nos unem há muito.

Oásis no deserto, procuro tal mansão, afim de acalmar os débeis nervos, olvidando horas más. Agora, contudo, em vez do lugar que tanto almejara, ingrata surpresa aumentou o meu sofrer: a droga!

Eis o inimigo! Seus terríveis efeitos são já notórios! Que monstruoso achado!
Trago a minha alma em funda agonia, enquanto os olhos se vão humedecendo, com lágrimas quentes. Como é doloroso verificar os seus efeitos em pessoas que amamos!

Quem seria o monstrozinho que se atreveu, um dia, a fazer
experiências? Que pena haveria, para castigá-lo devidamente?!
Só dura punição ia ser bastante, para acção tão feia e deslustrante!
Não conhecer eu o melro atrevido, para entregá-lo à justiça dos homens! Não será revoltante?! Ver alguém amado sem memória do que foi; o rosto desfigurado, sem brilho nos olhos

Verificar ainda, para além de tudo o mais, a consequência amarga de um abuso, sem nome?! A mão infernal que estendeu a liamba devia ser desligada, para não actuar

Para que serve, pergunto, esta acção execranda?! Inutilizar um ser humano, colocando-o breve no estado de inconsciência, em que tudo se permite
Como apurar, eficientementE, as responsabilidades?!
É o triunfo do mal, sem defesa possível dos que são atingidos!
Haverá maior desgraça para alguém que se ama?!

Chitembo
15-5-1973
Último dia de borla,concedida aos estudantes pelo Governador.
Racha o mês ao centro, restando a segunda parte, que decorre velozmente. Ao mesmo tempo, camimhamos acelerados, para o final do ano escolar, que vai trazendo mágoas e
desilusões.
Quantos sonhos desfeitos ! Quanto dinheiro, já dispendido!
Quantos sacrifícios que nada aproveitaram! Mas é assim a vida: um
cortejo ininterrupto de lágrinas e dores!

Um ano perdido! Um dano incalculável! Que tremendas agonias! Será o caso da Guida?!
Já perdeu o ano findo! Nem o 4º nem nada!De quem será a culpa?
As más companhias e o corrupto ambiente!
Partiu do lar, ainda inocente, um lar honesto e são, levando por companheiras a virtude e a transparência.

Silva Porto é que foi o abismo! Longe dos pais e de quanto a resguardava, veio logo o diabo, em figura de gente, afim de tramar-lhe a perdição da alma!
Estou harto seguro de que nada houve grave ,mas o efeito da liamba é que não pode travar-se.

Tenho para mim que não foi dose grande e passará brevemente, mas isto de facto amargura a existência, encurta a vida e rouba-me a alegria.
Que dor eu sinto, no peito amargurado, quando olho a pequena e a vejo abúlica!
Despersonalizada, segue inconsciente, em plano inclinado, onde tudo é possível Vim eu ainda a tempo de evitar um grande mal que a todos angustiaria?! Assim julgo e creio

Apesar de tudo,sinto agora a alma sufocada.
Na flor da vida, sem futuro nem desejos,com a própria morte gravada na fronte e o olhar amortecido! Olvido e inércia, dor de cabeça, insónias e náusea!

Oh! Que medonho cortejo em que, ao tempo, minha alma se envolveu, presenciando a frio os efeitos lastimosos da nociva liamba!
Que mundo este venenoso e que grande sacanice!

Pudesse eu adivinhar quem lançou a pequena em mar tempestuoso!
O que faria não sei, mas perdia a cabeça!

Silva Porto
16-5-1973
Regressei de manhã à capital do Bié e, por tal jeito. ao meu dia a dia, Viver é lutar e quem o não faz não vai realizar-se.
Eu, no entanto, poderia contrapor: lutar para quê? Se tenho
assegurado o mínimo requerido!.Trabalhei, é verdade, economizei também, afim de amealhar o que precisasse, no distante porvir.

Mas quem é que sabe o que Deus nos reserva?!
Dando o mundo tanta volta, como ia prever quer o futuro, quer a desgraça?!
Entretanto, não deixo o trabalho, com o néscio pretexto de que não preciso!
E os outros não precisam?! Não amo nem defendo o meu egoísmo!
Alguém de mim espera o que tenho de alcançar!
Por esta razão, iniciada a viagem, para lançar-me na luta diária , urge que me atire, de braços abertos e peito generoso.

Aqueles que nutro ,com o pão do espírito. aguardam também o meu contributo. Por que não ajudá-los?

Esta África imensa, em longa gestação, está sequiosa de pão e de luz. Pelo que me toca, sinto imenso gosto no lidar generoso. para a elevação dos caros angolanos, afim de partilharem, de modo eficiente , no património comum, por Deus legado à Humanidade.

Hão-de ser escassos os que têm sorte: pão, luz e amor!
Os bens em causa foram dados por Deus , para benefício de todos os mortais
Eia, pois, avante pelo ideal da Humanidade, sem que nos aflijam ilusórias bagatelas nem perigos amedrontem!
Dos fracos ,é certo, que não reza a História!

Silva Porto
17-5-1973
"A gente, afinal, a ser criado dos outros! Se levasse dois estalos, não seria melhor?!"
Isto dizia um fedelho, quase rente ao chão, pois que a sua altura não vai, possivelmente, a 6o centímetros!
E a quem se referia?
A um preto, já casado , que trabalha em sua casa.

Fiquei surpreendido, porque as circunstâncias não toleram, há muito, esta educação. Num tempo delicado, em que o preto emergiu, dum estado inconsciente, para a luz da liberdade, chegando à conclusão de que os direitos humanos são inalienáveis,
não podemos, realmente, educar as crianças à maneira dos antigos!

A cor não interessa para o caso presente.
A dignidade humana e a pessoa do próximo é que hão-de tomar-se na devida conta!

Pois o Nélson, ao dizer tais palavras, retirava do frigo certas guloseimas, que em boa verdade lhe estavam apetecendo.

O emproado pequeno, falando altivamente, com acento de
adulto, incarna os sentimentos dos seus antepassados que, deste modo, se dirigiam também aos pobres nativos.
Hoje, o tempo mudou e bem que assIm é!

Lá porque alguém é diferente na cor, já se despreza ou menoscaba?! Cumpra ele o dever, merece o acatamento de outro qualquer.
Claro se deixa ver que, se ele é preguiçoso, descuidado e
lorpa, sobretudo ladrão, não vamos decerto apoiar-lhe os defeitos,
como o não fazemos aos que são da nossa cor!

Pois aquele miúdo ficou-me saltando na imaginação, com seu ar importante e assaz desdenhoso que herdou talvez dos seus maiores.
Seja como for, o caso entre mãos é de tomar em conta. Não se pode, naturalmente, proceder como ontem, até porque isso irá ser perigoso, no dia de amanhã. Mas é também um ponto de honra e problema humano.

Silva Porto
18-5-1973
Primeira série de Pontos, na matéria escolar que agora me respeita: Inglês da Técnica. A 1 de Junho próximo, vamos dar
as frequências, que são mais sérias. Como estimulante para as derradeiras, são de levar em conta.
Por outro lado,constituem elas uma espécie de chave, que facilitará, na devida altura, a solução das Frequências. Servem, além disso, para alertar os alunos que desejam, a valer, preparar-se para a vida.
De modo geral, vejo pouco interesse, da parte dos brancos.
Pretos e mulatos esforçam-se mais, afim de subir na escala social.

Em toda a parte os vejo estudando, com grande afinco, longe
dos caminhos; nas encruzilhadas; em bancos de jardim; à luz dos candeeiros, pela noite fora.
Os europeus ou deles provenientes, não encaram o problema com olhos de ver, pois andam abúlicos, vivendo do passado.
O dinheiro e o nome, pensam erradamente, é bastante na vida!

Hoje, sucede o invés: esses dados que outrora valiam e tudo
aplanavam, são agora relegados para um plano inferior.
A ordem dos valores hoi modificada e quem fechar os olhos a estas realidades ficará para sempre com eles cerrados!

Vou mais uma vez notar a diferença, entre uns e outros.
Pelas notas obtidas e o acerto das respostas, ajuizarei dos esforços que eles empregaram.
No tocante aos brancos, apenas um aluno classifico de "bom",
em quertão de proveito

Quanto aos demais, passeiam e divertem-se, continuando a sonhar. Que lhes preste o engodo e não traga dissabores, como prevejo irá breve suceder.

Silva Porto
19-5.1973
É sábado já, o que muito alegra, pois um fim de semana
agrada a toda a gente. o que o torna desejável, Desde ontem, pelas 15, encontro-me em descanso, embora assim não devesse chamar-lhe, olhando a cuidados que me assediam forte.

Por um lado, as provas dos alunos; por outro ainda o caso da Guida que tem o ano em perigo, havendo já falhado, no anterior.

Tudo isto me abate e fundo alvoroça.
Em boa verdade, esta perspectiva é assaz acabrunhante.

As chamadas orais foram já melhores, no entanto, irão elas chegar?! Por estas razões, assisto diariamente à preparação de todos os assunto , de modo especial, Português e Inglês.Veremos
em breve quanto jLucrarei!
Chegando, por fim, a ver a nota "passou", experimentarei um
prazer inefável.
Partirei, de tarde, para a Colónia Penal, o que me traz desgostoso.É esforço demasiado para débeis energias.

Isto que digo obriga a madrugar, sem dormir tranquílo. Dobrado há
5 anos o cabo dos 5o; doenças várias a fazer estragos; problemas diversos e clima ardente, não posso brincar nem fechar os olhos, deixando correr!
Em fins de Agosto, irei deixar a Capelania, Verei depois se tudo vai melhor.
Só os balanços de ir e vir dão cabo de mim!

Capolo
20-5-1873
Recordo agora o encontro de ontem. Pelas 9 da manhã,
fazia já caras ao Liceu Silva Cunha,na mira de avistar-me com o
Dr. Melo, Reitor em exercício. Já tentara, de outra vez, mas não pude conseguir, por encontrar-se em aulas.

Pela segunda vez, ia sendo quase o mesmo. Entretanto, apressei-me um pouco, ralizando assim o enorme desejo que era, na verdade, pedir informações, acerca da Guida.
Anunciada a visita, não tive de esperar, encaminhando-me logo para a Reitoria,.
Aguardava-me já o citado Reitor que sondava o ambiente, a ver se eu chegava.
Pessoa desconhecida! Alguma embrulhada! Caso melindroso?!
Acenou-me com a mão, esboçando um soriso que me animou um tanto.
Uma vez em presença, cumprimento um senhor, ainda bastante jovem, ao menos para o cargo, pois eu,na minha, fazia os Reitores um pouco mais idosos.
Tal circunstância depõe a favor. Não fiquei descontente, às primeiras impressões.

Ouviu paciente a breve exposição, porquanto havia perguntado se eu demoraria. É que tinha aula! Respondi que não, entrando no assunto, sem mais delongas.

Desculpe maçá-lo , Sr. Doutor, mas encontrando-se enferma a Directora de Ciclo, dirigi-me a Vª Exª, para informar-me,sobre o número 19 2º R. Sou professor na Escola Técnica e encarregado da educação da pequena, em causa, a qual é minha sobrinha.

Por estar um pouco fraca,mercê de companhias que a têm prejudicado, ando a leccioná-la. a ver se melhora.
Acabada a exposição, indaga pressuroso: Como se chama o colega?
Nisto, pega dum bloco. toma algumas notas e despede-se logo,
muito gentilmente

Dilva Porto
21-5-1973
Ia num carrinho,bem recostado, como alguém de qualidade. E porque não, se ele é também um ser humano?!
O caso exposto chamou-me a atenção!

Estranhei, na verdade, por não estar habituado mas, afinal de contas, que mais fará ser branco ou preto?!
Era retinto,como sendo amora e quase se afundava, no interior,com panos à volta.
Empurrado levemente por outro irmão seguia jubiloso, de aspecto feliz.
Fazia impressão um carrinho tão lindo e mais ainda a beatitude invejável que ali ostentava o dito bebé
Haveria, talvez um pouco de emulação? Aquele veículo tão confortável... a fina roupagem que se via lá dentro... tudo!

É que eu, na verdade. jamais assim tive coisa semelhante!
Se não andava ao colo materno, era o chão que me esperava! Que remédio tinha eu! Recursos humanos escasseavam para mim!

Cada um dos mortais vivei como pode!
Segue, pois tranquílo, pretinho angolano, que não tenho inveja! És tu, na verdade, mais feliz do que eu? Nem isso incomoda!
Sê bem ditoso, na companhia dos entes que te amam e adoram!
Sejam teus caminhos,agora e sempre, cobertos de rosas!
Para mim não és um " negro": sim um ente humano por quem
Jesus Cristo morreu na cruz.

Também chamas Pai ao Deus que nos criou e nos espera a ambos, nas moradas eternas.

Silva Porto
22-5-1973
Uma noite longa, bastante mal dormida, com sono irregular! Cuidados em barda e vários motivos, algo inesperados, vieram contribuir para o estado em que me encontro. A tristeza agora é o meu alimento.

Tenho para mim não haver razão, para fazerem desta maneira! De quem se esperam certas atenções vem, às vezes, a resposta mais chocante, a mais fria atitude! Quanto isto me fere não cabe em palavras expressá-lo agora!


Devia fazer descontos, assim me parece: diferença de idades;
maneiras de ver que não se harmonizam; outros objectivos; problemas de outra ordem; feitio diverso; outra psicologia; Talvez
até a não aceitação daquilo que eu intento.
Ninguém é obrigado a seguir o meu pensar e menos a querer-me!
Tudo isto e o mais é certo e correcto, mas não entra geralmente em linha de conta.
Susceptibilidades, orgulho enorme e falta de humanidade,
fazem-me negra a vida actual.

Isto gera sofrimento.que me prostra e abate! Não posso destruir a minha natureza: sou assim mesmo! Ao menos, devo ter paciência para aturar-me.
Esqueço-me também de que os azares da vida e as contrariedades são via abençoada que devo trilhar, com dor e amor, rumo à salvação.
O sofrimento é bênção maravilhosa que devo aproveitar, oferecendo-o a Deus, em desconto geral dos meus pecados.

Silva Porto
23-5-1973
Castigos físicos

Ainda agora, com 88 anos, já ultrapassados, estremeço de horror,
quando me lembro de tal expediente. Não posso compreender, por
mais que tente, como é que um sistema, deveras repressivo, odioso
e violento esteja em uso, em qualquer sociedade, grupo familiar ou
Casas de Educação!
No meu tempo de rapaz, era geral esse meio satânico, Até
alguns Seminários fizeram uso dele, por causas disciplinares ou
durante as aulas, por má preparação.

Na minha aldeia, era bom educador quem infligisse os tais castigos, com severidade e mais frequência.
A educação é uma obra de amor. Este processo não gera ódio nem revolta ou indispõe. Bem ao contrário, fomenta ele as boas relações, cria fortes amizades e melhora o educando.

Agora, um caso entre muitos. É numa aula de Geografia. Diz um aluno para o viznho do lado: Eu já fui seis vezes ao Brasil.

O professor, notando a falta, pede explicações.
Como estas não surgem, esclarece o outro: O Faustino disse que
já tinha ido seis vezes ao Brasil.
Neste passo crítico, acorre o Faustino em sua defesa : Sim,
fui lá, mas em espírito.
Após o aspecto cómico, vem a parte trágica: 6 palmatoadas.

Silva Porto
24-5-1973
Jogos impostos.

Todo recreio tem por finalidade quebrar a monotonia, espairecendo
igualmente o espírito saturado. É pois um tempo de gozo e prazer.
O educando tem nisso um derivativo, esquecendo, por algum tempo, mágoas e pesares.

Em mim, porém, dava-se o contrário. Gostava dos intervalos, mas quería-os a meu modo; apreciava o jogo, mas queria ser eu a fazer a escolha.Por esta razão, fugia a valer dos campos de jogo,
absorvendo-me logo, sempre que possível, noutras actidades.

Este era um caso, mas havia muitos outros.
Os jogos impostos reduziam-se a dois: a barra e a bandeira.Ganhei-lhes tanto asco e de tal modo os detestava, que jamais os aprendi!
Embirrava com eles e não os tolerava!
Que fazer então?
Passar maus bocados, preparando assim, negativamente, o espírito
abatido para fraco rendimento, nas aulas diárias.

Aqui temos nós como redunda em veneno letal a própria medicina, quando o pedagogo não sabe o que faz.

Esquisitice da minha parte?
Se fosse caso único, seria anormal, mas eu nunca o fui. Por outro lado, a 40 anos de afastamento, ganhei serenidade, para ver claramente, sem exagerar!

A vulgar psicologia condena severamente e de modo absoluto, os jogos impostos.
Há-de haver, no meu critério, alguma diversidade e também escolha
livre de cada passatempo.

De outra maneira, o espírito amesquinha-se e a alma envilece, forjando assim o misantropo que é filho legítimo do mau
educador e um peso, talvez, para quem o atura!

Silva Porto
25-5-1973 Nepotismo

Esta palavra é sinónimo preciso de alguma injustiça.
Preferem-se os do sangue?É humano e desculpável, mas fazer levianamente acepção de pessoas, é criar o rancor de quem se vê postergado.
Lá porque Fulano é filho mimoso do Sr.Doutor ou irmão de A ou B, já tem concessões e merece muito mais,com dano manifesto
para outros elementos! Isto gera feridas e,por mais que gire a roda.
não pode esquecer!
Errar é próprio do homem, mas trata-se aqui dum erro diferente: é falta grave, perpetrada a frio, distribuindo injustamente o que pertence a todos, por modo igual

Ainda hoje não sei nem talvez na eternidade o consiga decifrar, porque é que eu, no 1º ano, tirei só 11, a Catecismo, havendo obtido, no mesmo ano: 14 a Francês; 15 a Latim e 16 a Português!

Era por não saber?! Caso assim fosse, mal me ficaria tocar no
assunto! Mas tal não sucedia! Bem ao contrário!
Nessa matéria, sabia mais eu, no princípio do ano que o
melhor aluno, ao fim do ano lectivo! Não exagero.

A razão está nisto: desde pequenino, fui logo instruído na doutrina cristã. Dia nenhum passava que eu a não lembrasse.

Recebi-a juntamente com o leite materno.
No entanto o S, F. que pouco sabia e fez um pobre exame, obteve
para logo , um esplèndido l3!
Foi isto há 40 anos!
As injustiças avivam-se e ficam para sempre a enodoar a nossa vida!
Autor da injustiça, flagrante e condenáve: J.F .

Capolo
26-5-1973
Mais uma vez estou sozinho, numa casa imensa, onde me julgo qual prisioneiro! Dependências vazias! Tantos quartos solitários!
Tanta enormidade em todas as quadras, para um recluso.
sempre inconformado, que os homens condenaram injustamente, a
um estado odioso, qual o de celibatário!

Quem ama estar só, conversando com os muros ou então definhando, a olhos visto, como árvore pujante e cheia de vfda, que se consome, ingloriamente, destruindo em si mesma a centelha de vida que o Céu lhe confiou?!

Serão os homens tão puros nos seus ideais, tão exigentes, nos seus projectos, tão desumanos, em suas exigências, que se
arroguem poderes que ninguém lhes outorgou?!

Não é de surpreender que eles imponham a seus irmãos o que Deus não quis e exijam dos outros o que alguns deles não fazem também?!
Tardiamente embora, protesto veemente contra um processo
que reputo cruel, absurdo, inaceitável.
Que faz um homem, em tais condições?! Não sendo chamado
a tanto heroísmo, cai no desespero e na total inacção!

Não preza ele mais do que tudo a alegria de ser livre e o mesmo de realizar-se, a gosto pessoal? Se vive constrangido já, deixa de ser livre.
Isto de viver como os outros sonharam, o mesmo é que lançar vivo, na sepultura, um filho de Deus!

Esmeraram-se os homens em criar penalidades e fulminar punições, para todos aqueles que abusam aleivosos da ingenuidade, explorando habilmente a inclinação alheia ou deformando o espírito generoso, com mira tendenciosa.

Todos nós aplaudimos tão belas medidas e louvamos seus autores.
Tudo aquilo que se faz em prol da Humanidade é sempre acarinhado e merece acatamento.

Quão grande não é Cícero, ao condenar, com toda a veemência do seu espírito arguto, as viórias militares do exército romano!

Não eram expoliação e crueldade sem nome?!
Antes de Cristo, foi a primeira voz,(ao menos que eu saiba) a fazer-se ouvir, no mundo pagão, em prol da Humanidade

,Como não houve legistas, espíritos rectos e bem formados
que deixassem escrita punição adequada para quem torcesse a
personalidade fosse de quem fosse, moldando-a a seu talante?! Não será isto um crima abominável, contra a liberdade?!

Não será, ao mesmo tempo , abuso inqualificável?!
Servir-se habilmente do atraso dos outros e da sua ingenuidade,
para falsear-lhes a vida e o porvir e torturar a sua existência?!
E não há castigo, para tais delinquentes?!

Capolo
27-5-1973
É hoje o dia da mãe! Ouço, pela Radio, a "Voz de Angola" que transmite aos quatro ventos, canções enternecedoras,
dedicadas, neste dia, ao ser encantador, cujo nome belo se escreve com três letras. Que imensidão oculta, mas sempre latente, debaixo
delas!!
Ouço dedicatórias que me fazem vibrar, pelo tom suave, palavras de ternura e expressões cordiais: ternura, carinho, beijinhos, querida mamã...
Eu limito-me a escutar,meditando a valer. A minha partiu e não voltou mais. Não me visita nem sequer indica a sua direcção!
Queria dizer-lhe o mesmo que ouço... vê-la sorrir... confiar-lhe segredos! Mas que posso eu fazer*!

Só os olhos se revelam, deixando correr lágrimas,
Entrementes, vêm canções, magoadas e dolentes em que se impregna imensa ternura e um poder intenso de forte vibração.

Como são felizes os que têm mãe! Que amor o seu! Que verdade bela se desprende de seus lábios e que sortilégio contêm
seus beijos! Que meiguice e encanto , no sorriso de fada e que
afecto caloroso, nos seus dizeres,cheios de mimo!

A minha, porém, emudeceu, para sempre, cá neste mundo!
Que horror gelado este que me penetra!
Se ela estivesse aqui! E é capaz de estar! Não era louca pelo filho que gerara?!
Seu espírito gentil que dardejava raios de encanto sem igual, não perpassa hoje, sobre o filho desditoso que tanto a amava e
por quem sacrificara sua vida e alegria?!
Estarás, querida mãe, muito longe de mim? Eu, não! Estou
perto de ti.
Ouves o que eu digo? Não vês as minhas lágrimas? Não sentes, no meu peito,, este coração, em grande alvoroço?! Não percebes, talvez, a minha inquietação?!
Por ti, errei na vida e torci o caminho! Tu própria o escolheste.
Mas, se tudo fizeste, por amor de mim, que podia fazer eu senão o que fiz?!
Fala, mãe querida! Tem pena de mim! Sendo necassário, pede um milagre ao Bondoso Senhor que sempre serviste e me
ensinaste a amar
Foi em 1964, a 12 de Novembro, Vai para 9 anos. Volvidos 5, disseram em Manteigas que o teu esqueleto era branquinho e autêntico mimo! Só ossos e cabelo!

Quem dera estar presente, afim de beijar teus belos despojos!
Que dor a minha!
Para mais, estou sozinho, na Colónia Penal, em manhã táo
longa, que não finda mais!

Quando acabará este meu isolamento?! Quando me verei brevemente acompanhado?!
Terminará este exílio. em que jamais fui compreendido?!

Que longo caminho meus pés doridos estão percorrendo!
Que estrada sem fim. sempre em linha recta! Sempre... sempre...
sempre igual!
Que monotonia tão angustiante! Que pesadelo sem nome!
Por ti, mãezinha, estou sofrendo!
Quando virás tu sorrir para mim, com olhos tão meigos e cheios de promessas?
Fizeste-me infeliz, mas foi sem querer. Julgavas tu ser melhor para mim!, Tudo te perdoo e quero-te sempre!
Vem ao meu encontro e consola a minha alma que sofre e agoniza!

Silva Porto
28-5-1973
Mais um Ponto da pequena - Ciências Naturais.
É das 4 perigosas, visto ser negativa a classificação que vem de trás. Precisa 11, para atingir 29, referente, já se vê, a três períodos.

Mandei o Carlos, para averiguar, mas a resposta foi desconcertante: " Espero negativa."

Passando por ela, às 8.10, segredou pronta: Não valia a pena ir ao Ponto de Ciências, pois de nada me lembrava. Só dormi uma
hora, durante a noite.
Desconcertou-me a sinceridade! Abateu-me o espírito, já decaído.
O facto de não dormir baseia-se talvez na previsão, quase certa já, do que pode acontecer-lhe.
Efectivamente, dois anos sem fruto, em que faz tudo, menos estudar, habilitaram-na logo para a nulidade.

Há dois meses que trabalha, mas é isso bastante, para alcançar dois anos?! Claro que não é! Agora, pois, antolha-se o pior, que
é precisamente o que ela não quer: reprovaçao, perda do ano,
abandono do Liceu e fim de seus estudos

Com certeza absoluta, os pais não permitem que ela gaste mais dinheiro. Foi muito já o que dissipou, sem nenhum resultado.

Impõe-se, claro está, um corte definitivo
Vou tentar ajudá-la, em toda a extensão. Merecerá ela tão grande sacrifício? Seja como for!.Faça o que entender, em ordem a mim, vou serlhe prestável, recorrendo a tudo

Silva Porto
29-5-1973
Desde as 15 horas às 22.3o, estive com a Guida, ajudando-a a preparar o Ponto de Português.
Todo o tempo disponível consagro à sobrinha que anda prostrada.
A Ciências Naturais pouco terá feito; a Francês, um pouco melhor, mas com alguma dúvida, sendo esta embora a matéria preferida.
O que faz na vida o estado de espírito e a falta de saúde!
As falhas de longa data é que são, no fundo, a causa dominante.

Nada aí há como preparar-se ano por ano!
Entretanto, a idade bem como a inexperiência , as más companhias, exemplos depravados que o meio apresenta e o
afastamento dos pais originaram tudo.

Causa remota? A falta de recursos.
Para tudo correr bem deviam estar juntos os pais e os filhos!
Desta maneira, acompanhavam de perto, informando-se amiúde e
intervindo a propósito, sempre que necessário.

Longe do lar, só calamidades e horríveis desenganos!
Agora, já tarde, quer e não pode.
Vejo-a estudar, com gande afinco e noto-lhe vontade, mas é
ao destempo!
Vamos ver ainda o que pode conseguir-se.
O coração da miúda também falha em parte, por causa da lesão
Vê-se, pois, a braços com enormes contratempos., já de ordem física, já psicológica.

A tudo recorrerei. para ser-lhe prestável, na conjuntura que está passando.
Faço-o de boamente, sem qualqer intuito que não seja contribuir para a sua ventura.

Silva Porto
30-5-1973
Pontos de Frequência: 1º Dia
Interrompem-se as aulas, durante três dias, para recomeçarem a 1
de Junho. Faculta-se aos alunos uma aberta assim, no mar encapelado, em que voga o seu barco, para reverem as matérias escolares e, juntamente, arrumarem noções.

A última semana, de 4 a 8, é sempre destinada a corrigir o Ponto, durante as aulas, preparando, se o pedirem, novo Ponto Escrito ou fazendo chamadas a certos alunos que tenham sido algo azarentos.

Com boa intenção, tudo se faz, em prol da Humanidade.
Se eles não triunfam, é por ser lombeiros e não terem vontade.
Alguns deles já trazem a preguiça espalhada no sangue, fazendo parte da essência humana!

Na vida prática, em remoto porvir, aqueles que rendem é que
são aproveitados.
Todos os elementos , mal preparados e descuidosos, ouvirão
tristemente os ditos mortificantes: procura outra vida, que esta não te serve nem é útil a ninguém

Duras palavras mas... tanto valem afinal quanto podes render!
Foi sempre assim!
Eu bem lho digo nas aulas, mas julgam alguns que é pura fantasia. A vida árdua é que os há-de ensinar!
Quem havia de pensar que a maior incúria se nota exactamente nos alunos brancos?!
Descuidados, impassíveis; sempre gozadores e um tanto
malcriados! ( há excepções)
Chego a ter pena! Afigura-se mau o futuro deles, no dia já próximo do triste amanhã!

Silva Porto
31- 5-1973
Como tudo é caduco, vai agonizando o longo mês de Maio, que me parecia não ter já fim!. Com ele também se vão as
ilusões, descoradas rosas, murchas, fenecidas, dum jardim maravilhoso que, às vezes, figurava eterno vicejar, perene louçania.

Decepção, aparência, fugacidade, tais são, efectivamente, as notas basilares do agradável instrumento: a vida humana que alenta e mata, promete e falta, ri e tripudia!

Soaram, há pouco, as 6 hloras e meia, preparando-me já, para os Pontos de Frequência, que terão início, às 8 horas.
Acabado o Diário que vai pobre e singelo, tomarei o dejejum,
afim de trabalhar, com mais eficácia.

É débil para mim o incentivo ao trabalho, pois não vejo interesse. Que pode incitar-me, nesta breve caminhada para a morte e o olvido?
Morte, sim, dos entes queridos; morte igual dos meus ideais;
morte parcial da mesma esperança?!

Ele a vida é assim?! Não vale a pena viver de tal jeito!
Uma coisa somente pode ainda torná-la bastante aceitável : o amor
genuíno , em sua face humana ou sobrenatural.

Fora desta linha, a vida é um fardo, amargo, insuportável!
Enjoo e náusea, peso e sempre tédio, bocejo e tragédia.

Que há de sugestivo, em tudo isto?!
Pude eu realizar meus belos ideais?! Não houve estranhos a barrar-me o caminho, usando falas mágicas e dissertando por modo hábil,
em sonhos dourados que a ingenuidade aceitava logo como vindos do Céu?!
Depois, ao destempo, quando reflecti, pensando por mim, vi-me táo enredado, que já não sabia que jeito dar á vida!
Cruzei os braços, ficando morto, com aparência de vivo

Silva Porto
1-6-1973
Entramos agora no sexto mês, que representa,afinal,boa
parte do ano. Hoje, vou dar, sem falta, as Frequências de Inglês. em vista do que ontem arrumei os enunciados, preparando tudo.

Junto deles, acomodei também as folhas necessárias, de
harmonia, já se vê, com o número de alunos.
O mesmo fiz ao papel de rascunho.

No fim da tarefa, olhei para o relógio e fique desconcertado! Meia noite em ponto! Pois demorara tanto?! Frequências escolares,
durante a noite! Se haviam começado às 22 horas!
Receber os Pontos, vir para a sede e preparar as 6 turmas que hoje entram em acção, absorveu-me inteiramente o espaço de tempo.
Os olhos cansados já repontavam, com tanta delonga.
Por outro lado, a falta absoluta de hábitos congéneres, incomodavam-me a fundo.
Lá me deitei, por volta da meia noite. Creio piamente que não
houve interrupção, até às 5 da nova manhã.

Não foi muito, é claro, mas bem aproveitado quase chegou!
Dispus as coisas metodicamente, afim de não haver quaisquer
dissabores nem sequer atrasos, fosse do que fosse.

Ali se ergue em frente um monte de papéis, com alíneas diversas, para indicarem o número de alunos, o vigilante da turma
e a sala respectiva, onde o Ponto se resolve.
Santo António de Lisboa acompanhe o trabalho e garanta bom êxito.

Silva Porto
2-6-1973
Olho à minha volta e vejo só Pontos! É tempo de contas!
Até findarem os temidos exames, temho de suportar este fardo pesado e levá-lo paciente. Mas que maçada! E jamais têm fim!

Observar bem a resposta exarada; atribuir-lhe depois o justo valor; ser igual para todos, não fazendo nunca acepção de pessoas!

Em seguida, fazer bem atento o cômputo geral, sem vestígio de enganos! E após isto? Verificar as médias, referentes aos períodos, anotando, a rigor, o progresso exacto de cada aluno, afim de optar:
reprovação ou passagem de ano?

Tarefa ingrata e assaz delicada!
Quantos vão passar que mereciam, talvez, uma reprovação! Faltas às aulas, durante o ano lectivo moem o juízo ao corpo docente
Por fim, então. havendo copiado, avançam no curso como
gente honrada.
Complicada história! Mas seja como for! O que é certo é que eu tenho de dar voltas à rima assustadora! São 8 turmas!

A princípio, eram ao todo 150 alunos,só no 1º ano da Escola
Técnica, João de Almeida,mas como parte deles foi ficando pelo caminho, agora são apenas 127
Apesar de tudo, ainda matam a cabeça ao corpo docente!
As turmas referidas são desiguais, em número de alunos: Mecânicos 13; Electricistas 13; Comércio A 23; Comércio B 15;
Agricultura A 17; F.F, 18; Agricultura B 21; 4º R A 9 (agora 7).
Não haverá que fazer?!

Entretanto, é bom ocupar o tempo, afim de que a vida se torne
valiosa, suportável, meritória.
Deus me livre sempre de estar ocioso e de passar neste mundo,à maneira de animal que não deixa rasto!

Chitembo
3-6-1973
Ontem, fiz uma surpresa.
Tinham comunicado. pelo telefone, que não havia transporte,
rumo ao Capolo. Acudiu-me logo uma ideia fantástica: ir ao
Chitembo, levando em companhia a Guida e o Carlos.

Meu dito, meu feito! Se bem o pensei, melhor o realizei.
Como bom início, vou logo de carreira avisar a pequena, deixando
incompleta a refeição do almoço. Após o recado, volto prestesmente, para fazer os meus preparativos. O Carlos já ficara
avisado,
No mínimo de tempo,começa a marcha, passando pela Rua,
Salvador C. de Sá.
A menina, porém, nada havia feito, para se ausentar. Este proceder
agastou-me um pouco, tanto mais que ela sabe, há muito já, que não gosto de esperar..

O intuito secreto era não ir à terra natal. Zanguei-me desde logo, cono era de prever. Insinuações, ameaças em barda, arrazoados
a montes, foi tudo vão, parecendo infrutíferos.

Meia hora depois, havendo eu proferido palavras mais duras
e invocado razões, bastante fortes, lá se resolveu.

Faltava somente encher o depósito e arrancar sem demora,
o que logo fizemos, num abrir e fechar de olhos.
Foi uma viagem, marcada a fundo pelo silêncio.

Silva Porto
4-6-1973
Baixei à liça, para findar a minha tarefa. Como é dura a vida! Após uma refrega, outra ainda,no género, para moer o débil físico,esgotando os membros!
Qual o resultado?
Tanta canseira,tanto desvelo, tantas diligências! E para quê?! Se
tudo, afinal, havemos de largar! Como vou justificar tamanho labor?!
Quem tem herdeiros!... Mas eu... nem descendência nem sequer herdeiros forçosos!

Não será, pois, rematada loucura?!
Quem vai agradecer-me tanto sacrifício e pagar com sorriso as
economias e privações que tantas vezes me impus?!

Alguém, depois virá, para dissipar, em breve tempo, o que levou, possivelmente, uma vida inteira!
O que não custa obter não custa desbaratar!
Morificar-se alguém por coisa laboriosa leva a estimá-la e a dar-lhe protecçáo.
Uma semana de aulas e eis-nos em cheio nos temidos exames!
Por um lado, não queria tomar parte, visto serem monótonos e bastante pesados mas, por outro, ganho mais dois meses, o que não é mau!
Para mim não abarco, pois vivo de pouco! Entretanto, quero
a valer ajudar os meus, que precisam e merecem.
Não ser efectivo nem contratado coloca, desde logo o Mestre eventual, em situação delicada e, em parte, injusta.

Os que têm filhos são obrigados a ficar no local, em serviço de
exames e não podem ausentar-se para distância longa, uma vez
que. de um momento para o outro, surgem novas provas que os Militares requerem.

Não concordo, é certo, nem posso admitir esta desigualdade, quase
escravatura!
De que serve, porém, o meu protesto?!

.Silva Porto
5-6-1973
Vai já passando a última semana deste ano lectivo, Diz o nosso povo, em linguagem pitoresca e, por vezes, realista: O
rabo é o mais difícil de esfolar!

Lá tem, no fundo, as suas razões que não ouso contestar, pois é mestre experiente.
Esta semana equivale, de facto, ao rabo de uma rez.
É a mais enjoativa para o corpo docente!A razão aparece.

Na Escola Técnica, já se fizeram as Provas de Frequência..
que finalizaram em 1 do corrente.
Ora, que é o que sucede?

Quem teve bom êxito já não liga importância, porquanto o seu
futuro está garantido. Os outros, por ser tarde, vendo o seu caso já irremediável, também se não importam.
Acontece, pois, que tanto uns como outros fazem barulho e assunem atitudes que enervam os adultos.

Eu, então, habituado há muito, no Ensino Privado, a manter a disciplina, doesse a quem doesse, vejo-me agora impossibilitado, sem meios adequados, para o fazer.
Mando é bugiar esta malta insuportável, visto que, graças a Deus, não preciso para mim.! Não me sinto forçado a aturar seus caprichos.
Vamos lá ver se tenho coragem, para mantê-los disciplinados. Estamos já fazendo a correcção dos Pobtos.
Muitos jovens não trazem enunciados: olvidaram-nos em casa, originando assim distracções para eles e amargura para os Mestres
Outros ainda não levam papel. Livros, então, é coisa impensável!Pode haver, quando muito, uns 5 ou .6, em cada turma
Que fazer, então? Deixar correr?
E a voz da consciência?!
,
Silva Porto
6-6-1973
A turma B do Curso Comercial apresentou-se na aula, sem o que era preciso.
Ante-ontem, pela manhã, havíamos iniciado a correcção das provas, que eu exijo a limpo, no fim da semana. Era, pois, correcto
levarem, sem falta, os enunciados, base sem a qual não há trabalho que seja proveitoso e, muito menos ,alguma disciplina.
Apenas três alunos cumpriram o dever.

A minha reacção, perante o facto, foi enérgica e pronta: copiarem, de lés a lés, o dito enunciado e, em seguida, finalizarem também a
correcção.A entrega das provas é a última coisa.

Fez grande alarde a minha decisão e, embora de má vontade, lá copiaram o texto, a que seguiu logo o questionário.

Objectava o Bernardino, entre melancólico e um tanto risonho: O Sr, Padre está muito severo! Agora, a terminar o ano!...

Vinquei mais o facies, acrescentando logo: assim é que é e não de outro modo!
Que lhes fique para emenda! Quero disciplina, ordem e método.
Entretanto, dei algumas frases, aos que estavam ociosos, mas o Vítor Hugo não dispunha do caderno, embora o tivesse ali à mão.
Chamei-o ao quadro, onde escreveu alguns períodos, entre os
quais o seguinte: quando chegarmos a casa, ficaremos contentes.
Errou de caras o tempo verbal da primeira oração, usando futuro, em vez do presente.

Requer paciência, domínio de nervos e compreensão o mister
que exerço. Apesar de tudo, impõe-se disciplina, um tanto moderada, para o ambienta não ser odioso e inprodutiva a mesma aula.

Silva Porto
7-6-1973
Últimas aulas, segundo creio. De facto, sendo hoje sexta-feira, não fora o dia 11, que é segunda-feira e obriga a aulas,
nada mais haveria.

Entretanto, organizando os alunos certas actividades,para o último dia, o que eu julgo na minha, estarem já fazendo, não há mais aulas. Neste caso, trata-se, pois, da última cartada, após a
qual se recolhe o baralho, até chegar Setembro.

Que sensação agradável! Que momento deleitoso e que grata
emoção vai desde já surgindo no meu peito ansioso!
É muitíssimo bom experimentar, em claro, sentimentos destes e viver a fundo tais sensações!

De facto, são elas bálsamo que penetra na alma, suave e pura
luz a banhar o meu ser!

Chegado, pois, este belo dia, um gozo inefável inunda o meu ser
porquanto foi íngreme a encosta subida. Efectivamente, aos 55 anos, já não é fácil conseguir na vida, global adaptação, como eu
intentei.
Vir do particular para o ensino, dito oficial; deixar a velha Europa, pela África adusta, não julgo isso tarefa somenos!

Bem ou mal, estou vivendo o momento que foi, na verdade, autêntica aventura! Por que não ter vindo 30 anos mais cedo, ou
pelo menos, uns 15 ou 20?!
Coisas da vida que os homens complicam e tornam insolúveis!

Silva Porto
8-6-1973
Primeiro Sábado, em que já respiro bastante mais fundo: terminaram as aulas!
Já dormi, na verdade, um pouco melhor e encaro a situação, com mais optimismo.
Resta apenas uma aula, às 21 e 25, de segunda-feira, mas a turma é sossegada, que trabalha de dia e já pensa de outro modo.
Vou lá somente para fazer as despedidas e dar alguns conselhos.

O céu imaculado ostenta hoje mais brilho e tenho a impressão de que estou arejando.
Serei eu já diferente? Que resta afinal do que era meu?
Onde terá fcado o meu antigo ser?! Depus, na verdade, os meus pertences? Onde estarão e quem os possui?

Estramho facto este! Parece até um desdobramento!
Embora me sinta bem e apresente o céu cariz diferente, chego a
ter saudades da minha própria pessoa!

Esse homem atarefado, rígido, cumpridor!
Gostava de encontrá-lo, falar-lhe cara a cara... Seria meu desejo
sorrir-lhe francamente, para entornar, em seu peito doente, uma gota de prazer! Em seus olhos perturbados, um raio de alegria!

Em seu coração, umas gotas de bálsamo.
Mas esse homem fugiu e não sei agora se, para meu bem,não
voltei, realmente a encontrá-lo, nos caminhos da vida!

Já clamei por ele, gritando bastas vezes, esforçando-me até
por avistá-lo, ao longe que fosse! Tudo infrutuoso! Tudo perdido!

Deixá-lo ir, pois, à mercê do fatalismo, ladeado de perigos, cercado
de incompreensão!
Só eu o compreendo e deveras o amo, pois sou eu próprio!

Silva Porto
9-6-1973
Afinal de contas, fui ao Capolo e já me encontro, de novo, aqui na cidade, o que não é habitual! Aproveitei uma boleia,
ganhando com isso!
Como é deleitoso viajar de automóvel, ao longo de uma estrada que já foi um caivário! De estrada só o nome, pois mais não era que feia picada, num estado lastimoso!

Agora, porém, rectificada boa parte dela, sob a acção da niveladora, que arranjou um troço, é de ver os automóveis,rodando
a bel-prazer!
Apesar de tudo, não me atrevo ainda a levar o meu, pois não vejo que baste, para o troço final! Não fora o receio, iria realmente
experimentar! Intimida a solidão e o conserto das molas!
Mais adiante, voltarei ao assunto.

Ao chegar aqui, deparou-se, com surpresa, volumoso sobres-
crito, procedente de Lisboa. Vinha ele,como verifiquei, da Caixa Geral de Pensões.
Há tanto esperado, não fazia já conta!
Sempre fui admitido, pagando mensalmente 365$00, a começar em 1 de Abril.
Pagarei 10 anos mais, até perfazer 65 anos. Já lá tenho, salvo erro,
mais de 80 contos.
Asseguro, deste modo, uma pensão, distribuída ao mês,.caso
seja vivo, à data indicada,. Não será grande, mas é já uma base, para enfrentar as minhas despesas.
É pensão de invalidez,velhice e morte, sobrevivência.
O que pago à Caixa é sobre 4 contos e 50$00, à razão precisa de 9%
O seguro morreu de velho!

Silva Porto
10-6-1973
Um colega meu, de Trás-os-Montes, falou-me com interesse, do Abade Baçal. Já o conhecia, ao menos de nome, por ser realmente um vulto notável da Ciência Portuguesa.mas dados assim,jamais eu ouvira.
Era um homem desprendido, com maneira de ver própria e bastante singuar.
Para ele não contava o prestígio pessoal, uma vez que a experiência dissera-lhe já quanto havia de mentira no apreço dos homens.
Se não louvava também, por certo, não ia condenar, permitindo-se às vezes, fazer a propósito, juízos de valor, quando o assunto respeitava mais a outrem do que a si mesmo.

Haja vista , por exemplo, a sua exposição, acerca do celibato e assim do Breviário, imposto ao clero.

Encerrado há muito no seu mundo interior de arqueólogo e
etnólogo, vivia também, de modo especial para a Mineralogia.
Era-lhe familiar toda a casta de pedras que havia no país e na
vizinha Espanha.
" Ó Sr.Abade, há uma pedra em tal parte...!"
- Donde és tu?
" De tal e tal parte...
- Ah! já sei. Fica à direita de quem sobe a Colina... Estou errado?
Era este o seu mundo!
Membro efectivo de várias Academias e condecorado pelo Chefe
Carmona, jamais disso fez gala, em circunstância alguma.

A sua mesa era bem frugal e não distinguia os próprios amigos: pão e presigo, azeitonas e vinho, " É do que há!"
Ninguém procurasse coisa diferente!

.Em suas viagens, destinadas a pesquisa, que eram feitas a pé,
calçava, por vezes, botas grosseiras, fazendo-se acompanhar
de um trio constante: pau, manta e chapéu, de abas largas.

Em suas viagens, nunca procurou hotel ou pensão.
Qualquer varanda ou velho palheiro bastavam para ele!
Figurava mendigo, mas era um homem rico.

Silva Porto
11-6-1973
Ontem já, pelas 9,30, foi " queimado" o professor.
Espectáculo risonho,vivido em cheio, embora amesquinhante,decorre, no entanto, em ambiente amigável e corre
divertido, sem outro propósito que não seja o pagode.
Quem folga com isso é a nosa juventude que descarrega as iras no anonimato..
Realizada a combustão, um aluno da Escola aproxima-se logo, com uma enxada e recolhe as cinzas, metendo-as no caixão, repositório exíguo, pois os restos mortais volveram-se em pó.

Logo em seguida, organiza-se o cortejo, durante o qual os
jovens entoam, gostosamente, brejeira canção, enquanto fixam os
velhos professores, com sorriso malévolo.

Finalmente, procede-se ao enterro do ataúde.
Proferem-se então determinadas palavras, acomodadas ao acto,
cujo sentido vai pelo seguinte: não devem dar faltas; ser menos rigorosos; resuscitar o morto,no ano seguinte.
Aqui, hilaridade geral.
Por último, baptizam o morto, dizendo compungidos: eu te baptizo,
em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo
Acto descabido!
Entretanto, num ambiente jocoso, sem qualquer intenção de ofender ou melindrar,não destoa grandemente,
Silva Porto
12-6-1973
A nossa Guida encontra-se já no 5º ano liceal. A nova
chegou ontem, pelas 20 e 30. Esperava-a com ânsia, pois lutara por ela, quase em desespero. Era peleja afincada,frenética, insistente, como de alguém que, prestes a naufragar, se agarra com furor e grande tenacidade, à primeira tábua que adrega de encontrar

Horas e horas que eu passei zeloso, junto da miúda, após o meu trabalho, nem têm conto! O Taunus 17 jamais descansava!
À maneira de auto-carro, deslizava, a horas certas, continuamente, na mira, já se vê, de conseguir o milagre.

Vinham pontos e chamadas: tudo era anotado, em grande pormenor, com vista à passagem.. Tudo se encaminhava no mesmo propósito: a notícia final, talvez desanimadora, talvez jubilosa.
Previsões e cálculos, fadigas e desânimo, vigílias e angústia,foi esse efectivamente o rosário longo desta época lectiv.a
que pôs termo ao 4º ano da nossa pequena.
Já fiz alguma coisa pelos do meu sangue, quero dizer, por minha irmã.
Sinto-me feliz e agradeço a Deus ter vindo a Angola, para salvar a menina dum abismo duplo!

Reconduzi-a por fim ao caminho certo que ela havia perdido.
Agora, após tanta canseira e desilusão dos pais, que prossiga firme, em sentido inverso, preparando o seu futuro.

Afinal, é este o sonho dourado que alimento há anos, assim como o dos pais que trabalham afanosos, na vila do Chitembo.
Desmoronou-se, pois, a grande barreira, erguida anteriormente, por más companhias e ambiente suspeito, longe dos pais e do lar protector.

Silva Porto
13-6-\973
" Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura!"
"Quem teima vence."

São aforismos de cunho universal, com a chancela que o tempo reforça e a confirmação da mesma experiência.

O caso da Guda que ajudei a resolver, veio confirmar os ditos aforismos. Levou tempo, é certo, provocando, às vezes, fortes reacções., quando não até enfurecimentos e grande prostração.

Por vezes,era só exterior aquilo que se passava, porquanto havia apenas em mira fazer uma experiência. Evidentemente, é assaz melindroso e, noutras circunstâncias, poderia ser fatal.

Como se trata, porém. dum caso particular, deveras típico, nada muito grave podia originar.
A verdade, no entanto, é que, a pouco e pouco, foi possível realizar
o que parecia deveras utópico.

Experiência curiosa, psicologicamente bem elucidativa, pois que, sem dano, foi levada a cabo uma sondagem algo interessante.

Este caso fala, pois, nítido sobre o cuidado e grande solicitude que o genuíno educador é obrigado a ter, para não ver gorado seu esforço e atenção. Nunca fiando - assim diz o povo.
Efectivamente, ninguém existe que não aprecie a dedicação,
venha donde vier.
Verdadeira ou aparente, é arma certeira, para vergar seja quem for!
Esse meio prodigioso, manejado que seja por mão hábil e jogado bastas vezes , em situações dramáticas, ´será eficiente, na conquista de alguém.

Silva Porto
14-6-1973
Último dia, para o encontro final de professores, com vista às notas. É já o terceiro!

Assunto delicado, exige realmenta, ponderação. Sobre delicado, ministrei o ensino a grupos diferentes, em todos os Cursos que a Técnica : Formação Feminina; Agricultura e Comércio; Electricidade e, por fim, Mecânica.

Quem tenha apenas um dos ramos aludidos, está pronto, ao fim do primeiro dia. se, por coincidência for do do seu mister.Eu, porém, tenho de ficar até ao final.
Entretanto, não implica isso esforço demasiado nem grande sacrifício, porquanto na Metrópole jamais abandonei os alunos de exame, para ir passear!

Cá estou,pois, desejando somente arejar um pouco e, ao mesmo tempo, aliviar a cabeça que ao fim do ano já fica aturdida.

Hoje mesmo. vou ao Chitembo, após o almoço, pois o último encontro realiza-se âs 10.Levo duas companhias; a Guida e o Carlos.
Vão fazer, pois, entrada gloriosa na vila do Chitembo,
após um ano lectivo de enormes canseiras e grave apreensão.
mas, finalmente, coroado de êxito
Calculo, desde já, quão grande alegria sentirão os pais, quando eles aparecerem, com mais um ano vencido e bem arrumado!
Também a mim a alegria me i nunda, por ajudar a mana a
realizar o grande sonho.
Deus favoreça e ajude a todos que trabalham e lutam por um futuro melhor, tendo por divisa: Deus, Pátria e Família,

******
Nyangana (Namíbia)
6-3-1977 (Liceu SWA)

Criasse Deus o homem, para mergulhar na solidaão, ninguém
haveria que a mim se igualasse! Tenho numa casinha que a África do Sul me confiou. generosa,para nela viver e na qual cismo fundo.
horas e dias, meses e anos. É como sepultura: só o morto a habita.

Há só uma diferença, entre a vida e a morte: é que entro e saio. Quanto ao mais,tudo é igual! Por minha desgraça,melhor diria, por minha sorte, nem as moscas se atrevem!,

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