quarta-feira, 2 de setembro de 2009

M 03 - 1976/01/01 a 04/15

1976/01/01
a
1976/04/15

Cuangar —Angola
01-1-1976

Começou novo ano. Por bom sinal, acordei mais tarde, motivando assim quebra, nos meus velhos hábitos, já de longa data. Foi por isso, já se vê, que o Sol me precedeu, ostentando-se no espaço, glorioso e triunfal.

Quase me envergonho. quando tal acontece. Gosto a bom gostar de ver lá, no horizonte, o sorrir da aurora! Algo de magia me penetra na alma, que se engolfa hilariante, nas tintas do arrebol.
O ar matinal, o rosicler do Nascente e o trinar jovial das aves agradecidas são vivas realidades que me inundam o peito, agitando o coração .
Hoje transgredi e sinto confusão. Parece, desde logo, que falta alguma coisa, a que não é possível renunciar, prontamente.
Que me diz, para já, o astro amigo, em sua pompa, deveras majestosa? Se bem o entendo, fala-me, por certo, de vida renovada e algo promissora.
O calor de seus raios espanca no meu seio o gelo que imobiliza! O brilho penetrante de sua luz benfazeja afasta para longe as trevas da existência.! Aih astro amigo, que soma de favores te não fico devendo!

Mergulhado em sustos, com a morte a rondar; o sono entrecortado e bandidos à espreita, aguardando ansiosos o momento exacto; na hora mais trágica ,falas tu do alto, insinuando para breve, realizações em barda!
Que sonhos lindos, dourados e róseos me não prometes, neste ano infeliz de 76, em que a roda fatal mostra, em minha vida, a cifra 58!

É já longo o caminho, iniciado em 18 e se tem prolongado, com a dor por companheira!
Apesar de tudo, bom Pai do Céu, eu Te bendigo, adoro e amo, porque, sendo meu Pai, não queres, por certo, que eu seja infeliz! Permites a desgraça, para fazer com ela a chave de ouro que abra o meu Céu
Obrigado,Senhor. Louvado sejas, por todos os séculos!

Cuangar — Angola.
2-1-1976
«Dia mundial da Paz»
É junto ao Cubango, que serve de fronteira. entre Angola e a Namíbia. O primeiro de Janeiro decorreu ,afinal, sem qualquer incidente que molestasse ou ferisse.

Entretanto ( ironia das coisas) um avião furtivo aterrou aqui, recheado de armamento. Proclama-se a paz mas, no fim de contas, é a guerra que espreita! Grande contraste! Desconchavo sem igual! Que maior dislate poderíamos achar?!
Voejou a ave negra sobre a vila do Cuangar e, passados minutos, vomitou do seio negro a morte e a desgraça. Mas, se o homem quer a vida, por que semeia, afinal, a ruína e a morte?!
Se a defende com ardor, por que busca, ansioso, tal meio de
aniquilá-la? Contradições que jamais entenderei! Atitudes suspeitas
que me fazem cismar!
Em vez de munições, haja pão e alegria, bem-estar e conforto!

Que nos tragam ,sim ,mas instrução, Hospitais e Asilos, Infantários e Ninhos onde as lágrims se enxuguem e o Sol dê luz! Fujam horrorizados os tanques de guerra; emudeça o canhão, brilhe o Céu
em meiguice! Não posso aguentar os efeitos da luta e, em nome da Humanidade, aqui deixo o meu protesto.

Os soldados já desertam, atirando com as armas, que enterram e desamam. Choram dasolados velhinhos e crianças… extraviam-se os filhos… morreram as culturas
Juncam este solo inúmeros cadáveres,aos centos, aos milhares, e o Rio Cubango vai tinto de sangue!
Cães e até porcos, todos â porfia, acorrem pressurosos ao sevo banquete, ofertado pela guerra! Nem a morte deixa em paz os míseros filhos de Eva, que eu vejo animais, transportando nos dentes, ossadas humanas

Cuangar
3-1-1976
Começaram as chuvas. Na zona do Planalto, humedeciam a terra ainda no mês de Outubro. Aqui, pelos vistos, só tardiamente, já no mês de Janeiro. A fauna e a flora esperavam este dia, com viva ansiedade.
Fazia grande pena observar as galinhas como as aves do céu: de bico aberto e língua saliente, acorriam diligentes a lugares sombreados.
Apesar de tudo, os haustos frequentes, fundos, inquietantes , não bastavam, já se vê, para obter do ar o útil oxigénio, tão ambicionado
Os cães miserandos não podiam ouvir-se! O intenso arfar do peito arquejante e a canseira imediata obrigavam a corrê-los da nossa presença!
!Que direi então, se viso as plantas? Mudaram em pleno o cariz habitual! Ao fixá-las, sinto piedade.Parecem condenados, expiando crimes, em abandono e funda tristeza.

Se as fixo agora, sorriem-me de longe, com seu ar jovial e promessa de vida..
O Cubango, lá baixo, apresenta já um caudal respeitável,
o que o faz empertigar, caminhando pressuroso para o Lago Ngami,onde morre sem glória. Há tempos, era humilde, passando a custo, por entre caniços, já quase despercebido; agora, encrespa sua fronte, donde emerge submissa a vegetação rasteira, mostrando arreganhos de lançar-se pelas margens.

Este rio angolano é misterioso e cheio de segredos. Se pudesse falar, contando em pormenor o que a vida lhe ensinou! Mas assim é melhor: não revela a ninguém tanta dor presenciada!
Emudece, grande amigo! Não leves jamais à Bechuanalândia o nosso pranto e aflição.

Sepulta bem fundo nesses areais, as dezenas de cadáveres que recebeste em Angola! Ao menos em teu seio nem porcos nem
cães ou ainda abutres se atrevem a comê-los.

Guarda ciosamente os corpos infelizes, que não tiveram sepultura, após o suicídio que lhes provocou o 25 de Abril.
Morreram abandonados, sem um ai, ao redor,sem carinhos nem bênção, privados de orações! Que Deus se compadeça: os homens já não sentem!
Aih! Rio amigo, que nos acompanhaste e muito socorreste, ao
longo do teu curso. em terra angolana,! Sê para sempre o cofre secreto do nosso calvário!
« REVOLUÇÃO DOS CRAVOS! » — a maior tragédia da nossa História! Quem lhe chamou " tragédia " foi Melo Antunes, ao reconhecer a desgraça de Portugal e dos Portugueses.

Cuangar
4-1-1976
Agora, precisamente, acaba de arrancar. Camião agigantado pertencia, noutras eras, à Junta das Estradas. Como veio aqui parar é que eu não sei, porque, na verdade, ignoro os pormenores!

Limito-me apenas a verificar um triste facto: rouba aqui e além cada qual o mais que pode. Por vezes, não é roubo: são coisas deixadas ou abandonadas, que pertencem, obviamente, ao primeiro que as encontra.
Nem todos são ladrões, mas entre gente honrada, há sempre alguém que aproveita a confusão. Anda no ar e vive-se a fundo a ideia de saque. Os que reprovam lamentam os casos, ficando estupefactos.
Por outro lado, imagino, a sério, quanto a vida se expõe, mercadejando, assim. o sobredito camião! Sacaria volumosa que despertava o cismar, Perguntando surpreendido, veio breve a resposta. Ainda me lembrei de que fosse provisão de batata e milho, Afinal, era café.

Se algum dia me disserem que o agente foi morto, não me surpreendo nem lastimo, por igual. O café contrabando é riqueza furtada.Que podemos esperar de certos agentes que enfraqecem mais ainda a economia de Angola?

Convenhamos lealmente em que se trata de crime, expiado em toda a parte com penas severas.
A nação esfomeada, com os filhos na guerra, poderá alguma vez permitir sangrias desta natureza?!
Eu lamento e verbero tal proceder, uma vez que é matar a quem pouco já resta de vida e alento.

Pobre Angola, como eu te lastimo, censurando veemente aqueles que te desamam! O que pode a ambição! A que leva a cegueira do metal endiabrado!

Muitos randes é lema, divisa ideal, ainda que se atropelem os direitos sagrados da pobre Humanidade!

Cuangar
5-1-1976
Cinco horas e meia. Estamos na varanda.Já ditei os exercícios que os pequenos vão fazer.Para a Gina e o Quim, trabalho de Inglês e Língua potuguesa; para o Carlitos, uma composição, bastante esmerada ,sobre Camões, focando-o bem como poeta épico.
Os dois mais novos envolvem-se em mantas, segundo usam de fazer, embora o frio não seja de matar. Quase se aguenta em mangas de camisa. De vez em quando, abrem a boca, desconformemente, revelando assim que não será enorme o desejo de subir. Entretanto, como a vida impele, é muito necessário forçar a natureza.
Encontramo-nos aqui, mercê da triste sorte e é preciso lutar, com vista à subsistência.
Do outro lado do rio, espreitam-nos os randes e a morte igualmente, por causa da Suapo. Vamos tentar, expondo-nos a tudo.
Sem dinheiro algum — refiro-me aos randes, que o papel de Angola para nada serve — não podemos sair, a não ser para a morte! Que triste e miserando é o nosso destino! Condenados a morrer em terras distantes, com provável sepultura, no estômgo dum cão!

Ao deitar-me, preparo logo tudo para fugir, durante a noite insegura. Assim,adeus ao repouso, sono bem-estar! Nem a vida seduz! Se ao menos houvesse paz!

Quem me dera em Portugal, vivendo pobre e obscuro, numa aldeia humilde! Tudo lá é diferente! Aqui espreita a morte, em casa e na rua;de noite e de dia. Assaltos e violèncias é pão de cada hora! E não se pode fugir, por via de regra.

Ontem de manhã, passou, do outro lado, uma coluna militar: eram sul-africanos que levavam com eles a vida ou a morte ao solo angolano. A 1 quilómetro, avistámos em claro, mas com alvoroço, o bélico aparelho, durante largo tempo.
Quantos virão para não voltar!
Se, pelo menos,ficasse resolvida a situação angustiante!

Cuangar
6-1-1976
Ontem, visitaram o local 3 freiras alemãs, que se encontram ainda no Sudoeste Africano, esperando resignadas que tudo em Angola melhore um bocadinho.

Resolveram deter-se, por mais 3 meses, aguardando sempre que chegue a hora exacta, para retoma de seu útil mister. Era aqui, na verdade, o seu campo de acção, mas tiveram de fugir, em razão das mortes que enlutam Angola..

É grande pena, que são bons elementos e quase insubstituíveis. Dedicadas à função, vivem para ela,de corpo e alma. Corpos e almas dos pobres angolanos eram seus cuidados,
prodigalizando amor e carinhos e, ao mesmo tempo,desenvolvendo um tipo de assistência que é raro de encontrar.
Efectivamente, especializadas como elas são, não é muito fácil arranjar substitutas.
Hospitais e Infantários era tudo isso o campo de acção. Se Angola não muda sua face carregada, terá muito a sofrer com tal ausência.

Estiveram pouco tempo, voltando em seguida, ao lugar da procedência. Informaram-nos ainda de que a Missão do Tondoro já foi sacudida por duas explosões e que outra coluna seguira ontem para o Estado de Angola,

A de ante-ontem que observei da varanda , fazia-se acompanhar de 25 tanques.
De outras fontes soube eu que, pela cidade Pereira de Eça, também seguiram outras colunas mais , de potencial maior.
Aproxima-se já o belo dia 10 e, juntamente. a reunião da OUA.

Que vai dar tudo isto? Um governo sério de Coligação?
Ideal, por certo, mas um dos três não quer ajustar-se à plataforma.
Agostinho Neto acaba de sentenciar: " Impossível histórico, governo de Coligação".

Em que se funda o Galeno Presidente? Terá ele razão?
Por um lado, olhando atento para a história de Árica e de todos os povos, em seus primórdios,quase sinto igual; pelo outro, olhando argutamemte para o caso angolano que é diferente de qualquer outro, fora do mundo lusófono, admito realmente a possibilidade de
um Governo coligado.
Aludiria talvez ao que chamamos incompatibilidade, no campo ideológico?
Nesse caso, seria moderador o povo branco de Angola, representado ali no próprio Governo, como a boa razão, a humanidade e a ordem por força exigem.

Cuangar
7-1-1976
Com atraso de alguns meses. em relação ao Planalto, começaram as chuvas, já no princípio do mês corrente.Têm vindo regulares, quase sempre à mesma hora. — as 6 da tarde.
Geralmente, são elas anunciadas, bastante de longe, por tempestades medonhas de vento e pó, a que seguem,de imediato,
horrendas trovoadas.
Ainda assim, eram-no mais na cidade Silva Porto ou na vila do Chitembo.
Grandes sustos por lá houve, em tempos de vendaval. Neste lugar, onde estou por esmola, também ocorrem fenómenos iguais, mas fica-me a impressão de que a trovoada passe mais ao largo,
Não raro acontece ainda que o mesmo vento a afasta para longe.
Como o tempo mudou — assim mudassem os homens e as coisas de Angpla — alterou-se desde logo a vida nos campos e sorri amorosa toda a vegetação.

Passeando os meus olhos pela rxtensa chapada, que era parda e escura, noto brevemente, que algo está mudando, ao longe e ao perto.. Diviso, com efeito, manchas extensas, carregdas na cor, as quais não duvido sejam lavras de pretos.
Acho tarde em excesso, mas que hão-de fazer?! Sem água do Céu, impossível cultivar! É verdade confortável que o rio leva muita, mas sempre um tanto fundo não irriga a motor.

Havia, bem entendido, o recurso aos engenhos, mas isso já é caro e fora de alcance.
Por aqui há muito gado, caprino e bovino: desde já se deixa ver que utilizam os bois , na lavra das terras.
Débeis hortaliças iam já lastimando seu triste destino, mas agora, por Deus, tornam-se risonhas.

Para lá do Cubango, no Sudoeste Africano,( Namíbia ), vejo grupos de pessoas a lidar com afã.. Remexendo o terreno, lamçam à terra a semente preciosa, que leva consigo a esperança fagueira de um ano promissor. Acompanha-as a mão com a bênção de Deus. É massango fininho que chamam em Portugal "milho miúdo "

Vê-se ainda, aqui e além, pequena lavra de milho, fiando sempre a colheita , das águas do céu. Caso sejam minguadas, servirão esses colmos de forragem para o gado, Este, sim. é na verdade, a mola real destes ermos virginais..
Belos prados se anunciam, ao perto e ao longe, sorrindo qual esperança às gentes namibianas.

Cuangar
8-1-1976

De Londres chegou, pela radio, notícia alarmante: há enormes barcos russos ,dirigindo-se a Angpla; a OUA, junta em reunião que promete ser viva e quiçá descontrolada; o MPLA, reconhecido ao que julgo por 20 nações do Continente Africano e a fazer seus avanços. no plano militar!

Será bom para Angola e seu povo desditoso?Que trará para
todos esta guerra sem fim?! Que lucros advirão de extermínios em massa?! Um povo sem gente que poderá fazer?! Qual formoso palácio, encanto e sedução para olhos curiosos que de fora o contemplam? Se ele está vazio!
Angola é , de facto, esse belo palácio, já sem inquilinos, onde a morte é senhora! A comitiva da morte é luzida e prepotente: o medo e o terror, o luto e o pranto, a insegurança e a grande aflição!.
Que horrível cortejo!

Os barcos aludidos virão para bem ou trarão em si o anátema de Deus?! Um navio-tanque; outro, lança-mísseis; provavelmente, outro de tropa.
Se não fosse ateu o negro Comunismo! Um sistema equilibrado! Mas sem Deus… sem direito garantido à propriedade, ao menos limitada!...
Donde vem o estímulo a trabalho fecundo e boas iniciativas?
Trabalhar para os outros?! Só Deus ,julgo eu, é capaz de o fazer, pois é caridade!
Os homens são falsos, egoístas, mentirosos. A filantropia é assaz engenhosa, sempre calculista e sub-reptícia! Há fins obscuros, que se escondem atrás, desvirtuando as intenções.

Aprovação firme do Capitalismo? Também não vou nisso! Sei bem o que passei, para me elevar, na esfera social Arruinar a saúde, lutar ingloriamente,sujeitar ainda os entes queridos a um esforço inaudito! Eu sei lá quanta coisa deveras amargurante,ignóbil, deprimente!
O Socialismo cristão seria para mim o sistema ideal.
É que, no fundo, a causa das guerras está, primariamente, na distribuilção injusta dos bens deste mundo. Outras causas mais se apresentam ainda

Cuangar
9-1-1076
Procuro o Nascente, mas não vejo sinal, igual aos outros pontos.O céu é tristonho, gerando em meu peito uma dor sem fim.

Viesse um raio de luz, um sorriso carinhoso inundar a minha alma que está agonizando e verte já pranto. Como é triste a Natureza e o canto das aves! Ouço pios e ruídos e mal vejo a relva que surge da morte, em que se havia apagado

Solidão e amargura é meu pasto diário, ao lembrar o que fui. Quantos sonhos distantes alindavam meu viver todos eles caíram no vazio do nada! Planos belos eu fiz que mudavam a existência,
produzindo, no,meu peito, alvoroço intenso.
Noites longas passei a urdir o plano que não vi realizado, por culpa estranha. Mil castelos ergui, trabalhados a primor, na minha fantasia, mas não me recordo se habitei algum deies.

Trabalhei afanoso, privando-me de tudo, enquanto censurava que
outrem fosse preguiçoso. Madruguei toda a vida, precedendo o astro-rei, que me encontrava ocupado, ao surgir no horizonte. Labutei enormemente, já por sol, já por chuva, com a mira de ajudar, bastando-me também.

Via pobres,mendigando e chorava o seu destino, sofrendo nas entranhas a amargura dos irmãos. Via lares carentes, sem mais que a moradia: eu então penalizado,lastimava, cá do fundo, a sua imprevidência.
Afinal, que lucrei eu, com tanta diligência? Tenho menos que ninguém… sou mais pobre que Jó. Perdi tudo o que ganhei,de maneira tão honrada, humilhante, persistente! Um tremendo vendaval arrojou tudo ante si: hoje nada tenho que pertença a este mundo! Morreu tudo o que amava, nesse dia lastimoso, que muitos
saudaram como sol de liberdade.
Para mim foi antes a negra desgraça que nesse dia nasceu, pois vivo de esmolas e mendigo alojamento. Foram bens e afectos, foi tudo o que eu prezava. Houve sangue e houve luto, verti
pranto e sossobrei.
Ai…Ai! 25 de Abril! Tiveste mãe honrada e madrasta perversa!

Cuangar
10-1-1976
Deu agora em chover e não há intervalos: é noite e é dia, a toda a hora e momento! Ficou a terra ensopada e a humidade é tão
densa, que uma faca a toparia. Quanto a frio, não espanta, que o mais leve casaco, seja ele de malha, é logo capaz de obstar ao incómodo.
Vai bom, segundo dizem, pois as terras sem água são estéreis e duras, nada produzindo. É regalo para os olhos ver campos e prados a sorrir com delícia.
Depuseram, num momento,,aquele ar confrangedor, que ostentavam na seca.
Penalizava o aspecto e minha alma sofria, ame embora o tempo seco e o prefira de longe!
Esta vida é assim: toda feita de amargura! Agora sofro muito, embora veja com agrado, sorrir longe e perto, o virente capim.

Também as mesmas árvores, altivas e gozosas, me convidam à folgança, que o momento é de júbilo. Os próprios mamoeiroe que se mostram em frente, assumem.desde logo,ares fidalgos! Eu entendo seus dizeres e fico a cismar…

: As aves do céu é que vivem diferente: não as ouço cantar! Ocultaram -se em abrigos, que a densa humidade não poupa os lugares , onde piam doudejantes, com acentos de alarmar!

Os cães e os gatos não estranham a mudança : preferem tempo deste, que respiram sem esforço. O tormento da boca já flndou certamente, o que moía a valer e causava desespero sobretudo aos primeiros.
Os gatos, por sua vez , acorrem à lareira, onde rosnam sem descanso, envolvidos em cinza.
E quanto a nós, pobres refugiados?! O drama é sem igual e só Deus o avalia. Que ao menos a outra vida nos sorria lá do Alto!

Cuangar
11-1-1976
Hoje é Domingo, dia do Senhor, consagrado ao repouso.Só eu, por triste sorte , não posso repousar. É que luto agora mais do que nunca, travando-se o prélio, no meu pensamento.

Luta porfiada que me leva o sono e agita o espírito! Porquê'?! Viver nesta ânsia,ludibriado sempre, rechaçado pelos homens! É Deus que o manda?! Como?! Se Deus é tão bom! O diabo será ou alguém por seu mando.
O bom Pai do Céu esse é que não! Figas não faltam ao carvão dos infernos!
Manterei o meu combate, durante a vida que me restar. Não tenho dinheiro? Não posso deslocar-me a terra portuguesa, essa Pátria linda, onde tudo é belo e me fala de amor?

Não posso ajudar aqueles que mais amo? Estou mais pobre que nunca, aceitando esmola, para não sossobrar?

Arranjarei trabalho, seja qual for. Não sendo nomeado para o Liceu Técnico, sito em Nyangana, Estado do Cavango, como espero em breve, buscarei outro furo, seja ainda a cavar!

Constou-me há pouco, de fonte segura, que vão abrir trabalho, ali no Sudoeste: estradas a rasgar, destinadas ao Exército, sendo entregue a chefia à Firma Castilho do meu Portugal.Se outro modo não houver, ali irei pedir que me dêem trabalho, por amor de Deus , para chegar à minha Pátria.
Ganharei o pão com o suor do meu rosto, de picareta ou até de enxada
Que me importa a mim isso?! Já perdi o medo, em terras de Angola: guerrilha e labuta não me infundem pavor! Não vi eu correr sangue e chorar em desespero?! E cadáveres jacentes, ao longo da estrada, esperando sepultura no estômago dos cães ou porcos do mato?
Ouvi bebés, clamando aflitos pelos pais dizimados, ao som do canhão. Perto e longe, à direita e à esquerda,vão balas furiosas e até granadas, harto incendiárias e perigosas, demandando um alvo que o ódio aponta.
Roubaram-me tudo: afectos e haveres, paz e bem-estar e (como não dizê-lo?) o próprio medo da morte! Eu já não vivo: passo
na existência, vegetando apenas.

Alimento um só desejo: ver com estes olhos o céu de Portugal e, se Deus for servido, morrer em seguida, bem junto aos meus.
O 6º Governo é já do meu agrado: tudo me chama de " terras estranhas", para acabar os meus dias, na "Terra bendita da Promissão".

Tondoro (Namíbia)
12-1-1976
De novo me encontro na Missão do Tondoro, em terras que chamam Sudoeste Africano. Já custa um pouco afastar-me do Cuangar (Missão Católica), onde levo,sem mentira,cerca de 4 meses.
Ao impor-se uma ausência, noto desde logo que, na alma
doente, se partem fibras. No entanto, urge que saia, para ganhar o sustento, recorrendo ao labor. Tal foi a razão por que vim hoje aqui.

Ficarei professor, no Liceu de Nyangana? O Padre Manfred nada sabe ainda, a tal respeito. Sugeriu ele a nossa ida ao Rundo, para tratarmos do assunto em vista. com o Director ou melhor ainda, com o Secretário da Educação.

De facto, é preferível, pois nada resolveremos, sem dar este passo. Amanhã, então, lá vamos à cidade, em carro oferecido. Eu só de borla é que posso viajar, uma vez que o dinheiro logo voltou costas, ao sair de Angola.

Após a fuga. a partir do Chitembo, vila angolana, deixei de ser senhor, vivendo somente, a expensas da caridade e das almas generosas. Vai fazer 5 meses! Que longo cativeiro e que funda provação!
Vindo o Céu em retorno, ainda vale a pena, mas é tão humilhante ficar na dependência de todas as pessoas! Enfim,temos de aguentar!
Refiro-me, nesta hora, àqueles infelizes que, havendo perdido tudo, caminham neste mundo, sem a luz da esperança.

Faltava-me apenas ouvir um «não», amanhã, uma nega, assim lançada: " De Pretória, na África do Sul, acabam hoje de participar
que nada se obtém".
Eu e Mestre André que também espera, viríamos derrotados lastimando tal sorte!
Bem sei que avolumo e do nada faço tudo, mas que pode esperar-se de alguém como eu?! Ainda verá sol o meu coração?!

Rundu - SWA
13-1-1976
A 1 metro do Cubango, na margem direita, encontro-me sentado a escrever estas notas. O relvado macio ajuda no labor e assim também o dia quente e diáfano, talvez sem chuva. É terça-feira,13, e já fui atendido, numa sala-escritório, com número igual.

Procurei Mr Burger, para lhe falar sobre a minha nomeação.
Nesta mira, deixara o Cuangar, na fronteira angolana, com destino ao Tondoro, onde achei transporte que logo serviu.

Afinal de contas. lá de Pretória hada tinha vindo!.Foi esta a razão por que o Secretário, em lacónico Inglês, volveu esta resposta: "I can tell you nothing",

Fiquei diminuído, àquela hora tardia, rentinha ao almoço. É o que se chama, com propriedade, "engolir em seco!"

Aparentemente, fiquei sereno, mas duvido bastante de que o olhar me não traísse. Forcejei heroicamente por mostrar-me calmo, embora rastejasse qual verme da terra, e um vulcão irrompesse do meu peito em chama.

Lá saí uma vez mais, com a frase de consolo:
"Ill send you a message".

Falhara a viagem, sendo pois um dia mau. Entretanto, bem que o não previsse, aguardava-nos ainda a parte mais trágica. Ao dobrar duma esquina, chegaram altas vozes,denunciando ali enorme perigo. Gestos descompostos e olhar esgaseado chamaram a atenção
Um volver breve de olhos inquiridores indicou,precisanente, o lugar do sinistro: era o nosso volkswagen que vomitava só chamas!
O meu companheiro abre a porta e grita, já estarrecido: saia depressa!
Fico desnorteado! Já tudo é fumo e cheiro insuportável!
Junta-se areia, levamos água nas mãos, pega-se logo do extintor.
Diz o amigo André: esta merda não abre!
Enfim, estávamos sem carro. Sempre diligentes, apagámos o incêndio, mas não ganhámos para o enorme susto. Como resultado
ficámos em terra.
Por ser dia 13? Só a brincar! Em dia assim, visitou Portugal a Senhora de Fátima

Tondoro
14-1-1976
Estou aguardando, com ansiedade, enquanto relembro o aspecto do Calai, já terra angolana, em frente do Rundu.
Fiquei ao pé do rio que serve de fronteira, não querendo atravessar.

Por isso, recusei a suma gentileza do amigo Antero. " Não quer vir,
Padre? Que vai lá fazer?! Para ver só miséria!"

Perdi por completo a vontade que restava. Horas e horas, lá estive a meditar, pois ficando sem carro, aguardávamos boleia. Olhei longamente, pensando e sofrendo.
Aquelas tristes barracas, apontando ao Céu, imploravam clemência ao Pai de bondade, por tanto sofrimento! Ali dentro, gemem corações e anseiam vivamente peitos afrontados!

Que fazeis aí, desditosos corridos, esperando talvez uma vida melhor?! Inclemências do tempo, necessidades corpóreas, ausência de afectos, incompreensão e até abandono: tudo isso é o pão que tendes de amassar e comer, dia a dia!

Confiastes demasiado na clemência dos homens: só agora sabeis com grande amargura, que apenas em Deus podemos repousar. É a frase imortal do grande Tagastano:
«Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto,
enquanto não repousar em Ti»
Houve mil coisas e pessoas diversas, a quem nos entregámos, fiando, pois delas o nosso bem-estar. Mas, como tudo é vão neste mundo ingrato!

Que pena gera em mim vosso pranto absíntico, em húmido local, de barracas emprestadas! Que seria de vós, se não fossem os vizinhos, prodigalizando-vos o bastante e necessário, para não morrerdes, em terra alheia!
Alguns já partiram, levando totalmente aquilo que era seu.
Quem foi? Certamente os que tinham mais recursos. e a quem não importava manter-se em Angola.

Vós e eu igualmente confiámos demasiado e, pelo que vai, foi vã e perigosa a nossa confiança.

Cuangar
15-1-1976
Regressei do Tondoro, encontrando novidades: os ovos incubados pela pomba "solitária", que chamávamos Toninha, já deu seu fruto: um casal de pombinhos. Residem num caixote ou para dizer melhor: num cortiço de abelhas.

Acompanhamos tais vidas, ainda em botão. e fazemo-lo com júbilo. Espreite,i há bocado, os dois recém-nascidos, pois estava ansioso por fixá-los de perto. Mal os enxergo, ao cabo do ninho, onde jazem impotentes e muito juntinhos.

A mãe Tonimha anda cheia de importância e bastante empertigada, entendendo, na sua, que ninguém, afinal, deve aproximar-se dos filhos. implumes. E não faz excepção!

Daquele rigor, é raro encontrar! Até os benfeitores sujeita ao regime! Porisso, exactamente, é bicada furiosa, quando vou espreitar! Se não me arranca a pele, forceja por isso e zanga-se a valer, quando teimo provocando.

Eu, com razão, havia de iirritar-me e até castigá-la, mas não ouso fazê-lo, ao menos por agpra.

Em boa parte, desculpo o seu zelo, atento e persistente, que os filhitos nada sabem nem podem bastar-se. Desvelos e cuidados, em tais circunstâncias, é função de toda a hora!

Que seria dos implumes, sem extremos de carinho nem cuidados atentos?! É por isso também que perdoo indulgente as bicadas sem conto, atiradas há pouco à minha pele dorida, não tomando ela em conta os dons recebidos ,ao longo da viagem, através dos matagais.
Esqueceu ela já o que fiz, em seu proveito?! Como pôde olvidar a minha solicitude?!
Mais um caso lastimoso de tremenda ingratidão?! É tão vulgar nas pessoas, que nem devia estranhá-lo, quando o vejo na pomba!
A verdade, porém, é que dói a bom doer!

Desprezar alguma vez quem nos fez mal, não é cristão, bem se deixa ver, mas tem, humanamente, certo desconto. Entretanto, no caso presente, em que houve só carinhos, como pode suportar-se?!
Instinto materno que cega e destempera?!

Cuangar
16-1-1976
As aves tropicais reflectem claramente a rudeza e desconforto dos lugares solitários. Ainda ontem, já por noitinha, levantei-me do estudo e rumei ao aprisco.

Voltavam as cabras de pastar no relvado que agora é soberbo! As chuvas abundantes e o calor permanente fazem dele um paraíso. para todo animal.
Algumas cabras vinham apressadas, atendendo ao clamor que os filhitos no redil faziam de há muito. São deveras graciosos os cabritos mais novos.
Gostei de ver, sobretudo, aqueles recém -nascidos que mal se tinham nas pernas e já faziam denguices.

Um deles mamou tanto, que os intestinos falharam, mostrando-se abatido, nas primeiras horas. Nisto, veio o Catraio, pastor encartado, para dar, finalmente, sua vista de olhos.Sorriu consolado, por chegar ao fim do dia e poder ausentar-se para a
cubata do quimbo. Ali o aguarda o pirão e um sono reparador, a que
ele se entrega, de alma e coração, feliz e tranquílo

Deixei-o partir e fiquei uns momentos olhando em redor, para escutar os doces passarinhos. As vozes são pios e, não raramente, gemidos e ais, lamentando quiçá um viver amargurado.

Eles, em geral ,amam a folhagem, enramada e rescendente, onde vivem felizes, espalhando a fragrância.
Aqui, porém, é já diferente, que as plantas os repelem, de humor carregado e acúlios fatais.

Pensava eu nestes contras, meditando absorto nos desaires da vida, quando chega a meus ouvidos um ai prolongado que alguém despedisse, em estertor de agonia. Era lento e sufocado, embora pertinaz, gemente, doloroso!
Tremi, tremi, dos pés à cabeça e fiquei esmagado, perguntando ali ao mano Martins o que seria aquilo.
— É ave do deserto. Só estranha o facto quem nunca esteve aqui!

Cuangar
17-1-1976
Cinco horas e trinta. Estou na varanda que dá para o Cubango e ausculto o ambiente.
Fui o primeiro a erguer-me do leito, iniciando breve o novo dia. Pouco antes das 5, despertei o Carlitos, afim de cumprir a grave missão de que está incumbido: ir ao Cuangar e trazer-nos pão. Aproveitou um veículo que ajudou na tarefa.

Quando chove, o caso é duro: hão-de ser 2 quilómetros, daqui
até lá, mas a padaria fica no extremo. Tudo somado, incluindo os dois caminhos, andará por 6 quilómetros.

O Quim e a Gina ficaram a dormir..Era costume levantarem-se logo, para trabalhar. Agora, porém, resfriou um bocado, alterando-se o horário, ao menos de manhã. Que o frio, a rigor, aguenta-se bem.

Nenhum azar haveria, mas o Quim é fraquito, doendo-me por dentro vê-lo encolhido e embrulhado na manta. Mergulham,pois, em sonhos rosados, como outros em redor.
A estas horas, só está desperto quem vai ao pão, â vila do Cuangar. O velho Irmão Álvaro não tardará muito, sem que rume à horta.
Como tem chovido, consideravelmente, aprontam-se as terras para a sementeira.
A Padre Abílio não vi passar: talvez o haja feito, sem me aperceber. Espinheiras e lavras trazem-no moído.
Incansável e robusto, não pára um momento, para ajudar os famintos, suavizando-lhes a dor, Famintos, agora, são todos os Brancos.

A Missão Católica, onde estou refugiado, encontra-se repleta destes infelizes, achando-se à mistura com grandes e pequenos, sem olhar à cor, idade ou credo.
Notícias alarmantes acabam de chegar! Outras levas de infelizes fogem espavoridos,! Que inferno, meu Deus, ir na frente dos canhões, sem pão nem trabalho, sem abrigo nem lar!

Cuangar
18-1-1976
O bom Comandante da África do Sul reuniu, ontem aqui, todos os refugiados que se encontram nesta zona. Segundo me consta,vai hoje continuar, por volta das 15. É bem provável que eu tome parte.
Como fala Inglês, recorre a um intérprete, mas o nosso povo não ficou satisfeito, dizendo em comentário que o rapaz falhava: «Ouvíamos tanta coisa em Língua Inglesa e pouco se transmitia na Portuguesa.»
Como hoje sucede estar eu livre, ao menos de tarde, vou ouvi-lo, pois, directamente. É outra coisa. Pode até acontecer que lhe fale, pesoalmente, expondo então o caso dos meus.

Isto como vai é que não dá trunfo!
Precisávamos trabalho, como fonte de receita. O que ontem foi dito, a ser exacta a informação, não é suficiente, para acalmar o espírito de todos,
Cifrou-se o encontro, segundo parece, nas alíneas seguintes: 1.aconselhar toda a população a não ficar por aqui, dirigindo-se ao Calai ; 2. razões plausíveis de tal preferência; 3.fornecimento de combustível pela África do Sul e vigilância pelos militares; 4.não querendo seguir, tentar diligências, para arranjar trabalho e ganhar a vida.
É alguma coisa, mas não é tudo o que a gente deseja.
Ir embora de todo, seria bem melhor, devido naturalmente ao que vai por Angola. A esperança de ficar atenua-se mais! Não é Angola um campo de batalha?!
Esperou-se demais.Acertaram em cheio os que há miuto largaram, em busca de trabalho, sossego e paz!

Ficar ainda? Só do outro lado. com trabalho garantido! Aguardo a nomeação.Quando virá ela? Em 21, começam as aulas!

Cuangar
19-1-1976
Afinal, o encontro deixou o nosso povo em graves consultas!
Desilusão? O Comandante já não estava e eu também não fui, Andei com juízo, embora o não fizesse, de caso pensado. Houvesse aí meio de transporte, que teria aparecido.

Pelo que ouvi a quem tomou parte, as novas medidas apenas servem os que vivem melhor; comerciantes e outros.
Trata-se, com efeito, de um convite ao labor, mas em que moldes?
Os que vivem aqui não intentam ficar. Aguardam somente que os males se atenuem e volte a ordem. Por esta razão, nem tomam iniciativas nem correm aventuras.

Desiludidos e tristes, arrastam a vida, já bastante frágil. Na verdade, isto é medonho! Esperar!... esperar! Mas o quê?! Só a morte! Não vemos em Angola a fúria subir mais, empenhando-se ali
os três Movimentos numa guerra de extermínio?!

Que nos podem garantir, se nem eles próprios estão seguros?!
Hoje exulta um; amanhã é já outro! Ai dos vencidos e tocados pela morte!
Escandaliza-me, em grau extremo, tal maneira de agir! Lutar pelo poder, a expensas do estrangeiro! A princípio, era tudo mais fácil, não havendo compromissos ou sendo ligeiros.

Agora, porém, avoluma-se a tal ponto a ingerência estrangeira, que matam, sem piedade, os filhos de Angola, transformando-se a nação em colónia perene!
Em boa verdade, o nosso colonialismo foi brando e paternal. .Agora, sim,chegou de facto a era colonial… a "noite colonial" de Agostinho Neto, mal aplicada.
Que Deus ajude Angola, a terra de bênção, tão martirizada, que vê morrer seus filhos, ingloriamente!

Cuangar
20-1-1976
Se me houvessem nomeado, seguia hoje mesmo para Nyangana, uma vez que amanhã começa, de facto, o ano escolar.

Assim, estou pendente, não me sendo permitida qualquer iniciativa.
Que podia resolver? Devido, já se vê, ao momento político, só um caminho estaria patente: ir logo, de uma vez, rumo a Portugal. Mas este fim é duro alcançá-lo! Ir,sim! Se o desejo bastasse!

Quem manda,nesta hora, é o metal precioso que eu não tenho nem vejo! Sem ele, nada feito! Ficou retido nos Bancos, ignorando
inteiramente o destino que seguiu.

Andará, por ventura, custeando farras, em que a honra naufraga e o pudor já morreu? No entanto,
ele é meu, porque foi, na verdade, trabalho honesto a dar-lhe existência.!
Havê-llo às mãos? Deus é quem sabe! Havendo honra e vergonha, o poder constituído lançará de seus cofres o que não lhe pertence.
Escalda nas mãos o que outrem ganhou, com suor e privações. Utopia? Mas, se fui honrado, a ninguém prejudicando?!

Se eu trabalhei tão arduamente, com amor incessante, por que não
reaver o fruto gerado pelo meu suor?! Bradaria aos céus ttal desconcerto! De que posso valer-me, nesta hora crucial?!

Já lá vão 5 meses, sem nada para gasto. Com saúde ou à margem, é tudo a mesma coisa!
Se tenho dores, hei-de aguentar, gemendo sozinho, enquanto aguardo paciente que Deus-Providência venha em meu socorro.

Dos homens nada espero, que são maus e insensíveis. Confio somente no Pai extremoso dos Altos Céus!
Que poderei eu fazer, para alcançar o solo pátrio?
Que faz uma ave, se lhe cortam as asas?

Angola
Cuangar
21-1-1976
No dia de ontem, partiu um casal rumo ao Calai, onde vivem acampados, há coisa de três meses, cerca de l3 dezenas de refugiados.
Este número, porém, vai decerto engrossando, um dia após outro ,com os fugitivos de várias cidades: Serpa Pinto, Moçâmedes e Sá da Bandeira..

O ambiente psicológico, em que todos vivemos, é já o pior que possa imaginar-se.. Para infelicitar,bastaria, na verdade, o pensamento constante do que vai ocorrendo.
Deixar tudo para trás: bens, casa e emprego; sonhos e planos; tantas vezes a própria vida daqueles que amávamos.

A insegurança actual; a incerteza do futuro e a falta de recursos , até mesmo para fugir,tornam isto um calvário.. Viaturas arruinadas; carência de combustível; esperança destruída!
Se não morremos todos,à fome e ao frio, é que a nossa vizinha, a África do Sul, ainda vai ajudando aqueles que vivem no Sudueste Africano, onde nada falta, mas onde estão os randes?!
Os nossos patrícios, Teresa e Duarte, que ontem nos deixaram, levam 3 crianças e não têm que vestir.

Deixaram tudo. ao longo do caminho, na fuga de Serpa Pinto. A viatura enterrou-se na areia e ficou abandonada. Consta por aí que já foi assaltada, roubando o que havia. Hoje, infelizmente, vive-.se do roubo!
Criou-se para o caso, mentalidade própria, que é já padrão e nova moral — ser um triunfo locupletar-se desta maneira!
Os que votam a vida a transacções de tipo comercial, e dispõem de meios enriquecem depressa, aproveitando o momento.Uma simples garrafa de vinho do Porto custa para logo 600$00; uma de wisk sobe a 1000$00; qualquer artigo de 15 cêntimos , comprado no Sudoeste, é vendido aqui por 5o e mais; uma garrafa vulgar de vinho corrente, obtida por 1 rande, além,no Sudoeste , é vendida por três!

Note-se ainda que pagam o rande a 200$00, chegando, há tempos, ao preço astronómico de 500$00,

Cuangar
22-1-1976
Vivemos do boato e nutrimo-nos de angústia. Esperando sempre dias melhores, ouvimos atentos o que dizem todos , à volta de nós.
Mil coisas se espalham, seguidas logo de amplos comentários , apropriados aos factos. Derramam-se ais fundos e cai-se de imediato, em longo cismar.
Avança triunfante o MPLA, que tomou a Cela bem como Santa Comba às tropas da UNTA. A FNLA iiniciou a Norte a guerra de guerrilha.
O pavor aumenta. Nada vale esperar. Angola.ao presente, necessita um Governo, venha ele donde vier! Dos três movimentos ou apenas dum só? O melhor de todos seria talvez o de coligação.

Será possível em África? A experiência cria hesitações .Ambição e cobiça, falta de maturidade e interesses estranhos fizeram disto um grande fiasco.. Haja quem governe! Acabe a anarquia! Cesse o latrocínio! Angola a saque!

O MPLA, atendendo ao que se passa, nestes dias sombrios, tem boa orgânica, aparentemente.Pena é que seja marxista, em que a fé religiosa não tem cotação.!
A Voz da Alemanha propalou hoje haver, ao que sabe,10000 Cubanos a lutar em Angola.Se bem compreendi, a Ilha de Cuba prepara diariamente 200 homens, para lançar em combate. Não sei, a valer, quem tem razão.

Quem vai lucrando são, na verdade, as grandes potências que vendem, a capricho, o seu armamento e empregam os homens.
Por aqui, afinal, é tudo ruína! Quem nos acode?
Avança glorioso o MPLA.
Poderá, no entanto, assegurar a paz, em zona tão extensa e com tantos inimigos?!Os outros Movimentoa e as nações vizinhas continuariam a luta armada?
A Rússia respondeu assim aos Estados Unidos: «I have no real question about Angolal it isn\t my country»

Cuangar
23-1-1976
De Londres, chegou pela radio notícia alarmante: enormes barcos russos dirigem-se a Angola; a OUA, junta em reunião, promete ser viva e quiçá desencontrada; o MPLA reconhecido, ao que julgo, por 20 nações do Continente Africano, a fazer seus avanços no plano militar.
Será bom para Angola,seu povo desditoso? Que trará para todos esta guerra sem fim?! Que lucros advirão, de extermínios em massa?! Um povo sem gente que poderá fazer?!
Qual formoso palácio, encanto e sedução para os olhos que o contemplam…
Se ele está vazio! Angola é. de facto,esse belo palácio, já sem inquilinos, onde a morte é senhora.. A comitiva da morte é luzida e prepotente: o medo e o terror; o luto e o pranto; a insegurança e a grande aflição.
Que horrível cortejo!
Os barcos aludidos vlrão para bem ou trarão em si o anátema de Deus'! Um navio-tanque; outro lança-mísseis e, provavelmnte um barco de tropa.
Se não fosse ateu o negro Comunismo! Um sistema equilibrado! Mas sem Deus! Sem direito garantido à propriedade, ao menos limitada!
Donde vem o estímulo ao trabalho fecundo e a boas iniciativas? Trabalhar para os outros?!Só Deus, julgo eu, é capaz de
o fazer, pois é caridade!

Os homens são falsos,egoístas, mentirosos. A filantropia é assaz engenhosa, sempre calculada, sub-reptícia! Há fins obscuros que se escondem atrás, desvirtuando as intenções!
Aprovação firme do Capitalismo? Também não vou nisso!Sei bem o que passei, para me elevar, na esfera social ! Arruinar a saúde; sujeitar ainda os entes queridos a um esforço inaudito; lutar ingloriamente! Eu sei lá quanta coisa deveras ignóbil, amargurante
e deprimente!
É que, no fundo, a causa das guerras está precisamente ,na distribuição injusta dos bens deste mundo. Outras causas mais se apresentam ainda.

Cuangar
24-1-1976
Procuro o Nascente,mas não vejo sinal ,igual aos outros pontos. O céu é tristonho, gerando em meu peito uma dor infinita. Viesse um raio de luz, um sorriso carinhoso inundar a minha alma,
que está agonizando e verte já pranto!
Como é triste a Natureza e o canto das aves! Ouço pios e ruídos e mal vejo a relva que surge da morte em que se havia apagado.
Solidão e amargura é meu pasto diário, ao lembrar o que fui. Quantos sonhos distantes alindavam meu viver todos eles caíram no vazio do nada! Planos belos eu fiz que mudavam a existência, produzindo em meu peito alvoroço infindável .

SWA
25-1-1976

Nyangana ( Namíbia )

Chegou, por fim, o que tanto desejava. É verdade incontestável que, neste mundo, nada há que satisfaça! Ansiava
ardentemente que chegasse a nomeação. Esta efectiva-se ,e a tristeza não me larga. Não tive eu de separar-me das pessoas que amo?! Assim, fica a minha alma retalhada pelo mundo!

Um mês no Catuitui, campo de Refugiados; 4 meses no Cuangar,
onde o bom Padre Abílio a todos acolheu! Cinco longos meses de alto nervosismo, em que a guerra e o terror foram pão de cada dia!

Só colunas militares a troar à nossa volta! Canhões e blindados, em fortes arreganhos , que logo intimidam! Aviões a cruzar-se, levando a destruição a todas as partes da querida Angola!

Deixei-a com saudade, mas ela está perto. do outro lado do Rio. Acena-me triste e eu leio nos seus olhos! Impressão minha?
A verdade nua e crua é que a amada Angola se apresenta melancólica e me toca fundamente. Aih! Angola querida!
Recebeste o sangue vivo do luso coração, que te amou e defendeu! Deixei-te com pena!
Durante 500 anos percorreu teus caminhos o povo português. Nenhuma força existe, no mundo habitado que apague e destrua essa marca indelével. Revela-a o teu rosto.

O caldeamento luso é feito de amor, sorriso e ternura: não a som de
canhões! Fica na alma, gravado para sempre a letras
de fogo.
Minha Angola idolatrada, que guardas no teu seio o corpo infeliz da
Maria Margarida, a desditosa, já finalista, assassinada que foi. em
Silva Porto, pelo crime de te amar.
Jamais te esquecerei, terra de mil encantos, onde fui tão felliz, em dias de paz.

Nyangana
26-1-1976
Desliguei-me de um mundo e encontro-me noutro. Afinal de contas, é bom o princípio, não obstante os problemas,que se antolham ,desde já: línguas de outros ramos, que não o Latino; costumes diferentes; dificuldades enormes que os 57 anos trazem sempre consigo; não sei que mais ainda! Deus nos acuda!

As impressões de ontem que foram as primeiras deste mundo novo, não desagradaram. Ficarão, pois, registadas ,em simples Diários.

Quanto à minha viagem, nada a interpor, se não fora a travessia na jangada do Cuangar. Aqui ,é que foi o bonito! Venderam as gentes, levianamente, as pranchas de serviço, que eram grandes e adequadas, fazendo agora as vezes delas apenas duas tábuas cuja largura, não é suficiente.

Foi por estas, na verdade, que o Taunus deslizou, mas com tanta desventura, que esteve prestes a megulhar no rio Cubango.

A entrdada correu bem; quanto à saída, emoção e alarme! Guinou à esquerda, ficando assim a ponto de cair. Suores frios e fortes cobriram-me o corpo, nessa hora azarenta! Enfim. com muito esforço e boa vontade, puxando todos ali como valentões, durante a subida, conseguiu-se o milagre,

A via pública é de terra batida.Foi há pouco arranjada. Para carros pesados não oferece quaisquer dificuldades. Viaturas delicadas entram na desgraça. A trepidação que raramente cessa, ao longo da via, põe os braços num molho!

Enfim, percorridos na calma 200 e tal quilómetros, cheguei à Missão, onde o almocinho não se fez esperar. O Padre Hermes Wirth, como o Superior foram muito amáveis.
Em seguida, fui ao Liceu avistar-me logo com o Reitor.
Obtida a informação que tiinha em vista , regressei a Nyangana, para arrumar o quarto, na Missão Católica, onde fico iinstalado.

SWA-Namíbia
Nyangana
27-1-1976

Cubango! Não havia que enganar. Ficava sempre à esquerda, rodeado, aqui e além, por cubatas de indígenas.
Do outro lado, era a nossa Angola que também me seguia em corpo e alma.
Houve certas ideias que foram obsidiantes: Suapo e terrorismo; seguir pela esquerda; bois e cabras na estrada; ultrapassar o Liceu, não me apercebendo de que tal ocorresse.

Apesar de tudo. não houve problemas.
As espinheiras, agora reverdecidas por chuvas abundantes, servem de cobertura ao esperto capim.

Às vezes iludia-me: afigurava-se breve imensa alameda, alindada pelo homem, onde logo apetecia repousar… esquecer! Inpossível fazê-lo! Viajar é de dia!

Para mais, em terra alheia, totalmente ignorada! Nkurenkuro-Tondoro : 28 quilómetros; daqui ao Rundu, mais 112; da cidade à Missão vão 113; daqui ao Liceu, apenas 16. Dá, se não me engano,269.
As emoções da viagem tornaram, desde logo, o dia pesado.
À noite, estava exausto e não dormi bem: acordei à meia-noite.

Que zonas estranhas e quetoada impertinente, sinistra e melancólica!.Não sei muito bem o que parecia! O efeito notado semelhava, a rigor, o de serra manual.
Durante a noite, era constante o vai-.vem da »serra», notando-se claro, de quando em quando, muito breves paragens

Engenhos desconhecidos, ali no Cubango? Pela madrugada, é que foram os trabalhos! Quis sair de casa, mas não foi possível! Era tanta a água, que dava a impressão de vir em caudais, por um céu rompido!
O chão a pisar assemelhava-se a um rio, cujas águas furiosas
caminhassem imparáveis ,alheias a descanso.
Quem me dera botas altas , disse eu então para os meus botões! Era a cântaros!
O que dá jeito é o fim de semana ( sábado e do mingo )
As nossas aulas são de manhã, cabendo por semana 35 tempos, aos primeiros anos
Cada tempo escolar dura somente 35 minutos.

Nyangana
28-1-1976
São agora seis e meia. Já estou preparado. Às 7.3o, arranco para o trabalho. Sendo o primeiro dia, é cheio de apreensões. Bem pesaram estas na mente agitada, pois que o sono de 3 noites, que levo nesta zona, foi algo interceptado.
Na primeira delas, acordei à meia-noite; depois, na segunda, a um quarto para as 3; na terceira final, às 3.3o.

Decrescendo nítido na tensão nervosa!. Estou sozinho, num país estrangeiro, em que tudo é diferemte. Já me não cobre o céu de Portugal nem ouço falar ou ainda cantar em Língua portuguesa.

Tudo aqui é estranho, embora rodeado de atenções e interesse.
Fosse eu rapaz ainda, nada haveria que receasse!
Apesar de tudo, com Deus a meu lado, realizarei os meus objectivos.
Como é novo para mim este mundo em que vivo, e todo bem outro do que que me embalou, procurei, nos meus papéis, um mapa de Portugal. Havia de ter um!

Lá estava dobradinho, com muito jeito, se não elegância, como a gente faz sempre âs coisas preciosas que ama deveras!

Desdobrei-o então, fixando-o ali, algo enternecido e remontei, deliciado, à Pátria dos rouxinóis . Que eles bem sabem onde á grato cantar!
Nunca mais dobrei a carta, permanecendo estendida, sobre a mesa de trabalho.
Cá se encontra ela em frente dos meus olhos, a lembrar-me o que fui e deixei já de ser!
Faz enorme bem contemplar este mundo, tão vivo e amado, enquanto, de frente, me fixam em mudez as figuras apagadas dos entes que amei.

Uma delas está rrindo, envolvida em flores: enlevada e meiga, sorri para a vida que alguém lhe roubou, em Maio de 75

Nyangana
29-1-1976
Decorreram em calma as primeiras aulas. Habituado como estive à canalhice e desordem, fiquei maravilhado com este ambiente
Confesso, em voz alta, que me enche as medidas.
Às 7 menos 15, hora regional, encontrava-me já no Liceu Técnico. Não vou dizer que é preciso madrugar! Às 4 e 30 da velha Europa , fuso de Portugal, é logo pôr acima. Assim fiz eu , para tudo correr bem.
Na verdade, fazer os preparativos, comer alguma coisa e percorrer depois 15 quilómetros, leva seu tempo. Isto é claro, não contando, já se vê, com alguma pirraça,que me caia de improviso: um furo de pneu; estrada empoçada; gado ovino e caprino.
Os animais vão dormir à picada e não querem levanttar-se, logo tão cedo.
Andando nervoso, acordei mais cedo. O 25 de Abril ou melhor ainda, o seu plano em acção, criaram-me complexos. Ir para as aulas, após essa data, era encaminhar-me ao pretório da amargura.
Graças a Deus, pois aqui é diferente! Não vejo despotismo: antes convicções, aprumo, distinção. Liberdade e princípios, auto- domínio, personalidade.
Que bem eu me sinto, num ambiente assim! Materiais escolares… o que o Mestre precisa é só ir buscá-los. O Estado fornece-os, gratuitamente. Bendita fartura! Não parar diariamente e havê-lo feito sempre, desde que nasci!
Bom! Que ao menos o fim seja um pouco animador!

O Corpo Docente, ao que me parece,é todo protestante. Apesar de tudo, começa, rezando, o seu dia de trabalho. Que bonito é e que lição para muitos!
Estou satisfeito de caminhar para Sul!

Nyangana
30-1-1976
Agora, jjá posso elaborar o horário de trabalho, que vou estando ao corrente do mais importante. Dizia-me o o Padre Baetsen, aqui há dias: Beginnings are allways difficult! É bem verdade! O princípio arranha forte e gera sempre dificuldades.
Com o tempo em cima, vai-se tudo aclarando e torna-se mais fácil.
Uma coisa, porém, é mais que certa: começar é bom, mas para jovens. Aos 50 anos, perde-se a cartada. O que me vale a mim são as bases que tenho e a grande experiência, adquirida no passado. De outra maneira, não era possível
Ensinar Inglês, numa nação estrangeira,cuja Língua oficial é também a inglesa! Parece um sonho! E há uma grande verdade que ninguém contesta: só nos despachamos, convenientemente, na Língua suave que aprendemos em criança e que a nossa mãe transmitiu com o leite.,

Eu cá vou indo, (melhor do que pensava). Entretanto, há momentos difíceis.
Outra barreira que dá água pela barba: não saber Africânder! Para as minhas aulas não interessa, mas para falar e tratar com o público, fora das aulas?! A Língua mais falada, ao Sul de Angola, é de facto o Africânder. Com o tempo rodando, as outras duas (Inglês e Alemão )irão decaindo, se não houver, de facto, intervenções ou desvios políticos.
Vejo-me,pois, forçado a aprender Línguas novas e a relembrar também o meu Alemão
O que isto representa de esforço e trabalho, aos 57 anos! Preparar as lições, fazer o meu diário, rever os anteriores, corrigir exercícios; qualificar e lançar em breve a escrita exigente das frequências mensais, é realmente exaustivo. Juntar a isto 6 aulas
diárias!
Necessidade obriga etenho de aguentar!

Nyangana
31-1-1976
Após quase uma semana, em contactos frequentes,com as lidas habituais, é fácil, pois , elaborar o meu Diário. Não posso atrasar-me e hei-de ser pontual, já que as minhas aulas começam
às 7 horas. Um quarto de hora antes, vamos todos rezar. O pessoal docente bem como o discente congrega-se todo no grande salão.

Acho bonito. Julgava eu que era só na abertura do ano escolar. mas pelo que vejo, é função quotidiana.
Quando nós chegamos, já os nossos alunos se encontram em forma, ao longo da quadra; no proscénio, ao cimo.tomam assento os professores.
A primeira parte é um canto religioso; em seguida, lê um docente um passo da Bíblia, a que segue a oração. Para o canto, leitura e prece, pode então usar-se mais de uma Língua: Inglês, Alemão, Africânder e Dirico.
Segue-se depois a ordem do dia, transmitida ali pelo Reitor
A isto que digo sucedem as aulas, todas pela manhã. Às 13 e 20,
acabam as tarefas.
Para mim, é coisa excelente!

Devendo estar no Liceu, às 6 e 45, é forçoso levantar-me às 5 e 30. Há coisas diversas que precedem as aulas, não contando já com a pobre estrada,que é, na verdade, um montão de empecilhos !

Se estivesse livre e fosse alcatroada, eram só 10 minutos. Mas como ela se encontra! Nem falo tão pouco no deplorável estado em que as chuvas a põem.
Embora reparada, uma vez por outra, há diversos lugares feitos em papas, devido às chuvas. O pior não é isso!

O gado que lá vive constitui decerto perigo enorme.
Lá vão dormir as cabras e os bois, aproveitando para descansar,

Chamo-lhe,com verdade, " sala de estar ", durante o dia e " e dormitório" apetecível, durante a noite

Nyangana (Namíbia)
1-2-1976

Hoje, foi uum caso sério a condução do meu Taunus. Arranquei da Missão, às 6 em ponto, mas cheguei mais tarde, por causa do Sol. Batia-me de frente e era tão vivo, que tolhia a visão.

Fosse apenas isso! Centenas de caprinos, confiados, em excesso, dormiam na estrada, ocupando-a inteiramente, o mesmo fazendo os enormes bois ,cavalos e burros.
Por outro lado, os poços de água abundavam também, constituindo, sem dúvida, obstáculo medonho.Julgava eu que algo aborrecido iria acontecer-me. Entretanto, Deus acompanhou-me ou
Santo António, correndo tudo bem.
Em razão do exposto, resolvi o seguinte.: levantar-me bem cedo e partir para o Liceu, antes que no hoizonte apareça o astro: talvez às 5 ou antes ainda, em vez das 5 e 30

Havendo eu de fazer isto, o que não acontece ,em dias de chuva ou céu enevoado, passo a dispor de casa particular (flat). Já ffalei no caso ao nosso Reitor. a quem pedi uma mesa e respectiva cadeira bem como a estante, para arrumar os livros.
Respondeu afirmativo, mandando um Colega indicar-me o local. É pequeno, sim,mas bastante airoso ;: um autêntico brinquinho!

E o fogão de cozinha? Alto lá com ele! Tem 4 bocas: é quase monumental!:Tivesse eu tempo de cozinhar!!
O guarda-fatos é enorme também, podendo ali dispor
quanto possuo, cá neste mundo.
À entrada, tudo aos professores!

Estas regalias são devidas, a rigor, ao isolamemto e a ser zona de guerrilha. É um sítio perigoso, junto da fronteira, onde a nossa vida se encontra exposta .Por esta razão, não querem o lugar, aproveitando-se dele os mais necessitados.

Por enquanto, vivo na Missão, deslocando-me sempre ao Liceu Shashipapo. Sinto-me lá bem, mas o contra das estradas, com tanto gado e lamaçais tremendos! Quando chove muito, é tudo poços de água e todo aquele barro a salpicar a pobre viatura!..
São os espinhos que a vida apresenta!

Nyangana
2-2-1976
Findou o mês inicial de 1976. Bom ou mau? Quanto a mim, se tenho só presente o caso pessoal, digo que foi bom, pois achei ocupação, embora, já se vê, num país estrangeiro. O pão é necessário como o ar que respiramos.

Além de mim. estão ainda esperando mais 5 pessoas, que eu intento ajudar, por se encontrarem na suma desgraça:um Campo enorme de Refugiados: minha irmã e família.
Já tenho mil saudades e, se não fosse que o tempo vai preenchido com inúmeras tarefas, não seria capaz de suportar esta ausência. Custa de morte ver a pobre irmã, num campo imenso de concentração. Tudo farei.para retirá-la o mais breve possível do incómodo lugar.
Era já tempo de moderar o labor, mas agora,infelizmente, é que ele redobra!.Enfim! Paciência! Confio em Deus que há-de compensar-me. Não rejeito a fadiga nem volto as costas aos grandes problemas que o tempo criou. O Céu, após a morte, vale bem as canseiras
O ambiente não é mau. Ontem, por sorte, houve um belo feriado. tendo um fim de semana que durou três dias. Nada mau, para começar!.
A comitiva especial dos chamados Serviços de Educação, a trabalhar no Cavango,veio até nós. É ela formada por 18 pessoas, entre as quais o Ministro ( preto); o seu Secretário( branco) ; o Inspector do Ensino e também o Secretário.

Houve almoço excelente ( copo de água); discursos e cantos.
A minha presença, no tablado escolar , em razão de ser de fora, é já conhecida.
Fiquei à esquerda do Secretário da Educação, que me fez ali várias perguntas e disse gostar muito do meu Portugal.

Nyangana
3-2-1976
Às primeiras palavras, a indicar o sítio e data precisa, julgo às vezes tratar-se de um sonho.Terei pensado alguma vez que meus grandes pecados me trariam, nesta idade,,a lugar tão remoto?
Não é muito longe, daqui ao " ao Tormentório" de que fala o Poeta, pois encontro-me já sob as cores protectoras da África do Sul.
Caso de sonho? A época dos sonhos perdeu-se há muito. Ao presente, vivo de realidades, algumas das quais se apresentam bem duras. Ainda hoje ocorreu.
Posto o carro em movimento, com destino ao Liceu, noto alvoroçado, que pende um tanto para a direita.

Vem-me logo o palpite: é furo com certeza! Mas a hora urgia.
Por outro lado, a chuva miudinha, a tal que molha tolos,
ia tamborilando, em cima do tejadilho!

Outra coisa havia , infundindo receio: a lama da via,tornada perigosa. Após a chuva, aquilo são papas!
Contudo, persisto! Dezasseis quilómetros não deitavam abaixo um Taunus 17!
Lá vou, pois, com tremendo esforço, puxando o carro para a minha direita, e eu para a esquerda!
Triste coisa esta, fonte de amargura, quando não desespero, nas passagens desta vida!

Cheguei ao detino.cheirando a borracha! Mal pensava eu que estava, nessa data, sem câmara de ar! era natural! Mas que fazer!
Os parvos não acabam, para tormento e quezília dos
que o não são!
Camaradagem boa isso não me falta, pois fizeram tudo,num abrir e fechar de olhos!
Hoje é terça-feira! Será, realmente, dia de bruxas?!
Não creio nessas coisas!, mas gosto da pergunta, por ser engraçada!

Nyangana
4-2-1976
Aproveito um furo, para dar cumprimento ao que
tinha resolvido. Presidi a 6 aulas, restando só uma.

Como tenho meramente o primeiro de Inglês, a minha tarefa é acessível, mas há dificuldades para estrangeiros. A maior, porém, neste momento, é levar os alunos a um labor conscencioso.
Por outro lado, a pronúncia é detestável! Começando agora, seria mais cómodo. É que isto afinal vem já da Primária, com defeitos adquiridos . As gentes indígenas têm
dificuldade em cingir-se exactamente a sons estranhos.
Os professores primários, de maneira geral, são pretos da zona.
Há outro contra: os estudantes são bastante moles,
por ventura, de hábitos velhos e do clima tropical. Esforço para eles não é coisa agradável. Verei, depois, como sanar estes males detestáveis.

Marcarei trabalho que será feito em presença.
No trabalho de casa, entendo, cá na minha, não dever confiar.
Classificando exercícios práticos, feitos na na aula, talvez se envergonhem, obtendo notas más, sendo então levados a preparar-se melhor
Se os não faço reagir, introduz-se o mau hábito, que nada me satisfaz. É meu dever prepará-los bem, A vida espera-os. Outro dado existe que pesa também; continuar aqui. Sendo bom o meu trabalho, não receio que o rejeitem; acontecendo o inverso, com provas falhadas…

Gostei sempre de brilhar. Questão de vaidade'? Talvez um pouco disso, por ser caprichoso e ter-me em bom conceito. Se realmente é defeito,Já nasceu comigo.. No entanto,há uma dose apreciável do que chamam consciência. Não pretendo
matá-la!
Nyangana
5-2-1976

Regressei do Liceu. após haver dado 9 tempos escolares. Apenas um furo, neste belo conjunto!
Por esta razão,venho com apetite, o que em regra acontece,
ainda que às vezes tenha poucas aulas.

È normal o facto, uma vez que o dejejum ocorre muito cedo: antes das 6 horas. Há um intervalo de quase 8 horas!
Corre assim a vida,nesta zona do mundo.

Aguentar e casa alegre, pois que não resido em minha casa! Apesar de tudo, não estou descontente.
Os alunos são cordatos, e os colegas,em geral, embora subestimem a Língua inglesa, afim de refugiar-se no seu Africânder, fazem boa companhia e grata camaradagem.
Só belas referências eu tenho a expressar.
Quanto às dificuldades, hei-de ser paciente e estudar com afinco. Ajude-me Deus e terei bom, êxito.
Aqui na Missão, decorreram ontem o anos de uma Irmã,
o que significa, em boa verdade, haver sido a festa, no Santo de igual nome.
Em Portugal, é diferente: festeja-se, a rigor, no dia do nascimento.
Estamos, pois, sob a égide alemã.
Há outras naçõea em que o mesmo se faz. Haja vista, por exemplo, a vizinha Espanha.

Sendo isto assim, para eu conformar-me, escolheria decerto
o 29 de Junho, dia de S.Pedro.
Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso! Vamos. pois, andando como os outros quiserem ou eles nos deixarem!

No serão desta noite, havia duas freiras que são bastante idosas. Coitadas! Fizeram grande ffrete, pois a essa hora, precisavam descanso!

Nyangana
6-2-1976
Não vou em crendices, mas se, na verdade, bebesse dessas águas, era de cismar! Hoje é sexta-feira. Os dias nefastos, para o povo ignorante,são precisamente as tterças e sextas. Coincidências apenas!

Pois o caso foi este: ao chegar ao Liceu, para a aula de Inglês, deparou-se-me, à entrada, enorme barreira de terra avermelhada. Melhoramento da via? Obras em curso, afim de
alinhar e fixar o portão? Fiquei indeciso. Olhando à esquerda, noto um desvio, já marcado por veículos. Talvez camiões.

Era ainda lusco-fusco, impedindo-me assim de observar os
empecilhos. Muito decidido, faço marcha à esquerda, mas querendo avançar, o Taunus recusou-se. Havia de lutar ingloriamente contra dois inimigos: as pedras quinadas e o terreno mole.
Este obstáculo danoso foi pior ainda. O carro enterrou-se e não houve mais avanço!
O preto de guarda veio logo ajudar-me, trazendo uma pá que facilitasse o labor presente. Longo quarto de hora em luta renhida, fez-me transudar, por cada abertura do meu corpo vencido.
Por fim, resolvi desistir. Comunicando então o sucedido, logo um colega se prestou a dar ajuda. levando o tractor. Socorrendo-se ali de uma corda gossa,fez com ela o engate e
lá viemos de recuo, pondo o carro em andamento.

Para memória do facto, ficou uma arranhadura, por cima da mala. Como ia de recuo, sendo curta a ligação, facilmente o
ocorreria o que então sucedeu.
Esta já lá vai! Veremos depois, quando outra ocorrer!

nyangana
7-2-1976
Hoje larguei os meus cuidados, indo em giro, através da Missão.
Foi superficial, devido à chuva, mas algo ficou para ser ampliado. Embora num ermo, aqui junto do Cubango, não
longe da foz do afluente Cuito, a paisagem é bela, ao menos por agora, que as chuvas abundam.

A cor dominante é o verde esperançoso, com tonalidades:
verde-claro: verde-escuro; verde-esbatido e muitas mais. O solo é criador e cheio, em pleno, de vitalidade.
A Missão Católica hhumanizou esta área que se estende ao longe
As terríveis espinheiras que tanto me afligiam, quando era refugiado, em campos enormes de concentração, foram logo substituídas por árvores umbrosas ou ainda frutíferas.

É um regalo para mim, após cinco meses de pesado castigo,
repousar os olhos.em copas sedosas, virentes e amigas, onde as aves se deleitam e constroem seus ninhos!

Como há-de ser belo,ao findarem as chuvas, passear nas galerias, entre o arvoredo. tão rescendente! Agora, não!
Tudo, aqui, ressumbra humidade!
Olhei, desvanecido, a margem de lá, que foi portuguesa
durante 5 séculos. Parace-me um sonho! Se triste eu andava, mais triste fiquei!
Razão para tanto'? Por ser independente?! Como?!
Gostaria, sim, que a Angola querida fosse livre e senhora,mas
por má sorte, é escrava de todos!

Não foi ela transformada em enorme braseiro?!Fala-se de Pátria, ressoando nos ouvidos a palavra povo, mas estou convencido de que nem uma nem outra são causa do que vai.
Há, decerto, interesses alheios, que hão-de ser garantidos, à custa dos infelizes.! Noção de Pátria não existe ainda, em tribos africanas.

O que vejo e me entristece é a ambição desmedida, explorando cavilosa este povo infeliz!
As grandes potências!
Se Angola tivesse chefes que se batessem por ela, com alto ideal, jamais consentiriam o genocídio cruel dos povos angolanos!
Lembro-me a propósito, das guerras liberais, travadas em Portugal, no século XIX, entre D. Pedro e D, Miguel. Que
ffez este chefe, após Almoster e logo Asseiceira?
Decidiu afastar-se e viver no exílio, para não enlutar, muito mais ainda a Pátria que o amava.
Que se faz, por aqui?

Pedem-se tanques, viaturas e canhões que destroem, sem dúvida os seus melhorea filhos.E quem os paga?
Esse nesmo povo que dizem defender, é que há-de pagá-los,
com dinheiro e sangue!

Nyangana
8-2-1976.
É domingo, dia do Senhor, o que permite dispor de mais tempo, em fim de semana. A partir de sexta-feira, às
12,45, não tenho mais aulas, até segunda-feira, às 7 da manhã.
Quanto a fins de semana, embora me não queixe, todos
eles, na verdade, são bem amargos! O caso rrevela-se do seguinte modo: pego a trabalhar, logo cedinho e só largo a faina, para comer. !
Tenho,.realmente, várias coisas a fazer: preparar o Inglês e estudar ainda Alemão e Africânder. Não é apenas vaidade! Posso dizer. com grande transparêncuia, que se trata mais de uma necessidade.
Quem ministra o ensino, por estas regiões, utiliza apenas a Língua Africânder.
Quanto às outras duas, principalmente o Inglês, são faladas tambem, mas fogem de usá-las na conversação. Sendo isto assim, estou por ouvinte, quando junto dos outros, não percebendo o assunto que versam.
É muito aborrecido! Mãos à obra, pois, já que diz o provérbio: Querer é poder!
Os analfabetos falam Dirico, Língua indígena, que tem a mesma raiz do chamado Cuangar, falado em Angola.
Que fazer então? Dormir? Não tenho ffeitio que permita isso.
Por uma via, não é pior, realmente, haver o tempo ocupado: emergir do que lá vai, chegando, por vezes, a olvidar o que entristece e fundo amargura! É frequente lembrar-me dos entes queridos e cair, desde logo em funda prostração, em que não faltam as lágrimas.

Os casos de Angola, junto com as incidências, têm-me
feito a vida bastante amargosa. Fora apenas a minha! Mas são aos milhares os Brancosiinfelizes, e aos milhares também os Pretos e Mulatos. Todos à espera não sabem de quê!
Felizes, mil vezes, todos aqueles que largaram há muito!

Nyangana
9-2-1976
Aproveito um intervalo, afim de lançar as minhas breves notas, acerca de hoje.

Noite de chuva, a que seguiu mamhã do mesmo jaez. Quase tive receio, para não dizer medo, olhando atento para o relógio! Eram 5 em ponto! Os trovões sucediam-se, a breve espaço, e os relâmpagos frequentes cruzavam o céu, em todos as sentidos
Noite escura ainda, com céu de chumbo, preparo-me de espaço e, uma vez aprontado, sigo pelo corredor,espreitando, com empenho, o piso a trilhar.
Tudo alagado!
Como posso deslocar-me â sala de jantar?! O guarda-chuva e a capa oferecem ajuda, mas o vento porfia, infiltrando a água por todos os lugares. Impossível desistir, que não se trata de opções! É seguir já e cara alegre!


Dizem na minha terra: Quem quer bons ofícios aprende-os. De que vale, pergnto eu, recordar enfermidades e olhar para os anos que passaram sobre mim?!

Culpar talvez o 25 de Abril? Para quê?! Era perder tempo! Seria, de facto, o culpado verdadeiro?! Ai!,25 de Abril!
Receber-te-ia, de braços abertos, se viesses para bem e melhor do que estávamos! A verdade, porém, é que tudo piorou!
Farás tu milagres, no tempo vindouro?!
Quando acabará essa negra tragédia que trouxe a desgraça a milhares de Portugueses, dentro da Pátria e fora dela?!

Bem o querias tu, mas alguém te amarrou!
Disse o Divino Mestre:: Pelas suas obras, conhecereis as pessoas, como as próprias árvores se conhecem também pelos seus frutos.
Estou convencido de que Portugal se leventará, pois confio ainda na sinceridade, boa fé e patriotismo de muitos Portugueses que hão-de ser o fermento da Pátria restaurada!

Estou longe, muito longe do meu belo país, mas trago-o sempre no coração, onde lhe presto, diariamente,um culto esmerado, em altar primoroso que há muito nele ergui.

Nyangana
10-2-1976
Catorze horas e meia, num dia sem chuva,o que é já para admirar!
De facto, juntando o mês passado, a este de Fevereiro, eleva-se o total a 411 dias, havendo apenas 7 que não deram chuva. Houve, pois 34,em que ela foi assídua.
Ainda ontem, elevou-se exactamente a 14 milímetros, havendo chegado antes, ao máximo de 30.

Já ando saturado.
No que me respeita, foco somente 16 quilómetros que tenho de percorrer logo cedinho! Essa deslocação é problema de monta, no curso da minha vida.
Faça embora escuro, já começa o meu labor.Por esse motivo, utilizo,às vezes, a lanterna electrica. Depois, vem a picada
Nesta época de chuvas abundantes, fica toda empoçada, enlameando-se o carro e dando-me a impressão de que saí dum charco.

Ele que, afinal, sempre teve garagem, e nunca, em vida minha, foi maltratado, girando, em regra por estradas asfaltadas, vê-se agora na velhice, metido neste inferno!
Nem parece já o mesmo!
A própria cor se ocultou já, sob manchas engrossadas, pela grande frequência das viagens feitas. Além disso, o que torna mais sério o caso pessoal. é o gado em barda que passa o tempo deliciado na estrada: bois e vacas, burros e cabras, etc.
Hoje. então, foi uma fartura! Eram rebanhos e mais rebanhos, uns após outros, sem jamais.terem fim!
Depois, as manadas, em número superior!
Como o piso estava enxuto, fizeram da via o estábulo ideal!
É lugar de repouso, sala de estar e também de convívio, refrigerador e às vezes estufa.
De noite ainda ou já de manhãzinha, são para mim os casos mais duros.
Hoje, estanquei, a escassos dois metros, em plena estrada! Com maus travões, iiria contra os bois, o que era um desastre!
Deitados na via, sucede, por vezes, descobrirem-se apenas , quando já é tarde. Várias pessoas ali têm morrido , por causa disto.

Nyangana
11-2-1976 ,
Para estas picadas, é a viatura forte castigo. Melhoram-nas amiúde,verdade seja dita, mas não havendo alcatrão mais vale, talvez, estarem quietos. Se não chovesse, corria tudo bem, mas assim!

Poços de água turva, barro pegajoso, harto escorregadio, irregularidade, ao longo do piso, eu sei lá quantos casos se apresentam!!
De meneira nenhuma se adaptam a isto os frágeis automóveis! Extremamente baixos e muito delicados, ao fim de um mês, andam já miseráveis. O meu Taunus, agora,figura um cangalho!

Estimadinho como ele andava, em tempos decorridos,. que sentirá hoje? Bom é não sentir!
E quanto a sujidade?! Isso é um pavor!. Até me vem pena! Bem eu sei que não se queixa, mas um bom companheiro deve ser bem tratado.
Vai para 14 anos que ambos nos entendemos, às mil maravilhas.
Custa-me deixá-lo e, se pudesse, realmente, jamais o abandonava. Tem um rico motor e nunca, por excepção,
me deixou em pouco

Catorze anos de convívio. sem nenhum desaire, é coisa a pesar no neu coração! Mas a vida é assim: aquilo que mais amamos é o que temos de largar primeiro que tudo.
Já penso, na verdade, em comprar outro carro,mais em harmonia com estas estradas: um Toyota a gasolina.
Pedi informações e não fiquei descontente: dois mil e quinhentos randes, indo o consumo a 8 ou 9 litros, por 1oo quilómetros.
Óptima ideia!
Se eu, por ventura, aqui me detiver, seguirei este rumo.
Caso contrário, vou pedir ao Taunus que aguente um
pouco mais, até ao final.

Nyangana
12-2-1976
Hoje, realmente, estou em dia não. Justificável? Talvez! Além de várias causas que vão aparecendo e aumentam em número, há uma delas que pesa sobremodo.

Às 3.30, já estava preparado!Havia, pois. um engano, equivalente a duas horas. Este nervosismo que se fez habitual, ao tornar-me refugiado, quero eu dizer, assim que os homens bem como a sociedade lutaram contra mim, sem a mínima razão, alterou-se o meu pensar e quantas vezes , o próprio agir!

À hora exposta, dirijo-me prestes à sala de jantar, para leve refeição. Bem escuro estava e me parecia o
espaço e o céu. Outra coisa surpreendente: ausência de gatos, postados em fila, na berma da passagem.

Entretanto, avancei resoluto. Qual não é o meu espanto, ao tentar abrir a porta,, sem que esta cedesse! Olho então para o relógio, descobrindo o engano.
Três horas e meia, em vez de cinco e meia! Bonito serviço!

Claro! Voltei à procedência, fazendo algum tempo, mas já sem dormir! As consequências é que foram desastrosas: dei sem esforço. as primeiras 7 aulas; à seguinte, não me tinha já de pé; quanto à 9ª, é o que
estou para ver.
Aproveito o intervalo, melhor direi, o furo e não sei
bem como isto vai saindo! Com certeza, julgo eu, nenhuma obra-prima O que for há-de ver-se!

Receio o volante, quando regressar. A picada indigesta vem bulir-me com os nervos! Caramba! Tanta maçada, para morrer e largar, ao fim de pouco tempo!

Se ao menos for bom o lugar que me espera, depois desta vida! Deus é quem sabe, mas que o meu desejo se transforme logo em pura realidade.

Nyangana
13-2-1976
Passados 8 dias, perfaz o Isaías os seus 12 anos.Se tudo corresse bem, estava agora no 2º ano, com aproveitamento, o mesmo sucedendo, quanto aos iirmãos,
O 25 de Abril, melhor diria, os seus autores e operantes desarranjaram a vida a milhões de pessoas, deixando-as sem ventura.
Foi uma pena e, ao nesmo tempo, horrendo infortúnio
O pequeno adolescente, dotado como é, tirava um curso bom , abrindo pois um caminho seguro e de belos augúrios. Agora assim,tudo fica em descontrolo!

Por todas as razões, sinto pena dos meúdos, que ficam sem curso e, juntamente,sem bens nem recursos.
Que desgraça, meu Deus! Nem casa nem lar, nem abrigo nem nada!
Para maior desventura, não posso estar presente,no dia aniversário nem mandar uma lembrança
Trezentos quilómetros, estando a via pública em más condições! Além disso tempo de chuvas! Como a vida é amarga!
Dá-me a impressão de que tudo se conjuga e aponta a um alvo: prostrar o meu espírito! Contrariar sempre as minhas aspirações. Sepultá-las para já na tumba do silêncio.
Andará nestas coisas o intento de Deus? Se eu tivesse, realmente, a certeza disso, conformava-me logo. Vale muito mais perder este mundo, ganhando o outro.

Disso não duvido! Entretanto, às vezes, é o demónio do inferno ou alguém por sua vez, que actua sobre nós, limitando-se Deus a permitir-lhe a influência. durante algum tempo e em certa medida.

Senhor e Providência, por que dais tanta larga ao Vosso inimigo ?!
Vós sois recto,justo e santo, misericordioso!

Não vedes como é dura a vida neste mundo?!
Refiro-me,nesta hora, aos refugiados de Angola. esses grandes infelizes que ninguém senão Vós é capaz de compreender
O mundo venal olha impassível e continua folgando!

Nyangana
114-2-197

Como hoje é sábado, não tenho aulas: aproveito as 7,3o, para fazer o meu Diário. Aqui estou, pois, rentinho ao Cubango, ESTE RIO AMIGO, QUE ACOMPANHO DELICIADO, HÁ TANTOS MESES JÁ.
Sentado no chão, onde pus um lenço, escrevo ansioso, em grosso caderno, apoiado no joelho, a 1 metro da água.
Virado a Nascente, fica Angola à mão,esta Angola querida que os homens danificam. Vão para ela os meus olhos saudosos e, com eles, também, o pensamento, a que segue o coração.

Dalém, 500 anos de História, a voz dos mortos, uma epopeia tão rica e bela, que jamais houve igual! O sangue derramado, o heroísmo vivido, o Evangelho anunciado, a Língua de Portugal falada e cantada!

Nesta data, há vivos no Cuangar que esperam e me lembram, a toda a hora.Por eles sofro, me empemho e trabalho. Daqu,i ganho o pão, mas tudo é estranho, o que faz entristecer e, às vezes, chorar.

Inda ontem, sucedeu haver linda festa, na EscolaTécnica, homengeando uma velha Irmã, que deixou o Magistério, ao qual se doara uma vida inteira.Quarenta e cinco anos!.
Presentes ao acto, viam-se, além de outros: todos
os docentes, o Inspector do Ensino, o Secretário e outros mais.
Havia muita gente, avultando pelo número, o Sector Primário. Não faltou, bem entendido, o casal de Chefia, aqui no Dirico. Houve cantos e ritmos que o batuque animava. Não faltaram palmas nem bravos de apoio!
Foram ovacionados os chefes de grupo, em número de 12.
A Irmã Religiosa distinguiu, com medalha, cada um dos eleitos.
Em seguida, pelas 20 horas, fomos para o convívio, junto àrresidência do nosso Reitor.
Foi este muito amável, em modos e acções, oferecendo aos circunstantes um belo " copo de água "

Excelente o moral que reinava,à nossa volta! Conversa animada e risos francos não escassearam!
Só eu passei mal as três longas horas que jamais tinham fim!
Vi claramente encontrar-me descentrado, por tudo ser estranho
Fala-se Africânder, que não capto ainda,trate-se embora de aprendê-lo já.
Sentado a um canto, meditava longamente, enquanto as lágrinas, atrevidas e prontas, me corriam pelas faces!
Dentre os presentes, era eu, na verdade, o único ser humano que me sentia isolado! Daquilo que observava, nada entendia! Comidas e bebidas não eram para mim, por causa dos anos.

Os risos agudos que assaz me irritavam, não pude ali justificá-los. Efeitos da situação que o refugiado herdou?
Fumavam à grande tanto eles como elas, mas eu, afinal, que não suporto o cheiro, deveras nauseabundo, tive de aguentar!
Educaram-me assim! Noto agora, com espanto e dor, que é tudo ao contrário!
De que lado, então, se encontra a verdade?!
Eu era ali um tipo excêntrico,

Nyangana
15-2-1976
Hoje, é Domingo, dia do Senhor!
Já li por alto jornais e revistas, na Língua Inglesa. As coisas, em geral, são agora diferentes de quando vivia no espaço português.
Quanto sinto e penso hei-de exprimi-lo na Língua de Albion. Por isso, tenho de ler muito, ler sempre , sempre e não esmorecer!
Quando estava em Portugal ou mesmo em Angola, explicava em Português, se as dificuldades surgiam pela proa.
Esse tempo acabou e, se me escapa algum termo em Língua Portuguesa, vejo logo a reacção, como é natural!
Depois de haver lido, atirei-me ao Diário, a que sou fiel e muito dedicado, há vários anos.
Assentei. de vez, não passar em branco, um dia que fosse! Por esta razão, com vontade ou sem ela, doente ou sadio, triste ou alegre, é ele que regista, de modo fiel, aquilo que vivo ou sinto na alma.

É que eu, modéstia à-parte, prezo a verdade! A mentira, para mim, não tem cotação nem conheço os seus trâmites.
Quanto seja hipocrisia, maneiras estudadas, falta de sinceridade e doblez de carácter, não está de harmonia com o meu pensar!

Se houve desdobramentos, alguma vez na vida, a culpa não foi minha! Pessoalmente, detesto a hipocrisia, amando a transparência. sinónimo de tudo o que julgamos ser bom.
Aparentar uma coisa e ser outra à distância ou à
contra-luz, julgo isso fraudulência, quebra de carácter, falta de dignidade.

Se outra qualidade não houver, portanto, no meu Diário, em dois pontos exactos, ficará por modelo: verdade total e sinceridade, que eu amo altamente, e amor acendrado à Língua Portuguesa que eu sempre cultivei, com toda a paixão
Não quero, não, de modo nenhum, que este belo
idioma seja luz sem brilho, ao sair da minha pena.

Esta Língua de heróis, esta fala de santos, preclaro
instrumento de expressão imortal, na pena de Camões e de tantos poetas como prosadores, não quero jamais que desmereça. em minhas débeis mãos!

Suave e meiga no amor, sonora e forte na guerra, harmoniosa e doce, nos lábios maternos, esta Língua rica, sem igual sem no mundo ,tão bela e fascinante, quero eu prezada, utitlizando-a sempre, com desvelo e ternura.

Nyangana
16-2-1976
O mês passou do meio e agora corre célere, dirigindo-se ao fim. Aproximam-se as férias e, antes disso, os exames de Março.
A minha impressão, à data em que estamos, é que os nossos alunos não têm receio, por inconsciêcia ou ingenuidade.
Faço quanto posso,afim de prepará-los, mas parte
das turmas não corresponde ao meu esforço.
Regressei agora da turma D . Aquilo é um pavor! Para
se mexerem e pôr-se em andamento, é grande maçada!.

Muito pior ainda é, sem dúvida alguma, a
exposição do assunto,que não tem pés .nem cabeça. É
gostoso saber que as outras turmas são diferentes.

Verei, no futuro, como proceder, para correcção.
Espero, confiado, que as outras turmas correspondam
melhor ao meu grande esforço

Tenho a meu cargo 5 turmas de Inglês.
Havendo boas notas, ficamos satisfeitos e eu calo ao
mesmo tempo, a voz da consciência. Por outro lado,
sendo preciso continuar aqui, o que parece provável,
já não tenho receio de ser exonerado

A vida, afinal, é uma luta renhida, em que triunfa o mais
forte e bem dotado. Nestas circunstâncias, ficam de lado
os que menos produzem e não geram lucro.

Que pode um estrangeiro, fora do seu país?!
Nem o compreendem nem procuram entendê-lo nem o
querem fazer. Um estrangeiro é como o intruso. Logo
que o dispensem, tem de marchar!
Só luzindo muito, mas isso é de poucos!

Nyangana
17-2-1976
Seis e meia de hoje pela hora regional. É
cedo,realmente, mas a verdade manda imperiosa
que se diga o que é direito e balance o que sinto.
Madrugar assim, para quem segue o hábito, já náo é
sacrifício.
O meu problema não consiste em fazè-lo, pois isso é
ingrato. A dificuldade está no dormir. Acordo amiúde,
em vez de passar a noite de uma assentada

Bastariam 6 horas ou talvez menos. Entretanto,
por causa do nervosismo, torna-se impossível. Após a
fuga de Angola e já um pouco antes, nunca mais dormi
bem.
O caso agravou-se, imensamente, após 74. Nunca
mais houve paz… jamais tranquilidade!
Sendo isto assim, o meu caso pessoal tendie a
complicar-se, Dificuldades novas, mais
responsabilidade, o problema das Línguas, a minha
própria idade!.
Começar… Tudo contribui, agindo fortemente.
Depois, a situação deprimente da minha família, detida
no Cuangar… o futuro dos sobrinhos, com os estudos
parados!
Transferindo a estadia para o Liceu Shashipapo,
gastaria, por mmês o montante exacto de 60 randes: 3o
para comer e outros 3o para dar ao preto que chamasse
em ajuda.
O ideal, na verdade, seria pessoa da minha família, mas
é impraticável, devido às circunstâncias.
.
O supra-sumo era arranjar trabalho para os pais
dos meúdos, fazendo estes os seus estudos aqui.
Deus ajude, pois. os que tanto precisam, nesta
hora tão grave!
Deus é Pai e não padrasto ou mero benfeitor, Ele
dói-se de nós e actua sempre em nosso favor.

Nyangana
18-2-1976
Veio mesmo a propósito! Entretanto, nem é
terça nem sexta-feira! Uma arrelia bem escusada, na 2ª
aula,
A turma E do 6º ano só faz que estuda.

Andava já mal disposto, havia algum tempo! Além disso,
trabalho de casa também não é com eles! Rir e folgar e
assistir à aula, de maneira passiva…continuar, durante
ela. os trabalhos marcados, na aula anterior! Isto assim
não tem jeito nenhum!
, Agora, como vejo, não é questão de maneiras,
melhor direi disciplina.
É antes desinteresse, leviandade imperdoável. Mas isto
indispõe-me, já que ponho seriedade em todos os meus
actos.
Com este ambiente, jamais é possível o avanço
intentado.
Ora, a verdade é que faço amanhã 58 anos. Boa
preparação, não há dúvida alguma! Para apetite, não
há coisa melhor! Deixar correr? Não tenho feitio!

Já nasci com este condão
Ao sair da Namíbia hei-de levar a minha consciência
de modo que não perturbe. Por outro lado, como reflexo
de um dever cumprido, gosto imensamente de que as
referências a meus actos não sejam desagradáveis.
Que faz um professor,quando os seus alunos se
desinteressam?! Não tem outro meio senão largar a
pasta! Escolher outro ofício! Mas isso agora já não é
para mim!
Comuniquei ao Reitor o que havia ocorrido, indo
fulo e nervoso. Ele não pôde acompanhar-me, logo em
seguida, mas disse que agiria, logo que tivesse aula
com a tturma em causa.

Será,pois, amanhã, no primeiro tempo.
Mau dia, na verdade, para a festa de anos! A vida,
porém, é contrária ao desejo e, em vez de carinhos,
traz amargos de boca.
Daqui a momentos, vem a 4ª aula, para a turma
vizinha ( D ).
Que não deixe influenciar-se, visto que a asneira é
contagiosa! Se não reajo, desde agora, quanto mais
tarde pior vai ser! Para grandes males, grandes
!remédios!.
Preciso paciência e domínio de nervos!

Nyangana
19-2-1976
Em dia aniversário, que posso escrever?
Falar da minha vida, como triste exilado? As mágoas
são tantas… minhas e de outrem!
Não vale a pena aumentá-las agora ou fazer-lhes
referência! Vitórias e triunfos?i Mas onde é que os
houve, após o ano malfadado -1974?!
O que Portugal, em boa verdade, precisa a valer,
não é do tal 25, pelo menos como foi realizado, até há
pouco tempo
A minha Pátria necessita, sim, de pão e amor, de
tranquilidade, paz e bem-estar. É isso precisamente o
que está escasseando.
Falta.pois, assunto ou melhor direi, tenho assunto
a mais. Casos sérios me afligem, tirando por vezes a
oportunidade para dormir. O maior de todos eles
respeita à família.

Cinco pessoas, esperando por aquilo que nnão
volta mais: os bens perdidos, uma filha assassinada,um
lar destruído, um cortejo de misérias, avivando-se até,
dia após dia. Estão junto ao Cubango, não longe da vila
que chamam Cuangar.

Que solução exequível poderei facultar?
Tenho pensado, a ver se encontro saída lisonjeira
Hoje, apresentei o caso ao nosso Reitor. Respondeu
gentilmente, garantindo logo que iria tomar em conta o
problema em causa e tudo fazer, para ajudar.

Sugeriu até que podia,desde já, trazer alguns, para
junto de mim. Separar a família!... Meu cunhado sem
emprego!
Não é solução nem encontro saída!. Que Deus
infunda em mim um raio do Céu, para ver mais longe.
Se ele tivesse um curso ou, pelo menos, soubesse
Inglês!
Mas assim! Motorista! O grande problema é o
terrorismo!
Assim vão os meus anos! Os tais 58!

Nyangana
2o-2-1976
Hoje, tenho mais um ano, pois conto 58! É
um passo em frente, que aproxima da morte e me faz
pensar!
Bem aproveitados? O que importa na vida,
, primariamente, não é arrebanhar, entesourando o
metal que é fruto do suor! Também ele, sim, faz parte
da vida e bem tolo é quem pensa diverso!

Seria, naverdade, tentar a Deus, se eu nada
fizesse , esperando no entanto que Deus me valesse!
Condenável é viver somente para a matéria ou
ainda colocá-la,indevidamente, em plano superior. Deus
e a eternidade, acima de tudo!

Entretanto, não havendo o necessário, faz-se má
figura, baixando a um nível, impróprio do homem! Foi o
que sucedeu, ainda ontem no Rundo.
Contava ir hoje, mas torceram-me as voltas!
Conveniência para alguém?

Pois, em dia de anos, lá fui à cidade, no carro do
Liceu. Poupei gasolina e maçada também, mas veio um
contra: esperar por alguém. Coisa assim enfadonha
julgo não haver! Mas,enfim, quem precisa sujeita-se.

Registar o carro foi o que ali me levou. Afinal,daquilo
que esperava nada consegui. Obtive o Permit, até ao
fim do ano, para mim e três sobrinhos
Comer e beber é coisa em que náo falo! Se eu
não tinha dinheiro! Em dia de anos, bebi, por junto,
uma laranjada: houve alguém generoso que ma
ofereceu!
Um soldado amigo, sul-africano, queria, a todo o
custo, pagar o almoço, caindo do alto o meu prestígio
de professor!
Nada mais comi, Diria melhor: não comi nada!,bebendo
apenas a modesta laranjada.
Foi assim a festa do meu aniversário!

Nyangana
21-2-1976
A vontade é nula,pois estou doente. O sol do
Rundo, por causa dum preto que não foi pontual,
constipou-me seriamente,juntando-se a isto a horrível
"malária". Não tenho (a) certeza, mas pelos sintomas,
julgo ser ela que entrou em acção

Eu, por minha parte, confiei demasiado. Que tenho
ingerido como preventivo? Nada! Daqui para o futuro,
vou tomar comprimidos, todas as semanas.Poderá ser
tarde, mas enfim!... Iniciei já ontem o combate renhido
contra a malária.
De facto, nesta região, há muito mosquito. Lutarei,
pois, enquanto o esforço me pode ajudar!
É que momentos virão, em que tudo é inútil.

Chegando,por fim, a extrema hora, que o Pai do Céu
destinou a cada um,
melhor diria, talvez, ao chegar aquele dia, em que a
nossa missão finalize já, então é largar!

Nada valem remédios nem cientistas! Só um
milagre,mas isso
afinal, apenas Deus o pode fazer,
porque é Omnipotente.
Os meus sintomas são: dor de cabeça,
amolecimento de todo o corpo, que foge do trabalho:
escorrimento das ;fossas nasais, desarranjo intestinal e
falta de apetite.
Verei brevemente o efeito dos remédios, aplicados
em mim.
As doenças, ao longe,sem a presença amiga das
pessoas queridas, são coisa terrível. É que elas
redobram, ao triste pensamento de que estamos sós!

Espero em Deus que em breve reaja e possa
apresentar-me no lugar do trabalho, como no passado.
Nem sequer estar doente já é permitido!.
Que vida a minha! Terei tempo disponível, para morrer
e partir?!
Se o não tiver, hei-de arranjá-lo,custe o que custar, doa
a quem doer!
.
Nyangana
22-2-1976
Os sinos da Missão repicam agora,
, convidando os fiéis a louvar a Deus, É um toque festivo
que infunde alegria, mas eu, infelizmente, quase o não
entendo! Estranho quanto dizem, se não for de tristeza.

Vendo rir alguém, acho coisa excêntrica e só me
convence a força da evidência.
A condição humilhante de pobre refugiado marcou
-me para sempre. O medo e a suspeita são, nesta data,
o pão de cada dia.
Contratempos vários, insegurança e incerteza - a água
abundante, para amassar aquele duro pão!

Que destino é este, para tornar-me infeliz e pobre?!
Que má sina a perseguir-me, tirando à passagem,
o que me pertence, por direito natural?! Pois não
vejo os animais,impantes de gordura, sinal indubitável
de que nada lhes falta?!,

Ainda há momentos, indo eu de caras para o
refeitório,afim de tomar o dejejum, encontrei 6 gatos,
distribuídos em dois grupos : o primeirom com dois, e o
segundo, quatro.
Atentei devidamente. para fixar bem o seu exterior,
anotando pormenores e vendo reacções

Qual história?! Gordos e anafados acusam bem-
-estar, causando emulação! Se os punge alguma coisa!
Que lhes importa a Suapo e os seus ideais?!
Um deles espojava-se no chão que, fresquinho e
fofo, lhe gerava prazer.

Os bois e as vacas… disso nem se fala! Alguns
pouco vivem, mas que lhes importa?! Eles não sabem!
Vivem felizes na inconsciência.
Apenas o homem, que é o rei da criação, havia de
ser o mais torturado entre todos os seres da Natureza!
A culpa é dele! Se nãp fora o orgulho, a ambição
e a inveja!...

Nyangana
23-2-1976
A meus trabalhos normais, que já eram em
barda, juntei mais um: rever diariamente pelo menos
três Diários, pois é longa tarefa que está por
fazer.
Declaro ser pesado este fardo enorme que tomei
sobre os ombros mas, se agora o não fizesse,ignoro
para já,quaando seria o caso. Com efeito, ascendendo
a milhares o número de tais Diários, só ao fim de vários
anos, terei feito a revisão.
À razão de três por dia, representa ao fim do ano,
cerca de 1100
A minha tarefa apresenta-se já do modo seguinte:
preparar o Inglês e fazer leituras, bastante assíduas,
na mesma Língua; tirar dificuldades que surgem,hora
a hora; estudar e praticar Alemão e Africânder; pôr em
ordem final os Diários passados, não deixando por fazer
o do próprio dia.
Aos sábados e Domingos, alargo-me um pouco
aumentando-lhes o número.
A minha vida aqui, é semelhante à do monge.
Até parece - e não me engano - que vou contradizer o
princípio universal: o homem é um ser gregário.

Sozinho no meu quarto, horas esquecidas, estou
agora mais só que em toda a minha vida.

Até o clima isola. Não falo da Língua e do céu que
me cobre. Com 58 ano, alguma vez, no passado, estive
suando, no mês de Fevereiro?! Pois agora, no meu
quarto, estou sem exagero alagado em suor! Mas não
importa!
O meu sacrifício aproveitará, sem dúvida.
A certas horas, porém, invade-me a tristeza e fico
prostrado

Nyangana
24-2-1976
Dificuldades? Aparecem bastas, como é de
imaginar. Entretanto, nem tudo são espinhos! Há certos
aspectos que me agradam aqui. Só tenho pena de
chegar tão tarde!

Coisas da vida! Passava lá isto pela minha cabeça! O
mundo, realmente, dá imensas voltas!

Ninguém diga jamais: Desta água não beberei!
Alguma vez eu pensei que um dia longínquo, após os 50
anos, viria ser professor de Língua Inglesa, contratado
e pago pela África do Sul?! Estava eu bem longe de
imaginá-lo sequer!
Apesar de tudo, a minha situação. como ela se
apresenta, no momemto actual, acentua mais ainda a
negra solidão. Tudo é estranho quanto me rodeia!
Cada vez mais só continuo o meu caminho, imposto
agora pelo Abril de 74! É o que se chama, a propósito:
sofrer e lutar, para sobreviver!

Retomando o fio: o que mais detestava, em
terras de Angola,,após a Revolução, aqui não existe:
indisciplina e desrespeito, durante as aulas.
Lá, eram certos brancos, para não dizer alguns
mulatos ( alunos ) que abusavam do prestígio (às
vezes bem pouco! ) e ressumavam enorme importân-
cia, por todos os poros!

Deram mau exemplo que breve frutificou.
Quanto isso me indipunha! Tais casos,porém, não os
tenho aqui! A juventude é respeitadora! No tocante a
isto,vivo satisfeito. Era um fardo enorme que agora
não pesa!
Estremeço horrorizado, ao lembrar-me das aulas,
em terra angolana, após o tal 25! Um grande calvário
para os docentes… uma vergonha sem nome para os
alunos ( não todos )! Para as senhoras,então!...Só visto
e observado!
Quantas delas não houve que, mlnadas já pelo desgosto
nunca mais apareceram, chegando às vezes a ficar
doentes! Outras porfiavam, sabe Deus por que modo,
e em que duras circunstâncias!

Quanto aos alunos, é deveras incrível o que então
havia! Escreviam nas paredes, condenando A e B;
exigiam feriados; reinava a anarquia, propalando alguns
deles o direito da liberdade.Nem Polícia nem Exército!

A Escola Técnica de Silva Porto foi assaltada por
várias vezes, durante a noite. As portas das aulas já não
tinham chave. Autoridade não existia. porque tal facto
lembrava o passado - a era colonial. Resquícios de
ordem era logo fascismo que devia banir-se,
exterminando a PIDE.

Que grande sacrifício, Deus e Senhor!
Como foi possível chegar o País a este ponto de
extrema vergonha! O que a gente ali passou! Ainda bem
que saí de lá! Sem África do Sul, morríamos, ,à fome!
Pode ser que agora entre tudo nos eixos!De outra
maneira, Angola será um mito e um cemitério!

Que o novo Governo traga em breve a paz, ordem
e bem-estar.
É preciso Autoridade e meios de repressão,
embora moderada. Caso contrário, todo indivíduo se
julga no direito de fazer o que deseja.

Nyangana
25-2-1976
Corrigiu-se um Exercício. aplicando as
preposições, na Língua Inglesa. Discutiram os alunos
mostrando em grupos as suas prederências. Por fim,
,chegou-se a um acordo, mais ou menos geral. Hoje,
cifrou-se o caso, na preposição correcta, para a frase
deguinte: I am sitting… verandha.
Uns optavam por in; outros,por on; ainda outros,
por.at.
Deixei-os, primeiro, exteriorizar, o sentir individual,
vindo finalmente a minha decisão.
Expus em breve a doutrina geral, acerca do uso de
cada uma das três, acrescentando em seguida que o
uso da Língua é superior às regras a que às vezes se
opõe.
Está o caso em frente. O citado uso manda, na
verdade, utilizar on,em vez de at ou in, Por isso, dizem
os Ingleses: I am sittig on the verandha..

Sinto pena e saudade, por não usar a minha própria
Língua, naquela doce canção que os meus ouvidos
ouviram primeiro,quando bebé!.! Não havendo
portugueses,nesta região, onde eu me encontro,

com quem hei-de falar esta Língua fascinante que é
falada e rezada, nos quatro cantos do mundo e a mais
espalhada sobre a face da Terra?!
Este idioma vibrante que soou nas batalhas,
chorou em naufrágios, gemeu nos idílios e murmura
nos altares, tecendo louvores ao Deus-Criador?!
Esta fala sonora que retumba e canta, chora e
segreda,na Epopeia Nacional?!
Emudeceu para mim! O que me vale, â data.é
não deixar de escrever, mas queria ouvi-la… certificar-
me, ao vivo, de que ela não morreu!

Nyangana
26-2-1976
Agora, nas aulas, há treino avivado, sobre as
formas verbais: interrogativa, negativa e contínua.
Uma coisa só vista! Repito, insistindo, milhares de vezes
em casos idênticos e, ao fim de tudo, quase nada feito!
Os mesmos erros… iguais hesitações…
problemas idênticos!

Que grande maçada! Às vezes, perco a paciência!
Aquela moleza!
Não sei.a rigor, se é estupidez ou grande preguiça!
Confesso, realmente, que isto para mim é fraco
desporto! Gosto de ensinar, mas sendo débeis os
membros discentes, tanto faz insistir como estar
dormindo!.
Será impressão minha…Engano, talvez, mas em
cada turma, nem um terço preparo! É certo, realmente,
que já mo garantiram, ser deficiente a preparação,feita
na Primária,
No entanto, há sempre dois ou três, quando não
mais, que vão assimilando. Terei de insistir, uma e mil
vezes, pois é esse o meu dever!

Há duas turmas que têm alunas. Estas, então!...
Não faziam cá falta! Já vieram tarde e podiam ter ficado.
Alguém as escolhera, possivelmente, entre as mais
destituídas? Bem o parece.

Quanto aos rapazes, há sempre alguns que
aliviam a classse. O mesmo não sucede com as
pequenas, São indesejáveis! Falam tão baixo que não
consigo ouvi-las!
Além disso, nada aproveitam, como demonstram
nas frequências.
Arranjei, na verdade, um bom passatempo, no fim da
vida!
Se eu pudasse dispor do capital que tenho na
Torre Alta! Mas o 25 de Abril!...Histórias longas!
Cartas sobre cartas é o mesmo que nada!
Só nebulosas e pontos escuros,na trama infernal em
que fomos envolvidos!
Que males tremendos espreitam a existência dos
pobres mortais!

Nyangana
27-2-1876
É sexa-feira! Geralmente, embirramos com
ela, embora sem razão.
Um velho costume, diria melhor, uma grande toleima,
porque,no meu caso, não é superstição. Talvez por isso
mesmo, tivemos feriado.

Ao chegar ao Liceu, noto por toda a parte,
esfuziante alegria e vivo entusiasmo: faziam-se já os
preparativos, segundo me constou, para o campeonato,
a realizar no Rundu

Enorme auto.carro, em frnte do Liceu…diversos veículos
estacionados perto! Mas que é isto afinal? - pergunto
aos meud botões.
Aqui ou fora? Estava perplexo, olhando intrigado,
quando me transmitem a nova agradável: Pode ir para
casa ou se o desejar, faz-nos companhia, até ao
Rundu, assistindo ao campeonato.

Hesitando uns momentos, acabo por ceder.
Aproveitando a Ford do Liceu, lá fomos,, pois,,
, chapinhando aqui, nadando além, até que o Rundu
nos surgiu em frente

Estacionando a viatura junto de um prédio,
sombreado pelas árvores, peço informações, acerca
do imóvel, respondendo um colega: — É uma espécie
de hotel, onde há tudo. tudo, menos comida.

Achei-lhe graça, por não estar habituado.
Vamos então à cidade fazer as compras e jantar
seguidamente.
Às 9,38,damos costas ao mundo.
Toca a dormir!

Rundu
28-2-1976
Regressei há pouco do Estádio citadino,
onde permaneci,durante seis horas, na mesma posição.
Embora sentado, ao fim do meio tempo, não sabia
já de quem eram os apoios. Verdade seja dita que a
minha cadeira não primava lá muito pela comodidade..

Entretanto, para não destoar, fui-me aguentando,
embora com moléstia. Apesar de tudo, gostei de assistir.
Nunca vira, em presença, coisas deste género.Assistir
lin loco é bem melhor do que ler ou ainda seguir pela
televisão
Os três Liceus do Cavango estavam em peso:
Rundu, Kandjime e Shashipapo, onde eu trabalho.

Envergando com aprumo seus belos uniformes,
desfilaram os atletas, garbosamente, ao longo do
Estádio, havendo em seguida intervalo de silêncio.
para leitura dos Livros Santos e pedido ao Senhor

Após tal acção, começaram logo as actividades.
Os serviços auxiliares funcionaram ali,à maravilha,
pois tudo correu bem.
A taça do prémio foi ganha pelo Rundu.
Quanto a presenças, como era de esperar, o elemento
indígena constituía, por certo, o total da assistência.

Viam-se alguns brancos, levados então por
curiosidade ou ainda outros, em busca de passatempo.

Nestes Liceus há só indígenas.Os povos
evoluídos do Norte europeu e seus cescendentes
praticam o desporto, com muita assiduidade.
É bom este meio: prende a juventude e cria, para
logo, hábitos benéficos.

Nyangana
29-2-1976
Voltei do Rundu. É costume velho que não
sei explicar: ansiar vivamente pelo meu regresso à
moradia, sempre que alguma vez dela me afasto.

Vem de tempos remotos este fundo hábito.
Poderei atribuí-lo à influência materna que jamais
permitia ausentar-me de casa?
Regulamento severo que me privava de contactos
assistência a festas e espectáculos?

Julgo não me enganar, atribuindo em cheio, o feitio
reservado e pouco expansivo, a exigências do lar.
Minha mãe, coitadinha era pródiga em cuidados.
Brincava sozinho, cheio de ansiedade, por não ver mais
ninguém
Temendo influxos que julgava perniciosos,
,obrigava-me, em regra, â triste solidão.
Muitos há no mundo que, embora em convívio,
também estão sós!
Falta de compreensão, escassez de amor,
analfabetismo, abundância de ocasiões, mostrando
outra face!.
Voltando ao meu caso, se bem que aprecie o que
o Rundo patenteou, não me largava essa força
persistente, a puxar-me de lá, para um lugar ignoto.

Nyangana
1-3-1976
Preocupa-me deveras a saúde e bem-estar
dos meus parentes, no Campo de Refugiados.
Ontem, casualmente, pedi informações, acerca da
"filária",mas não souberam,,rigorosamente, o que eu
.pretendia.
Expliquei, então, bastante por miúdo, aclarando
pormenores, ao que responderam tratar-se de um verme
que vem instalar-se debaixo da pele.
Várias pessoas a tiveram já, na Missão do
Cuangar, sem que algumas delas soubessem o que era.

Aconteceu isto com membros de família.
A enfermeira alemã a quem me dirigi, para informações,
disse em resumo ser perigosa tal enfermidade. Precisa
de assistência e. o que é mais, tratanento adequado.

Juntou, em apêndice, que os filhos do casal
imigram, de noite, para o sangue do paciente. Por tal
razão, aí pela meia-noite, podem localizar-se. Tirar
então uma amostra de sangue, é coisa esplêndida, para
averiguações.
Durante o dia,vão os ditos vermes para os vasos
linfáticos, produzindo, às vezes, inchaços enormes. Já
me constou que o pobre Isaías também foi atingido.
Estivesse ele aqui, seria visto a preceito!

Amanhã, vou ao Rundu, para um teste do carro.
Se tivesse iempo!... Mas é tão longe e a picada tão má!
Não sei realmente que hei-de fazer!

Fosse em tempo de férias!
Perder algumas aulas não é aconselhável!, pois temos
exames, em 8 de Março. Como agravante, as nossas
alunas do iº ano chegaram mais tarde, perdendo assim
.o capítulo I.
Uma série de problemas que agora me assediam!

Cuangar
2-3-1976
Acabada a 4ª aula,surgiu aqui ontem,
segunda-feira, o Padre Hermes Wirth, na velha Ford da
Missão Católica de Nyangana.
Avistei-o de longe, não supondo então que vinha
ao meu encontro. Efectivamente, deixara-o pouco
antes, na Missão de Nyangana.
Afinal, terminadas que foram as saudações,
chega-se para mim, segredando muito grave que havia
recebido uma urgente mensagem, da Missão do
Tondoro, referente ao Cuangar.

Fiquei alvoroçado! Que podemos esperar, em
tempos como estes?! Moléstias, assassínios, tudo o que
mortifica e põe o coração em estado de alerta!

No seu Inglês, atrofiado embora, fez-me logo
saber que eu devia partir, com a máxima urgência, pois
a minha família iria seguir breve, rumo à Metrópole.
Desatei a chorar, nada havendo já que pudesse
consolar-me.
Os colegas do Liceu estão condoídos, oferecendo
seus préstimos. Trocam inpressões, para ali resolverem
como hava de chegar ao termo da viagem
Fico emocionado e bastante grato, ao mesmo
tempo.
Decide-se então, após vários pareceres, que
venha até ao Rundu,utilizando o meu Taunus, sendo
acompanhado pelo Padre Hermes, que levaria a Ford,
para casos de emergência. Assim fizemos.

Chegados à cidade, os planos falharam, o que levou o
colega a trazer-me ao Tondoro.
O Taunus ficava, para um teste de rotina, como
estava combinado.
Os próprios Serviços tomaram isso a cargo,aliviando-me
bastante.
Não podendo seguir hoje, por ser já tarde, fico no
Tondoro, esperando amanhã pisar solo angolano, ainda
muito cedo

Cuangar
3-3-1976 Ontem, pelas 6.30, deixei o Tondoro,
aproveitando o carro Volkswagen de duas Religiosas.

Como são professoras, no Liceu Kandjim, a cerca
de 6 quilómetros, ficava-me em caminho, pedindo ao Sr.
Armando que me levasse depois à Missão do Cuangar
Assim aconteceu.
Encontrámo-lo breve e já de viagem. Exposto o
problema, disse que entrasse. Ele, afinal, precisava de
parafusos que acharia na Missão, havendo eu de recuar,
por este motivo.

Apressado como eu vinha e já com atraso, devia
ser paciente! Mas, enfim, lá partimos do Tondoro, sob
chuva importuna,que jamais nos largou
A estrada que seguimos era um lamaçal!
Poços de água frequentes e enrugamentos, na velha
picada fizeram da viagem uma grande maçada!

Estávamos já na margem do Cubango, eriçado e
volumoso: invadira as margens, tornando-se medonho!

Havendo businado, ninguém apareceu.
Como o tempo urgia, metemo-nos a custo no barco da
Missão. Agora, o companheiro aos remos e eu de
guarda-chuva.
Acabada a travessia, aguardo na margem que venha a
camioneta.
Começam os encontros… expóem-se razões e
tiram-se dúvidas.
Afinal de contas, o caso era outro. Não havia tal
urgência: tratava-se apenas de saber o que eu pensava,
no tocante ao porvir e tomar decisões. Isto se fez..

Embora sem dados, para empregar o cunhado
Martins, ajudei, bem entendido, a resolver o assunto,
escrevendo uma carta, para António Castilho,

Cuangar
4-3-1976
Deixei uma vez mais a estância bem amada,
,onde passei 4 meses seguidos, que jamais esquecerei.

Quarta-feira, que foi ontem, ultimei já os preparativos,
apressando-me,logo, a regressar a Nyangana, onde me
espera trabalho sem tréguas.
Há exames brevemente e sinto-me, por isso,
bastante preocupado. Até ao Tondoro, arranjo transporte
mas, dali ao Rundu, já é problemático.

Aproveitarei o carro da Missão? Veremos!
São 11.30, acabando agora mesmo de chegar ao
Tondoro.É tempo de emoções, cada qual mais viva.
Podia fazer hoje uma viagem esplêndida, mas os
meus cálculoa saíram furados!

Combinara eu ontem com o Padre Abílio irmos os
dois até ao Rundu, na Peûgeot da Missão (Angola).
Hoje, porém, ao pedirmos o Permit, foi respondido: Nem
pensar em tal!
Aleguei então as minhas graves razões, como
professor… aulas em atraso!
Foi o mesmo que nada!
Respondeu o Coronel: — Há instruções de fontes
superiores, para ninguém passar! A fronteira está
fechada!
Contra a força não há resistência! Desisti, pois,
não sabendo ali que rumo tomar!
Havia, naturalmente, o risco grave de sermos
presos. Avançámos no entanto,via Calai, para
atravessarmos o rio Cubango, juntinho ao Tondoro

Entretanto, a 5oo metros, antes da Missão, a
carrinha afundou-se, na areia aglomerada.

Diligências de ordem vária foram postas em acção,
mas tudo baldado: areia a montes, ramos de árvores,
folhagem a rodos, pás e enxadas… Nada aproveitámos
Toca de ir a pé, através do mato, abandonando a
pobre viatura!

Nyangana
5-3-1976
Cabe-me agora narrar em pormenor o que foi
o dia 4, após o Tondoro. Surgindo na Missão um Galeno
estagiário, pedi que me trouxesse, pala via-Rundu, se
não molestasse.
Respondeu que sim, mas havia lugares que tinha
de visitar, levando isso algum tempo. Dei o meu sim,
apesar de tudo. Que podia fazer?! Não tinha remédio!

Depois do almoço, trocámos impressões, em
Língua francesa que fala muito bem, pois estivera no
Congo. Após o diálogo, foi visitar a Clínica da Missão.

Logo em seguida,veio sem demora ao meu
,encontro, ajudando-me sem rogo a transportar a
, bagagem o que é louvável e significativo.

Uma vez na Ford, tentou pô-la a funcionar o que
ela, de mau grado, resolveu fazer. Não admira!
É já bastante velha e apenas Deus sabe que maus
tratos levaria.
Ao longo das picadas, por sol e por chuva,
com imensos zigue-zagues e altos desníveis, correu
agitada a sua vida no Cavango!

Agora, metemos a breve trecho, pela estrada do
Rundu, com rumo inverso. Era o Nankudo a próxima
paragem e, seguidamente, o Nkurenkuro.

Arrumados estes casos, recuámos de novo, para
seguir directamente a via do Rundu.
Na última Clínica, deixámos um guerreiro da FNLA.
que fizera companhia.
Ferido numa perna por soldados da UNITA,
tivera forçosamente de baixar ao Hospital.

A camiho do Rundu, visitou o Médico a Missão
do Bunya. onde há uma Clínica.
Lá merendámos, por feliz iniciativa da gentil
Enfermeira que é alemã.
Aceitei contrariado: o Sol declinava e eu
tinha pela frente 113 quilómetros. a percorrer sozinho,
em zona de guerrilha, com a estrada num charco.
Quem é só e precisa tem de sujeitar-se!
Saindo, finalmente,houve novo desvio, para levar um
doente a caminho do Rundu, aonde chegámos pelas
19 horas. Era noite.
Arranquei logo para Nyangana e, ao fim de
três horas, procurava a entrada, sem dar com ela.

Nyangana
6-3-1976
Hoje,sem falta, havia de ser! Quase há mês
e meio, a residir na Missão e não conheço ainda as suas
dependências!
O Padre Hermes porém. na sua amabilidade,
convidou-me logo, pela manhã, a visitar as secções.
FIquei maravilhado, com tanto arranjo e
boas instalações.
O Hospital é enorme e dispõe largamente de quanto
precisa: várias camaratas, sala de operações,raio X e
escritórios e muito mais.

A média geral, no tocante a doentes, é de 170.Tem
direito a dois Médicos, embora actualmente não resida
nenhum, aqui na Missão.
Vem ele do Rundu, todas as semanas.
À frente dos Serviços, há três Enfermeiras, Religiosas
alemãs. que são diplomadas.
De colaboração, trabalham junto Enfermeiras
nativas e, de igual modo,várias auxiliares ( assistentes )
Há uma sala disponível, para dar instrução,
em que agora tomam parte enfermeiros pretos. em
número de 10.
Todos os 15 dias se abate uma rês, boi ou vaca,
ou ainda um porco.
Para cozinhar os muitos alimentos, consumidos
aqui, no Hospiral, há um fogão gigantesco, accionado
que é por água quente.

Olhando para ele, não vemos panelas ou coisa
semelhante. No interior do bojo, há três depósitos, que
ali funcionam, ao mesmo tempo: dois para o pirão,
(farinha de milho com água) e um para a carne.
Fiquei banzado!
Arranjo em tudo e muita higiene, por toda a parte!

Nyangana
7-3-1976
Além do Hospital e suas dependências, tem
esta Missão escolas magnificas para os dois sexos. À
data presente, vão os estudantes a 170. Muitos outros
ainda queriam vir também, mas fazem selecção!

Para o tempo lectivo, há dois Internatos, o que
permite aos alunos viverem aqui.
Se bem me lembro, o Governo ajuda, pagando 10
cêntimos por cada um. Os pais dão 15.
Os números indicados referm-se ao dia-a-dia.

Os profrssores primários são todos pretos. e os
alunos aprendem Inglês e Africânder e outras matérias,
exigidas nos programas
Após o Stander 5,deixam a Missão, frequentando
em seguida,Staner 6.Apõs o Stander 8, está completo o
que chamamos, na minha Pátria, Curso Geral dos
Liceus.
Evidentemente que nem todos eles continuam
seus estudos.
Feito o Stander 8, se têm capacidade, o que é revelado por testes especiais, vão por diante
frequentando, pois, o Stander 9 e o 10. Em seguida,
vem a Univedrsidade, para os talentosos.
No ensino Secundário, também estudam Alemão.
À frente da Missão, há dois sacerdotes: o Padre Baetsen
que é holandês, e o Padre Hermes Wirth, de origem
alemã.
O primeiro é o Reitor. À secção feminina presidem
também duas freiras alemãs, havendo a colaborar 5
freiras nativas.

É, naverdad,e um colosso a Missão de Nyangan.Posso
dizer que se basta a si própria,

Efectivamente,55 porcos, 60 vacas, 70 galinhas, 144
laranjeiras, um moinho a três vias e belas hortaliçs dão
o suficiente, para manter este povo.
O pessoal interno junto com o externo deve orçar
por 400 pessoas

Nyangana (cont,)
8-3-1976
Conta ainda o moinho que prepara a
fuba, alimento dos nativos. Funciona a electricidade e
está junto do rio.
A prover a Missão de água suficiente, há três vias
diferentes: motor eléctrico, aero-motor e motor a gás.
Este derradeiro é extraído do carvão e pode utilizar-se
em diversos trabalhos.
Os tanques-gigantes que recebem a água, são
cheios, diariamente, pelo menos duas vezes.
Há uma sala frigorífica, para guardar a carne.

Na central termo-electrica, vêem-se três motores
com potência desigual. A sua utilização depende, como
é óbvio, da actividade especial que está em curso.
Visitei igualmemte os amplos armazéns, onde
guardam, geralmente, as provisões, com destino ao
gado.
Utiliza a Missão comida seca, pois a ensilagem,
nesta região, fica dispendiosa. O melaço vem de longe,
o que o faz encarecer.
Vi igualmente as salas de trabalho, apetrechadas
ali com tudo o necessário.
A roupa de uso é lavada por máquinas, a mais
moderna das quais é um verdadeiro prodígio.
Custou, se não me engano, 4000 e tal randes.

Há uma loja de vendas, bem provida de tudo.
A última encomenda custou 10000 randes. Refiro-me
aos artigos que são para vender.
De longe, o que mais avulta é, sem dúvida a
igreja. Com as torres ao fundo, ergue-se airosa,
podendo avistar-se a grande distância.
Deparam-se ainda algumas residências: uma
para o clero e Irmãos auxiliares; outra destinada às
Freiras nativas; uma terceira para as Freiras europeias.

NYANGANA
9-3-1976
Estão em curso as Provas, relativas ao
período. Começou este em 21 de Janeiro e prolongou-
.se ainda até 26 do mês corrente.
Só então irei gozar as merecidas férias,
durante 11 dias. É pouco, na verdade, mas com mais 4,
por altura da Páscoa, sempre vão aos 15 que tinha em
Portugal.
Voltando agora às provas que chamam exames,
nesta região, ( Estado auto-governado, de nome
Cavango), constituem para mim bem sério motivo de
funda reflexão.
Equivalem. a rigor, às frequências de Angola, no
tempo em que lá estive. ( 1972-1975 ). Apesar de tudo,
revestem desde logo, aspecto mais prático, assim
como também os livros de ensino.
Aprecio imensamente a pedagogia aqui aplicada.
A prova escrita é elaborada pelo docente, que por sua
vez a passa a stencyl.
Oito dias antes, vai à censura, para ser criticada.
Obtido o beneplácito, e já em stencyl, tem logo a vez o
duplicador que tira, em seguida, as cópias
necessárias.
O que diverge mais é o processo utilizado, nas
respostas dos alunos
Ontem foi Inglês; hoje, Biologia, e assim por
diante no, espaço de oito dias.
A primeira hora, durante aqueles dias, é dada às
provas, seguindo-se, depois as aulas hsbituais que
passam de 35, para 29 minutos.

Nyangana (cont,)
10-3-1976
Como levo dito, às 8 da manhã, em tempo de
frequências, iniciam-se as aulas.É, na verdade,uma hora
mais tarde, mas isso não impede que terminem as ditas,
à hora do costume.
Cada tempo lectivo fica reduzido, à volta de 6
minutos. Ora, como há realmente 10 tempos diários,
perfaz-se um total de 60 minutos. que é exactamente a
duração da prova,

É de notar o seguinte: as aulas, durante o ano, dispõem
somente de 35 minutos. Isto é excelente, uma vez que
os alunos, passada meia hora, começam a alhear-se.

Enquanto a prova se vai efectuando, está presente
um colega, em cada uma das salas, tendo o professor
de visitar as quadras, uma por uma, para casos de
dúvida.
Hoje, também me coube a vigilância da sala.
Sinceramente o digo: fiquei bem impressionado.
Tenho a convicção de que a África do Sul trabalha
com proveito, na região do Sudoeste.

Os estudantes foram correctos, observando a rigor
o tempo disponíve e não tentando jamais copiar do
vizinhol
Em cima das carteiras, avistei apenas o material
de exame.
Cada aluno guarda consigo um caderno
apropriado, extraindo as folhas, à medida que precisa.
É tudo muito prático!
Bem o adivinho: fruto de uma nação que tem bom
cérebro e o sabe utilizar
Nyangana
11-3-1976
O meu Taunus 17 recebeu ontem, pela
manhã, o seu novo baptismo.Quer isto dizer que
mudou a matrícula, pela terceira vez.
Vai já para 14 anos que está na minha mão.
Comprei-o em Lisboa por 66 contos, em 1962.
Em Novembro próximo, faz pois 14 anos que
vivemos unidos, Adquiri- o então com 13ooo
quilómetros.
Nessa altura, tinha eu somente 44 anos e ele
estava ainda no princípio da vida.
Registava o livrete os seguintes dados, além
de outros: Taunus 17 M Super B A 73-82.
Assim permaneceu, durante vários anos… à volta de
1o.
Em 1972, arranquei para Angola, em visita à
família,, deixando-o em Lisboa, na "garagem
Estrela".que significa " rua "
Não contava demorar-me e era bom tempo.
Ali permaneceu, de Agosto a Dezembro. Foi meio
ano.
Escusado é dizer que roubaram a cobertura -
32 metros de pobre cotim - e que no interior já
nadavam os livros!
Até me parece que o Taunus é hidrófilo! Só
numa das portas, ele tinha vários litros do precioso
líquido que os borrachos não prezam!
Bom! Como fazia falta, una vez que ficava,lá
no Bié, por muito mais tempo do que eu julgara, ao
sair da Europa, fui então buscá-lo à capital
portuguesa.
Após boa revisão, veio triunfal para a África
Lusa, donde saiu apenas, a 23 de Janeiro de 1976,
com rumo novo a terras desconhecidas.

Nyangana
12-3-1976
Como se vê, permaneceu em Angola por
3 longos anos- 72 a 75. Ao fim de um ano, obrigaram-
me logo a mudar-lhe a matrícula.Indo cinco vezes a
Nova Lisboa. Por bem pouco não ficou resolvido o
caso momentoso da nova designação-

Uma vez apenas seria bastante para o tratar!
Não tinha eu aulas e deveres a cumprir?!
O pior não foi isso! Volvidos dois anos, comunica o
Pedrosa, agente de trânsito e vizinho de casa:
— Tem o livrete do Taunus?
— Pois tenho! Legalizei o carro, vai já para dois
anos. Além do mais, paguei honradamente aquilo que
exigiram!
Essa agora!, exclama o Pedrosa. Ou não
comunicaram lá para Luanda ou então alguém desviou a
importância paga.
Fiquei desconcertado! Mas para quê recordar
agora pecados antigos?!
Cumpre, sim ,indicar a nova matrícula; ANL 58.36.
Com estes dizeres, circulou dois anos, em terra
angolana! Assim percorreu as belas estradas, que eram
um mimo!
Se não, vejamos: entrando em Angola com 67000,
tinha na despedida cerca de 2000, em segunda
contagem. Passou por Luanda, fazendo em seguida o
longo trajecto que havia de trazê-lo a Nova Lisboa e
daqui a Silva Porto, chegando finalmente à vila do
Chitembo.
Foi depois ao Lobito, andou por Benguela e
visitou Serpa Pinto.
Mais andaria, se os ventos de fora não soprassem
furiosos!
Por último, percorreu em dor, confusão e agonia,
os extensos areais que trilharam então os refugiados!
Agora, aqui está, com o seu novo baptismo:
SCA- 674!
Foi no Liceu que lhe puseram as placas os meus
bons colegas, entre os quais o Reitor!
Eles é que tudo fizeram.
Estou maravilhado e bastante grato!

Nyangana
13-3-1976
Sábado! Chamam. no geral, tempo de folga
ao fim de semana. Para mim, nunca foi nem o é agora
Lucraria muito com essa atitude? Devia lucrar,
embora de facto seja puro mito!
Mercê de convulsões, que ultimamente se fizeram sentir,
no Império Português, dá-me a impressão de que tudo
foi inúti
Quem menos trabalhou e, em contrapartida, mais
se deu ao lazer, comendo e bebendo, sem quaisquer
restrições, mais parece haver ganhado.
Entretanto, não dou por inútil o esforço
dispendido.
Perco neste mundo, mas nutro a esperança de
ganhar no outro. Se trabalhei muito, ocupei o tempo,
medida necessária, para quem é sensato e pensa no
Além. Por isso.nem tudo se perde, quando assim o
julgamos!
Esta vida é passageira: aguardamos. após ela,
uma longa eternidade.
Afinal de contas, pesa bem mais a que há-de
seguir-se! Perdi uma cartada, mas vou ganhar outra,
bem mais importante!

Nesta linha de acçãp, já estou ocupado, escrevendo o
meu Diário, para seguidamente corrigir e aprontar os
anteriores. Logo depois, tenho as provas de exame que
me esperam, receosas. Emendei somente as da turma
E, faltando apenas 4.
Por sinal, foi bem pobre o resultado de Inglês , na
turma referida!
O máximo obtido foi 43%, sendo a média geral
28,4.
Assim o esperava já, pois a turma E fica abaixo das
outras.

Nyangana
14-3-1976
São 11 e 15.
Acabo de aprontar as provas de exame, quero dizer:
acabei agora mesmo de corrigir as provas ou melhor:
classificá-las
Chamam-lhe testes e não se enganam,O mesmo,
afinal, que Pontos de Apuramento.
Tenho 5 turmas; todas elas do Stander 6,

Estes alunos frequentaram antes a Escola
Primária, durante 7 anos: 2 lower Stander; 5 higher St.

Após 3 anos, com bom resultado, na Secondary
school (onde eu trabalho ), - em Portugal Ensino
Médio;. em Liceus ou Técnicas, - frequentam 2 anos a
pré- Universidade equivalendo este curso ao que
nós chamamos complementar.

Ao iniciarem o Curso Universitário, deixam para
trás 12 anos de estudo.
Voltando aos meus alunos, a impressáo geral não
é má, de todo.
Três turmas ( ADB) oferecem, desde já perspectivas
razoáveis; as duas restantes são realmente de nível
inferior.
Por um lado, não é de estranhar, pois há inúmeros
contras que têm de vencer: adaptação gradual ao novo
ensino; acomodação à nova pronúncia; integração
completa em novos hábitos; e o mais que falta.
Alguns dentre eles são bastante incapazes, mas não a
maioria
Alimento esta esperança: que no segundo período,
tudo fique em ordem.
Deus me ajude! Por esta via, chegarei a bom
termo.

Nyangana
15-3-1976
É duro começar. Neste país equiparo-me a
um bebé que ensaia os primeiros passos. É mais difícil
ainda que a gente imagina! São tudo barreiras o que a
vista alcança.

Aqueles que me rodeiam de nada se apercebem, mas
eu realmente esfalfo-me e sofro, para acertar o passo.
Vejo no meu lidar estes contras horrendos: a
criança ignora, mas a inconsciência não a deixa sofrer;a
criança tem pais , que pronto adivinham os seus desejos
e se acomodam inteiramente a seu estado e pobre
condição
Estes dois aspectos são harto pesados e deixam
na alma o sinal de uma cruz.
Que remédio tenho eu senão lutar até ao final,
para me valer e assim aos outros?!
"Não quero" é afinal, voz desconhecida. "Não
posso "equivale ao mesmo.
Apresentei já os Pontos de exame, bem
classificados, mas não era o fim.

Ouvi as instruções em língua inglesa, mas suei
algumas vezes, por não descobrir logo o que
era intentado.
São costumes diferentes! Levei então as provas,
distribuindo-as em seguida, por cada uma das turmas.
Junto ao fim da aula, recolhi-as de novo, para
entregá-las ao nosso Reitor

Todos os alunos verificaram os números,
calculando e comparando!
Não é muito lisonjeiro para o corpo docente,mas acho
humano, justo e razoável.
É mais que certo primarem os Nórdicos, em
aspectos práticos.

Nyangana ( CONT, )
16-3-1976
Vencido que foi o primeiro obstáculo, outros
mais vão surgindo. Passei os tempos livres a reflectir no
assunto,assistindo-me razão para julgar sereno que me
encontro em dia.
Agora, passar os nomes é que é o busílis!
Escritos à mão não vejo saída!
Pedi então umas listas a Mr. Scorf, colega muito
amável, integrado no Exército.

Mas que maçada! Aquilo só visto! A escrita é
difícil, mas a pronúncia! Nyangana é Nhangana! Ntji é
tchi. E assim por diante
O m inicial fica tão sumido, ao ser pronunciado,
que me deixa a impressão de o não tomarem em conta!
Curiosos estes nomes, aqui no Cavango!
Curiosos, sim, mas têm pouca graça, para os que vêm
de fora!
Vou passá-los à máquina, ainda esta tarde,
lançando em seguida as notas obtidas por cada um dos
alunos.
Aprontado isto, devo achar a média, referente a
cada turma, o que leva desde logo a duas operações:
uma soma extensíssima, com o número de pontos que a
turma alcançou; agora, a divisão do total pelo número
de alunos,presentes à prova

Obtenho assim a média que eles chamam"average"
Falta ainda a percentagem, o número preciso de
todos os faltosos bem como o dos presentes, no acto
da prova.
Repete-se o dito em cada uma das turmas.
De tudo isto, foi a percentagem o que mais custou, para
fazer uma boa digestão

Nyangana
17~3-197
Mais uma surpresa.que hoje chegou. Ao
lançar os resultados, nas folhas do estilo, cometi um
erro e tive desilusões.
Esta surpresa, bastante desagradável, consistiu no
seguinte: todos os alunos, com menos de 40, são
designados, pelo termo " failed "ou então failure, que dá
em Português " reprovado ou reprovação. Não é
decisiva: tem aspecto parcial.
Na turma E, só houve uma excepção! Que belo
panorama!
O termo failure , julgava eu referir-se aos
ausentes, no dia da prova.Afinal de contas, muito bem
presentes estavam eles, pela manifestação de preguiça
ou incúria! Em certos casos, há incapacidade, mas
noutros. ao invés, a caua é diferente!
Começo bastante mal o primeiro ano de Ensino,
em país estrangeiro!
Quero ver, de futuro, se espevito os alunos, afim
de me!lhorarem.
Por este andar, se não abro outro sulco, a lavra
não presta! Em final de ano,bstam 33 É já mais airoso!
Apurar o total. em cada uma das turmas,não é
coisa fácil! Engano-me, a cada passo.
Hoje.porém, o dia é folgado! Só três professores
se encontram presentes razão pela qual só dei uma
aula.
Os nossos alunos trabalham no campo e,
segumdo me parece,andam a mondar
Também aqui se estuda Agricultura
Os outros colegas foram para Windhoek, afim de
assistirem à competição.
Não sabe mal descansar um pouco, de vez em
.!quando.
A semana passada foi extenuante!

Nyangana
18-3-1976
Além Cubango, para o lado Nrte, que é o
que se passa? Já tudo morreu? As esperanças dos
Brancos foram sepultadas?
Os repatriados estão sem emprego; aqueles que
ficaram estão indecisos. Voltar ainda? Seria tão bom
reaver o perdido ou ser indemnizado! Que não era
favor!
Trata-se afinal de um direito sagrado e inalienável!
O senhor de Angola, à data presente, é Agostinho Neto,
embora se notem, por diversos lugares, inúmeros focos
de resistência.
O MPLA tem bons amigos e também inimigos,
como sempre acontece, em assuntos políticos.

Segundo me parece, a querida Angola tem um
bom presidente. homem letrado, poeta de sentimento
que encarou a sério a tarefa ingente da libertação.
Foi exclusivista , dizem os adversários, e assinou
várias vezes o que não ia cumprir.
Posto o assunto a nível eiropeu, com povos
civilizados e senhores absolutos do seu destino, a coisa
já se vê, seria delicada.
Mas em África, estamos para ver!
Entretanto,o MPLA já perdeu bastante, por duas razões:
fanatismo e rancor de alguns membros seus; recurso
indevido a potências estrangeiras, em material,
equipagem e soldados.
Os outros Movimentos não estarão ilibados, mas não o
fizeram de forma global e comprometedora.
Seja como for!
O que Angola precisa é um Governo que mande,
imponha a ordem e proporcione trabalho para toda a
gente.
Ajudará os Brancos? São tais as vozes.
O tempo o dirá

Liceu
19-3-1976
Fizemos há pouco a reza da manhã, estando
presentes alunos e professores Fui eu a presidir. Fiquei,
porém, surpreendido, quando entrei no salão. Algo
diferente que não atingi! Até porque, em geral, falam
Africânder, ignorado por mim.
Entretanto, o Reitor, a cujo lado eu me encontrava,
apressou-se a esclarecer:
—Hoje. é festa a S, josé, e os nossos alunos
comemoram este dia, com actos especiais!
Olhei então para o quadro. Estava preenchido, a
toda a extensão, em idioma Dirico, língua nativa, desta
lado e do outro (Angola).
Percebi apenas duas palavras: S.Joseph e Jesus.
Presumi logo tratar-se de um hino, em louvor de S.José.
Fiquei radiante! Nem já me lembrava do grande
Patriarca! Como ando esquecido! E saber eu que foi dia
santo, no amado Portugal, em tempos distantes?! E se
recordo ainda que na terra natal se praticava a fundo o
culto do Santo?!
Após o trabalho e lidas campestres, seguiam para
a igreja os humildes aldeões, afim de honrar o Santo do
mês - S, José, carpinteiro.
A comoção puxou-me das lágrimas e turvou-me,
desde logo, o pensar e a visão.

Reagindo um tanto, peguei no Livro Sagrado,
para fazer a leitura, em língua inglesa. Nesse momento,
já estavam três alunos. ao pé da tribuna.

Provavelmente, chamavam-se José.
Há uma coisa, algo interessante, aqui na região:
os alunos são católicos; os professores (brancos)são
protestantes; os professores pretos são católicos
também.
Entretanto os colegas respeitam as crenças, e
acolhem bem a atitude dos alunos, em matéria
religiosa.

Missão
20-3-1976
Data memorável, na história pequenina da
minha família. Se o pai saudoso vivesse na Terra,
contaria hoje os seus 90 anos! Quando eu nasci, tinha
ele 32. Ora, como eu já fiz os 58, perfaz-se aquele
número.
Entregou a alma a Deus, em 1952. Já lá vão,pois,
24 anos! Por bem pouco, metade de uma existência!
A morte colheu-o não maduro ainda mas, se foi
para bem, devo resignar-me!.Tenho funda certeza de
que tenha acontecido, pois ele era bom .
Não sabemos há muito que o Céu é para os
bons?!
Resignadamente, cá tenho vivido, ficando-me por
Deus a companhia do ser que eu então mais amava.
Doze anos depois, atingidos que foram os 78,
um tumor maligno apressou-lhe o desfecho.
Lá foi, pois, a querida mãe à procura do prémio
que certamente ganhara, pela vida laboriosa, honesta e
piedosa que sempre levara.

A esse tempo, fiquei desolado! Sem amar a
profissão, fui lentamente arrastando a vida ou melhor,
vegetando,para hoje me encontrar qual vítima de
naufrágio. Pois o caso de Angola que " a mortos faz
espanto." não foi um naufrágio atendendo â maneira
como se desenrolou?!
Estou ciente de que Deus, lá no Céu,atendeu
piedoso as preces de minha mãe que vigia solícita meus
passos incertos: proporcionou-me um lugar que garantia
o pão. sendo contratado pela África do Sul como
professor
O grande problema é ter a família à esmola do
Cuangar, sem o que é necessário â existência humana:
trabalho e pão, conforto e paz.
Para remate de hoje, vou rezar à capelinha, por
alma de meu pai
Tenho quase a certeza de que ele está no Céu.

Missão Católica
Nyangana
21-3-i976l
Uma carta de Lisboa
Havia quase um ano que o País emudecera.Causava-
me estranheza e certo desalento. Comvulsões
sociais, dificuldade grave em comunicações, enfim,
certos contratempos e azares da vida!
Mas a hora chegou.
No regresso do Liceu, vi sobre a mesa uma carta
alongada
Previ logo o que era: meu padrinho respondia.
Escrevera duas vezes sem nada lucrar.

Agora, sim! A realidade cantava! Uma voz de
Lisboa, capital da minha Pátria! Uma voz portuguesa,
gravada com tinta, em palavras portuguesas! Que
grande alvoroço vai dentro de mim!
Esqueço logo tudo. para dar prioridade àquela
missiva!
Que pena! Fossem elas sonoras aquelas
expressões! Eram amortecidas, embora falasem! Eu
entendi-as, porque é voz amiga a que ali me fala!
É Francisco Saraiva o " Chiquinho Saraiva" de tempos
recuados.
Temo assaz por ele, que a morte levou já os
parenttes do seu tempo.
Até o Necas partiu!, o Necas da rabeca! O professor
egrégio de Línguas Germânicas, no Liceu Camões!

Que nova desagradável! Pela vida fora, como há-
-de ter sofrido aquela alma nobre e insaciável!,
Quanto ao dinheiro, lá o tenho â minha ordem.
Sobre a Torralta é que é um pavor!

Após o tal 25, é ela administrada pelos
trabalhadores e não sabemos ainda o futuro daquilo!
Ficarão sem nada os que ali depositaram as suas
economias?!
É triste realidade que assaz penaliza e gera
suores! Passar esta vida em grandes privações, fugir âs
despesas, trabalhar à sobreposse… E depois!...

Que eu estou convencido de não ser como dizem!
Não perco inteiramente a esperança risonha de reaver
um dia o que só a mim pertence!

Nyangana
22-3-1976
Um serão inteirinho a rasgar
correspondência! Jamais, em vida minha,gostei a valer
de guardar papéis. Regra geral, carta recebida.carta
fragmentada… e logo cesto!
Se assim não fizesse, ao fim de um ano, eram
montanhas!
Aquelas, porém, fechadas à chave, havia longos anos!...
Algumas delas seriam já de 1953. Por isso, mereceram,
cá da minha parte, grande atenção.
Alunas e alunos as tinham enviado.
Se bem me recordo, apenas ficou uma: a derradeira
Julgo ter a data de 66..Provavelmente, vou rasgar
também essa.
Dedicados amigos e sinceras amigas que não
posso esquecer! Custou-me bastante lançá-las ao cesto,
mas que podia fazer?!
Vistas indiscretas ou má interpretação ficam
arredadas!
Um serão inteiro a passar a vista , ao de leve embora,
sobre aquelas missivas. recordando gostoso recuados
tempos de suave perfume!
Eram da Julieta, Conceição Ramalho, Mariade
Fátima, Mariazinha Madeira, Emília Cunha, Antero
Tavares, Avelãs Nunes ( hoje Ministro ) e tantos outros
que seria longo enunerar aqui.
A referidas eram pinhelenses.

Havia delas também, oriundas de Manteigas, não
faltando por certo,, as da Aninha Branco, Esmeraldinha
Cardoso,, Aninha Pereira, Fernando Amílcar Cardoso,
Rui e muitos mais.
Que pena dar-lhes sumiço! Embora as rasgasse, ficou
intacta a velha amizade, cuja fragrância nem o tempo
oblitera.
Deus proteja e ampare,ao longo da vida,todos
esses e os demais que ajudei a preparar para o duro
combate.
Estou muito longe, no extremo Sul do continente
africano, mas o meu coração não reside aqui

Liceu
23-3-1976
Os nervos descontrolam-se. Havia muito já,
que não me irritava, Tinha-me olvidado e, para bem do
físico, devia ter presente,que uma irritação é muito
prejudicial.
Lembra-me agora que lá, em Silva Porto, as tinha
de vez em quando, mas por outros motivos. Regra geral,
por mau comportamento. Isso, é claro, não existe aqui.
Na aula que estejam, são uns cordeirinhos.
Dá gosto ensinar, em tal ambiente.
O caso,porém, ocorreu na turma E, primeiro ano
de Inglês, neste Liceu Técnico.

As nossas miúdas são timoratas: não há meio de
falarem. Posso eu prepará-las, se não querem falar?!
Enfureci-me um pouco, devido a isso.
Mandei repetir o que estava dizendo, mas vinha em
resposta o silêncio total!
Levei-me dos diabos! À terceira ou quarta vez,
aproximei-me e gritei, procurando depois moderar a voz.
Não pude conter-me!
Ela é já mulher. Andará nos 17,
Bem. A coisa passou e quando veio a tarde, notei
espavorido que falhava o coração. Respirava mal e tinha
momentos de verdadeira angústia.

Não ocorreu logo a causa do facto. Só bastante
depois, já por noite fora, me veio à ideia,
Causa verdadeira? Aquela irritação!.
Foi um aviso! Não volta a repetir-se!
Elas não lucram e eu só perco! Haja calma,pois, e
vamos com jeito, que é o mais indicado.
Se não for muito além,fico um pouco atrás.
Quantas vezes na vida se ganha perdendo!

Liceu
24-3-1976
O nosso Reitor havia-me convidado, Uma
nega redonda seria preferível, mas achei imprudente
fazê-lo agora. De facto, sendo ele amável, era grossaria
uma recusa formal.
Os contras em acção, que me acompanham há
muito, houveram de calar-se: refeição de noite; função
prolongada; alteração profunda nos meus velhos
hábitos
Enfim, aceitei,porque timha de ser!
Às 17, 3o, chegava ao Liceu, percorridos que eram os
16 quilómetros que me separam da Missão Católica.
De facto, resido aqui.
Até às 19. alindei solícito a entrada do meu sótão,
apresentando-me, logo em seguida, junto do Reitor
que vinha já procurar-me.
Desvanecem-me em extremo as suas atenções.
Não quer, de modo nrnhum, que eu fique à margem
nas funções deste género.

Fim do 1º peíodo e, ao mesmo tempo, jantar de
homenagem a Miss Kruger que vai deixar o Liceu, para
assumir igual cargo, no Otjiwarongo.

Quando cheguei, a mesa estava posta, e os convivas
aguardavam, conversando alegremente, Eram 4
cavalheiros e só 3 senhoras.
Pretos ou mulatos não são convidados,, nestas
regiões.
A mesa era um mimo, pelo que tinha de original
e de bom gosto.Para mim foi estreia.

Na sala, a meis luz, avultavam somente duas
lamparinas, colocadas sobre a mesa, onde só a custo se
divisavam espaçadas iguarias, altamente apetitosas

Liceu
25-3-1976
Aproximei-me hesitante, que a luz era pouca,
ao menos para mim. Afeito a ela, já distinguia, aqui
e além, quanto nos esperava

Deparou-se-me então uma rima de carne, partida
em miúdos, o mesmo cabendo a outros convivas. Era o
fulcro do repasto. Além disso, havia espargos, fruta com
molho, pão e manteiga e outros condutos.

O mais fino e apetitoso eram os molhos.
No tocante a mim, limitei-me a cheirá-los, pois de outro
modo, já tinha noitada!
A carne a que aludi encontrava-se crua: por esta
razão,havia sobre a mesa dois pequenos fogões,
alimentados a álcool.
A meu lado. jazia uma forquilha de 30
centímetros,com dois dentes aguçados. Por meio dela,
espetava-se a carne, metendo-a em seguida no tacho
fervente, durante alguns minutos.

Finalmente, passava-se no molho e, como observei,
aquilo era bom! O olfato acicatava-me:
entretanto, houve de moderá-lo, recusando-lhe tudo.
Apenas satisfiz a curiosidade, contentando os olhos.
Ali estivemos, pois, em boa camaradagem,
rindo e folgando.
Como falavam a Língua Africânder,mal os
, entendia, mas de vez em quando, iam-me pondo ao
corrente, em Língua Inglesa.

Para mal de meus pecados, às 10 da noite, doía-
-me a cabeça e, no entanto, faltavam nada menos que
três longas horas!Pensava já então que era o fim da
minha vida!
Se eu, pelo menos, pudesse beber, para
adormentar o temido incómodo! Mas nem isso era
permitido!
Bela pinga havia, caindo no olvido pelo menos 10
garrafas

Angola
26-3-1976
Primeiro dia em férias.
Viagem longa e morosa obriga a madrugar! Por esta
razão, às 6 menos 10, ponho o carro a trabalhar.
Em regiões como esta,devemos tirar margem , ao
princípio do dia Setenta,à hora, (não convém dar mais)
lá vou eu satisfeito, com destino ao Sâmbiu

Esta Missão dista de Nyangana 80 quilómetros,
caminhando para o Rundu. Nunca fora ali antes, mas
desta vez, tinha de ser! Efectivamente, as cartas do
Padre Baetsen compeliam-me a tanto.

Bendita hora essa em que pus ali assento!
Na verdade, encontrei nos colegas o melhor
acolhimento e a maior compreensão.
O colega holandês que fala Inglès e Francês
penhorou-me grandemente.
Expus-lhe a situação, contando em seguida a
tragédia familiar. ocorrida em Angola.

Grande efeito exerceu a minha narrativa: 100
belos randes, para minha irmã; pedido fervente,
endereçado, no mesmo dia,,à Polícia do Rundu, e
oferta de vestuário para toda a família.. Mandou tomar
nota e quer vê-los ao passar.
Fiquei rendido com tamanha abertura e
generosidade, e não tenho palavras que exprimam o
que sinto!
A caridade cristã não fugiu ainda para terras
distantes. Sugeriu-lhe a Polícia como eu devia fazer.
Lá vim, pois, animado e confiante.
Custasse o que custasse, devia seguir directo para a
Missão do Cuangar.
De noite, fugiríamos todos para o Sudoeste,
uma vez que, em Angola, corriam já perigo, as vidas
dos portugueses.

Tondoro
27-3- 1976
Afinal de contas, chegdo ao Tondoro. onde
seria traçado o programa da fuga, depara -se
-me ali o que então não esperava: minha irmã Agusta,
descendo as escadas.
Julgando erradamente tratar-se de passeio,
disse-lhe â qieima-roupa: hoje mesmo fugiremos do
Cuangar.
Ela sorriu, acrescentando logo: Já cá estamos e as
coisas também,
Que era então o que se estava passando?
O receio, por um lado e as doenças pelo outro,
apressaram a vinda. A partir de ontem, nenhum branco
. lá ficou. Hoje são os pretos.

É um êxodo geral. Vem tudo espavorido! Até
mesmo aqueles que diziam não sair,já mudaram de
pensar. Aquilo morreu!
Se não houver acareamento pelo MPLA, ninguém
vai ficar, para fazer o trabalho!
Ora, pois, como os encontrei em lugar seguro, já
não prossegui.
A Gina de cama, quase há uma semana; os dois
miúdos no Rundu,às voltas já com o Raio X!
Bonito serviço! Após uma desgraça, muitas outras
surgem! Que grande maçada!

Se a Gina pudesse, inda hoje partiríamos,
aproveitando a manhã. Como não pode, havemos de
aguardar,até ao dia 29, que é segunda-feira!

Iniciaremos depois o longo percurso que nos
separa do Sâmbiu. Dali, então, rumaremos a
Nyangana
E daqui?Só Deus o sabe! Entretanto, vai
tomando vulto a imagem do Brasil. Pode bem ser
que tenhamos ali paz!
Esta vida assim, consumida em angústia,
à base de sobressaltos, não deixa medrar!.

Tondoro
28-3-2076
Cheio de imprevistos foi o dia de hoje.
Em primeiro lugar, a retirada total da tropa carca-
mana, Que vai seguir-se, no tocante aos refugiados?
É esta,de facto, uma questão muito grave.

Obrigaram os pretos a passar o Cubango,
meteram-nos em carrões e zás para o Catuitui
Haviam fugido amedrontados? Talvez caminhem
para o reino da morte!
Quanto aos brancos, o seu futuro é harto incerto
Os meus familiares foram recebidos nesta Missão, tendo
eu em vista levá-los amanhã para Nyangana.

Entretanto, já sofri decepções: expondo o meu
caso, o Padre Manfred, responsável do local, respondeu
logo cerce que não podiam sair Isso, depois, criaria
problemas.Ao menos, antes de vir a Polícia, para fazer o
registo.
Vamos ver o que isto dá! Mas eu, por minha parte,
já pensei o pior! Saberem quantos são, enviando-os em
seguida para outro campo?

Empregarei, à data, os meios todos. para que o
facto não aconteça. É morrer lentamente!
Triste morte aguardam todos aqueles que não têm
já de que valer-se.

E os inocentes?! E as criancinhas?!
Quem pode compreender este drama pungente?!

Bem parece que só Deus!
Quanto eu não fiz para adoçar um pouco a tragédia
familiar!
Agora.porém, vejo estas coisas mal
encaminhadas! Se eu pudesse ter vindo um bocado
mais cedo, precedendo a saída de terra angolana,
tudo se arranjaria conforme previra. Assim, nada já
posso!
Que o Céu nos valha e dê paciência!
O que há-de servir para manter os desditosos é a
África do Sul, pois de outro modo ficariam todos por
esses matagais

Tondoro
29-3-1976
É triste e lastimoso o destino dos Brancos
mas o dos Pretos não fica abaixo!

Os Movimentos de Libertação odeiam-se mortalmente.
volvendo-se breve em gente bárbara e escravizante.
Aqueles que apanham vão à degola, por estarem
inscritos noutro partido.
Impossível se torna viver em Angola, pertencendo
à UNITA ou à FNLA.
Para onde vai esta pobre gente?! Que drama vivo e que
imensa agonia!
Contaram-me há pouco horríveis episódios que
tremo de revelar! Tão desumanos… tão repelentes …
julgados impossíveis!
Como podem os homens descer tão baixo, na
escala do sentimento?! É o homem-fera, inteiramente
diabólico… bestializado! A inteligência,tão prodigiosa,
criada por Deus,é posta hoje ao serviço da maldade,
utilizando, com tal desígnio, os requintes maisi bárbaros.

Quem tal diria?! Os Cubanos, em Angola, na região do
Caiundo, pegavam das crianças, matando-as logo, com
requintes de barbaridade. Arremessavam-nas breve
contra as árvores locais, uma e muitas vezes, até as
destroçar.
Não terá coração essa tropa infernal?!
Criancinhas inocentes, por serem da UNITA os seus
progenitores, esperava-as a morte, nas circunstâncias
mais horrorosas!.
Até me garantiram — horrível de crê-lo — que,
havendo finalizado a cena macabra, as assavam e
comiam!

Tondoro
30-3-1976
Ontem,fazendo companhia ao Padre
Abilio, rumámos ao povoado que chamam Nkurenkuro.
A razão do percurso não foi distrair nem sequer tão
pouco espraiar a vista pelas margens formosas do rio
Cubango.
Era humanitário o fim que nos levava: prestar
auxílio aos pobres refugiados.
Lá estavam cabisbaixos,apreensivos… altamente
desolados.
Os trastes deles, acumulados à pressa, jaziam
amarfanhados, aqui e além.

Por abrigo total, a abóbada celeste e só Deus para doer-
se e dar-lhes melhor sorte. Dos homens nada esperam,
pois vêem desfeito o sonho maravilhoso que haviam
nutrido
Tivessem, ao menos, uma sombra fresquinha, mas
não lhes cabe! São altas espinheiras que os repelem e
maltratam,com agudos acúleos! Se levantam a cabeça
ou estendem os braços, vem logo uma picada que os
deixa a sangrar!
A própria Natureza, áspera e dura, ajuda no
martírio da gente inditosa.As crianças, então, são
dignas de lástima! Habituadas ao conforto,estranham,
profundamente a diferença de agora.

De olhar amortecido, tristes e magrinhas, choram
, amiúde e. infundem compaixão
Em seguida, fomos açodados à ilha encoberta
que abrigava no seio 25 pessoas.

O denso arvoredo vela o interior de maneira tal, que
já não é possível avistá-lo de fora, seja ainda perto
O sinal combinado foi inútil e vão.
Repetido embora, nada conseguimos.
Haviam fugido e só duas galinhas habitavam a ilhota

Tondoro
31-3-1976
Lá se vai o mês de Março e, com ele vão
também esperanças e logros Como é desolador o
nosso viver neste forno africano,derretendo lentamente
a substância musculosa!
O Sol ardente vai-nos queimando e os mosquitos
vorazes chupam gulosamente o sangue dos Brancos.
Este clima e este céu infundem na minha alma
denso nevoeiro de imensa tristeza

Ignorando o futuro e receando vivamente o dia
de amanhã, os nossos olhos amarguram-se prestes,
perdendo breve seu próprio brlho,

Como sair do braseiro, há tanto já, sem
esperança?!O homem tirano como a Natureza a
escorraçarem-nos para longe deles!
Quem dera um lugar, onde a gente repousasse!
Existirá, por ventura?!,

Para além da morte, a certeza é firme!Quanto
a este mundo, já duvido, a sério!
Para nós. foragidos, conforto humano é coisa
inexistente!

Escapámos a custo de um perigo iminente,
para meter-nos em outro, maior talvez! Pois não é a
Namíbia alvo de atenções que intentam, por qualquer
meio, incendiar e destruir?!

O mundo inteiro converge e alimenta seu ódio
contra a Ãfrica do Sul!
Estamos, pois, no braseiro que já queima, à volta,
pondo em grave risco a nossa existência!
Que Deus se compadeça dos espoliados!

Tondoro
1-4-1976

Os refugiados já passaram ontem,com
destino ao Rundu. Formando coluna,vieram juntar-se a
outros infelizes que deixaram o Calai. Qual o seu
destino? É tudo incerto. Encheram-lhes a alma com
promessas fagueiras: recomeço da guerra pela FNLA
que já tem armas modernas e vai ser apoiada pela
África do Sul.
Seria tudo limpo, de Sul para Norte.e em breve
organizada firme resistência, em todas as fronteiras.
Depois disto, voltariam para Angola todos os
refugiados ( brancos e pretos).

Mais um engodo para adormentar!
Eu perdi, na verdade, toda a esperança. O MPLA no
poder, reconhrcido já oficialmente!...
Como vão agora apeá-lo do trono?!.A OUA, as
Nações UNidas e até Portugal, já fazem muita força.

A invasão armada com armas sofisticadas talvez
seja eficiente, mas eu não creio nisso!
A Rússia onde pega, não é para largar!
Vinte e três mil Cubanos, todos postos em armas, já
infundem respeito!

Além disso, 5oooo famílias, vindas de Cuba, e
4oo técnicos, importados da Rússia constituem um
peso que é difícil remover!
Engano da minha parte? O tempo o dirá!

Verifica-se, pois, o que dizia o grande Salazar:
" Saí vós, para entrarmos nós!"
Cuba exporta assim mercadoria humana,
substituindo os Portugueses,forçados por inveja
a abandonar o que era seu e lhes custara sangue.
Ainda se, ao menos, houvesse bom lucro,para
a triste Angola! Mas não ! Só prejuízo!

Efectivamente, os que vieram e virão são todos
estrangeiros e, nessa qualidade,hão-de sempre actuar,
ao paso que os Portugueses consideravam Angola
como pátria sua, trabalhando nela, de alma e coração
O que ali ganhavam lá era investido

Tondoro
2-4-1976
Após o almoço, vou para o Sâmbiu. Esta
Missão dista somente 32 quilómetros, indo alguém para
a Zâmbia, com início no Rundu.

O motivo grave que lá me conduz é de ordem
familiar: fazer um pedido, para efeito de emprego.
Meu cunhado Martins gosta de traballhar e não
suporta o ócio.
De facto, saímos do Chitembo ( Angola )em 26 de
Agosto, de 1975, Desde essa data que temos nós feito
senão cismar?! Quantas sugestões! Quanto alvoroço!
Que tamanhos sobressaltos!

Uma vida angustiada,consumida em dor!
Pois, como ia dizendo. hospeda-se no Sâmbiu um
padre alemão que tem amigos, lá em Tsumeb, onde há
há grandes minas. Admitimos a hipótese de arranjarem
ali o que nós pretendemos.

Lugar de motorista? Excelente coisa! Ao menos,
ganhávamos dinheiro, para fazer as viagens, ,rumo a
Portugal.
Escrevi para o Brasil, a pedir informações. Aqui é
perigoso demorar-se a gente.
De um dia para o outro, pode tornar-se um
braseiro vivo, onde tudo fica assado.

Os nativos odeiam os brancos, muito mais que em
Angola, A causa disso reside talvez no apattheid.

Hoje, exactamente vem a Polícia do Nkurenkuru,
para idenificar a minha família.

Vamos ver o que dizem, mas é plano meu levá-los para
Nyangana que dista do Cuangar 250 quilómetros

O Céu me ajude a vencer tamanhas dificuldades.

Sâmbiu
3--4-1976
Seis e 25.
Deitando-me às 23, acordei às 5 e 10, para ultimar
variadas coisas que tenho de fazer.
O Sâmbiu para mim foi lugar inspirado, já que o
Padre Roosmalen me ajuda e conforta.
A pedido seu, vim hoje aqui. Vai dar-me
vestuário para toda a família e faz hoje um pedido. a
favor de meu cunhado, com vista ao emprego.

Logo de entrada me ofereceu 1oo randes, para dar a
minha irmã. É Deus certamente que o move a tanto!

Será,na verdade, o primeiro sorriso que o Céu
nos envia, após dias tão maus que vivemos em Angola?

:Decorreu, na Misão, um Retiro Espiritual, no qual
tomaram parte 28 professores: havia-os primários e do
Ensino Secundáriorio.
Ora, o conferente é um Padre de Tsumeb, a quem
o Padre Roosmalen faz o tal pedido. Sendo influente na
dita cidade, pode haver sorte.

No meio de tanta lama, vicejam belas almas, para
as quais a caridade não é palavra morta!

Que Deus tome em conta a sua nobre intenção e
dardejem sobre elas muitas bênçãos do Céu.

Daqui a momentos , já vamos ao armazém,para tirar
roupa e o mais que for preciso.
Irei, depois, rumo a Nyangana, para aceitar a
oferta que o Padre Wirth me fez.

É das Missões que fio o meu viver e o futuro
que me aguarda.
Os homens operam, mas é Deus quem iinspira

Nyangana
4-4-1976
Escrevi uma carta, destinada ao Brasil.
Estou ansioso porque venha a resposta.
O Céu a acompanhe, guiando seus passos e inspirando
ajuda, num bom coração.

Enderecei-a confiado ao primo Joaquim, residente
no Pará. Vai fazer 14 anos que me vendeu o Taunus.
ainda quase novo ( 13ooo quilómeros ).

Foi nessa altura que me deu um cartão , oferecendo os
seus préstimos, no longínquo Brasil.

Convidou-me gentilmente a passar ali férias. Aproveito
agora, se Deus o inspirar.
Tem a carta por fim solicitar informações, acerca
do viver e, juntamente, facilidades de emprego, na
grande nação.
O primo Joaquim é pessoa influente e, pela sua
bondade, capaz de me ajudar!.
Iria com os meus, deixando para sempre o
continente africano. Se a vida sorrisse, naquela parte do
mundo, ali ficariamos, durante alguns anos , tendo em

vista o repouso que há muito perdemos.
Será Deus que nos chama, através de alguém
libertando as nossas almas do grande pesadelo ?

Segue hoje a missiva que o Padre Hermes Wirth
a levará com ele, para delxá-la no Rundu.
Fico em grande expectativa.aguardando o
resultado, pois no Sudoeste, não estamos seguros.

Deus valha nesta hora e nos abençoe,
permitindo às nossas almas repousarem tranquílas,
Já sofremos tanta dor!

Nyangana
5-4-1976
Hoje, que me lembre, ocorreram dois
factos que vou registar: um, agradável; outro, ao invés.
O primeiro deles foi a visita do bom Padre Abílio que já
vinha de Andara, em companhia de várias pessoas
entre as quais o Irmão Álvaro.

Havia alguns rostos para nós desconhecidos,mas eram
de Religiosas, Entre elas vinham duas que
missionavam na mártir Angola, as quais seguem hoje
mesmo, a caminho do Brasil.
Segundo me parece, três da comotiva rumam a
Portugal.
As restantes saem também, com outro destino.
Quem me dera ir para qualquer lado!
Este clima,afinal, não é dos piores, e tenho na verdade,
óptimo ambiente, mas o receio fundado, quanto ao
futuro - insegurança e nervosismo - é o pão de cada
hora.

O segundo facto respeita ao meu Taunus.
Após os cumprimentos, atalha o meu colega: — Tem
algum serviço para amanhã?
Eu, então, julgava outra coisa. Talvez assunto de
igreja… serviço litúrgico ou algo semelhante.
Contudo, apontando para o carro, foram-se as
dúvidas, Pobrezinho!

Estava manco e deveras oprimido! O mau jeito que o
forçava denotava-o claramente um pneu traseiro:
amarrotado e vazio,constrangido e afrontado,gemia
tão baixo, que não pude ouvir lhhe os queixumes.
insistentes1
Fiquei triste e dorido, pelo facto em causa,
tomando logo pronta decisão: acorrer, sem demora, em
auxílio dele.
Abro, nun instante, a mala do veículo, pego no
macaco, ripo diligente a chave de fendas e mãos â
obra!
Lá o pus em descanso,ficando assim, durante a
noite. Fui vê-lo há pouco. O macaco aguentou, mas
desaprumou-se. porque o chão é muto mole.
Entretanto, aguarda paciente que o libertem pronto
da forte opressão

Nyangana
6-4-1976
Segundo período,em lidas escolares, no
Sudoeste africano. Lá fui, na verdade, seguindo o
costume: deixar a Missão, por volta das 6, afim de
chegar a horas cristãs.
A esse tempo, ainda preciso os faróis no máximo,
o que obriga a bateria a largar no percurso boa parte da
carga.
Afinal de contas, as actividades começaram mais
tarde, por ser o primeiro dia. Uma hora em cheio foi
quanto durou a tolerância.
Ao avistar-me diz o Reitor,entrando a sorrir-se:
— Good news for you!
— What?
Your salary has just come!
Escusado é dizer que fiquei radiante, pois sem
dinheiro ficamos peados! Para mais, à data presente,
não sou apenas eu que preciso dele!
Bom! Haja saúde e coza o forno. Assim dizem
na Beira os de Vide-Entre-Vinhas.

Perante o sucedido, fui seguidamente ao gabinete
do nosso Reitor, como ele indicara.Sem um tostão no
bolso, estava agora senhor dum cheque modesto,onde
pude ler: 509,18 ( randes ),
Leccionara eu de 21 de Janeiro a 31 de Março.
Nenhuma fortuna, mas já era alguma coisa!
1 rande = 30$00; dia: 7,274

Nyangana
7-4-1976
É pois bem exíguo o meu vencimento, se
bem o comparo ao de Angola Ganha mais, em Portugal,
um professor primário que, se bem lembro,recebe 8
contos.
Sendo isto assim, deduzo eu que a África do Sul
não preza o meu trabalho ou retém uma parte que lhe
não pertence.
Será defeito crónico do capitalismo?
Em países como este. olha-se muito ao que eles
chamam " serviços qualificados"
Quero dizer: sendo eu diplomado, no ramo de
Germânicas, já tudo mudaria.
Especializado não sou, realmente, mas tenho,na
verdade, um Curso Superior, equivalente a outro
qualquer. Além disso, é já grande a experiência ,uma
vez que, aos 27 anos,iniciei o labor, como docente.
Outro factor: a África do Sul nada gastou, para
me preparar
Outra razão: há terrorismo nesta região, o que põe em
risco a vida humana.
Se um colega meu, sul-africano,obtém 500 R
o meu vencimento não chega a metade!
Só ele tem boca?! Eu não sou gente?!Não dou
conta do recado?! Mas… necessidade pode sempre
muito!
Se não tenho outro meio, devo aguentar, durante
alguns meses. O ano lectivo acaba em Dezembro
Até lá,muito pode ocorrer!
Por agora, o que preciso é muita paciência, favor
do Céu e muita calma!

Liceu
8-4-1976
Afinal, a diferença que existe, entre ilíquido e líquido, reverteterá sempre,em meu favor! .Acabo
de informar-me, acerca do assunto. Náo fico
descontente. É bom!
Direito garantido à aposentação, por velhice ou
doença.; subsídio razoável em operações e nas doenças
Pena é, realmente, não ter aqui exercido,logo desde
início! Com efeito, as vantagens são muito apreciáveis.

O meu processo não foi ultlmado ainda, em ordem a
tal fim.
Se meu cunhado Martins arranjasse emprego, era
caso já, para não sair! Agora, vou pensar!
Se bem que ganhe pouco,é moeda valiosa, com boa
cobertura, o que devo tomar na devida conta.

Em Angola, ganhei bastante, mas de nada me
valeu!. Ficou nos Bancos. não sendo possívell retirá-lo
a tempo!

Mais tarde já, ninguém o aceitava, estivesse ele embora
à minha disposição.
Voltando â vaca fria, não vou deixar facilmente
o certo pelo incerto!

O maior contra, de facto, é ser zona de guerrilha.Agora
,está em brasa, sobretudo o Ovambo!
O Estado do Cavango, onde exerço a profissão, é
vizinho daquele.
De hoje para amanhã será tudo abrasado?!

Se tal acontecer,como estou ao serviço da África do Sul
, rumaremos logo na direclão do Cruzeiro. Isto, já se vê, conservando a pele!

Liceu
9-4-1976
Vou fazer já o meu primeiro depósito. É
pequenino, como pode imaginar-se, mas diz o rifão: O
pouco com Deus é muito. Nem valia a pena, se eu não
precisasse.
Rende 8%, em boas condições, não sendo a
menor poder eu levantá-lo, quando necessário.
São 500 Randes, fruto resultante de meses de
trabalho, no Liceu Shashipapo. Ficará no Rundu, aonde
vou deslocar-me, assim que possa.

O juro anual deste pobre depósito são 40 Randes.
Irei aumentando esse mísero pecúlio, afim de prover à
gasolina do carro.Trinta e dois quilómetros é quase 1
Rande, por dia lectivo.

Vou trabalhar à sobreposse, evitando ao máximo
entrar em despesas. Só expenderei o que for
indispensável. Este retraimento que toca no exagero,
abrangerá somente o primeiro ano, Após isto, Deus dirá.

Que pode resolver um triste refugiado, em país
estrangeiro?! Para mais, com 5 pessoas, confiadas a
mim, sem trabalho nem futuro?!

Boa vontade é coisa que não falta! Em Deus me apoio.
. Não será lograda a minha confiança!

Vim do meu país,fugindo à solidão, para meter.-
- me noutra, bem mais horrorosa. Simples acaso ou
Deus a prevenir-me ?

À cruz da vida não intento fugir: não sou mais
que o Mestre!
A que levo agora é já superior às minhas forças,
mas como Deus é Pai, estou bem ciente de que Ele há-
de vir,se é que, na verdade, ainda o não fez.

Liceu
10-4-1976
Ardo agora em febre, com vista a corrigir
os meus originais. É um trabalho árduo que leva muitas
horas exigindo igualmente bastante paciência.

Now or never! como dizem os Ingleses. De facto,
as circunstâncias actuais não podem ser melhores,
daqui até Dezembro.
Só tenho no Liceu, o primeiro ano de Inglês e,
embora ganhe pouco, dispomho de algum tempo que
dedico às revisões.
Iniciei o trabalho,quando era refugiado, Então,
sim, havia tempo livre, mas faltava o melhor:
disposição interior e boas condições para o fazer.
Nem um banco havia! Comíamos no chão e
dormia-se ao ar livre, chovendo-nos em cima, Que fazer
deste modo?
Apenas sofrer, reflectir e chorar!

Passado algum tempo, vim para o Cuangar, a 70
quilómetros do Campo de Refugiados.

A bondade penhorante do Missionário católico,o Padre
Abílio, redentorista, proporcionou-me logo
um clima diferente, em que os espinhos e as torturas
eram já suavizados!
Comecei, então, a rever originais, as minhas
Memórias.
Ao fim de pouco tempo, era forçoso largar, pois
doía-me a cabeça e deixava-me dormir. Estava marcado .Os sucessos de Angola actuavam sobre mim,por,
forma deletéria. O máximo de escritos não ia além de
três, diariamente.

Assim continuei, durante vários meses. Entretanto,
para rever uns bons milhares nem o que resta de vida
iria chegar.
Em razão disto, aumentei a média que sobe
agora a 10.

Nyangana
11-4-1976
Durante a manhã, consegui somente ver 11
Diários. Fiz agora a média que atribui a cada um:
a duração exacta de 22 minutos.
Se a estendo a mil, obtenho em horas o extenso
número 333. Bonito rol!
Há-de rondar os mil o número de Diários em que
já pus mão.
Alguns dentre eles acho-os curiosos; outros
amorfos; ainda outros, excitantes ao máximo.
Há-os que me irritam; parte deles é tocante: outra ainda
bucólica..

Às vezes, choro; outras ainda,rio; outras muitas,
enervo-me. É bem curioso um Diário seguido!
Quall fita magnética ou fiel barógrafo, registador, guarda
com empenho o que um dia lhe confiaram! E não altera!

Não avoluma nem diminui! Não exalta nem apouca! Não
torce nem arruga! Admirável Diário! Fossem assim os que se dizem amigos!

Não raro me surpreendo com factos narrados, que
haviam já caído no olvido total! Fico então a meditar e
cismo longamente.

De facto, a memória é deveras impotente, para guardar
inúmeras coisas!

Bela hora foi essa, em que resolvi escrever as Memórias do meu passado! Aquecem as orelhas a certos leitores,
mas se odeio o seu agir não detesto as pessoas.

Ataco a injustiça como a hipocrisia¸meto a ridículo
a falta grave de personalidade; verbero o despotismo.

Nyangana
12-4-1976
Em tempos idos,fazia as minhas contas,para
ver em breve o que sobejava, afim de aumentar o
capital.
Era um belo passatempo verificar diariamente qual o fruto exacto do meu trabalho! A ninguém prejudicara! Bem ao contrário, fosse como fosse, dava para tudo! e sobejava, sem dívidas a cargo.

Fazer os meus cálculos era mais diversão do que
nervosismo. Agora, porém, as coisas são outras!
Faço contas aos centos, para ver se a receita vai
cobrindo a despesa. Puxo e insisto, multiplico e somo,
subtraio e divido, mas não saio de apuros! Fiquei bem
contemplado com o tal 25 de 74!

Se Deus me ajudar,vencerei a barreira.
Grandes entalões fazem bem moralmente, uma vez que, se perdermos este mundo, ganharemos o outro.
É isso, na verdade, o que mais importa!

Já o dizia Santo Inácio a Francisco Xavier, quando este
ainda aluno, frequentava a Sorbona: — Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?!
Palavras de fogo que levaram Xavier a pensar de outro modo, acerca do futuro.

Nyangana
13-4-1976
Chega anotícia de que vêm fugindo os últimos combatentes! Pobre Angola! Numa guerra sem termo, fihos da mesma pátria, moradores e habitantes
da mesma terra,elementos genuínos do mesmo lar,
destroçando-se â bruta, como se eles, realmente, fossem animais!
Infeliz Angola! Tantos inocentes!! Tantos velhinhos!
Tanta gente indefesa, que se vê na miséria, sem ajuda nem carinho! Como eu vos lamento, angolanos amigos,
que, para mim, sois diferentes de outros!

UNITA e FNLA vêm fugindo de Angola, em direcção
ao Cavango!
E pediam aos brancos que não fugissem de lá!
Agora é tarde, para opor resistência! Houve oportunidades, mas isso passou! O que importa,
nesta hora, é que Angola tenha um chefe, para manter a ordem, garantindo a paz.
É preciso e urgente que desabroche e floresça um
país em botão que pode vir a ser grande e impor-se ao
mumdo! Basta já de guerras e assaltos brutais que tiram às gentes a paz e a ventura,
Finalizem os ódios e todos se abracem, contribuindo
na união, para o grande ressurgir da pátria angolana!

Todos por um e um por todos!
Paz e trabalho! Alegria e progresso!Não gostaria de
voltar a Portugal, deixando esta Angola mergulhada no luto e envolta numa guerra que tira aos Angolanos o gosto de viver!
Vejo-os por aqui, desalentados e murchos,
sorrindo a custo,e cheios de problemas.
Quando é que voltais ao lar amado que vos coube em sorte?
" Do outro lado não se pode viver"
Nyangana
14-4-1976
À maneira de excepção, veio hoje uma chuvada. É que,no mês de Abril, não é costume já,receber tais amostras. !Dizem os nativos que são
apenas três os meses de chuva:Janeiro, Fevereiro e,
por fim, Março.
Eu estranhei, porque temo a picada, sempre que chove. Ao fim de uma viagem, o carro mete dó! Dá-me
a impressão de que sai dum lago ou melhor,talvez,dum
charco imenso! Mas, enfim, é esta a vida!

O que uns detestam apreciam-no outros.
Efectivamente, sendo tempo de culturas, ficam elas
sujeitas ao grau de humidade que se pretende. Se não
chover, é a fome que ronda e vem, logo breve, fazer das suas! .,,
Mais vale sofrer eu! Que ele, afinal, são mais aguaceiros que chuva, a rigor! A valer, já não é para o
tempo!
. Estou no Liceu, faltando dois tempos, para a faina acabar: é um de Inglês e outro de Canto.

Amanhã, querendo Deus, ficamos em férias, após
os tempos lectivos. São apenas 4 dias: de sexta a segunda, por motivo de Páscoa. Faz bem o intervalo,
embora pequeno.

Em seguida, completamos já o 2º período,
cabendo-nos depois as férias de Junho
Se os meus familiares viessem ,do Tondoro.
habitar em Nyangana, seria bem melhor para eles
todos e também para mim.

15-4-1976
Nyangana
Uma série de problemas se apresenta agora, em frente de mim! Bateria gasta, família distante e falta de dinheiro, afim de obviar a tais necessidades. Foi
preciso, realmente, chegar a esta idade, para ter apreensões, de tal natureza.
Devia , sim,ter dias sossegados, após a luta ingente que foi a minha vida.! Pelo que vejo, sossego e paz não são para mim! Só após a morte os poderei alcançar.
Contra a minha expectativa, choveu ontem bastante, prolongando-se o mau tempo,ao longo da .,. noite.
A estrada é um pavor. quando isto acontece! Logo
de manhã, assomei â janela. e fiquei desolado! Lá fui ao
Liceu mas, antes disso, o carro não pegava.
Empurrei-o várias vezes, sem ajuda estranha: só a muito
custo, resolveu trabalhar

Cheguei mesmo à tabela! Dei apenas duas aulas,
pois dentro em breve, tenho de ir ao Rundu, no carro do Liceu.
Depois de tudo isto, mais outra dificuldade: o
Bispo de Windoek não permite agora uma família inteira
na Misão de Nyangana.

Que vou fazer, pois?!
Se o Padre Roosmalen me valesse no Sâmbio!
Coisas pequeninas fazem-se grandes, a olhos de
exilados.
, Basta o desarranjo em que tudo lhes puseram
para enervar-se e enervar igualmente as outras
pessoas!
Será difícil compreendê-lo? Talvez..
Só a caridade e a paciência cristã poderão ajudar,
nesta encruzilhada

Amadora, 7 de Março de 2oo6
Pedro Inês da Fonseca