Vide-Entre-Vinhas
1966
Como estudar os verbos da Gramática.
Chegou, prontamente, o primeiro dia de aulas, no mês de Outubro de 1932, com trabalho a sério. Tudo agora é diferente: a nossa escola, o professor e o próprio método, não falando no local e materiais didácticos.
Um pouco antes das 9, lá vão, de facto, 4 rapazinhos, em grande alvoroço e funda angústia, rumo ao Outeiro, onde se ergue airosa a nova escola. Ai! Velha escola, sita na Portela, sombreada ali pela grande nogueira, que surgia promissora, lá do Chão da Fonte. Em seus ramos viçosos, pendurava eu o corpo delirante e inebriado!
Ali, no antigo edifício do ‘ Velho Casal´ fora eu bem feliz!
Que saudade eu guardo, no íntimo do ser, por uma jovem adorável, que
Me acarinhava, qual mãe extremosnca mais a vi! Parece que morreu, ainda novinha!
Também não posso esquecer as outras professoras, muito
dedicadas e boas amigas: Maria do Céu,0 Maria do Carmo e Clementina.
Passar duma jovem, na qual reside sempre um coração de mãe.
Para um cavalheiro, por melhor que ele seja, é motivo de angústia! Por
Isso é que o António , o Joaquim, o Pedro e o Fernando ( 13 anos, e 16, o último). trocando impressões, acharam demais!
Ficámos abalados, sem pingo de sangue! É que ele mostrou-se exigente e determinado. Como iria ser a nossa existência, a partir de então)! Por fim, pegou da gramática, indicando a página, com o verbo
‘haver’.
Recordo ainda o momento preciso, em que se deparou a meus olhos pasmados o quadro verbal, completo e simétrico. Ao alto da página ‘haver’. Mais abaixo, em pequenos quadrados, encontrava-se exarada a conjugação verbal. Achei engraçadtanto quadradinho e demorei o olhar, fixado neles.
Nunca vira linhas e figuras geométricas tão desempenadas e em tanta profusão! Bem, diz então o novo professor, José Ribeiro de Almeida,
Hoje, não damos nada, porque é o primeiro dia. Amanhã é que ai já como de ser! Estudais muito bem as lições marcadas e ai daquele que se apresente em branco! Racho-lhe os miolos, de alto a baixo!
Íamos penar, avaliando pela amostra.
Cá fora, uma vez sozinhos, fizemos em surdina comentários lastimosos,
Avivando-se mais os dias saudosos, que haviam passado. Mas que fazer?!
Trabalhar e mais nada!
No dia seguinte, esperava-nos já uma grande surpresa.
Começou-se pelos verbos. O primeiro mártir fui logo eu.
Diz lá tu, Pedro! Presente do indicativo do verbo ‘haver!’
À quelas palavras, turvou-se-me a vista, sentindo claramente que o chão me faltava, debaixo cós pés.
-- Presente do indicativo…
-- Ada, rapaz, tu não sabes já o tempo presente do modo indicativo?!
Arrisquei duvidoso o que vira, na véspera, ao alto da página: haver!
Todo eu tremia, da cabeça aos pés. Jamais na vida me vira tão nada e, ao
mesmo tempo, de forças tão débei, para triunfar!
Adeus, adeus, carinhos do lar e de mestras adoráveis que me olhavam com ternura! Em seguida, via na minha frente um homem forte, decidido e pronto, sem ares de compaixão, tendo sempre â vista a “menina” de 5 olhos, Era volumosa essa palmatória! Que iria ser de mim!
Se apenas sabia a palavra ‘haver?! Julgava eu, na minha ingenuidade, que
bastava aquilo!
Então, esse homem terrível desvia de mim seu olhar inflamado e
Avança para outro, que apenas repete o que eu havia dito: haver!
— Ai os almas dum raio! Nascestes aqui, debaixo das lapas, mas hei-de matar-vos! Agora, já trememos todos! Nós, de medo: ele, de raiva!
Repetia-se o mesmo, ao terceiro e ao quarto!
—Já vos desgraço!
Enquanto profere as palavras escaldantes empunha a palmatória que
assenta frenética em nossas mãos, Em pleno dia, vemos, com nitidez as estrelas do céu!
Foi aquela, por certo, a primeira hora negra da nossa existência!
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1966 Pranto desfeito
O pobre miúdo, que era eu mesmo regressava da Escola, mas subia os degraus com maior lentidão O seu olhar mortiço fixava-se então em lugar incerto e perdera inteiramente o brilho peculiar Agilidade em seus movimentos, pressa de comunicar ,ademanes de criança, tudo se fora!
Por isso é que a mãe, supondo coisa grave, irrompe, angustiada, na
pergunta seguinte: Que tens, meu filho? Estás doente?!
Neste passo, rompe-se o dique. Como água represada se esgueira precipite, através duma abertura, assim correm as lágrimas, vertiginosamente, sobre o rosto pálido da criança amargurada. Aproxima-se da mesa, à entrada da cozinha e, apoiando a cabecita sobre
os braços trémulos, soluça oprimido e já inconsolável.
. Impossível exprimir-se! A mãe, alvoroçada, esmera-se então em desvendar a causa real da triste ocorrência, mas tudo é vão! Só lágrimas a flux e fundos suspiros, entremeados já de soluços arrepiantes! Impossível! dialogar! Era preciso, já de antemão, aliviar o espírito, deveras oprimido,
em que a dor se instara, como dona e rainha, agindo e dominando.
Carinhos maternos, súplicas ardentes, extremos amorosos… tudo se
perde na angústia lastimosa do pequeno desditoso.
Pedido e rogado, por meios carinhosos, consegue balbuciar trementes palavras: a senhora vai-se embora!
Maria do Carmo, docente oficial, leccionara alguns meses em Vide-Entre-Vinhas, que deixou penaliza da e meio retalhado o coração do miúdo Instintivamente, sabe a criança quem lhe quer bem. Quão breve se prende! Onde vê carinho ou pressente afecto, onde há sorriso e mostras leves de bem-querer, aí cria logo seu mundo encantado!
Nada há que a afaste de um alvo assim! Qual borboleta, em volta da luz também gira fatalmente, em volta de alguém que a estime e acarinhe!
Forte coisa o amor! Seu grande poder abrange todo o mundo e penetra além-campa! Ninguém jamais se lhe pode furtar!
O maior facínora, o ser mais odiado, encontrando no caminho um peito amigo, fica logo rendido e chega a transformar-se! Também o pequenito que chorava inconsolável a desistència da Mestra experimentava, no peito saudoso, o golpe forte do tal sentimento.
Ela era tão meiga, olhava para ele com tanta doçura, falava-lhe amiúde, com tal vibração!
Doce mel da vida que tudo suporta , criando em nós o gosto de viver e de trabalhar! Começava fagueira a vida escolar, mas, como tudo o que é bom, em breve se foi! “Naquele engano de alma, ledo e cego\ Que a fortuna não deixa durar muito!”
Que importa?! Fui feliz, a meu modo e como o pode ser uma obre criança, de 8 anos apenas! O meu sonho era a Escola… a minha ânsia maior… estar ao pé dela… o único anelo: ser objecto constante da sua predilecção!
Tudo acabou! Ela morreu, na flor da vida! Assim ma constou!
Quanto gostaria de que ela vivesse!
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1966 Um Bilhete Postal
Era em Agosto. Os raios do Sol espelhavam-se ao vivo, na água das presas, enquanto vorazmente absorviam a humidade que as leiras continham. Aqui e além, arrancavam-se as batatas, pois era imprudência conservar o tubérculo, durante mais tempo, no solo escaldante.
do mar e assim também o ar da praia, afim de tonificar o organismo do bebé. Por esta razão, causasse embora grave transtorno à vida no lar, não
Se hesitou.
Pai e filho ficámos sozinhos ,no tempo das colheitas. A faina do campo, os animais domésticos e a vida de casa, tudo ia resolver-se! Todas as barreiras seriam transpostas! Que amor de família e que firme confiança
Entre os membros do lar! Fora assim mesmo o convívio humano, que
Haveria a temer?! A ventura sonhada iria converter-se em pura realidade!
Cabe-me a vez de ir ao povoado e, de caminho, perguntar no Correio se havia carta. “ Tendes um bilhete que é de tua mãe!”
Oh que alegria! Alguma coisa decerto havia a falar por ela! A sua meiga voz, expressa ali, em caracteres visíveis! Que loucura! Eu olhava, olhava aqueles dizeres, lançados, no postal. Não podia arredar os olhos curiosos.
Não podia ser! Caso bana? De modo nenhum! Era preciso, afinal de
contas, aprender a ler, para decifrar os postais de minha mãe!
Assim aconteceu!
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1966 Provas Escritas
Os nervos de afinam-se, à medida exacta que se vem aproximando a hora fatal! Tanta esperança que fica gorada! ´
Tanto sonho desfeito! Este espera dispensa; aquele está confiado em ir à oral; outro ainda alimenta ansiedade, como se, realmente lhe devêssemos dinheiro?! Um quarto afaga apenas débil esperança!
Como vai apresentar-se o papão tenebroso, cuja só lembrança faz
Acelerar o nosso coração?! Virá, por ventura, de ceno carregado, como se,
na verdade,, lhe devêssemos dinheiro?! Ou, pelo contrário, chegará, com disfarce, na mera intenção de figurar mau humor?!
Terrível monstro, que segue, a rigor, as pisadas maléficas de seus
Irmãos, Adamastor e Atlas e tantos outros!… A vingança, afinal, é o néctar dos deuses Será que os gigantes também se alimentam, com esta iguaria?
Mas vingam-se de quê?! Eterno falhado nos seus planos de grandeza,
orgulho e ambição?!
Qual é a nossa culpa, se eles, por inépcia, não conseguiram escalar
os céus e expulsar dali o poderoso Júpiter?! Entretanto, é sina dos fracos
sofrer caprichos de tiranos fortes. Porque assim é, não convém o desespero nem a tristeza!
Há que reagir como homem forte. Com seu braço viril, arreda obstáculos, arrosta firme com o destino e, confiado também na boa estrela , caminha sereno, pela estrada terrena, em cujo termo Deus o espera.
Vide-Entre-Vinhas
1966
Intrigado e curioso, arrisco um dia a pergunta seguinte: minha mãe,
donde vêm os meninos? Foi célere a pergunta? Não o foi menos a resposta materna!” Vêm do Porto!”
Inquiri, então, sobre o termo em causa, Ficando-me a noção de um grande aglomerado, onde havia muitas casas e também muita gente.
O caso passou. Era natural, pensava eu, que exportassem crianças, para
toda a parte. O caso passou, mas não me satisfez, de maneira cabal!
O que mais inquietava a minha fantasie era, realmente, o lugar exacto, por onde entrava, na .casa paterna. Eu, afinal, não tinha dado conta. Abstraindo da porta e das e das escadas, janelas!
Passado tempo, na mesma salita, onde fora desfechada a minha pergunta, outra arrisquei, afim de inteirar-me.
Por onde é que entram, querida mãe?
— Olha para além!
Enquanto respondia, apontava serena para uma pedra, harto saliente,
a meia altura da parede lateral. Fixo, então. Já longamente. O granito
enegrecido, convencendo-me realmente de que assim teria sido. Pois
qual a razão de uma pedra escura, afeando a parede?!Não tinha, por
certo, qualquer noutra explicação!
Dali por diante, as visitas de inspecção tornaram-se frequentes,
Embora o efeito não me quadrasse, por não ser visível
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Vide-Entre-Vinhas
1966 As Pontes do Burgo
Ao falar deste assunto, há que encher-me de coragem, pois de outra
maneira, falece o ânimo. De facto, quem atravessa as úteis servidões há-de saber, de antemão, que tais lugares se convertem, desde logo, em
vazadoiro de toda a porcaria. Não sei, que me lembre, nem consta ainda
que haja no mundo tão vil associação: progresso e fedor que vem da
imundície
Em boa verdade, estas servidões representam um avanço, tanto mais que são feitas do próprio granito, sólido e tenaz que nos envolve aqui.
Mas vão lá pensar naquilo que parece um alto contra-senso!
Ex actamente, o que é moderno é que põe em fuga os que são ousados!
Com efeito, põe mais deficiente que seja a pituitária, não me convenço de que alguém haja aí que suporte, sem má cara, o cheiro
fétido! Quem se julgue forte, para tais demonstrações, experimente sozinho uma só travessia, pelas 11 da noite! Então se convencerá daquilo que eu disse!
Como explicar a triste ocorrência, no século das luzes, com possibilidades que outrora não havia?! Como justificar que ali, precisamente, é que a fetidez aflige os transeuntes?!
Naturalmente, em redor e por baixo é que se acumulam os detritos
humanos e tudo aquilo que exala mau cheiro. É cómodo, bem sei, empunhar o caldeiro, atulhado de matérias e, das guardas da ponte as atirar, com destreza, para inquinarem as águas ou então , sacudidas pelo vento, conspurcarem os ares.
Ninguém me pergunte onde é que isto se faz, mas não é na minha aldeia.
É lastimoso que isto aconteça, em terra portuguesa, nos tempos modernos de tanto espavento e de realizações que engrandecem os povos e entusiasmam a população!
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1966
Terminaram já, em 1 do corrente, as provas escritas dos nossos alunos. Horas longas, longas, infindáveis até, após noites de insónia!
A vida é isto: sofrer e morrer! Desaparece um motivo: outro surge logo.
Há férias para tudo: menos para a dor! É certo, porém, que avolumamos
bastante a própria desventura. Mercê, quantas vezes, da viva imaginação, harto exaltada, somos nós os autores da própria desgraça.
Conviria encerrá-la em boa camisa de sete varas, refreá-la com denodo, e impor-lhe, em seguida, o caminho da ordem.
De outra maneira, joguetes constantes de seus caprighos, quais
Folhas impelidas por tremendo vendaval, nada r estará senão pobres destroços! Aproximam-se agora os temidos resultados das Provas aludidas!
Entre as candidatas, encontra-se a Glória, filha de meu irmão. Que
gande ansiedade e que tormento! Esquecida como estava da instrução primária, e já numa idade um tanto avançada, para estudos liceais, foi
pesada cruz que eu tive de suportar, durante dois anos. Houve de leccioná-la, em todas as matérias, incluindo a Matemática
Eu que jamais lhe pegara, desde os anos 30!
O pior de tudo é que o lucro, na verdade, foi tão diminuto, que é débil
A esperança de conseguir média. Tudo ao contrário dos meus belos projectos e das aspirações que sempre alimentei!
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1966 O Mondeguinho
“ Não deixes crescer a erva no caminho que leva a casa do teu amigo “ Para que este anexim não seja vão, que eu tenho respeito ao saber condensado, cá estou outra vez, Mondeguinho amigo! Tua água fresquinha está derivando, por meio de 3 canos, sempre amistosa para quem passa! Como és benevolente! É que tu, a rigor, não fazes jamais acepção de pessoas ! És igual para todos, sem preferências nem antipatias!
Modelo incomparável és tu para mim! Só por ideal eu seria capaz! Por amor de Deus e da minha salvação, ainda me sorriria. Com base, porém, na mera filantropia, sem ligação com a vida futura, muito pouco ou nada poderia fazer. Escasseia-me o alento, falta coragem, mingua a devoção!
Por isso, realmente, é que não deixo de olhar para o teu exemplo,
rememorando o que tu fazes e reflectindo no teu belo agir.
Se bem reparo, a tua linfa esmorece. Porquê?! Será que, ao presente, não és generoso?! Estarás indisposto com a vil ingratidão e lamentoso desleixo de quem passa a teu lado, julgando talvez que sucederá o que eu não posso crer?!
Em vez de água, lágrimas em fio, motivadas quiçá por um destino infeliz. Se assim fosse, eras mais um irmão, em negra desventura, restando somente unir as nossas lágrimas e chorar a desgraça de um destino cruel.
Levará muito ainda a imitar outros povos, em que uma pessoa se guarda a si mesma, não sendo necessário que a Polícia intervenha e
bem assim a Guarda Republicana?! Seria interessante viver com tal gente
e observar o esmero, por parte de todos , no intuito louvável de fazer da nossa terra um belo paraíso!
Tenho para mim que essa hora virá, mas cumpre a todos nós
Apressá-la também, esforçando-nos ao máximo por colaborar, de maneira activa, no grande projecto, que se impõe, com urgência..
Então, a s ala d e visitas do nosso Mondeguinho, na Serra d a estrela,
Inspirará confiança e não será com repulsa que o turista de longe se há-de abeirar da sua nascente! Até lá, porém, sofre resignado, paciente e sereno, a javardice e os insultos malignos de quem não teve chá, logo em
Pequeno.
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1966
Dia de Reis
Ainda muito cedo, já o rapazio, de saco na mão, andava hilariante. de porta em porta.
Ó ti Ana Rosa, dê cá os Reis, faça favor! Feito o pedido, aguardam pacientes. Daqui, era certo jamais ir alguém que não levasse alguma coisa, para trincar: figos bem secos, castanhas e nozes, maçâs e mais.
Lá vem a ti Ana, velhinha sorridente que a todos contempla, sem?????
fazer ali acepção de pessoas. É assim a bondade: folga imenso de comunicar-se, não vivendo jamais para outra coisa!
“Tomai lá, mês meninos! Abre o taleigo. Isso!
Todos vão de sua casa mais humanizados e até mais felizes
A ti Ana Rosa é sempre um encanto de velhinha santa! Ela já morreu há 33 anos, mas a sua memória ainda em nossos dias me provoca
lágrimas. Enquanto, porém, os outros meninos se dão à folgança, eu fico
alheio, imóvel, pensativo!
Quanto eu não daria, para ser livre como os demais que passavam a meu lado, com figos e nozes, sorriso nos lábios e desafio no próprio olhar! Entretanto, havia por força que obedecer à ordem materna!
Só tinha licença para ir à ti Ana, à tia Conceição, à Quinta do Crucho e ao
tio Manuel. Também para ir, já pela tardinha, a casa do Prior, em cuja presença as crianças da aldeia se deviam encontrar.
Aguardávamos no pátio que chegasse o bom Pároco, para dar a cada um a moeda cobiçada – um tostão! Precisava de muitas, pois ninguém faltava e todos recebiam Como lembro saudoso essas tardes de magia, em que a vida era bela e os caminhos sem abrolhos!
Tudo isso passou e, em sua vez, achei o amargor, na senda tortuosa que meus pés trilhavam. O que jamais passará é o perfume inebriante desse tempo delicioso. Quem dera, ó Céus, que a minha existência fosse como então: cheia de sinceridade, carinho e ternura, sem o travo amargo,
que deixam na alma certas convivências!
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1966
Dia de Portugal Dia de Camões!
Uma das coisas toma-se pela outra! Bastante curioso e, ao mesmo tempo,
Irrefragável Esta espécie de equação não está mal posta, já que o grã
nde
énio, infeliz e depreciado, foi a concretização da Pátria Lusitana.
O seu coração bem como a alma eram estruturados em puro lusismo.
própria vida e o fim da existência figuram, a rigor, o ciclo da Pátria.: grandeza e colapso. Não morreu ele na pujança do talento?! Pois que representam 50 e poucos anos?! Mas a Pátria Lusitana ia adormecer, em
tempo beve. Urgia, pois, que o vate lusitano se finasse também, para que até nisso fossem imagem perfeita de um sol esplendoroso que, após a caminhada, agoniza e se esconde .
Camões! Grande Camões! Assim disse Bocage, um émulo seu, tanto na grandeza como no infortúnio, deixa que te preste sincera homenagem.
Com teu livro de ouro, cingido ao peito, sei quanto vales, para o mundo português e quanto nós te devemos, em amor e gratidão!
Breviário da Pátria que eu também prezo, há-de ser na minha vida a fonte de água viva, aonde pressuroso vou dessedentar-me, quando a minha alma, sequiosa e dúbia, se estiver debatendo na luta inglória de minguado patriotismo
A Pátria não morre, porque lhe legaste um caudal inesgotável de amor e vida, no relicário precioso mais firme e sólido que o mesmo granito, o qual é imperecível, como a alma humana.
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1966
Vinte para as 10 ! Sozinho e mudo, encontro-me agora, na sala de visitas do velho Hospital, transmitindo ao papel as amargas impressões do meu peito em angústia. Pela vasta janela, descubro ao longe o vale glaciar, que se recorta grácil e majestoso, nesta aba da Serra.
Do lado nascente, apresenta sombreados, aqui e além enquanto o lado oposto envia generoso um sorriso franco, dourado e bonançoso como o Sol brilhante, a que deve a origem.
A brancura alvinitente do bairro de S. Domingos deslumbra os nos sos olho e, mais adiante, as Caldas da vila aguardam ansiosas que o Sol benfaze jo dardeje em profusão mil raios dourados.
Ali em baixo, parou uma camioneta. Vem de Sezimbra e, segundo parece, encaminha-se breve às Penhas da Saúde .
Quem vive ao pé do mar ou trabalha na cidade gosta do campo e da própria montanha. Vejo em redor atitudes sérias, compostas,
estudadas Alguém dentre o grupo tira fotografias. Se fosse ao natural, ficavam melhor, ma s bicho humano, pedante e vaidoso, quer apresentar aquilo que não é!
Partiram eles, mas eu fiquei! Nada me prende à gente estranha.
S into fundo, como ave de gaiola, imensa nostalgia do ar puro e livre e da
Vida em potência, que os homens destroçaram!
Tento, às vezes, fugir de mim próprio, reencontrando-me algures,
Pois urge procurar os destroços inúmeros que o naufrágio dispersou.
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1966
Vem um sinistrado a caminho do Hospital. Desde S, Gabriel, desliza
um táxi a grande velocidade, com um pobre operário. Lastimoso destino que obriga o homem a defrontar a morte, para ganhar o pão da vida!
Em pouco tempo; duas fatalidades; no mesmo lugar! Tantas são, pois, as famílias enlutadas
À volta da ocorrência, prostração de uns, curiosidade de outros,
lágrimas escaldantes, em rostos desfigurados! Não posso observar!
Esmaga o coração! Gemem … Choram… Lamentam ! Ai o meu irmão!
Ai o meu irmão! Como a vida é triste!
Simultaneamente, outros , se divertem, sem a mínima atenção para o facto lastimoso. Mas, que seria de nós, atendendo piedosos a todos os lutos e partilhando ,igualmente, em todas as dores?!
A vida humana que já de si própria é bem tormentosa, ficava
Insuportável Não levemos, pois, a mal, que outros se divirtam, enquanto nós choremos! Tempo virá, em que nós, decerto representaremos o mesmo papel, em sentido inverso!
Aquele sinistrado foi para Deus, e nós iremos também.
O Céu nos chamará!
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1966
Solidão: Mondeguinho-Nascente-Serra da Estrela
Havia já dias que não vinha a ti! As Provas Escritas do 2º liceal
absorveram-me todo, razão pela qual esqueci tua presença, ao menos em parte. Deleita, sobremodo ouvir o murmúrio de tua meiga voz respirando, sem embargo, a frescura da brisa, que se vai gerando, à volta de ti.
Em paz eu te encontre, Mondeguinho saudoso, companheiro
Inseparável das minhas horas, tão solitárias! Somos dois amigos, que
prezam em muito a solidão e se comprazem de viver neste mundo, sem falsas presenças.
Ainda não me contaste o segredo misterioso, que te prendeu aqui
Nem tão pouco revelaste a causa da tua amargura, em que vives mergulhado, ao invés, um ser privilegiado, que harto se deleita na própria solidão?!
Fora assim, de facto, não podia compreender-te!
A mim, declaro, punge-me em extremo que deteste e aborreça o isolamento; além disso, faz-me até nervoso e torna-me infeliz!
Não gostei jamais de viver só! É jeito contrário à `propensão natural, já que o homem é gregário, de sua própria natureza. Mas o que prende não é, a rigor , o contacto social. Esse detesto-o eu. Amo, sim, a família, os amigos, sinceros a saúde e a luz, o calor humano e a bênção divina
Isto é,na verdade, o que me dá prazer e eu gostaria de encontrar eéu gotaria de usufruir. Ser á também, por modo igual o que te vivifica,
N esta solidão, em que vives mergulhado?! Ou é s tu, possivelmente, de outra natureza?! Um ser esquisito, diferente de mim?!
Hoje, decido não demorar muito, porque não estás só! Veio alguém cá limpar-te as impurezas, que são mesmo tempo sinal denunciador.
Q uando eu me lembro de que lá, na Suíça lacustre e montanhosa,
falta coragem a todos, para atirar ao chão papéis e cascas! E se juntar
a isto que até na própria Serra,, vão as coisas pelo mesmo! …
É lastimoso que, no teu arredor, jazam por acinte ou ainda volteiem papéis imundos… se avistem detritos de natureza vária e, sem rebuço. façam do teu átrio um lugar asqueroso, onde não há pejo de atirar ao chão seja o que for!
Quando será, Mondeguinho amigo, que o povo te respeite e que,
Satisfeito da água refrescante que tu lae ofertas, se afaste saudoso,
Deixando a testada, como a encontrarei!i
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1966 Corpo de Deus
Manhã nebulosa, húmida e fria! O vento agreste dobra inclemente
os ramos das árvores, enquanto a minha alma é vergada e sacudida pela desventura, que a tem acompanhado, ao longo da vida.
Hoje, é um dia festivo: grande milagre estamos comemorando!
Como católicos, vivemos e sentimos a grandeza do mistério, pois tem como centro o Deus que se fez Homem , para nos tornar de homens em
deuses!
À meia tarde, organiza-se, pois, segundo é hábito, luzida procissão,
tomando nela parte os Organismos Católicos e bem assim as Autoridades. Para o nosso bom Deus, tudo o que se faça, nunca á demais!
São 20 para as 9. Todo o mundo, nesta hora, anseia a valer por
tempo bom, pois é dia de festa! Entretanto, o cariz não vai de animar!
A chuvinha está caindo, lá do céu pardacento, em jeito de ameaça!
“Parece azar!- diz um sujeito, quando o nosso burgo deseja bom tempo é então precisamente, que ele vem mau!”
Não vale a pena abespinhar-se alguém, A efectuação duma coisa desejada está, realmente, ao nosso alcance” Está vedada
As condições climatéricas são pertença absoluta da vontade humana)! Podemos nós orientá-las a bel- prazer?”
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1966
Junto à Dorna
É o tempo das vindimas. Por isso, o ti Cândido aproveita a ocasião, dispondo as coisas, para a nova tarefa. A dorna antiga encontra-se, de facto, junto à fonte do cão, cheiinha de água, para embuchar; o cesto velho e algo achacado sofrera um concerto, ao vir o cesteiro; a cesta de verga aguenta bem as tarefas anuais.
— Ó Ana, pas que vou até ò Chão! Os gachos vão stando!
— Olha, vai quer não, Antonho!
Pensando o caso, era logo resolvido. À noite, junto com as cabras, vinha também o primeiro cesto de uvas, para a dorna grande. Ao outro dia, um pela manhã, outro de tarde. e sempre assim, até findar!
— “ Os cordões do Chão, os da Tapada e o da Ladeira bem como os da Horta quase emeiam a dorna! Agora, é esperar somente o esmagador! Ficara apalavrado. Num pequeno serão, faz de enfiada uma lavagem às pernas, como não fizera, havia já um ano!”
Todos os dias, à noite, se verificava a dorna. Eu acompanho também a dita operação, assistindo, embora embasbacado, ao correr
da cena.
Vamos à loja das cabras, onde tudo se arruma, na primeira divisão,
separada por caniços que observo ali. Faz-me dar mil voltas ao miolo espavorido! A candeia de petróleo é logo introduzida no vasto recinto,
não se apagando., ao entrar na dorna.
A ordenha das cabra e a velha candeia
A loja dos animais fica por baixo da casa habitada. É muito quentinha, ainda no Inverno, pelo que o gado se deleita imenso, dormindo ali. Nem por sombras algum resfriado ou coisa no género!
No regresso da pastagem, vêm como pipas, abarrotadinhas !
Dá enorme prazer olhar com demora, para as 4 cabrinhas , tão meigas e dóceis, que parece fugirem à regra geral: Laranja, Nogueira,
Negra e Rouxinol! Nota-se claro, nos olhos de todas, a alegria de viver.
Sentem-se felizes, em grata companhia, tendo por boas todas as canseiras, só para encherem o ferrado habitual.
O ti Cândido está já dentro, com a vasilha na mão direita. Abeira-se então dum orifício, que leva à cozinha e toma a candeia, que a ti Ana lhe chega, do 1º anda.
Quanto à ordenha, o ponto mais belo e cheio de interesse, é a disputa em conseguir o primeiro lugar: ela própria se ajeita, sobre a vasilha!
Restava agora saber qual o dia exacto de tirar o vinho e fazer a água ardente. A reacção da candeia, ao entrar na dorna, daria a resposta.
“Ó Ana, inda num stá: a candeia num s’apaga!”
Manteigas
1970-11-30
Decorreram dois anos, recheados de angústia!
Era um dia como hoje, belo, de bom augúrio, em que fui a
Monte Anil, com missão arriscada. Por um lado, sorria-me o futuro, concretizado em viva realidade, que me enchia de gozo;
por outro, levava comigo enorme incerteza, sobre problemas da minha vida!
Como iam receber-me?! A minha qualidade e temperamento e o receio natural que transbordava intenso, dum caso delicado: tudo isso enegrecia o meu baço horizonte. Mas o pior não podia supô-lo!
Era cedo, para tanto! Hoje, pois, que tudo é passado, e infelizmente, resolvido também, olho de perto e avisto claramente o abismo tenebroso, em que mergulhara.
Inocente ou culpado?! Creio não me engano, dizendo simplesmente: uma coisa e outra! Mas, se eu penso com acerto,
muito mais inocente! Agora, porém, tudo se esvaiu e as incertezas vão-se apagando. O tempo leva tudo. O aixe fundo que veio a sangrar, refez-se já completamente, e a noite escura
volveu-se em dia.
Mas que longo rosário de penas e dores e que noites amargas! As trevas densas foram espancadas pela aurora que surgiu. para o meu coração!
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1970-12-01
Manteigas Continuação
Cheguei, por fim, a Monte Anil. Uma noite agitada, pois a incerteza lavrava no sono! Andava arredio, não havendo maneira de chamá-lo a mim! Jamais esquecerei essa noite longa, passada, em parte, na Praça M. Lembra-me tudo como se hoje fora, de modo especial, uma conversa, que terminou o serão.
. O que ele me disse, relativo ao pai, causou-me arrepios! Que mentalidade tão diversa da minha, na mesma idade! Impudor e arrojo casavam-se nele, à maravilha ! Era de estarrecer!
Se eu tivesse um filho daquele jaez, não sei que lhe faria!
Ignoro também o que viria depois a suceder-me . Julgo que o pendurava, de cabeça abaixo, ao alto duma trave. Respeito e carinho, humanidade e gratidão, não podiam encontrar-se num peito como o seu!
O que mais me feriu e gelou o sangue foi o arrojo, a estupidez, o desamor e a leviandade! Como é possível, interrogo-me agora, fazer referências daquela natureza?! Trata-se, pois, do autor de seus dias!
“ Era filho directo de prazer e egoísmo! Nem sequer tinha sido consultado, para vir a este mundo! Se a vida lhe não sorrisse, contra quem se voltria? Desatinos e loucuras, estroinices e estúrdia tudo lhe era lícito, uma vez que seus pais tinham grave obrigação de assumir, para logo, a responsabilidade!
Censurando tal obra, vá um pano molhado, mas guardemos a substância, que há-de ser maravilhosa: obra de séculos e obra de génio!
Lisboa
1970-10-06 Juventude e Ensino
Para ministrar o ensino aos jovens, vários factores são necessários: competência e calma; engenho e paciência; boa disposição; eloquência e prestígio; adaptação- da parte do mestre:
receptividade,: alegria e senso; aspirações; interesse e entusiasmo; humildade e constância... por parte do aluno.
O interesse desempenha, sem dúvida, papel importante. Prender o aluno com alguma coisa, de modo a interessá-lo, eis a mola real de todo o agir! Que sucede, no entanto? O mestre inamovível, virado ao que foi, contrapõe-se ao aluno, aberto ao futuro.
O que a um desagrada é precisamente o que enleva o outro!
Sendo isto assim, gera-se desde logo incompatibilidade. O aprendiz adora futebol, mas o seu mestre ou não lhe sorri ou até o verbera, impiedosamente; o mestre acata respeitosamente os valores do passado, os heróis e os santos, ao passo que o jovem escolhe outros factos.
Que urge fazer?
Descobrir primeiro os centros de interesse da nova geração, para logo se adaptarem os processos em vista. Conhecidos os clubes, os cantores da rádio, como da televisão, actuar em seguida. Estes elementos entusiasmam os jovens.
, Organizados em grupos, apontam no quadro os erros, detectados: uns, representam o Sport; outros, o Benfica.
As meninas procuram imitar um célebre cantor. Se nós atacarmos as suas preferências, mofam de nós e seguem outras vias, com alto prejuízo, para todo o Ensino, envolvendo igualmente o nome e o
prestígio do professor rejeitado.
Manteigas
1970-10-07
Chegou-nos agora o frio cortante e, com ele também, a nossa tristeza. É um ar gelado que fere e arrepia, insinuando-se no peito. Havia muito já que o não lembrava e era-me agradável tentar esquecê-lo, inteiramente. Mas não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature! Razão especial por que o frio incomoda, sem dó nem piedade!
O cortejo a que preside é luzido e pomposo: vento, chuva e neve! Constou-me há pouco haver já nevado, na Serra da Estrela! Sendo assim, como não temer?!
Neve branca e fria que enregelas o peito, angustiando a alma: como hei-de querer-te, se me pões a tiritar?! Como hei-de amar-te, se enregelas a alma e torturas o corpo?!
Homenagear-te é coisa que não faço, pois, na verdade, falece-me a coragem! Que dizer de ti? Mais vale calar-me e ser discreto, pois de outro modo, a vida é mais dura! Eriçam-se logo todos os cabelos arrepiam-se as carnes… entorpeçam-se os membros! Um horror
Consumado! Que monstruosa desfeita! Chegou sem aviso e depois banqueteou-se, de maneira lauta, ostentando na fronte um sorriso escarninho ! Fugi logo para casa, em busca nervosa de pobres agasalhos. Aqui fico tremendo, enquanto aguardo e sofro, como alma penada !
Manteigas
1970-10-08
· Muito a sério foi este início das aulas! Toca, pois, a vez ao 2ºano, que tem Português. Avisados embora, de nada valeu! O Biscaia do Sameiro é que usa da palavra, quanto, ao verbo ‘ser’.
Interrogo e pasmo! Era impossível! Falta de trabalho! Não há dúvida! Ameaço, de novo! Estais perdidos comigo! Inauguramos a ‘palma!’ A estas palavras que eles, por tradição, conhecem já, tremendo calafrio percorre o seu corpo. Os mais cábulas julgam chegada a hora do amargor! Mas a vida é isto mesmo e há que lutar, para enfrentá-la, sem desconsolo! Para tanto, urge trabalhar!
A preguiça é herança que fundo se entranhou em nossos membros! Só pode vencê-la quem, for instigado! Fora, pois, digo eu, com manias tontas! É que elas perturbam alma e corpo e não deixam avançar!
Todos olham para mim, algo consternados, aflitos alguns, parecendo fazer já uma promessa estável;” trabalhar e porfiar, pois assim não é viver! Siga a lida… fuja o dano! Nós queremos lutar!”
Olho. Uma vez mais, figurando rancor, tendo embora no peito a brandura de sempre. Era apenas receio que desejava infundir, não fossem valer-se da pouca energia!
´´E semana decisiva a primeira do ano: vai sempre influir no passo fatal que se apresenta no fim.
Manteigas*
1970-10-09 A ti, Joaquim Cuco.
É asilado, cá nesta vila, fazendo. parte viva da exígua comunidade que reside no Hospital. Pequena, agora! Concluídas as obras, vai por certo, aumentar!
Ora bem! Voltando à personagem, cabe dizer, a propósito, que é bem apanhado o tio Joaquim Cuco e um tanto velhaco!
Mal empregado, sem dúvida, pois é inteligente e algo expedito. Se pusesse as qualidades ao serviço do bem, era bom elemento, na Cruzada Cristã. Entretanto, as suas lucubrações revestem, ao que julgo, aspectos negativos e nunca me foi dado saber, alguma vez, que tivesse, de facto, objectivo diferente,
Poderíamos até chamar verrinoso seu carácter agressivo, traiçoeiro e mordaz! A virtude, para ele, não conta nada e malsina os actos, seja de quem for! Faz apenas excepção, quando alguém o contempla, dando-lhe moedas. Se é por meio delas que lhe vem o tabaco! Mas, francamente, alimentar os vícios é coisa que não quadra! Eu também não fumo e vou subsistindo!
Há dias, falou ele num caldo de botelha que é “ levezinho e agradável ao estômago. Referiu-se também, com segunda intenção, à água da comida, que está precisando de maior economia, pois “se gasta em excesso”.
Aquilo é boa rês, o malicioso do ti Joaquim!!
Manteigas
1970-i0-10
Primeiro fim de semana, já no tempo escolar.
Qual turista ansioso que chega, finalmente, ao cume do monte, respira já fundo, com alto prazer, assim eu também repouso satisfeito, ao chegar o sábado. É um ponto de apoio, um desvio agradável, um arejar interior que dispõe sempre bem.
Com toda a certeza, não pode o homem trabalhar sem descanso, pois se esgotaria, ficando arrumado. Urge, pois, fazer paragens, de vez em quando, afim de refazer-se e tomar alento.
A caminhada é longa, extensa como a vida, exigindo, por isso, esforço e coragem. Empecilhos e obstáculos de várias origens, problemas a rodos, um sem número de coisas, por vezes,
inesperadas e até insuperáveis!
Nesta lida constante, vão-se as energias e dissipa-se o esforço: gasta-se a existência, Ninguém pode esquivar-se, que nascer e trabalhar é tudo o mesmo. Apesar de tudo, quanto mais árdua for a tarefa, mais apetecido se apresenta o descanso!
A minha lida, bem que agradável e assaz estimada, gera monotonia e produz cansaço que redunda em nervosismo! Sempre igual ou semelhante, desafina os nervos… pede silèncio…demanda sempre vias diferentes, A isto se destina o fim de semana, que nos acena, de longe, com doce refrigério
******.
Manteigas
1970-10-11
É um velho asilado que andará pelos 70, se bem calculo.
Rumava eu,, de manhãzinha, a S..Sebastião, distendendo os nervos e gozando o belo dia que é tão desejado, no Covão sombrio.
A essa hora, ainda matinal, já Manuel Badoca chegava ao tanque, para lavar a roupa de uso, que não quer extraviada. Avistando-o ali, fixei-o por momentos: agitava um lenço, na água resfriada, Movimentos retardados, a atitude prostrada e o busto recurvado, denotavam fadiga, talvez necessidade e bastante cansaço.
Detive-me lá, por mais algum tempo, olhando para ele.
Dizem, realmente, que não é só, pois tem uma filha, o que é excelente, na vida do homem. Há, na verdade, quem ponha nisso a maior aspiração. Uma filha dedicada é o que há de mais belo, para um homem viúvo.
Que centro formoso de gratas recordações! A noiva e a mãe, nos dias de glória e vivo encanto, vê-os o pai no rebento novo! A esperança no porvir, arrimo e consolo, fortaleza inexpugnável, contra os dias maus, tudo nela se encontra!
É um sorriso permanente, doçura que enternece, carinho que adormenta ! Quem a pode igualar?! Só Deus do Céu é, na verdade, mais belo e santo, por não ser criatura! Mas, neste mundo, uma filha abençoada é tesouro sem igual!
Entretanto, aquele homem vive só… está isolado e não tem ninguém ! Que dor e aflição ! Que tristeza imensa!
Manteigas
1970-10-12
Ontem, finalmente, resolvi pôr à prova a minha resistência, após a grave e longa enfermidade, que me reteve, no Hospital.
A minha partida foi às 9 horas, depois da Missa. Saí de casa, sem rumo definido, mas em em breve tempo, aclarou-se tudo.
A capelinha airosa de S. Sebastião acenou-me lá do alto , com o seu Cruzeiro a dominar-lhe a fronte. Hesitei alguns momentos, por ser difícil a íngreme subida mas, por fim, decidi-me e fui!
Havia já 10 anos que o não fazia, indo sempre a pé! Ainda me lembro! Tinha, na verdade 42 anos, quando fiz, em 2 horas a ascensão da montanha. Em regime forçado, escalei vitorioso a Fraga da Cruz! Agora, porém, tinha de ser moderado! Não faltaram desejos que a tal me estimulassem! Nem brios caprichosos !
Olhei uma e muitas vezes para a crista da Fraga, dizendo para mim que era possível! Se não fora já tarde, ia lançar-me na grande aventura
Assim, limitei-me um pouco e,às 11 horas, arribava ao terreiro que faz testada à ‘Capela. Durante meia hora, sentei-me a divagar. O suor foi secando, ao passo que eu olhava, um tanto embevecido, as últimas leiras.0’
A vegetação começava a rarear e só a de altitude se mostrava
Já. A videira, o milho e as couves ficavam para trás, cedendo o lugar ao pinheiro vivaz. A esteva e o zimbro alcatifavam o chão.
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Manteigas
1970-10-13
A menina gentil dos” 5 olhos” ganhou nome e fama, neste Colégio. Havia já insinuado um possível regresso, caso fossem preguiçosos e não trabalhassem. Aconteceu, pois, o que era de prever! Um descuido lastimoso, certa indiferença, quase
Inexplicável, servem de pretexto.
O Biscaia do Sameiro foi o causador. O verbo ‘ter’ não é com ele ! Vai gozando a vida, compra tudo o que vê, sem peso nem medida, tendo os pais de custear as despesas frequentes e vultuosas. Eles que pageuem!! Utilidade ou proveito das coisas não lhe interessa!
Mas uma desgraça nunca vem só! Um abismo chama outro.
O diabo tece-as. Por isso, lá veio a sexta-feira que, por ser dia aziagado, trouxe a desgraça. O prometido é devido! A “menina adormecida” apareceu em breve, mas a sorte bafejou o Biscaia a quem não coube vez, para ir à lição.
Eram tudo olhos, tudo ouvidos. Atenção como aquela é raro encontrar.
Na primeira fila, evidenciava-se o Zé Borrego que, chamado, nesse dia, revelou ignorância, merecendo, por isso, o cumprimento rasgado que a “ menina” lhe fez.
Manteigas
1970-19-14
Ocorrem hoje as bodas de Ouro da Irmã Divino Auxílio.
Cinquenta anos de vida, consagrada a Deus, na sua totalidade!
É, realmente, epopeia vasta de generosidade, imolação e até heroísmo! Algo há de belo, na vida religiosa que lhe dá grandeza: é a renúncia!
Numa época de egoísmo, consola em extremo ver alguém generoso dedicar-se ao próximo. Porque Deus e Senhor é a suma Bondade, não deixa de premiar com grande largueza quem se doou, em corpo e alma, a um alto ideal.
Deixara a Galiza, em terras de Espanha, e, tudo abandonando, fez-se tudo para todos. Durante meio século, quantos espinhos e incompreensões! Quando outros se atolavam no vício, trilhava ela, serena, os caminhos pedregosos em que, tantas vezes, sangraram seus pés!
Enquanto outros buscavam o prazer, em áreas proibidas, oferecia a Deus, na tribulação, os espinhos agudos que feriam sua carne! Este, para o Clube; aqueloutro, para a Casa do Povo; um, para o Cinema, outro, para o Teatro!
Ela, porém, calcando ousada veleidades e caprichos, prosseguia animosa, pelo caminho tortuoso, onde acúleos penetrantes iam logo feri-la. Se o Deus que serviu é pura realidade, como tem de ser, que vai Ele fazer a uns e outros?
Distinção vai fazer, entre a freira imolada e os tais gozadores da vida terrena! Poderá, na verdade, haver dois Céus?! Terão todos eles igual recompensa?!
Manteigas
1970-10-15 Ecos de Manteigas
Emudeceu esta vila, que morreram os Ecos! Se não há fumo, é que o lume cessou! Quando é que, na verdade, se extingue o eco? Quando a voz já não soa ou não acha condições, que pronto lhe garantam a eficiência.
O jornal acabou e ficámos sem notícias! É como um ser que deixou de expressar-se, um emissor arrumado, que já não transmite, um amigo provado que se espera ainda e já não aparece!
Deixa-me saudades, bem claro está! Apesar de pequenino, votava-lhe o afecto das coisas grandes!
Por que nos deixaste, querido amigo, diligente informador, companheiro fiel de todas as horas?! Afeiçoei-me a ti, por falares do ambiente, me dizeres também o que eu esperava, reprimindo o mal.
Erasmensageiro de nobres ideais; censor arguto de coisas repreensíveis; defensor incansável de quanto elevasse o pobre ser humano!
Agora, porém, a tua voz já não soa! A tua presença é apenas um sonho e não temos quem fale! Vem, já depressa abeirar-te de nós que ansiamos por ti!! No abrir da porta, vamos revelar o nosso carinho!
Ah! Como és lembrado e objecto de conversas! Foi a velhice quem te prostrou?! O desânimo dos homens ou a má vontade?! Seria tudo isto e mais ainda!
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Manteigas
1970-10-16
O 4º de Francês já se vai adaptando. É a primeira vez que me ouve, no assunto, quase o mesmo se dando no que toca a Português. Estranheza de método, pronúncia diferente e aperto cerrado, é o que os alerta, nesta primeira quadra do ano escolar. Por outro lado, não me adapto a estranhos nem deixo passar, fazendo vista grossa. Seria mais cómodo, menos fatigante e mais lisonjeiro, mas não me submeto a este processo.
Sendo assim, é muito natural que surjam dificuldades e alguns desaires. Mas a vida humana é feita de tudo e podemos afirmar: sempre a variedade foi devida, em parte, a estas circunstâncias.
O princípio é duro, mas vencidos que sejam os primeiros obstáculos e montada a “carruagem”, é um regalo no tempo vê-la andar e progredir! A Prazeres e o Porfírio, o Mendes e a Amélia, assim como outros sentem hesitações, não sabendo, realmente, como proceder. Apesar de tudo, é um ano bom e de grandes esperanças! Disponibilidade e capacidade é coisa que não falta.
Dar-lhes-ei, para já, um período razoável, para adaptação, procurando habilmente ser bastante humano e compreensivo, embora persista no meu ideal.
Alimento a esperança de que hei-de conseguir aquilo que desejo, embora com dissabores e momentos de aflição. Que há, no entanto, sem o dedo fatal do martírio cruento?!
Não é, de facto, à custa da semente que se prepara, no total silêncio, a nova planta?! Não queira eu viver, para os outros morrerem!
Manteigas?????????ç
1970-10-17
A discussão não é oportuna, jamais entre gente de têmpera irritável. O calor provocado obscurece a inteligência, impedindo o raciocínio, enquanto o amor próprio vai criando volume e toldando a luz. Postas as coisas nesta plataforma, qual será o fruto duma discussão?!
Rivalidades, malquerenças e ódios, separação! É, pois, factor negativo, que urge eliminar, assim como tudo o que leve à discórdia.
Que importa, realmente, se os outros não aceitam a minha opinião?! Sou eu, por ventura, obrigado a aceitar opiniões alheias?! E pretendo, às vezes, impor a minha?! Muito mais acertado é ouvir e calar, ainda que passe por ignorante e incapaz!
Sendo consultado, apresento, sereno, a maneira de ver, tentando firmá-la. Ficarei bem aceito, sem criar inimizades. De outra maneira, olhar-me-ão de soslaio, vendo sempre em mim o adversário terrível
que é preciso eliminar,
Daqui, pois, indisposição, falta de apetite, insónias e nervos!
. Que lucrei eu? Será proveitosa a minha atitude?!
De modo nenhum! A minha experiência aconselha, pois, calma e bom senso, na maneira de actuar, quando em sociedade.
Manteigas
1970-10-18
“ Sou livre, porque amo o que faço e faço apenas aquilo
que amo”
Pôde alguém escrever isto e, se o fez com verdade, no que eu convenho, era por certo um homem feliz! A liberdade é, com efeito, o dom mais belo que o Senhor nos ofertou, mas ela, tantas vezes, não passa de uma sombra que aparece e logo foge!
É nela e por ela que o homem se realiza, fazendo eleição daquilo que lhe agrada. Mas, afinal, a que distância mora? A grande massa humana vive longe desse termo, imersa como está nas trevas da ignorância.
Escolher livremente, dar a preferência, conhecer a matéria!
Quantos, neste mundo, poderão fazê-lo?! É fraca minoria, na Terra infeliz, onde chora o escravo, algemado nas mãos e castrado no espírito! O atraso lastimoso, a par da ignorância, o medo traumatizante, após a violência, o despotismo, ombreando sempre com a tirania! Dura é a vida que se enterra nos antros, em vez de brilhar, nas alturas do céu! Escolher e pronunciar-se, ver e seleccionar, amar e realizar-se! Como é ditoso aquele que afirma, não mentindo, no que diz!
Preferir seus gostos, amargando aos outros é caminho de rosas,,âncora pronta que inebria o peito e
á refrigério. Não há conselhos que igualem os meus! Os dos outros são bons, mas eu, por minha parte, nem sempre os quero!
Manteigas
1970-10-19 Encontro Marcado
Após breve troca de algumas impressões, em que mostrou à evidência não ter capacidade, para certos cargos, fez-se luz, no meu espírito. Através dela, vejo eu agora. Novo-rico e poderoso,
viu-se muito em breve senhor do ambiente.
Exercer altos cargos é algo desconcertante., para quem veio de longe e não tomou chá, no tempo devido Por outro lado, sem a mínima cultura e formação sócia, ignorando a nossa época e as graves consequências de actos praticados, apresenta-se ele como árbitro zeloso e déspota iluminado,
Hoje, porém, surgiu de pronto a luz da liberdade. Nele nem outro poderão sobrepor-se aos factos em marcha.
Habituado há muito a calcar os inferiores ou a ser lisonjeado por vis aduladores, persiste na tarefa, inglória e danosa, de estender além- fronteira, as garras aduncas, na mira de arranharem, segurando a presa.
É o tipo do Marquês, homem bem exíguo, que se crê iluminado. A um tempo enjoativo e harto pedante, conserva a luz, afim de actuar, e pergunta se é visto.
Para ele, há só o exterior a tomar em conta. O que se faz em surdina, longe de testemunhas, e olhares indiferentes, isso na da vale! Protocolos e praxes, vistosos programas, jantares suculentos,
vaidade animada tais são os carris, em que vai deslizando sua velha carruagem!
O meu barco, porém, singra noutras águas Não concede a ninguém seja ele o diabo, me imponha seu querer!,
Manteigas
1970-10,20 A Paixão das Crianças
Quando vejo uma criança, o meu ser estremece: :alvoroça-se a alma ! Qual flor delicada espalha seu perfume! Eu sinto-o de longe. Embrenho-me nele e folgo de aspirá-lo!
Inebriado e feliz, permaneço alheado, sem atender seja ao que for. É um sortilégio, encanto e feitiço, e não posso resistir! Detenho-me parado, feliz, pensativo e de olhos risonhos. Eflúvios talvez ou correntes ocultas me prendem e cativam! Inocentes e puros, esses anjos dominam!
Ali, de facto, não existe malícia! Falta ainda, por certo,
o sopro abjecto, emanado a flux, da vil sociedade! Hipocrisia
ou fingimento, deslealdade ou ficção não podem, ao certo, achar-se neas.l
É um mar bonançoso, de superfície clara; um lago azul, em que apetece vogar; um céu risonho, em que brilham as estrelas.
Meigas criancinhas, que trazeis no olhar, para assim me encantardes?! A luz da eternidade e o encanto do Céu? O reflexo de Deus e o sinal do Além?!
Que me dizem os olhos de inocentes criancinhas?
Oh! Que o Céu é maravilhoso!
Que doce refrigério! Quem me dera ser criança, para Deus gostar de mim e levar nos meus olhos o sinal da eternidade!
Eu, na verdade, também já fui criança, objecto de carinhos,
reflectindo no olhar a pureza virginal, mas depois, o meu olhar turvou-se e perdeu o brilho, ficando na amargura, que é saudade e amor,
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Manteigasa
1970-10-21 Encontro não marcado
Petrarca viu Laura, quando ela, de 9 anos, foi alvo fascinante do seu olhar. Era bela, por certo, peregrina formosura, que iria dominar a sua vida inteira. Jamais ia vê-la, mas havia de ajudá-lo,
Inspirando ao poeta, em horas felizes, sonetos primorosos.Preparado este encontro?
Filho do acaso, se merece tal nome, foi mera coincidência. Ela,
criança ainda, já maravilhava as gentes de Avinhão!
Em alguns, a maioria, decerto, episódio amoroso, sem qualquer projecção! Um momento apenas, em que uma luz fulgurante
Embateu no seu olhar! Apesar de tudo, mera impressão! . O poeta dos sonetos e seu burilador, melhor diria talvez, criador do soneto, com as linhas modernas, deixou-se marcar por um sinal invisível, selo já divino que Deus lhe apôs, afim de notar-se, engrandecendo as Musas.
Quem foi que vos disse o lugar do sacrifício? Seria acaso, talvez, em que ninguém pensou?! Não posso dizer! Muito menos afirmar! A verdade, porém, é que fala sem peias.
Há encontros de morte, que geram na alma o tédio da vi da.Outros ainda que não imprimem calor algum ao cenário, onde actuam.O deLaura formosa tocou-o tão fundo, que jamais a olvidou.Foi-lhe luz e certeza, amparo e coragem, gozo e saudade.
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Manteigas
1970-10-22 Encontro com Anjos
Por não serem de matéria, impossível enxergá-los!
Eu, porém, já vi um, em tudo semelhante aos que vivem no Céu.
É verdade, sim, que tinha corpo, mas tão delicado, mimoso e subtil, que o tomei por um dos outros. Beijei-o na face, tenrinha e mimosa, tendo logo a impressão de não ser material.
Olhei com demora, analisando contornos, descobrindo pormenores. Não falava ainda, mas sorria já. Agora me lembro do belo pensamento que então me assaltou: linguagem celeste que eles trocam entre si?
Para mim, enternecido que faria tudo, só para vê-lo, não teve um olhar nem pequena atenção! O que então se passava era maravilhoso. Havia, pois, outra esfera, que prendia o seu espírito: o
Mundo puro do Além, onde os Anjos, seus irmãos entoam belos hinos ao Senhor de tudo.
E ele ouvia, com certeza, o murmúrio distante de vozes angélicas. Quieto na mudez, entretinha-se, ao que julgo, em colóquios divinais. Por isso, não olhava, limitando-se, por vezes, a sorrir.com magia.
Quis eu, depois, beijar-lhe as mãozinhas, mas não as encontrei. Agora, já não posso, que a morte o levou. É mais feliz do que eu, que morro de saudade, ansioso por vê-lo!
Manteigas
1970-10-23 Tradicionalismo e Progressistas.
Observam-se hoje, no campo religioso, fortes correntes de : acção e pensamento. Fiemos duas, que são abrangentes; uma, parada, que não arreda pé e se prende ao passado, com unhas e dentes; outra, agitada e assaz fervente, que olha desdenhosa para o passado remoto, tentando libertar-se,, para montar, afinal, uma estrutura diferente.
Ambas são extremistas e, por isso mesmo, dignas de censura. Apesar de tudo, olho com mais carinho os chamados Progressistas, quando moderados. Aquilo que é novo é sempre mais belo. Basta compararmos o Sol-nascente com a despedida, ao entardecer.
Principiar traz a vida consigo e, juntamente, a radiosa promessa. Já o entardecer leva-nos o sonho e, ao mesmo tempo, a sua beleza.
Ideias novas, prenhes de euforia! Promessas risonhas de quanto seduz! Abrir-se à vida e sorrir para ela! Ouvir atento o apelo da História e gritar-lhe “presente!”, Eis pois a atitude que é sempre razoável e urge tomar!
Emudecer e alhear-se ou ainda ensurdecer é, desde logo ficar em ponto morto ou suicidar-se! O mundo caminha e tem aspirações. Há vários conceitos, já ultrapassados; costumes envelhecidos; tradições bolorentas, Há que olvidá-las, criando outras vias e outros centros de interesse!
Unicamente Deus é sempre antigo e sempre novo!
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Manteigas
1970-10-24 Extremos condenáveis.
Por serem extremos, não merecem adesão, já que eles se tocam, segundo o anexim. Mas, se os hei-de condenar, com certa veemência, venham desde já os conservadores, que não arredam pé e tudo empreendem, para denegrir ideias e factos que
mostram no seio o gérmen do futuro.
Todas as velharias, sediças e bolorentas ou deram o que tinham e já não acham lugar, por serem desnecessárias, inconvenientes e assaz ruinosas, ou geram furor, não podendo nós
deixar de condená-las.
Trastes já velhos, acomodados e sujeitos ainda a maneiras de ver, que foram postergadas e fizeram sua época, d evem ser repelidos e postos no lixo. Quem é que vai olhar para tais empecilhos?! A fazê-lo alguém, só para arredá-los!
Conceitos houve que hoje nos envergonham, lamentando nós que os homens de então os tivessem aprovado! Bem sei, realmente, que os tempos são outros, e bem que assim é, mas não
Deixo agora de lamentar bem alto, com toda a energia, que os homens brutais hajam escravizado os seus irmãos em Cristo?!
Não é essa, afinal, a prova mais clara da sua ruindade e
causa fatal do nosso desdém?! Reprovo e rejeito a perseguição,
Que é movida, por vezes, aos profetas do futuro, que se vêem
desprezados e postos à margem não por certo, em nome da caridade.
Os derradeiros, chamados progressistas ver-se-ão obrigados a ser contundentes, utilizando meios que eles próprios condenam.
Para que servem ,hoje, as divisões senhudas, e as mal querenças?!
Que proveito advirá para a causa do Senhor?!
Não está em jogo a causa dos senhores?!
Manteigas
1970-10-25 “ Est modus in rebus!”
Há medida (limite) para tudo!
Evitar excessos, duma parte e doutra, será o ideal! Por outro llado, seguir o exemplo de cima, que é dialogar. Quando falo assim,
refiro-me ao Papa e a certos cardeais, com visão profética.. Os
factos convincentes devem aceitar-se, pois condicionam a nossa atitude..
Não será o Espírito a revelar-se a nós, chamando-nos à razão ,ela põe-nos à margem e Jesus Cristo fica olvidado.
Quando alguém barafusta, pode exagerar, mas assiste-lhe o
direito de ser escutado, indagando-se as razóes que o levam à revolta. Nesse caso, devemos assentir, pois de outro modo, veremos sem fruto o nosso papel.: será contestado.
Impõe-se desde logo a boa vontade, a compreensão, a humanidade., aliada ao bom senso e à caridade. Esta deve partir de ambos os lados, principalmente dos que são depositários( ou se
dizem tais) ) da tradição cristã
Se é certo que, por meio de vinagre, não se apanham moscas, apliquemos a nós a doutrina dos séculos, procurando sempre o justo equilíbrio.
As novas ideias vêm, como é sabido. pletóricas de vida e criam seus mártires. Sejam humanos e condescendentes os
tradicionalistas e verão a tempestade acalmar-se em breve. Ao menos, vai perder muito da sua violência. Deste jeito, limar-se-ão, com certeza possíveis arestas, ficando em preparação o mundo de amanhã. Na confusão e na luta, nem progresso nem paz! As novas ideias triunfam sempre.
Mantigas
1970-10-26
O Verão prolongado está prosseguindo, com viva angústia para o lavrador. Quem não conhece os problemas do campo, não faz ideia mínima de quanto ele sofre! Faltando a humidade, que pode esperar-se?! É meio imprescindível, através do qual entram na planta os sais minerais.
Ora, é verdade incontrastável que somente penetram, existindo humidade, para a dissolução. Claro fica já que, à margem dela, nada temos a espera ou melhor ainda, aguarda-nos a fome,
Juntamente com a angústia. Evidentemente, os efeitos da seca estendem-se
a todos, pois ninguém dispensa a boa alimentação!
O camponês, porém, agarrado à terra, que lhe serve de berço,
não tendo outro meio de vida senão a agricultura, depende das leiras e sua produção.. Daí provém seu grande alvoroço, em anos de seca.
Quando Deus quer, nem para as rendas! Como adquirir o essencial à vida: pão, vestuário, habitação?! Aonde vai mendigar para azeite e batata?! Quem lhe valerá, para nutrir os filhos, ainda pequenos)!
Oh! Como eu tremo e sofro, por tais infelizes, avaliando a sua dor e funda prostração! Não vim eu do campo?! Não sinto, por ventura, aqui, nas minhas veias, escaldante e viva essa inquietação? Quantas vezes eu li, no rosto de meu pai, essa dor amarga que tentava esconder, Mas ele não podia, que a gente adivinha! Este selo oculto ficou bem marcado no meu peito de homem!
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Manteigas
1970-10-27
· Abeira-se Novembro. É um tempo já frio, em que os arrepios, frequentes e fundos, correm de lés a lés os corpos e as almas. Tudo nele é tristonho: a natureza sem galas; a atmosfera sem gorjeios; as pessoas receosas, amortalhadas em preto. Pesada e opressiva a moldura do quadro!
· Os nossos olhos amortecem também, a alegria esmorece, as cores atenuam-se, a vida retrai-se.
Que vai então pelo mundo, para tal desconsolo? Apetece fugir, gemer e chorar, não se abra o túmulo que há-de ser-nos morada!
Se deixamos agora o campo da matéria e passamos, em breve, à esfera do espírito, notamos, desde logo, que há também melancolia. Mês das almas, fonte de saudade, que o próprio tempo, sublime gastador, não logra apagar! Entes queridos partiram
Há muito, deixando na amargura quem tanto lhes queria!
A lembrança deles é agora mais viva e a saudade muito mais intensa! Hemos de pensar naquilo que fomos e, tristemente embora, no que já não somos!
Sorrisos tão belos, quem vos ceifou?! Carinhos tão doces, quem mos roubou?! Presenças tão queridas quem mas levou?!
Tudo se foi e nada voltou! E eu fiquei só! Ninguém me consolou!
Não foi assim outrora, que me estou a lembrar! Havai alguém que eu amava e era tudo para mim1
Hoje, porém, vivo da saudade e na amarga desilusão, mas Deus é bondoso e a todos, por certo, há-de consolar!
Manteigas
1970-10-28
O fim do mês aproxima-se já, trazendo, com ele, as notas dos alunos. É, pois lufa-lufa o que agora vai correndo, sem tempo de sobejo. Os minutos sucedem-se, na voragem persistente
da vida que se esvai. O corpo é vê-lo a recalcitrar, alegando fadiga e dando razões. No entanto, urgindo a tarefa, não lhe damos ouvidos, prosseguindo corajosos, pela via espinhosa.
Agora já, as Provas de Inglês; em seguida, Português e, logo,
Francês. É interminável o grande aglomerado! Por mai s testes que reveja, não há maneira de ver-lhes o fim! Faltam ainda os de Ciências Naturais! É aquele 2º ano, com 34 alunos!
São já passados bons14 anos, que exerço o magistério, nesta vila de Manteigas. Nunca tive ainda um curso tão grande! É um não acabar As costas repontam, arqueadas e oprimidas, no infindo labutar, duro e persistente! Ninguém avalia o grau de paciência, que tais coisas requerem!
Casos há, porém, que não são desagradáveis! É quando, na verdade, se verifica esforço e lucro real. Bons resultados alegram a todos, enchendo a alma de júbilo sem par! Dá então gosto fixar nstantemente as respostas elaboradas, marcando belos números os que fazem exaltar aprendizes e mestres!
A dor atenua-se e passa de largo, pois é bem certo que faz tudo esquecer!
Manteigas
1970-10-29
Olhei para a montanha que era uso sorrir, mas logo pela manhã se mostrou carrancuda. Fiquei desiludido e, sem mais razões, invadiu-me a tristeza! Fixei várias vezes a íngreme vertente, sem me lembrar d e que viera mais cedo. Ideias tristes deveras acabrunham e revolvem meu ser, agitando o peito.
Era um regalo, bem se deixa ver, descansar os meus olhos, no sorriso da manhã. Neste vale sombrio, em que tremo e desespero, é loucura ver o Sol acenar-me da Fraga!
O Verão já lá vai, mas este ano, por Deus, prossegue na tarefa de sorrir aos mortais Importava-se alguém que o facto aborrecesse?! É natural, julgo eu, que os do campo se lamentem e chorem também. Cada um vive e sente, de maneira diversa.”Ex abundantia cordis os loquitur”
O provérbio latino, sempre velho e sempre novo, não perdeu o vigor! O que alegra o peito é que vem a nossos lábios.
Que poderei deseja, no Covão que me aterra?! Lugar sombrio e com humidade, desperta em mim paixão por tudo o que é luzente.
Quando a luz radiante começa já de aquecer-me, sinto dentro de mim dealbar novo dia. É, na verdade, como alegre despertar, em que as sombras da noite ficam breve dissipadas!
Visões ruins, assaz importunas, pesadelos e angústias, tudo quanto a noite locubrou de sombrio é logo afastado para o reino do silêncio.Como não sentir, no peito regalado, ânsia ardente e inquietante deste sol maravilhoso, que me deslumbra e renova?!
Manteigas
1970-10-30 Às 7 e 30 desta manhã, rumei ao Hospital, com fim determinado. Após a Eucaristia, prestei ali os serviços necessários, conforme o uso. Embora matinal,
a minha função tem seu encanto! Para isso contribui a brandura do
clima, que se apresenta esplêndido: manhãs sedutoras; com
auroras ridentes, que deliciam!
Em tardes primaveris e, às vezes, no Verão, não é mais
agradável nem traz mais encanto.
Entretanto, a rigor, o que mais me prendeu, na manhã outonal,
foi o vivo chilreio de simpáticas aves. De veras surpreendido, escutei-as ali, não sei por quanto tempo!
Eram cantos saudosos, hinos de louvor? Até me envergonho, quando penso em tal! Pois não sucede esquecer-me, às vezes, de louvar o Criador?! Quantas vezes nem penso que Ele é o Senhor!
As avezinhas, porém, não olvidam nem calam e, ao romper da manhã, erguem pronto seus hinos de louvor!
Quem as ouvir, nessa hora matinal, postadas aí, no cimo dos telhados ou no topo das árvores, notará por certo que o Nascente as cativa! ! Olham sempre o Levante que as atrai e prende, sem haver nenhuma força que as arranque dali!
Clara luz se difunde que atrai os olhos delas, rompendo em bem haja, que o seu canto ergue ao Céu. A gratidão não se esconde! Não se oculta a alegria! É louvar e pedir ao Senhor da Criação.
Quedei-me, pois, absorto, meditando na cena e cá dentro do peito, louvei também o Senhor meu Deus.
Este canto, porém, embora consciente, não tinha a candura nem a vibração do que há pouco ouvira! Espontâneo e fluente era o outro, por certo! O meu, pobrezinho, afastava-se tanto, que me enchi de vergonha, por ficar superado.
Manteigas
1970-10-31
Decorria animada a aula de Francês. O 5º ano ia tomando notas, seguindo com interesse a minha explicação. O Mendes, à frente e a Odete lá atrás, esmeravam-se em extremo, como todos os outros em prestar atenção, aproveitando o ensejo.
Correm velozes aulas semelhantes: não chegamos decerto a aperceber-nos de que o tempo se esvai. Quando a sineta vem convidar-nos, ficamos então algo surpreendidos, embora seja grato arejar um pouco. A meio da aula, um feixe luminoso, se projecta breve, através da janela,
Eram 9 e 5. Espreito a custo e vejo logo o astro amigo a surgir glorioso, por trás da montanha. Parecia ledo e até brincalhão. tudo inundando e sorrindo a todos Vinha dar-me os bons dias, que eu retribuí, carinhoso e grato. Intento fixá-lo, mas fico deslumbrado!
Que tela maravilhosa, em que o ouro e o brilho faziam realce!
Quem me dera, Senhor, ver sempre este foco e poder contemplá-lo, em toda a majestade! Infelizmente, porém, são raros tais dias e, quando o Sol aparece, não posso fixá-lo!
Senti-me outro homem! A sua luz de magia coou-se no meu peito, operando milagres! Ideias ruins, vilezas da vida, ignóbeis pensamentos, pronto me deixaram!! Viva alegria brilhou nos meus olhos, agradecendo ao Senhor, por haver-me oferecido tão belo espectáculo!
Manteigas
1970-11-o1 Festa anual de Todos os Santos.
Como é grandiosa esta efeméride! Multidões infindas que já gozam no Céu, por todo o sempre, são por nós aclamadas,
com grande efusão, É uma festa querida, pois todos os eleitos são da nossa família. Correu-lhes nas veias sangue como o nosso; tiveram, por certo, os mesmos problemas; partilharam também nas
mesmas dores; custaram todos o sangue do Cordeiro.
Por isso, ao crê-los felizes, no seio de Deus, irrompemos logo em hinos de louvor! Que paz e entura o coração e o peito não sentem hoje! Haverá, no mundo oug ainda no Céu, festejo como este?!
Conhecerão os homens alguma ocorrência, imponente e faustosa, comparável a esta?! Onde pode reunir-se tamanho ajuntamento?! Que lugar receberia multidões sem fim?! Quem iria descrever júbilo tamanho?! Imagino e figuro a alegria e regozijo que vai lá no Céu!
Mas, cá na Terra, sentimos igualmente o coração exultar, por
ser festa de família, a grande e imensa família humana!
É verdade, sim, que uma nuvem pesada ensombra o nosso rosto,
pois o mundo nos desvia, as paixões falam alto e o diabo desencaminha! Impõe-se, em cada hora uma luta constante, rigorosa e tenaz. Porque assim acontece, imploramos vivamente aos nossos irmãos que povoam o Céu, defendam nossa causa, junto do Senhor, para não sermos vencidos, no combate ao mal.
1970-11-o2
Manteigas. Fiefs Defuntos.
Evocamos hoje, de modo especial, as almas dos mortos e, ao fazê-lo, erguemos orações ao Senhor da vida, para que em breve as tome para Si. Algo mais podíamos nós desejar para elas?!
A presença de Deus é fonte de bem e causa de ventura.
Como avaliar a imensa grandeza e o júbilo sem par dos que estão albergados, no seio de Deus?! É por isso, reamente que sufragamos
Todos aquelas almas, rezando e sofrendo, em seu benefício.
Hoje, foram três Missa:, a eles destinadas: uma delas, por minha; intenção; outra ainda, pelas almas benditas do Purgatório;
Uma Terceira, pelas intençõoes do Sumo Pontífice
Quem vai subtrair-se a esta caridade?!
Quanto maior for a dignidade mais devemos respeitá-la.; quanto maior a vivência mais inunda o peito, Ora, neste dia, a maneira d e ajudar os mortos queridos é por boas obras, orações e sacrifícios.
Sensação indescritível vão ter hoje, decerto, aqueles que amam, beneficiando, com seus actos piedosos aqueles que sofrem
No Purgatório. A ce rteza absoluta de contribuir assim para a ventura de alguém, é motive seguro de enorme prazer!
A cor dos paramentos é preta ou roxa, para assim denotar que é o dia da saudade e a hora de intercâmbio. O culto dos mortos e a crença no Além é, sem qualquer dúvida, uma âncora segura, que Deus nos oferece.
Sem isto, afinal, viria o desespero.
Manteigas
1970-11-03
Em sala arejada, aqui no Externato, aguardo ansioso as 9 e 3º, para dar Português ao 5º ano. Aquecimento não há, que o tempo vai bom, pelo que aproveito, escrevendo estas notas, a formar Diário. A salinha ‘e airosa, de seu natural. Luz e calor penetram a rodos, Não fora o desconforto em que jaz mergulhada!.
Seria, na verdade, uma estância ideal!
Mesa avantajada é claro que não falta! Uma jarra de flores,,erguida ao centro, empresta-lhe logo certo ar de leveza.
Artificiais embora, o branco e o vermelho acariciam os olhos, em níveo fundo. Além disto, o que ali se vê bem pouco é Modestas cadeiras,e vasos dom flores que se estorcem na areia, relegadas para um canto.
Lá bem ao alto no topo do rectângulo avulta um crucifixo,, donde pende o Senhor .Está muito acima, ocasionando tal facto, passar despercebido.
Ali em frente, desenrola-se a estrada, por onde circulam après ados veículos, Vão para a fábrica, lugar de trabalho – a fonte geradora de pão e alegria. Se não fosse ela, que seria do povo?!
Encravado e calcado, nestes montes agrestes; arrumado a um canto, que a própria natureza amaldiçoou, veria passar o tempo, sem pão nem ventura.
Assim, vai lutando, com aparência de algum conforto, julgando erradamente que melhor não há´do que a terra natal!
Manteigas
1970-11-04
O tempo seco vai prosseguindo, sem visos de acabar!
Não que o deseje, pelo que me toca, mas o agricultor, cuja alma se angustia,, com essa perspective!
De facto, enxutas as terras, não pensemos em relvas, para o gado pastar! É uma aflição! Escasseia,a valer, por toda a parte,o element imprescindível – a prestável água! Basta dizer que 77%do nosso organism é feito de água! Não é brincadeira! Quem tal pensaria?!
Pois que dizer, emordem âs plantas e aos próprios animais?! A rigor, não sabemos explicar a razão de tal facto! Mas que vai nisso?! Ele há tanta coisa que se esconde a nossos olhos! ”
Quem explicaria a união substancial, entre a alma e o corpo?! Que ela existe é um facto inegável. E compreendê-la?! Parece até haver contradição! Para mal dos pecados,, até em Manteigas sentimos escassez da linfa desejada! Parece um absurdo, mas é
realidade!
Entre tanto, devo esclarecer; água não falta, nestev vale glaciar! Fosse ela explorada, conversaríamos! A fonte Paulo Luís Martins é um caudal inextinguível! Quando servirá ela os grandes intaresses dos Manteiguenses?! O plano concebido talvez não demorea ser aprovado. Então, sim, que nem mesmo o Verão exaurirá tal nascente!
Nem os gados nem as gentes sentirão a dura sede!
Manteigas
1970-11-05
A Igreja impõe duras leis, concernentes ao divórcio, controlo de nascimentos e celibato eclesiástico. Quanto a este, de que vou ocupar-me, as coisas mudaram, embora muito haja, para fazer ainda. Era um beco sem qualquer saída. Praticamente, não havia solução.Como era lastimosa e incompreensível tão grande severidade!
Muitas almas hão-de ter-se afastado ou caído no desânimo, por julgarem impossível o cumprimento da lei.. Manter a lei severa, sabendo ao certo que muitos deles a não cumpriam, era lastimável! A transgressão duma lei que é posta em causa, gerando revolta, não sendo amada nem tida por justa, é sinal bem claro da sua inutilidade.
Conservar-lhe o nome e lutar pela aparência, é o mesmo que repelir a gema do ovo, contentando-se da casca! A acção da Igreja há-de influir na vida humana, integrando-se nela.
Ficar, porém, à margem, consistindo em aparências é o mesmo que nada! Brademos, pois, forte emdesfavor da intransigência e verberemos já, sistemas inaceitáveis . em dados casos a que há-de atender-se!As leis humanas devem ser compreensivas, justas e úteis.
Nãosera este o espírito genuino do próprio Evangelho?! Que interressa, na verdade, o exterior e as mesmas aparências?! Foi Isto, realmente, o que Deus ensinou?! De que vale até a própria autoridade, quando já não corresponde ao verdadeiro ideal?!
Quaj foi, na verdade, o mandato de Cristo?! Deixou Ele algum caso sem solução?! Despediu alguém com a alma retalhada?! Ainda bem que a Igreja vai olhando já para certos casos,, por maneira diferente!
Manteigas
1970-11-06 Uma Carta
Aguardar ansiosamente. Rspreitar ami´de, volver olhos inquietos para o longo caminho é coiisa banal, por demais conhecida!
No entanto, é necessário fazer distnção entre dus missivas: uma, benvinda; outra, inddesejada. Aquela, a princ+ipio, vem lentamente, dando a impressão de que chega
atrasada; esta, ao invés, surge impetuosa e aparece justamente, quando menos se espera!
Que situação de contraste! Uma dá vida; outra, vem tirá-la! A primeira delas traz o Céu a envolvê-la a segunda, ao contrário,
tem cariz infernal!. Q uisera eu somente cartas desejadas e nunca receber missivas inquietantes! É que estas, na verdade, como sol abrasador, em estio prolongado, qieimam e prostram, num abrir e fechar de olhos! Qual seta ervada, que toque levemente.
Embora de raspão, deixa a morte, apóa ela. A sua passage fica bem marcada, ningu+em conseguindo apagar-lhe os vestígios.
Qual tufão violent, arrasta na fúria quanto aparece!. Não atende nenhum rogo, não se dexa verger a pedidos veemengtes
Nem escuta lamentos! Traz em seu seio o veneno letal que há-de prostrar!
Que importam lamentos?! De que valem gemidos?! Aproveitam queixumes?! A braços com a sorte, sem eira nem beira, sem lar nem amigos.qual irá ser o desfecho lastimoso de
missivas cruéis. destinadas a alguém?!
A morte ou a vida! Outra coisa não há! O certo, porém, é que havemos de apiedar-nos de quem a má sorte elegeu para ferir!
O génio do mal recrudesce, por vezes, no seio dos mortais. I
Manteigas
1970-11-07
Assustou-me aquela barra. Habituado há muito às tintas da manhã, não posso conter-me, sem um ai doloroso!
Aquilo era horrível, em manhã de Novembro. A longuei os olhos tristes , pelo curto horizonte, inquiridor e alarmado.
É Outono, bem sei, e vai correndo já o undécimo mês
A pesar de tudo, muito acarinhados pelo tempo seco, agradável e soalheiro, não fazemos bom rosto à sua mudança, embora
Veículo de inúmeros dons e benefícios!
Que manhã outonal, cheia de sorriso e doces promessas!
Aosubir a Estrada nova que liga o presbitério ao velho Hospital
Era sempre deleitoso repousar os meus olhos no levanter afogueado. A linha do horizonte, já muito para elém de S.Gabriel, tinha algo de feitiço que bastante suavizava as agruras desta vida.
Qual aroma subtil, infiltrava-se no peito, que deixava impregnado de suave per fume e calma edénica , vindo logo adormentar as almas suspirosas. Que recorte excelente, delicado e róseo , feito de veludo, com r ico matiz! Aquilo, sim!
Vajia bem a pena levanter-me da cama um pouco mais cedo, estando embora num vala sombrio!
Ag ra, porém, como é tiste e sensabor! Manhã negra e carregada se adensa,, no Oriente,,que enche, a curto prazo, os olhos de lágrimas! Qual rosto prazenteiro, que se volve, num momento, em grave e carrancudo!,
Manteigas
1970-11-o8 Dia de Funeral
Já na casa dos 9º, faleceu, no Sameiro , o padre Adelino Rocha que, há dois ou três anos deixara os encargos, assumidos antes. Vida linga, acidentada, em que serviu a Igreja,
66 anos!
Parece até um sonho, mas não é afinal! Pura realidade e nada mais que isso, porque tudo é contingente! A penas Deus e Senhor contitui excepção. O que tem princípio vai sempre acabar, necessariamente! Apesar de tudo, causa emoção, tratando-se embora dee-se embora de pessoas idosas..
Habituamo-nos a vê-las, conversando com elas e trocando impresses. Fazem parte essencial desse mundo querido que,
A pouco e pouco, se vai desconjuntando. Par a dizer-nos claro que não virá muito longe a hora final
Fiquei, pois, emocionado e não consigo afrouxar a tristeza que me invade.
Perante o mistério da morte cruel, fico perplex: apenas a fé me pode sustentar! Que abismo intransponível, silencioso e medonho! Cessam contactos,! Findam recados,!Tudo acabou!
Fica apenas o silêncio. A tristeza imensa… a grande solidão! Como é pavoro este facto horrível, se a f´cristã não vem socorrer-nos!
Morreo o padre Adelino!
Passados 8 dias, já ninguém o lembrará! Até os seus amigos o vão desquecer e, o que mais é, os próprios familiars! Hão-de olvidá-lo!
Que ficou então de vida tão lofnga?! Nem um simples eco, pR este mundo?!
Manteigas
1970-11-09
Caiu já ontem a primeira chuvada, após um Verão que parecia infindo! O efeito é patente: cessaram as queixas, alegrou-se o lavrador,despertou a Natureza,ententeceram as moscas. Há dois dias apena, faziam-me pedaços a cabeça aturdida.
Neste quarto velho do antigo presbitério, elas fazem propelias que nem é dado lembrar!
Aproveitando agora o belo sol da tarde, que entra subtilmente , pela janela,encontram seu deleite, adejando na estância, Malabarismos sem conto, experiências difíceis. Voos lentos ou rápidos, tudo elas ens aiam, num ambiente agradável, que lhes cai a matar!.
Pene a mim ou deixe de penar, isso não conta!
Prorrompo em suspiros, esconjuoo-as, às vezes, sacudo os braços, com forte energia, mas tudo em vão! Elas dançam e piruetam, arrancam velozes, para lancer-se inebr iadas , em voos plsnsdos. E eu fito-as nervoso, não obstante a “irmã mosca” do povinho de Assiz!
Escorraço-as de mim, praguejo e insurjo-me, mas elas continuam, alheadas e felizes.
Que lhes importa a elas a minha vida privada?! Vão e vêm amiúde,
Redopiam, se é preciso, levam e pousam,, vezes sem conto!
Que lição magistral de grande persistência me dão tais insectos! Por outro lado, ensinam claramente a logo desprezar ideias tristonhase a viver dsta vida, somente como a quero e bem a desejo!2
Manteigas
1970-11-10
For a susto apenas. Aquela barra negra que toldava o horizont, lá para as bandas do Sol nascente, dissipou-se, a breve trecho.
Mercê deste facto, já contemplo, embevecido, um lindo panorama
A frescura habitual e o r óseo matiz chamaram, desde logo, a minha atenção .Quedei-me enfeitiçado, que não era para menos, sem haver maneira de seguir meu caminho! A linha sinuosa do extensor do extensor horizonte era alva de neve,, parecendo imaculada! Quuanto há de secreto, no virar da Natureza, em mistério e promessas. E vá um pobre homem retirar-se dali, atirando-se de chofre para o vazio da luta!
Quando, portanto, se apresenta assim a linha do horizonte se encontra assim, a nossa alma canta rejubila e sorri. São manhãs de enlevo.
Abuda no peito alegria sem par!,
No entanto, a vida agarrou-me pelos braços e puxou inclemente, a grandes solavancos! A pesar meu e a grande revolta, lá tive eu de abandoner a poesia da existência!. O doce balsam que tanto inebria!. A eternal aliança.o eterno mistério do Quichote e Sacho Pança! No mesmo indivíduo, o mais e o menos, o espírito e a material,o nobre e o prosaic,!
Vá.se a gente libertar co contraste repugnante, no mundo agitado, em que todos vivemos!
Quando a morte vier, então falaremos!,
1970-11-11
Manteigas S. Martinho!
Com ele, o bom tempo e a alegria dos magustos! Ninguém há no mundo que não louve agora o bom do S. Martinho! Quantas lembranças não traz à memória, marcad as, a fundo pelo cunho da saudade! Presenças desfeitas, grupos bem amigos que logo se abriam em camaradagem!
Este ano, porém, aguardava- se mau tempo! Não foi longo o Verão e cheio de apreensões=?! Mas ele continua, persistentgta e vivaz, sem jeito de findar!
“Este ano o S Martinho não vai ter vez”, dizia-se. por aí,à boca cheia, aludindo, já se vê, à seca prolongada e fazendo presságos, acerca da fome! A verdade, porém,é que o homem põe e Deus é que dispõe.
Cá temos, pois, um dia maravihoso, como poucos esperavam.
À s 9 e 30, assomou brilhante, no alto da Serra o astro amigo, para trazer
Conforto, paz e bem-estar!
Como eu te bendigo, aprecio e louvo,, astro bondoso, que és luz e
Calor bem como a alegria deste imenso Covão. Vem sempre e não temas,
Jamais te repilo dos meus olhos ansiosos.Suspir o por ti: vem perenid ade, vent ura e paz!
Ao bom do nosso Santo vou também agradecer. O milagre do bom tempo que se operou outrora, continue a bafejar-nos, pelo seu valimento.
Já que a vidaé tão pesada, ao menos venha luz, a acompanhar o calor
Manteigas
1p70-11-12
Lav ra em meu peito saudade infinita daquilo que não fui!
Do homem que não sou. da vida que não vivi! For a eu, de facto, a dizer à minha alma o caminho verdadeiro! Seguiria outro rumo, bem diferente do meu! Quem me dera olhar, de cabeça levantada, encarando bem a vida que decerto amasse.
Inffelizmente, porém,só colhi do pomar fruta verde e sem gusto, que não nem cativa! Algu’em ditou, no princípio, que eu não era, afinal,um ser livre e dotado, capaz e traçar o meu pr+oprio caminho! O que viria, em seguida, vejo agora bem claro: ser mesquinho lutando, para
.cair vencido.
Prometeu agrilhoado que não pode fugir! Para mais,, o abutre, noite e dia, r oendo sempre a minha carne em chaga! Aih!, montanhas do Cáucaso, donde o céu fica perto! O meu céu é tão distante, que não lhe enxergo a entrada!
Faz-me pen aver os outros bem senhores de si, poise u vivo, mas não sinto que a vida me pretence! Deus me valha e acuda, pois é bom e amoroso, que eu não posso calar-me, quando os outros abusam!
Que Ele me dª paciência, hoje e sempre a seguir: eu preciso tanto d’Ele,que O não posso esquecer!
Vem, Senhor, compensar-me do que os homens fizeram! Eu não creio serem bons, e Tu, mau e tirano!
Ó meiga saudade, vem já, sem demora, alegr ar-me o coração, pois sem ti é luta vã a que agora me entrego Trabalhemos juntnhos, até ao pôr do Sol: só depois, virá do Céu o prémio almejado
Manteigas
1970-11-13 Debandou a Ninhada.
Feliz casal! Extremamente prolífero criara 8 filhos que mourejavam duro. para ganhar o pão. Dispersos pelo mundo, escreviam aos pais, falando com amor, do remanso carinhoso que a vida lhes roubara. O lar t~so amigo e sempre inesquecivel, as provas inequívocas de
Amor devotado eram fortes razões, para logo chorar e comoverem.
A dureza da vida, com agudos espinhos,só faziam avivar e nunca esmorecer a ternura desse tempo.Terras da África e seus ardores, Europa vizinhs e seus primores, jamais eclipsavam a luz diamantina, que se estava coando, através do tempo
Avoragem da vida, caprichos incontidos, ambição desenfreada, e planos de sonho mal podiam interpor-se, que o amor não deixava!.
E o velho lar, defumado e carcomido, permanecia deserto,, emudecido e triste.. Há quano já, esse facto ocorria!Móveis de cor baça,, muros a gretar,, recordações, por toda a parte!
Fotografias, harto acarinhadas, eram vozes eloquentes da mansão desabitada,! Ao canto do lar, pensativos e quedos, o pai adoentado e a mãe carinhosa !
Rir ou falar já não era com eles! Se vêm cartas ou chega algum deles,entra o sol risonho na frieza do lar!
Passado isso, a imobilidade e a própria mudez campeiam senhoras, na casa abandonada!
Manteigas
1970-11-14 Lua de mel, aos 60 anos!
Encontrei-o ontem, à boca da noite, ali em baixo. À hora de jantar, aparece risonho, procurando ser amável. Era o velho Elíseo, pai de muitos filhos, já bem lançados. Trabalhara à sobreposse, mas de momento, com seu ar avelhentado, não pelos anos, exulta de alegria.
Se não fora a doença que teima em prostrá-lo, seria agora por certo uma fase dourada.. Há outro espinho - a saudade imensa que o aflige e tortura.
Disse ele, com graça:” Lua de mel nunca tive e minha mulher também não! Era preciso lutar, que a vida o exigia!
Vieram depois os filhos, um ranchinho mimoso, o que fez aumentar o esforço da luta! Recrudescendo esta, escasseou-nos o tempo que era intransigente. Agora, consolo-me, de ver bem os meus fiilhos!”
Falava com entono e sentia na alma a doçura inefável de um sonho realizado. Se não for a a saudade… mas, enfim, já trabalham! Já ganham, realmente, o pão de cada dia, Vem agora o descanso e, com ele, o passado.
Recordar é viver, e viver, realizar-se! Após o trabalho, é suave o descanso, por alguém merecido.
Ei-los, pois, já cansados, a procurar um abrigo que os iluda e conforte! Vão de longada, para o Rio de Janeiro, passar 8 meses. Levam com eles a saudade graciosa e o passado remoto que se apagou para sempre
Manteigas
1970-11-15
É quase meio dia. Entretanto, não vejo com nitidez! Como explicr este facto molesto, que assaz me angústia? Quando o Sol está alto, irradiando mais luz, é que eu me vejo assim constrangido, qual fera em caverna! Que disparate da própria Natureza tirar a mágica luz, encanto dos meus olhos, feitiço do Universo!
Que dizer, afinal, do contra-senso palpáve, em que o obstáculo se avoluma dia a dia?! E não se julgue, erradamente que o martírio é efémero, aguardando-se em breve, a luz de cristal!
É um Inverno prolongado, que entra na Primavera e não poupa o Verão!. Espero um dia e mais outro dia, mas a minha confiança atenua-se bastante e, com ela juntamente se abar«te a esperança! Sem esta alavanca, pode o homem viver?!
Mas se a noite de breu é figura da morte, que viver é este o meu, já sem luz, ao meio dia?! Será então prenúncio de uma vida escura e já sem alento?! Que zona á esta do mundo, em que eu mal vejo, embora seja dia?!
Montanhas informes horren da e agressivas, afastai-vos um
Pouco, afim de ver um sorriso, enviado pelo Sol! Por que é que não ides para longe de mim?! Não vedes, claramente, como sois indesejadas ?! Ou tendes, acaso, prazer infernal em me torturar?!
Cobertura funérea, que nublas o céu, ocultando-me o que amo, por que não desapareces?!
Manteigas
1970-11-16 Nove menos 15.
Com luz deficiente, escrevo o meu Diário, seja embora dia fosco e algo carregado, Que me presta a mim ansiar por claridade, em noite deveras longa e negra como breu?!A diferença, em ordem ao dia, tenho-a por exígua, imponderável até! Não há-de ser angustiante passar continuamente, de uma noite para outra?!
Houvesse luz na alma, que a luz exterior em nada pesaria. Mas, quando é noite no peito que se despenha, há motivo sério para cuidados e profunda reflexão.
Ensimesmado e assaz inditoso, vai o coração pelo mundo fora, em busca de conforto. Mas que vê ele. ao perto e ao longe?
Nem carinho nem abrigo! É noite… sempre noite! Desanimado e assim oprimido, segue, bem a custo, sua longa caminhada,na mira ansiosa de avistar o horizonte, que lhe oculta a realidade
Falha tudo, meu Deus! Destroçado já o querido lar por´
vendaval furioso que me resta agora, após o naufrágio? Foi naufrágio, não duvido! Outra coisa não é, andar sempre à mercê de caprichos estranhos,que não amei, de verdade! Como garras se cravaram na minha alma docil que seguia desamada, muito simples e crente. Crente em Deus é ela ainda, mas nos homens é que não, pois aferem a Deus por seus vícios e paixões.
Não os amo, que não posso, mas a Deus quero bem. Para
amá-los a eles, é mister uma graça que venha lá do Céu. Manda, Senhor, esse dom e um sol já radioso, que eu tremo de frio e não vejo o caminho!
Manteigas
1970-11-17 Pedagogia em Portugal
O parto, em geral é, de sua natureza, uma coisa difícill. Princípio de uma vida, forte oposição a sistemas lançados orientação diversa,, nova correntes … tudo isso e muito mais, representa morte,acabamento… fim!
É o caso da semente, que lançamos à terra. Vinga a nova planta, à custa da semente, que se desentranhou breve em outra vida. O povos atrasados, que não seguem a par doutros evoluídos, no concerto das nações, marcandona sua presence um grau de evolução que logo os impunha, de modo nenhum eles podem ombrear, pois que estacionam em ponto morto.
O caso foi hoje,, no 4º ano de Francês. Tentei levá-los de
Início, por meios suasórios , ao jeito de quem respeita a liberdade alheia. Pois nada lucrei, chegando à conclusão de que
esbanjei, na verdade, o precioso tempo.
Considerados os factos, nova decisão avia de tomar: outro meio diferente, quero dizer, regress à tradição.
Declaro sincero que me repugna o processo, mas que fazer?! Cruzar os braços, nada tentando?! Permitir, sem miss, que a nossa juventude seja preparada,, de forma negativa, para um future, não aceitável?! Impõe-se, na verdade, alguma solução, com urgência marcada.
Ser extremista não acho bem, que não lido com máquinas, no entanto há que ser enérgico, doseando a violência com a moderação.
Manteigas
1970-11-18
Falta apenas um mês, para logo se cumprirem 18 longos anos! Distância enorme no tempo da vida, um abismo profundo a separar-me, violeno, do meuquerido pai!
Parece quase infinda esta amarga ausência que nada nem ninguém jammais aliviou! Nem um sinal nem um recado,jamais uma notícia! Que mistério inefável este da morte, perante o qual nos curvamos, aflitos,chorando prostrados, na impotência do nada!
Como pôde ocorrer este facto cruel, para logo verger o coração de um filho, que se parte de dor! Roubaram, há muito, o paizinho adorado,, sem nada me deixarem, preenchendo o lugar!Como eu senti, penosa e amarga,sua falta lastimosa! É que eu, infeliz, perdi, naverdade, o amigo certo, o ser que sempre ameie sabia perdoar, sem hipocrisia!
E que éque me ficou, em lugar do seu amor?!
Aridez e solidão, eis o que se depara, neste mundo vil, em que ando contristado!
Poderei tornar a vê-lo, escutar a sua voz e banhar-me de novo na luz meridian de seus olhos castanhos?!Que delícia inefável! Que prazer, sem igual o sorriso de meu pai
Não vi, que me lembre, olhos meigos assim!
Que outro homem encontrei, neste mundo venal, a falar-me de amor, por linguagem tão bella!
Partiu e não voltou: eu fiquei só, envolto no meu nada! Espero, a toda a hora,encontrar-me com ele. para matar a saudade
Razão da mimha vida, apoio do meu viver, deleite que senti e a morte me roubou!
Manteigas
1970-11-19
Daqui a três meses completa-se outro giro na roda fatal. Girando sem descanso, levou a efeito 52 voltas, não tardando muito que perfaça mais uma. Que figuram, realmente, 52 Primaveras?! Preferiria, na verdade, chamar-lhes Outonos, por melhor se casarem com a melancholia que infundem no meu ser.
Afinal, era ontem criança e, sem me aperceberr, já nao sei como foi! Sei apenas, de facto, que mudei profundamente.
O exterior acusa isso mesmo; o interior, também.Como nas rochas, o tempo foi agindo. e, ao cabo de alguns anos, parecia diferente.
Olhei-me com tristeza, observando o desgaste: se intento identificar-me, só a custo lá chego.
Quanto ao cabelo, já muito caíra e algm que ficou, não tem a mesma cor.Ouvidos e olhos? Não sei também se a voragem do tempo ali não fez estragos! Pois braços e pernas, outrora tão ágeis, só esforçando-me consigo o meu alvo!
Coração e pulmões, intestine e fígado? Tudo isso arruinado e assim o estômago.
Sou, na verdade, aquele que era eu?! Que mudança foi esta que me fz duvidar, ignorando, afinal se eu sou dois ou então um só?!
E se lanço o olhar, pela face interior é então que eu pasmo e descreio de mim! Poder dizer o que vejo, sinto e penso?!
Manteigas
1970-11-20 Alimento Racional
Para que o seja, deve contar: glúcidos ( hidratos de carbono), como açúcares e farinácios; lípidos (gorduras e a zeite); proteínas; catalíticos e vitaminas.
Os chamados glúcidos têm por fim proporcionar ao nosso organismo a energia necessária; os curiosos lípidos, dar-lhe resistência contra o frio e a fadiga. Constituem, na verdade, camada isolsdora: anichados sob a pele, evitam assim a perda de calor.
Por outro lado, situando-se eles, como é notório, nas articulações e nos interstícios dos nossos músculos, impedem a fadiga.
As proteínas destinam-se, em directo, a reparar as perdas sofridas pelas células. Durante as combustões, vai-se dando o desgaste, nas próprias células, pois essas combustões realizam-se inteiramente à custa de carbono e outros elementos constitutivos das mesmas.
A acção reparadora é, pois, levada a efeito pelas proteínas
Que se encontram nas carnes, queijo e pescada, ovos, etc.
Os catalíticos cuja finalidade é dar equilíbrio ao nosso organismo, acham-se nas ver duras bem como nas frutas ( hortaliças,etc).
Quanto às vitaminas, a sua função é preparar ambiente para as funções orgânicas, O leite só por si é um alimento completo. Os ovos das aves são também excelentes, pois lhees falta apenas a vitamina c. As carnes em crescimento são de evitar, à excepção do frango. Contèm, na verdade, elementos tóxicos.
Manteigas
1970-11-21 Os que eu amo
Acima de tudo e em primeiro lugar, ao meu bom Deus que me criou, pela sua caridade e amor sem limites.
Jamais esquecerei a sua morte cruenta e bem assim a paciência infinita que mostra em esperar.
Não há palavras bastantes, para dizer o que lhe devo e quanto lhe quero. Depois do meu Senho, desço logo à Terra, em que vivo e labuto, afim de lembrar os queridos pais a quem sacrifico, nas aras do amor
Neste mundo cruel e cheio de escuridão, foram raios de luz que brilhou intensamente. nos meus trilhos pedregosos, envoltos em trevas! Sem esta luz, que seria, realmente, este meu caminhar! Passaram, é verdade, mas não foi em vão, pois a sua lembrança é esteio firme.
Como sinto no peito erguer-se a emoção, ao lembrar os desvelos, em que fui envolvido! Amparo e ternura, amor e carinho, tudo ofertaram, sem recompensa! Desfalece a minha alma, sossobra o coração! Fico loogo rendido, memorando o passado!
Quantas horas amasgas não passaram eles, por causa de mim! E que fiz eu, por esses Anjos da Paz?!
Ó Senhor, lá no Céu, onde sempre reinais, dai Vós o que não posso a quem tanto me deu! Em abraços e beijos, quero só envolvê-los, mas não posso, infeiz, que a saudade, emocionada,
Vem chorar, nos meus olhos!
Três amores tão grandes enchem bem o meu peito: possa vê-los um dia, lá na Pátria ditosa!
Manteigas
1970-11-22 Os que amo II
Entre o Céu e a Terra, decorre o meu viver. Firmo os pés, cá em baixo, mas vivo ao longe. O que mais amei, cá neste mundo, já passou e fugiu: cinco amores tão, que só Deus ultrapassa! Quem me dera avista‘-los, inda que fosse a distância!, mergulhando o meu olhar num sorrido dos seus!.
Vivo sem carinho, parecebdo enjeitado! Após tanta ventura, como pôde acontecer uma desgraça tão grande?!
Realidade ou sonho?! Nem já sei o que foi! O certo e o seguro é viver como digo: a pedir o que já tive, mas agora não enxergo!
Como fazem os outros que vivem, neste mundo? Fundaram um lar, que a vida é traiçoeira: assim fazem muralha que os proteja do mal. Os pais não duram sempre, que a morte os vai levendo: urge, pois, abroquelar-se contra o mal que vem de fora.
Eu, infelzmente, fui deixando passar esse tempo de sonho,
Confiado na sereia que a meu lado cantava. Crédulo, simples e sempre ingénuo, logo acreditei numa vida angelical, sem pensar, a valer, nos contrastes da mesma!
Eu só tinha, realmente, o que outrem me dava, sempre às furtadelas, fazendo-me acreditar num Deus irreal. Só muito mais tarde é que vi bem claro que o meu Deus é diferente. Apoucado como os homens não podia ser!
Não foi Ele, não, por certo, aquele que me enganou.
Condeno vivamente esse erros fatais, que me lançaram vivo num
Abismo de dor!
Manteigas
1970-11-23 Os que eu amo III
Mergulhando neste abismo que os homens criaram,
Gemo, pois, e choro, suspiro e lamento-me, agrilhoado, noite e dia, pela viva saudade. Entre tanto, ela punge, e eu só a estorcer-me, já não posso aguentar seus embates horrendos, que me atiram ao chão.
A longo então os olhos, pelo tempo decorrido e, simplório ainda, julgo ver, realmente, quem outrora me queria. Doias amores eram esses como nunca outros vi, devotados e fiéis, sem
Recurso a vileza nem qualquer interesse,
Mas um dia triste fiquei desamparado, iludido a sonhar,
Acreditando no engano, que de longe me sorria. Sinistras vozes se ergueram, conjuradas no mal, fazendo crer a vida como ela não era! Acreditei a fundo, pois julgava, inicente, que os homens eram bons, e que Deus falaria pelas bocas humanas!
Pensei, algumas vezes, que Deus incarnava no seu corpo
mortall e que falhas não havia, vivendo nesta fé.
Deformaram-me o espírito, lançando no Senhor os defeitos do próximo e eu, então, segui por um caminho que não era o meu
Era doutros! Que me importava?! Fossem eles trilhá-lo, se haviam prazer! Eu, então, ludibriado, só já tarde ondeuacordei. Mas quando abri os olhos, tudo era perdido!
Clamei então forte: pai e mãe acudi-me, porque fui enganado! O silêncio então foi quem respondeu, que a negra morte os havia ceifado!
Depois, fiquei só, esperando em vão a presença de alguém, muito querido e harto suspirado que lobriguei, à distância.
Chegou tarde e sorriu, enchendo-me de gozo, mas logo em seguida partiu, sem regresso.
Manteigas
1970-11-24 Os que eu amo IV
Foram, pois, 5 amores, a dourar o meu viver. Três adultos e idosos: os queridos pais e a vizinha Ana Rosa. Outro veio mais tarde falar-me do Céu. Pequenino, meiguinho, sorriu para mim.
Fui feliz, em extremo, nessa hora ditosa, encontrando, a meu lado, um anjinho formoso! Um sorriso deste género é bem de pasmar vindo logo mergulhar-me em perene delícia.
Julguei ser chegado o momento final para todo o sofrer que me havia tocado. Deus, porém, não quis ouvir-me ou então foi aviso que o Céu me enviou. Perdi tudo em breve, ficando mais só! Amor assim não havia, para este coração, mas Deus que é bom, resolveu provar-me. Diria melhor: aceitou uma oferta que eu lhe fizera.
Eu te bendigo, Senhor meu Deus, por teres enviado uma voz inocente a dizer-me sorrindo que ficava à espera, na Pátria celeste! è bem melhor acompanhá-lo de longe, cá deste mundo,
Enquanto é ditoso, na Pátria sem dor, onde Vós estas presente.
Eu precisava grande expiação, para ir descontando, na balança do mal o que tinha amontoado. Veio, enfim, e chorei: a
Minha carne é doente, mas depois, reflectindo, glorifiquei ao Senhor Ele é bom: não falta jamais a quem O serve, em plenitude.
Espero, pois, me perdoe, preparando, no Céu, um lugar para mim. Desforrar-me poderei de tamanha desventura,
Juntando-me no Céu a que amei cá na Terra!
1970-11-25
Manteigas Meu Diário prezado!
Como eu te quero, amigo fiel, confidente valioso de alegrias e dores!! Neste mundo, em que vivo, és tu o meu refúgio,
defesa que me ampara, quando sou escorraçado! A ti me dei, há muito já, sem reserva nem receio: quando estou desesperado, venho logo procurar-te.
Noutras horas - elas são bem poucas!
em que a dor se ausenta, és também relicário, em que verto o meu júbilo. Se não te houvesse encontrado, que seria de mim?!
A quem abrir o meu peito, a sangrar constantemente?! A quem dizer, em aberto, o que sinto e me punge?! Rebentaria, por certo, não podendo viver: é mister desafogar mágoas fundas e molestas!
Em ti vejo a salvação, que não dizes a ninguém nem troças de mim, quando a vida ingrata me aperta e constrange. Fico grato, meu Diário, e jamais esquecerei a bondade e paciência que sempre mostraste.
Continua, fiel, a dar tua ajuda, que eu não tenho, para escolha, outro amigo e confidente! Em ti repouso e confio, que não és indiscreto: nem perguntas nem respondes, ficando sempre mudo! É por isso que te quero e me lembro de ti.
Para compensar-te, não sei que fazer! É tão grande o favor que me tens dispensado, que não acho palavras, capazes de expressá-lo ! Já tens 40 anos e não és conhecido. Assim intento pagar o muito que me fazes: à tua discrição respondo , semelhante, evitando mexericos e distorções que traz a curiosidade
Mais tarde, possivelmente, bradarei ao mundo inteiro quão grato m sinto, alegando as razões por que fui cauteloso
Manteigas
1970-11-26 Os que eu amo V
Houve, realmente, cinco grandes amores que douraram, no passado, uma bela parte da minha vida, levando-me a pensar que este mundo era um sonho . Mas o sonho dissipou-se, e eu fiquei a penar, lembrando-me, já então, de que estava acompanhado.
A dor e a solidão jamais me deixaram. Eu pertenço, já se vê, à vasta legião dos pobres mortais, que arrastam seu fardo, com os pés a sangrar. Sofro, por isso e choro com eles, angustiado também.
São, de facto, irmãos que a fortuna enjeitou. Por isso, verto pranto e logo me angustio, ao vê-los penar. Membros doentes do belo Corpo Místico, podia, acaso, eu ser indiferente?!
Sofre algum deles? Sou eu próprio que sofro e choro também sua própria desgraça: a agonia dum irmão, que está martirizado! Deserdados e órfãos, achai um amigo, que espero por vós! Pobrezinhos de Cristo, a vaguear pelo mundo: o meu coração há muito vos ama., cheio de simpatia. Humilhados na vida, pelo forte capricho de tantos homens, eu partilho convosco
A porção da amargura.
Dominados e feridos pelo orgulho dos grandes: batei à minha porta, que não hei-de fechar! Criancinhas inocentes, que não tendes ninguém, o meu coração ama a todos vós, por modo igual.
Enterneço-me e folgo, de pensar nos humildes! Quem me dera ajudá-los quanto eles precisam ! E vós iludidos, ingénuos e simples, que vistes nos homens, um deus que não eram,
Também choro convosco, agonizo e sofro!
Seja Deus a recompensa do mal que nos fizeram!
Manteigas
1970-11-27 Os que eu amo VI
Eu amo os infelizes, que sofrem no silêncio misturando suas lágrimas com o pão de cada dia. Um gemido, um ai são alerta para mim ! Qual acerbo espinho entra fundo no peito .E àqueles que a miséria atirou para o tugúrio, quero dar uma parcela de amor vitalizado!
Envergonhados, gemendo, vou também acompanhar-vos.
Passaria ao pé de vós, indiferente e altivo?!
Aos que penam em masmorras, inocentes, desditosos, o meu ósculo de psz, amor e compreensão.
Esmagados pelos grfrandes que só vêem capital. Eu adoro esses rosto eu a vaidade pisou! Quisera ser um de tantos, esmagado também, para viver a seu lado, confortando-os na dor! Embrutecidos, calcados, passais a vida , ó irmãos, entretanto o Pai do Céu não deseja que vos calquem!!
Por todos morreu, fossem grandes ou pequenos: para Ele é tudo igual e só merece a virtude!
Desiludidos, frustrados, por culpa de vampiros, ó caros irmãos, o Pai do Céu é amigo que não atraiçoa!
Confiai no sofrimento: esta vida é passageira. Após ela, virá outra que não sofre distinções. Ali morrem castas, privilégios, diferenças: veremos a nossa causa apoiada por Deus!
Cá na Terra, as duras algemas podem tolher-nos. O coraç~so, porém, bem como o pensamento ficam sempre libertos.7
Manteigas
1970-11-28 Aqueles que eu não amo
Uma vez, o doce Rabi, com ser tão bondoso, lançou mão de um azorrague e pôs fora do templo os que ali se encontravam, desonrando alarvemente o Santo lugar!
Não vou censurar a atitude de Cristo, que não tenho craveira e impudor tal que me levem a tanto! Se Ele fez isso, é porque, na verdade, assim devia ser. O que eu entendo que posso é imitá-lo de perto.
De facto, visto de longe e olhado serenamente, o acto re- pugnante de quem me trucidou afigura-se um crime. Por isso é que eu, se tivesse um azorrague e a mesma autoridade, corria-os
num pronto, da minha presença.
Jesus Cristo amará os vendilhões? Pelo menos, detestava os seus actos! Poderei eu amar os esbanjadores do que era tão meu? Que fizeram eles da minha liberdade que amarraram a ferros?! Que noções me inculcaram, sobre amor e família?! Hoje,
Envergonho-me delas e recuso-me a aceitá-las!
Por que é que me enganaram, abusando de meus anos e servindo-se, imunes , da minha inexperiência?! Que mostrem diplomas e apresentem, igualmente suas credenciais! Mas o mal está feito e é sem remédio
Representantes do Alto, urgia obedecer-lhes ! Oráculos do Além, eram indiscutíveis os seus veredictos!
Manteigas
1970-11-29 Aqueles que eu não amo
Defraudado nos meus bens, sinto hoje vergonha! Que é feito da liberdade, sempre vigiada, e doutros bens estimáveis, de que eu só e mais ninguém era dono e senhor?!
Actuaram em mim, alterando, com firmeza, o ciclo evolutivo das fases da vida (receber, dar, receber),com efeitos danosos, na formação da personalidade e na identidade, vindo a reflectir-se, em áreas diversas como a psicológica ,sentimental e sexual. Já nem falo em certas enfermidades!
Enviados do Alto diziam-se os tais, para os educandos acatarem seus mandados, sem exame nem detença Decorar era o lema que o veneno trazia, não pensando eu que me estavam manietando.
Não retiro a palavra, pois estou convicto de que tal meio é eficaz, para levar à obediência, não aquela obediência, racional, meritória, consciente e voluntária, como própria da razão!
Servilismo, escravatura, já no século das luzes, abusando alarvemente de crianças ingénuas! Eu protesto vivamente,
condenando o sistema. Renego de tal processo e clamo por Deus, que me prendou largamente. A Ele entrego os agentes, que fundaram impiamente, sobre a minha ignorância, ideais que não amo .
Alguém meu amigo comandava , do alto, mas se a culpa era sua, eu não posso louvá-lo!
É pecado matar, que só Deus é Senhor, mas tirar a liberdade que vem a ser, afinal?!
Que me resta disso agora senão ruínas, destroços?!
Por Ti, Senhor, eu clamo, nesta hora de dor!
4Manteigas
1970-12-01 1º de Dezembro
Em tempos decorridos, enchia-me de ardor, lembrando gozoso os feitos pátrios dos Lusos famosos.
Simultaneamente, um desprezo soberbo era pão saboroso da minha alma ardente, que não prezava o povo castelhano.
Hoje, afinal, quase tudo morreu: crenças e sonhos, Ideais e projectos . Não sei, não ,que vendaval furioso passou pela vida, onde ficaram impressos vestígios indeléveis!
O sina é bem visível e não será tão cedo que alguém o elimine! É quase cepticismo aquilo que me afecta: a opinião
dos outros, a sua atitude, conselhos e rogos, esforço e trabalho.
Nada me aquenta, se é que não gela!
Detesto enormemente o agir de sua mão e protesto, ao vivo, contra ideias iinseridas, no intimo da alma!
Patriotismo exaltado, egoísmo satânico, euforia estúpida, fundo me invadiram , em tempos distantes!
Os outros eram nada! Só nós o tudo! Cavalheirismo, heroicidade, atrevimento e galhardia, só neste cantinho “ à beira-mar plantado”.
Amo ainda a minha Pátria! Quero-lhe mais, muito mais que às outras! O que ela tem e me oferece é bem mais doce eloquente e suave e até carinhoso!
Entretanto, detesto e abomino os sentimentos abjectos, que me excitavam o ódio e levavam ao desprezo. Precisamos de amor; necessitamos união
Abaixo, pois, o patriotismo exaltado, que despreza outros povos ou pretende ignorá-los!
Manteigas
1970-12-02
É o ovo de Colombo! A rir corrige os costumes !´E um unhas de fome! Não ter mais que pele e osso. A quem trabalha Deus o ajuda. Grão a grão enche a galinha o papo. Honra e proveito não cabem num saco estreito ! Pescar trutas a bragas enxutas. A sogra e o furão só depois de mortos é ´que dão pão. Burro morto, cevada ao rabo.
Se queres que guardem o teu segredo, não o digas a ninguém . Arreliam-se as comadres, descobrem-se os segredos
Quem tem padrinhos não morre mouro. Quem a boa árvore se chega boa sombra o cobre. Quem se mete com meninos fica sempre borrado.
Estar morto por vinho. Ser doido com alguém., Ser como unha e caene, Andar com a Lua. O mal que te desejo me caia em cima. Assim Deus save a minha alma Tão certo é como Deus estar no Cú. Juro agora pela minha salvção. Nãber em si, de contente. De contente lhe dói um dente. O Céu é de quem o ganha e este mundo é de quem o apanha. Com Deus não se brinca. Deus não ocupa lugar. Ser como guia de cego.
Manteigas
1970-12.03
São já 18 voltas que a roda fatal vai realizar, após a morte de meu querido Pai. Havendo nascido, em 1886, faria 85, a 20 de Março de 1971. Quando vejo alguém mais idoso que ele, quase tenho emulação! Gostava que vivesse, pois lhe queria muito ! Ainda hoje, na visita aos doentes, um deles me disse que tem 85
Coincidência estranha, que foi agradável ! Aquele velhinho, da mesma idade! Mas como ele estava! Rosto cheio
e sem rugas, cor de pimenta, fala sadia, timbrada e vibrante! Só um pouco de bronquite!
Ao vê-lo no leito, inspirou-me simpatia. Julguei, por momentos,
Ser o querido pai que estava falando. Afinal, era sonho e foi por isso que se desfez, num ápice. Apesar de tudo, foram na verdade, momentos ditosos, com ele vividos! S e é grata a fantasia, que não será, pois a realidade?!
Mas, afinal, tudo o vento levou para ficar sozinho a lutar com a vida. Às vezes, também luto, no silêncio da alma, contra o meuju ser, Considero-me parvo , de confiar nos outros, quando é Deus que merece confiança.
Houve um homem, na verdade, que amei loucamente. Só me pesa alguma coisa, de o não ter amdo ainda mais, Esse queria eu para sempre comigo. O meu querido pai que só bem me fez sempre! Aos outros homens , porém, acatei, indevidamente.
Manteigas
1970-12-04
Estiive, há pouco ainda, na cidade industrial - a
Covilhã. Se bem que eu não goste dela, pelos altos e baixos,
prende-me a ela um afecto sincero, Com efeito, ali decorreram acções diversas, que o mister exigia, as quais as quais se relacionam, de maneira evidente, com os meus brios de humilde professor
Quantas horas não passei, angustiado e receoso, quer assistindo a Provas Orais, quer esperando os nossos resultados!
Esses tempos memoráveis, integraram-se fundo na minha vida íntima
É por isso, realmente, que jamais olvidaria a cidade industrial, em luta ardorosa, porfiada e constante, afim de manter seu nome famoso. Sempre que passo ou ali me detenho, gosto imenso de lembrar o que foi razão por que amei ou sofri, odiei ou me indispus.
Adeus, cidade-máquina, de outeiros e colinas, vales e barrancos, por onde a linfa gorgoleja. Capital orgulhosa da indústria portuguesa, que Mamona absorvente não te induza algum dia a imolar em seus altares!.
Que o Sancho Pança da sátira não comande a tua vida, transformando este mundo numa orgia constante!
Pouco mais te verei. Assim o espero!
Manteigas0p
1970-12.05
Em pensamento, vou à Covilhã: gosto de lembrar o que ali observe. Era um dia sofrível, para termo de Inverno.
Passeavam no jardim como nas estrada, não faltando, como é uso. observadofres atentos. A té eu próprio me dejxei vencer! Na
Verdade, se não era de facto passagem de modelos, algp se notava que fazia lembrá-lo ! Capricho da vaidade?
Satânico prazer de humilhar os despreparados?!
É capaz de não ser! Estadear bom gosto e originalidade, será mais acertado
Seja como for, os dados contrastantes ferem logo quem chega.!
Vizinha da grandeza que se miranas obras, corre logo parelhas a miséria suprema. É chocante e deprimente, caso sinta o coração! Ao requinte do luxo que os olhos extasia, segue-se, acto breve, quer o andrajoso, quer o mentecapto.
Estes, sim, que nos doem, arrasstando sem mérito, nos ombros descarnados, os resíduos da vaidade.
Ma s então quem fez ou talhou a barreira condenável que separa os irmãos, filhos do mesmo Pai?! Ele há Deus ou não h´a?
Há, para ajustar a nossa vida?!
D ormirás, Provid êmcia, que no Céu tens assento?! É isto
Caos ou mostra certa da tua paciência?!
Não te peço que punas, meu Senhor e meu Deus! Rogo apenas mais luz que avivente o espírito !
Manteigas
1970-12-06 Ainda a Covilhã
Passeia a vaidade ruas e praças da cidade industrial.
Há bom gosto, às vezes; outras, porém, excentricidade! Aquelas
“maxes”, oh Senhor meu Deus, que tremenda aberração!
Que sejam longas, admite-se, mas abertas, a fudo, como amplo! Que fim é o seu?! Abrigar, com certeza, preservando do frio!
Quando as portas se abrem, entra vento e chuva, ficando a morada exposta , desde ligo, *a inclemência do tempo! Acontece a mesma coisa nos corpinhos alongados, vítimas por erto, dos caprichos da moda!
Estava eu contemplando o variado panorama da gente pecadora. Ali, junto ao polºicia, observava fur tivo os diversos modelos. Fncostado ‘s grade, voltava-me, às vesez, para não dar nas vista.ou chamar a atenção.
Retomada a tarefa, os olhos curiosos seguiam prontamente o que então erra pábulo de fundo cismar. .Dinheiro não importa!
O que interessa é marcar, dando assim quinaus, à direita e à squerda.
Era quase no fim , quando passa alguém que me leva após si Outro Max catita, a fazzer alição, de linhas iguais aos que tinha já visto! Mas, sfinal, quem estava lá dentro, a bambolear-se?!
Um rapaz! Ó céus, pasmai
Será que o homem intenta, dede agora, substituir a mulher, no todo ou em parte?!
Manteiga
1970-12-07
Há dias apenas, fiz mais uma visita: fui ao cemitério falar com minha mãe, Haviam já dito, aqui há pouco tempo, que fora invadida a sua “morada”., Estremeci, de horror, não querendo jamais que o ferro tocasse num corpo tão santo!
Falei ao coveiro, perguntando então se tratara, com respeito esses áo queridos!
Respondeu-me que sim e que os havia guardado, esperando miord ens, como havíamos dito. Informou-me também acerca do estado, em que agorsa se encontra o corpo
materno. Ossos apenas era quanto restava : juntamente, o cabelo, os sapatos e as meias. Outra coisa não havia.
A terra voraz havia consumido as foormas adoradas.
Aguardo ansioso oporunidade que seja favorável , para tirar aquelas ossadas que restam do seu corpo. Levá-las-ei então,
Para Vide EntreVinhas, onde ficarão, junto do marido que também adorava. Juntinhos na vida, assim continuarão, esperando filmente a rsurreição
Quero euni-los em enlace final, simbolizando assim uma grande união: foi tão perfeita, que n~qo houve igual!
No Chão da Romeira, descansarão afinal, de tantos trablhos que a vida lhes impôs. A piedade filial assim o deseja: itodos juntar-nos, embora em pó, cinza e nada, aé chegsr o dia que nos fará ressurgirt
Esse pó inerte, ao sopro de Deu, vai transformar –se, formando corpops bnelos que eião os sepulcros. Esta feia morada, onde haviam apodrecido, fica abandonada, rumando ao
Céu os cor
Se Cristo ressuscitou, não haja a menor dúvida: teremos sorte igual! Vai para o Céu a cabeça dum corpo? Para lá vão também os membros que lhe pertencem
ªºººººº
Manteigas
1970-12-08 O Toninho morreu
Asilado em Manteigas, passou a melhor vida, há poucos dias. Andava, como dizem, pelos 102 anos. Bonito rol Que
o poeta me perdoe! Nunca vi ninguém, de família sua nem me consta, afinal, que tenha alguém.
Era insuficiente, à data em que veio, talvez há 8 anos. Tê-lo-ia sido, ao longo de toda a vida?! Apesar de tudo, seus modos infantis, em idade tão provecta, granjearam-lhe amizades. Claro se deixa ver que era simples compaixão e não, por certo, amor, lá do íntimo peito!
Agarrado a seu pífaro, levava horas e horas, à torreira do Sol. Certos dias, não falava; outros, ao invés, em extremo gárrulo ! Podiam falar-lhe acerca de tudo, mas assuntos havia que assaz o irritavam. A bolsa das moedas era tema perigoso! Que alguém lhe tocasse e veriam o Toninho! Lamentava-se prestes -, batendo o pé, que não era brincadeira!
Os seus grandes amores não eram mais que dois: a bolsa e o pífaro! Para ele, a rigor, nada mais contava. Tudo
Indiferente, se não mesmo odioso! Apreciava também erguer-se, de madrugada. Julgava até que já era dia! Seguidamente, rumava à cozinha., procurando o fogão. Uma vez ali, dormia outro sono!
A bem dizer, não gostava da casa! Uma loja de gado, em que houvesse palha, era a sua aspiração!
Pobre Toninho que deixou, de vez, o que tanto amava!
Manteigas
1870-12-09 Duas belas companhias
A querida mãezinha jaz em S. Marcos. Seis anos em descanso, incomodaram-na agora, tirando-lhe a jazida. Alguém esperava! Era de facto, João dos Bairros, que a morte ceifou, aos 48 anos. Quem iria dizê-lo?! Por ser bom homem, partiu mais cedo! Como entender os segredos da morte? Junta-nos todos na vala comum!
A mãezinha cedeu, para dar a morada! Os ossos do corpo, já ,desarticulados, sem músculos a tapar, ajeitam-se, bem num lugar qualquer.
Consentiu, pois, retirando dali, para fazer caridade!
Fora assim toda a vida: continuaria, após a sua morte.
Que lhe importava ser homem aquele defunto?! Era morto, já se vè, e por isso incapaz de fazer mal, fosse a quem fosse!
Viesse, então, habitar a mesma jazida!
Descansariam, pois, na Terra Prometida, onde já se não peca nem pode fazer mal.
Descansai, almas santas, no seio de Deus, onde a sua bondade por certo já vos tem . Se acaso ainda fostes ao lugar do Purgatório, que o Senhor se compadeça, levando-vos breve, para a eterna Morada!
Manteieigas
1970-12-10
A 13 do corrente, efectua-se na vila o cortejo de oferendas, que há-de reverter, a favor do Hospital. É um dia cheio, em toda a acepção que a palavra tem. Ricos e pobres, grandes e pequenos, ilustrados e incultos, todos se unirão, para levar, nesse dia, um pouco de alívio àqueles infelizes que a sorte enjeitou ou feriu a desgraça.
Trata-se, pois, de um acto comunitário, cabal entendimento, simpatia sem barreiras nem exclusivismos. Cessam os títulos, apaga-se a vaidade, para emergir a filantropia. a caridade e a justiça. Não é esmola senão um dever que a todos abrange.
Como é bela a caridade, flor delicada, trazida pelo Mestre, dos Jardins da Eternidade! Antes de Jesus aparecer em carne, alguém olharia para os infelizes?! Arrojados para o canto, eram alvo de escárnio, objectos de desprezo! Que foram as castas, afinal de contas?!
Compartimentos estanques, onde os filhos dilectos do mesmo Pai tinham de ficar e permanecer?!
E o apartheid, segregação racial, e o mesmo proteccionismo?! Que foi, no passado ou ainda é hoje, esse cancro horrendo, chamado escravatura?!
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Manteigas
1970-12-11 Aproxima-se o Cortejo
Ao dia radioso é também a Natureza que vem associar-se. Espírito e matéria, o Céu e a Terra, tudo a uníssono! Para longe o ódio, afaste-se a mentira, apareça a verdade!
Altercações, fruto são de má planta; as dissidências, artigo sem importância; inveja ou ódio e vilania, coisas são tais, que não têm lugar
Queremos novo espírito, à sombra do Evangelho, essa luz diamantina a que os olhos humanos se desabituaram.
Para que servem as lutas?! A que vêm as contendas’! Em que ajuda a violência?! Um diálogo sincero, entre irmãos que se amam opera milagres. É preciso renunciar? Que importa fazê-lo, se é Deus que assim quer?! Não é Ele o Senhor, o Supremo Poder?!
Eia, pois! Banidos os preconceitos e ideias sinistras, velejemos noutras águas, que é Deus a chamar! Sua voz é de Pai, o apelo, de amigo, o convite, uma honra!
Amando-nos todos, não permite diferenças ! O coração não lhe sofre olharmos com desprezo os nossos irmãos! Caminhemos, pois, abrangidos pelo sol que o nosso bom Pai faz erguer no horizonte, para bons e para maus. Para amigos e inimigos, sem diferença de cor, raça ou condição.
Vá ser o cortejo desmentido formal, para toda a hipocrisia,
e vil esmagamento, a que foram sujeitos os que gemem e choram, sob as vistas de Deus!
Manteigas
1970-12-12 Véspera do Cortejo
Alvoroço no peito, júbilo nas almas! Reina o entusiasmo, explode, a alegria! Uns são felizes, por terem que dar; outros, ao invés, de poderem recebê-lo! Haverá na Terra compreensão que seja mais bela?! Que lindo seria, se todos, afinal, se compenetrassem, no íntimo da alma, de que o viver neste mundo impõe obrigações!
Mas, se rejubila quem do seu dá, muito mais quem recebe!
Na verdade, aqueles que nada têm, com excepção de trabalhos e amarguras, vêem chegada a hora, em que mãos generosas se desatam, em bênçãos.
Como é bom ser lembrado e objecto de interesse! A morte levou os pais? Nem os filhos já existem? Acabou-se a família? Nada isso importa! Alguém se condói, participando, ao jeito cristão, no alívio dos pobres e demais infelizes.
Foi há pouco ainda que o Toninho partiu. Era já uma criança! Tão provecta a sua idade! Asilado, nesta vila, passou consolado o final da existência! Todos lhe queriam! Objecto de carinho, vivia feliz! Pão e agasalho, conforto e ventura nada lhe faltou!
Não lhe sei de família, que jamais o encontrei. Visitas que eu saiba, daqueles que eram seus, desconheço totalmente!
Estranharia algum tanto essa falta cruel? Parece-me que não! A
earidade e a justiça operaram o milagre: sentir-se tão bem como
Em família!!
Manteigas
1970-12-13
Chegou, por fim, o que tanto e amava!
Todos, à compita se esmeram cuidadosos, realizando o sonho. O cortejo aproxima-se! Ele aí vem, de facto, ao nosso encontro! Os sinos repicam, as gentes estremecem, os rostos animam-se. Anda no ar um bulício de festa.
Já ressoam, pela rua, os acordes vibrantes das Bandas locais.
Toca somente aos necessitados! Não interessa! Todos são chamados, a tomar parte! É dia animado, superior aos demais.
Migalhas do meu pão, não quero perder-vos! Juntai-vos aqui: alguém vos espera! São as bocas dos pobres, que Deus abençoa:
aguardam ansiosas que tenhamos compaixão!
Economias diversas qu fiz, durante o ano, representando o carinho que voto aos humildes, vinde já comigo, para ficardes a render, nos Bancos do Senhor!
Os meus sacrifícios, ao longo da vida, quero-os juntinhos, neste dia solene! Não me importa quem come. Eu dou sem olhar, porque Deus em cada pobre se encontra realmente. Que tenha defeitos ou seja vaiado, também eu os tenho, podendo ser igual!
É Deus, Pai de todos, que manda ser franco: desejo, pois, servi-l’O, com todo o amor e boa vontade.
Que pai haverá que não sofra horrivelmente, vendo os filhos com fome?!Que dizer então do ódio, malquerença e desamor?! Quererá Deus, a suma bondade, que vivamos assim?!
Manteigas
1970-12-14 O ti Zé Borrego
Encontrei-o há dias, muito risonho e bem humorado, dirigindo-se a casa, antes da hora que tem por norma. Algo de novo se passava com ele, o que me levou a interpelá-lo.
- Vossemecê, hoje, deixa a vila mais cedo! Então?! Que é isso, afinal?! Vai fazer o jantar? - Na senhor! Já num bebo nem fumo! O Médico, agora, deu-me cabo da cabeça!
- Veja o que diz, ti Zé Borrego! Olhe que os Médicos são homens lidos que percebem do ofício! Estudaram muito e adquirem experiência, através do tempo! Julga, por ventura, que são alguns néscios?!
- Na, na são, mas eu é que num stô prós aturar! Hoje, já cá cantam três meios! Cuma pinga ( olhava, deliciado e cheio de saudade , para a torre de S. Pedro) num havia home pra mim!
S’ela num fosse tão alta… e mesmo assim, inda lá subia! Já cá stao 77! Mas, pra tocar o sino, num há ninguém, cá pró melgo!
- Mas olhe, ti Ze, são boas horas de fazer o jantar” Vomecê
é sozinho… a su mulher já morreu! - Cal jantar, cal nada! Fiz ontem uma panela que dá pra dois dias! As pernas é que falham q’u resto inda faz ver òs novos!
Ao dizer tais palavras, abria a boca, desmesurada, dando forte estalido, enquanto punha ao léu as gengivas sem dentes e já calejadas.
Declinando a tarde, estende para mim a sua mão enrugada que eu logo apertei!
Manteigas
2970-12-15
Ontem já, baixou a temperatura, de maneira sensível.
Era corrente e já estereotipada a frase banal Vamos ter neve! Nossa Senhora da Conceição gosta muito dela!
Estas e outras vozes corriam, de boca em boca, e todos se agasalhavam, com o máximo cuidado, por causa de gripes e constipações. As pleurisias são de temer!
Isto preocupava-me! Tinha de ir ao Sameiro, por causa dum funeral Prazeres havia falecido, no dia anterior, prestando assim contas ao Supremo Juiz!
No regresso, três horas depois, a faixa de rodagem estava molhada. Teria chovido ou seriam, realmente, vestígios de neve?! O ar frio da tarde levantava suspeita! Havia de informar-me! A caminho da garagem, encontro de chofre a Maria José.
Olhe lá! Esteve a chover, aqui em Manteigas?!
Oh! Não é isso ?! Foi a neve que chegou!
Ah! Mas da minha parte nada fiz para isso! A vontade era pouca!
Pois aí a tem, desejada que fosse ou aborrecida! É da praxe visitar-nos e não perde o hábito!
- O frio glacial tiraniza-me o corpo! Arrepios sem fim, estremeções fundos… um grande pavor! Tinha medo de mim próprio! O rosto anuvia-se e os olhos embaciam. Fico pensativo e algo agitado! No resto daquele dia, fui mais sorumbático, em corpo e alma.
Era a neve de regresso!
Manteigas
1970- 12-16
Em planos variados se gastam as vidas, mas a morte indiscreta, que nos espreita solícita, não deixa, por vezes, realizá-los, cabalmente. Também tenho os meus projectos, sempre diversos e quase falhados, porque factos estranhos à minha vontade, assim determinaram Há dias ainda, eram diferentes as minhas aspirações e o mesmo pensar!
Deus, porém, que faz sempre as coisas pelo melhor,( creio que foi Ele e mais ninguém), mudou planos e sonhos! Houve melhoria, com toda a certeza! Influência poderosa de minha santa mãe, na Pátria Celeste! Pedido seu, a meu favor? Fosse como fosse, tenho para mim que foi uma viragem de carácter peculiar! Os meus sonhos dourados vi caí-los num momento!
As minhas aspirações mais íntimas e fundas, violento furacão as veio submergir, para todo o sempre! Seria melhor assim, para a minha salvação? Estes são, de facto, os caminhos de Deus?
Sofri intensamente, como só Deus é capaz de saber, Não foi mera frustração, vaidade ferida ou logração, mas a falta de tudo o que no mundo se adora: amor e amizade, ventura e famí-
Lia
Qual tornado sanhudo, apresentou-se a desgraça ( Deus sabe se o não é) batendo com força à minha porta gretada, Abri prontamente, julgando tratar-se de coisa benévola.
Começava o tempo da grande amargura, a época horrível da minha inquietação.
Deus o quis? Assim seja, pois!
Manteigas
1970-12-17
Ferido, ao mesmo tempo, em corpo e alma, chagado já
e sem visos de esperança, acolhi-me em Deus, refúgio supremo e amigo certo de qualquer infeliz! A dor, afinal, é caminho de resgate e porta de salvação. Bendigo, nesta hora, a Providência amorosa, que me feriu tão fundo, para eu reflectir, mudando meus projectos e fazendo penitência de todos os pecados.
Agora, estou ciente de que tudo perdi, mas se ganhar o
Céu e o nosso bom Deus, a quem amo deveras, sobre todas as coisas, o dano é nulo. Ofertei ao Senhor amarguras e penas! Que elas sejam, na verdade, preciosa moeda, para ganhar o Céu.
Dois infernos era muito! Um deles, neste mundo , e outro, após
ele ?! Chega o primeiro! Que a graça do Senhor me afaste do mal ! Agora, são diferentes as minhas aspirações: garantir, para logo, um pouco de pão e, em seguida, reparti-lo também,
om sensatez e grande equidade.
A minha família é por onde começo; em seguida, a igreja da minha aldeia, onde com certeza, as futuras gerações prestarão a Deus o culto devido; a elevação social da minha freguesia; o Seminário, que me
me preparou, para a vida em pleno, criando asas para eu voar; as Missóes Católicas; a Boa Imprensa; o Hospital de Celorico da Beira e uma obra infantil; um fundo monetário pela minha alma e assim a de meus pais como avós; as almas do Purgatório.
Quem dera ter muito, para distribuir!
Manteigas
1970-12-18
Abril e Junho de 1971! Nessa data, espero, na verdade,
que se realize um sonho, muito acarinhado. Melhor diria,
começará então a ser realidade. É a luta pelo pão, que garante
a subsistência, livra de amargura e repele a vergonha.
Quatro centos e dez contos, mais quinhentos e noventa,
Somam logo mil ! Tal é o fruto maduro de imenso trabalho, apertada
gestão e grandes privações! Não herdei o pecúlio: resulta do meu esforço e bela orientação! Só Deus é que sabe! Foi amealhado, à custa de suor e da própria vida! Nem sequer um centavo alguma vez desviei, fosse de quem fosse!
Pertence-me em pleno e será para mim garantia segura
dos anos derradeiros, que já se aproximam. Doença e privações amestraram-me cedo, levando-me a esforço que era demasiado,
com perigo da saúde. Fosse como fosse, aquele montante é grata realidade. Sinto-me feliz, por haver pão e também aconchego, neste exílio tão triste!
Dividirei com os outros, sem deixar de trabalhar! Rendendo 8, , nas Firmas em vista, ambas em Lisboa, virá brevemente o montante seguro de 84 contos, ao fim do ano. Não terei cuidados! Diminuirei as tarefas, repartindo com os outros um pouco do meu pão.
Manteigas
1970-12-19
Finalizou ontem o 18º giro da roda fatal.
Em 1952, um mês como este, numa tarde menos fria, entregava-se a Deus o autor de meus dias! Como o tempo é veloz e apaga no seio, as realidades mais vivas, os afectos mais ternos! Não sucede que me tenha esquecido, pois o lembro amiúde, estranhando que não fale comigo nem venha visitar-me!
Apesar de tudo, esse tempo vai longe… tão longe vai, que o não reconheço, fazendo-me saudade a sua recordação! Quem dera que voltasse! Mas não! É de tal modo o fundo abismo que agora nos separa, que fenece breve toda a esperança! Mais vale confiar no Pai do Senhor, que assim orientou, esperando ansiosos que um belo dia nos ponha juntinhos, para sermos felizes.
É tempo de fé, na sua Providência, embora seja duro viver desligados, como sendo inimigos! Depois que partiu, jamais achei amigos, que ombreassem com ele! Cada um arrebanha aquilo que pode, esquecendo amizades, postergando atenções!
Diz o povo: O Céu é de quem o ganha, e este mundo é de quem o apanha!
Prestemos sempre ouvido atento, volvendo com presteza os olhos, em redor! Proceder ao invés, é fonte de amargura que vai sair cara! Como a calmo o viver e me sentia feliz, nesse tempo remoto! É que então um braço robusto, amigo e pronto, estava à minha beira, disposto a agir, em favor do “menino”!
Já homem embora, eu tinha-me ainda por mera criança, de ver a meu lado o carinhoso paizinho! Um dia veio, porém, em que ele se foi, para não voltar! E eu fiquei só, no deserto da vida, a chorar a minha dor!
Manteigas
1970-12-2º A Fraga e o Fragão
A Fraga da Cruz e o Fragão do Corvo erguem-se altivos, no cimo da montanha, que ali se talha, quase em perpendicular. Olhados, cá de baixo, parecem esmagar-nos, pois se encontram ,de facto, em desnível acentuado, a cavaleiro da vila.
. Decorreram os séculos, as gerações passaram e aqueles dois vultos, imobilizados embora, desde o princípio, têm presenciado mutações diversas. Atentos à vida e sempre alerta, observaram de lá, com grande perspicácia, tudo o que passou, cá na povoação.
Será curioso abeirar-nos deles, para ouvirmos, de perto, a sua conversa, em extremo ajuizada e julgarmos do passado que não volta mais. Discretamente, pois, assestemos o ouvido, escutando-lhes a voz, que traz ensinamentos.
A experiência é mestra do homem e há sempre, afinal, vantagem enorme em as novas gerações escutarem as velhas a quem a vida amestrou, fornecendo achegas, harto apreciáveis.
Se acaso alguma vez nos doer um pouco, tenhamos coragem, para aguentar, na certeza firme de que eles censurando, não o fazem por mal!
É côa mais não poder, a crítica ajuizada, não fazendo jamais acepção de pessoas. Integrados no ambiente, fazem parte dele e não dizem, por certo aquilo que deprime. A medicina é para curar, não obstante o ardor e até a repulsa, que ,às vezes sentimos!
O Fragão e a Fraga exigem somente que prestemos atenção. O mero facto de serem bons vizinhos originou, desde logo, bom entendimento, que reservam para nós. Velhos conhecidos e muito bons amigos, a todo o momento, de luneta assestada, vão dizer-nos o que julgam, acerca do presente
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Manteigas
1970-12-21********************************************
Como é bom ser livre e dispor de si, a bel-prazer! Deitar, sem horário, erguer a capricho, comer sem pressa, viver descansado e, finalmente, seleccionar o trabalho que dá mais gosto fazer!
Ter o pão de cada dia, lar e ventura, viver também de amor e
amizade, sentir-se desejado, dormir, em sossego, não tendo remorsos a pesar na consciência, crer-se útil e prestável!
Não seria, talvez a ventura em pleno?! Pelo menos, boa parcela!
Não pedir à vida mais do que ela pode, limando aspirações, tenho certeza de que era o caminho para a vida feliz.
Quem goza, no entanto, de privilégios assim?! Iria, julgo eu, ser procurado, a todo momento! Diria até assediado com perguntas infindáveis!
Bem sei, há muito já, que este mundo é exílio e que o exilado jamais é feliz! Está exacto o pensar, mas a grande verdade é que certos exílios mais são calvários, em que o homem se estorce, inevitavelmente. Há circunstâncias, que demandam heroísmo ,e muito bem sabemos que Deus e Senhor, Pai justo e santo, não exige de nós tão grande renúncia.
Estes casos não são frequentes e, quando existem, é Deus que chama. Não são os homens que talham, com tal chamamento e ajuda celeste, secundados, Já se vê, por doação voluntária, consciente e amada. Em tal caso, a dor e o sacrifício transformam-se logo em fonte de prazer.
Algumas vezes, porém, que é o que vemos?! Famintos de pão? Mais, Famintos ainda de paz e bem-estar, por se verem algemados, contra sua vontade e não poderem fruir do que vêem aos outros e a que se julgam , realmente, com direitos iguais e inauferíveis.
Manteigas
1970-12-22
Fraga da Cruz: rochedo majestoso, a cavaleiro da vila.
Fragão do Corvo: rochedo imponente, não longe da fraga.
Ela - Um dia maravilhoso, para encetarmos o nosso diálogo, sobre o que vai, por esta região!
Ele - Sim, boa amiga! Vejo que não dislata, seja embora, neste passo, o princípio do Inverno! Parece, às vezes, que anda tudo às avessas, não é verdade?!
Ela - Tudo, tudo não direi, mas certas coisas!... Não pretenda convencer-me de que um dia assim nos é desagradável Luz e calor não molestam ninguém! Há um livro excelente, dum Mestre da Língua, que dá por esse nome!
Ele -…Ah! É de Bernardes, o Padre Manuel Bernardes, que eu lia amiúde. Recordo perfeitamente essa bela obra-prima e não tenho em menor conta a Nova Floresta! Prosa fluente, ingénua e pura, terna e cristalina, como a alma do autor, não poderei esquecê-la! Aquilo, sim, é na verdade, Portuguès de lei!
Ela - Oh se é! Tudo na obra respira humanidade, frescura e beleza; moralidade segura; intenção recta.
Lá dizia o Castilho: “Quando fala da Terra, tem ods olhos no Céu!” Não vedava, por certo, a sua leitura a filhos meus!
Ele - Uma árvore boa não dá maus frutos. Assim diz também a Santa Escritura. E o famoso ditado: “Chega-te aos bons, serás como eles:chega-te aos maus, serás pior do que eles!” E ainda: Chega-te a boa árvore e boa sombra te cobrirá”
Ela - O caro vizinho é forte em máximas e rico em provérbios. Gostaria imenso de achá-los juntos, num livro formoso!
Ele - Como não apreciar o que os povos condensaram em frases imortais! Cada uma delas , banal que parea, é fruto da experiência, resultado brilhante de inúmeras vigílias. Em tempos idos, coleccionei bastantes!
Ela - Acha que a leitura é, na verdade, apreciada, na vila e que terá eficiência?
Olhe, cara amiga, assuntos de importância requerem mais tempo, Responderei, sim, mas de outra vez!
Manteigas
1970-12-23
Ele - Prometido é devido, assim reza o Ditado.
Ela - Lá vem ele já com citações! Que bem me quadram!
Creia, meu amigo, que daria tudo por um rifão! Multa in paucis!
(Muita coisa, em poucas palavras!), como dizem os Latinos. Ele - Se vamos agora para o Latim, nunca mais de lá saímos! Quanto à leitura e rentabilidade, muito há que dizer. Comecemos então. É para o espírito, sem tirar nem pôr, como o alimento para o estômago: nutre e alimenta, valoriza sempre!
Bastava isso, para impô-la a todos.Um indivíduo forte, sadio e competente é coluna segura, na qual a sociedade poderá firmar-se. O progresso das gentes não é possível, à margem da instrução.
Ela - Pelo que diz o bom amigo, deduzo eu já a importância do Colégio, pois ali se prepara o escol da sociedade.
Ele - Não haja dúvida! Trata-se, afinal, da obra-mãe, num
Lugar qualquer. É ali, na verdade, que se embebe o espírito de noçõe s valiosas, que vão permitir, nos filhos de Portugal, em dia não distante, ombrear com outros povos, e responder também ao apelo da História . Ele é o cadinho que afina as almas!
Ela - Estou vendo, meu amigo, e sou de opinião que deve
oda a gente acarinhar em extremo tão bela Instituição, afim de que, por um ensino deveras frutuoso,, tenhamos, no porvir, bons chefea de família.
Ele - A nova biblioteca, fundada recentemente, veio coadjuvar, neste campo de treino. O que urge, na verdade, é retirar dos livros todo o ensinamento que eles podem ministrar,estimando-os sempre, como bons amigos.
Uma leitura apressada, que atende
Ele - Ó cara vizinha, é-me grato hoje, interromper o assunto da nossa intimidade, para nos ocuparmos, acerca de outro. Que se oferece dizer à minha proposta?
Ela - Não faço questão, como sabe há muito e, neste passo, vem ao de cima, o célebre dito do poeta latino. Creio que foi Terêncio:” Nihil humani a me alienum puto. ( sou homem.
Nada do que é humano julgo estranho a mim).
Acho que podíamos dizer: sinto na minha alma a dor e a alegria de todo ser humano.
Ele - Domínio e clareza, ao mesmo tempo! O seu Latim foi sempre acarinhado. Olhe, sabe o que preferi? Este dia, por ventura, não lhe lembra nada?!
Ela - Melhor fora que não me lembrasse! Mas, enfim tudo é viver!
Ele - Consoada e família, amor e amizade, enlevo e ternura, compreensão, tudo cala fundo em almas atribuladas, num dia como hoje. Quem um dia partiu regressa de novo: quem era frio ou talvez odiasse, volta, pelo Natal,, à bela concórdia! É um dia grandioso que a todos aproxima, ao contrário do ódio que separa e divide!
Amanhã é Natal! A voz angélica, ouvida em Belém, continua a ressoar. Para ouvi-la, cessam desde logo os bombardiamentos, emudecem os canhões, calam-se, por igual, as metralhadoras! Não ser eterno este ponto final! Se acabasse a ambição e morresse a inveja, como seria outro o mundo que
Habitamos!
Ela - A emoção não consente que eu agora fale! Que saudade imena e funda agonia sinto na minha alma, atribulada e pobre! “Quem partiu regressa hoje”! Se fora assim, não seria tão grande meu fundo penar! Desde a a guerra dos Gigantes, qual houve que voltasse?! Adamastor ou Atlas, nós e tantos outros do mesmo fadário, algum pôde reunir-se , em tão belo dia, àqueles que amava!
Ele - Se o mal dos outros é conforto para nós, que nos sirva e aproveite!
Manteigas
1970-12.25
Ela - Bem quis eu dormir a noite passada, mas não houve processo! A lembrança do passado e os factos de ontem abalaram-me a fundo! Foi num dia como hoje que o nosso noivado teve seu fim! Juras de amor, promessas eternas de fidelidade, tudo se gorou, naquele dia fatal, em que o grande
Júpiter, como castigo da nossa ambição, nos converteu a ambos
em poderosos rochedos, para todo o sempre!
Ele - Não lembres o passado, que deixou de pertencer-nos! A feia ambição é digna de castigo! Não é ela, com efeito, a causa basilar, que subverte a consciência, levando ao crime?!
Ambição e inveja, cobiça e fraudulência! Que é que faz as guerras, perturba a harmonia e gera desordem?!
Ela - Siim, realmente, foi castigo do pecado, bem compreendo. Que tragédia a nossa! Que desgraça irreparável!
Se houvesse remédio!
Ele - Há que sofrer as consequências! O plano tenebroso que tinha por fim destronar o deus Júpiter, para ali se instalarem os soberbos gigantes, em lugar de Júpiter,, é que fez, realmente, a nossa desgraça! Aquele amor vivo que j+a te cons agrava, levou-me também a aderir à conjura, só com a mira de fazer-te rainha! De que valeu tudo isso?!
Ela - Hoje, é Natal, símbolo vivo de paz e amor, vínculo estreito de união, entre os povos, centelha de fogo que abrasa os corações, ainda os mais frios!
Para nós, porém, este dia não conta, que vai ódio profundo, em nossos corações! Pudéssemos nós converter ainda o destino cruel no suave paraíso dos tempos d e outrora!
Continuarei, bem firme, a alimentar com ânimo, a luzinha da esperanca, pois de outro modo não consigo viver!
Os gelos dp Inverno e a s ardências do Verão destroem-me o ser,
ao longo do tempo!
Manteigas
1970-12-26
Esperança! Grande alavanca, esteio bem firme em que os homens see estribam! Enquanto existir, o desespero não assenta arraiais! Mas olhe lá, boa vizinha, não será uma ilusão?!
Ela - Ainda que o seja! Mesmo que o fosse! Até nesse caso, seria bela a esperança!
Como doura as coisas. tornaria suportável a cruz da vida! Sobrelevando â própria realidade, tem o condão de aviventar os pobres mortais, na mira de alcançar aquilo que intenta.
A posse das coisas é já desilusão! A Facilidade ainda mais! Longínquas, trabalhosas, mais belas se apresentam as coisas desejadas!
Ele - Na verdade, perder os bens, é dano muito leve;; perder a saúde, algo pior; perder a esperança, nada mais a perder! É que não há base, em que assente a existência! Ainda é mais necessária que a luz e o calor, procedentes do Sol!
Esperemos, então, ainda que, realmente, seja impossível!
Ela - Isto de chor adeira, quando todos cantam,é que não gruda!
Ele - Inteiramente de acordo, exsepto num ponto. A cara
Vizinha já pensou alguma vez no que é o Natal, para muitos infelizes?! Juulga, talvez, que traz alegria a todos os lares?! Nesse caso, engana-se, em pleno! Eu até drei ser mais ditoso e alegre só para as crianças e pouco mais. Se não vejamos.
Entre as próprias crianças, quantas delas há que não chegam a saber o que é o Natal?! Umas preteridas, abandonadas, repelidas outras ou enjeitadas! Se as trouxe o acaso ou a loucura as fez surgir?!
Ela - Que rosário longo de tragédias e dores vai pelo mundo! Nem as próprias crianças poderem ter um Natal feliz
Ele - Sabe agora que não! Como passa a quadra quem é só no mundo?! Adulto ou criança, pouco isso importa!
Enterneço-me, é verdade, perante a criancinha que não tem ninguém, mas o adulto é mais infeliz, por haver conhecimento do seu estado miserando, em que apenas vegeta! Promessas incumpridas, sonhos desfeitos, traições e frustração, crua deslealdade, negras ingratidões!
São estes realmente, os grandes infelizes, que a ninguém interessam!
Ela - E quem teve culpa do seu mísero destino?!
Ele - Às vezes, eles próprios, devido à imprudência ou leviandade; outras, ainda,é o meio desastrado, em que giram suas vidas, tendo agora em vista o meio económico, social e religioso.
Ninguém pode libertar-se do meio em que vive! As
Circunstâncias forçam e logo constrangem, Vocações falhadas, caminhos impostos, ou ainda torcidos, ideais que se impingiram,
Dourando a aspereza ou ainda ocultando a própria verdade.
O Natal para estes é bem mais doloroso, se não mesmo trágico do que para outrem!, incluindo as crianças!
Manteigas
1970-12-27
Ela - Será melhor então escolhermos outro assunto, retomando assim o fio da conversa que, há dias, nos ocupava.
Ele - Se bem me lembro, trata-se da leitura.. Este meio é
muito outro do que foi outrora! O nome da terra deixa entrever, não é segredo,, agricultura ocupações humildes, atinentes à pecuária e pastor ícia.
Podemos hoje afrmar que essa actividade é, como se. realmente, houvesse terminado, ao menos em parte! O que tem mais importância, em nossos dias, é de facto a indústria e as as actividades, ligadas à floresta; agricultura e pastorícia ; ficam abaixo.
Ela - Estou vendo, desde já, os efeitos necessários dessa marcha crescente: elevaçã imediata, ao nível cultural; promoção humana; valorização do mesmo trabalho e assim, da inteligência. Que mais direi eu?!
Ele - Na verdade, assim é. Mas tudo isso não foi obra do acaso! Jogo, sim, de forças criadoras, espíritos iluminados que deram a Manteigas a luz da sua mente e a bondade generosa de seus corações
Manteigas
1970-12-28
Ela - É, pois, evidente que a chamada evolução, no meio social e económico, foi bastante acentuada, principalmente nas últimas décadas. O surto de progresso deixa entrever-se na
Maneira de vestir bem como de falar; na higiene pessoal; nas diversas vias de comunicação e meios de transporte; em casa arejadas e muito bem expostas; fundos monetários alimento e bebidas e também na cultura das gentes.
Cá estamos nós chegados ao ponto exacto, donde havíamos partido. Uma coisa puxa a outra, claro se deixa ver! Se
Nem tudo está feito, há muito realizado, e a cultura dos povos levá-los-á, de facto, a efectuar o que está por fazer.
Ele - Essa conta bem sai, como diz o povinho!. Há, com efeito, muita gente cursada, a partir do Liceu e da Universidade.
Neste capítulo, desempenha bom papel o Colégio local. Como
Prova de eficiência, basta reparar nas aprovações que já conta em seu activo e nas possibilidades que forneceu, desde início, às famílias modestas ou com muitos filhos.
Ela - Estou vendo isso. As famílias sem recursos, não podendo enviar seus filhos e filhas para fora da vila, tinham de ficar-se, de braços caídos!
Ele - Por outro lado, veja o movimento que se verifica, diariamente, com destino à biblioteca! Gente que vai, gente que vem, interessada em ler d esejosa, ao máximo de enriquecer a sua cultura.
Quanto ao proveito da própria leitura, isso já depende, como é evidente, dos recursos pessoais: argúcia de base, poder de raciocínio; faculdade rica de assimilação; cultura geral e outros factores. Seja como for, o rendimento é já positivo.
Ela - Que seria necessário, para que a leitura rendesse ao máximo?
Ele - Bom! Isso é um tanto complicado! Apontarei, no entanto, alguns requisitos: não ligar, geralmente, importância demasiada a dados secundários bem como ao enredo;
prender-se em extremo com as ideias do próprio autor procurando extraí-las com a máxima clareza; anotar com interesse a forma literária e primores de expressão; enquadrar o assunto, na época literária e respectivo período; descobrir se o auto viveu a fundo, os problemas do seu tempo e se realiza também as características da Escola literária; investigar ainda se ele é original e tem personalidade; não passar despercebida a sua justeza de ideias e o equilíbrio moral.
Manteigas
1970-12-29.
Ela - No tocante ao Colégio, que pensa o vizinho?
Ele - Olhe, boa amiga, tal instituição é o número um da vila de Manteigas ou qualquer agregado. Recordo agora a frase sonante dum escritor francês:”Abrir uma escola é fechar uma cadeia!”.
Vítor Hugo tinha, de vez em quando, tiradas magistra, mas a dita frase é um pouco suspeita!
Justificam o respeito ao grande luminar, é um pouco suspeita! Não julga melhor quem tenha, de facto, os olhos abertos e os volte breve para o exterior, do que outro sujeito que apenas abranja o que vai dentro de si?!
Ela - Sim, tem razão, mas no caso em foco, as coisas, a rigor, não se apresentam em termos iguais!
Ele - É indiscutível ser o Colégio uma bênção para a vila,
devendo, portanto, ser acarinhado por todos os habitantes. Quem fizer o contrário nem é bairrista nem preza o que é belo, necessário e útil!
C0asos pessoais nada interessam: devem mesmo esquecer!
Salvemos, defendamos as fontes maravilhosas, geradoras de energia, para acompanharmos os povos civilizados, atendendo assim ao apelo da História.
As instituições figuram como as pessoas: precisam de carinho, compreensão, vigor e alento.
Destruir é fácil; difícil construir e manter funcionando
Manteigas
1970-12-30
Ela - Voltando uma vez mais ao assunto de ontem: a quem pertence o Colégio e que interesse é que ele serve?
Ele - Como propriedade, é particular; como instituição, é da vila inteira, pois serve os interesses da população. Não existe ali acepção de pessoas: todos são bem-vindos e tratados por igual. As duas paróquias - S. Pedro e Santa Maria - estão, de facto, em pé de igualdade.
Ela - Julgava eu que, por estar em S. Pedro, nunca desse atenção aos problemas da vizinha!.
Ele - Nada disso! Até já teve Mestres da outra freguesia! Agora me lembro de que o mesmo pároco foi chamado também a colaborar! Como vê, não se faz ali, de modo nenhum, acepção de pessoas nem reserva os benefícios para dados sujeitos. A luz do Sol, quando surge no horizonte, é para todos: bons e maus, grandes e pequenos, ignorantes e sábios, plebeus e nobres.
Instituição do género é a melhor das luzes e, à maneira do Sol, a todos contempla.
Ela - Que dizer também, sobre a má vontade que separa as freguesias?
Ele - Olhe, boa amiga, não quero pronunciar-me nem descer a factos que dêem nas vistas! Sabe? Não tenho de feitio melindrar ninguém. O que me parece é que isso, na verdade, se vai limando, pausadamente, com enorme proveito, para a vila inteira.
As novas gerações, mais avessas à discórdia, entendem, com razão, que é melhor dar as mãos e trabalhar em comum. Lá
Diz o ditado: A união faz a força!
Ela - E a fábula dos vimes?
Certo homem, já velho, que tinha sete filhos…
Ele - Ah! Eu sei-a há muito já! É bastante curiosa! Sabe, vizinha? O que o mundo precisa é amor e não ódio! Neste aspecto, os novos de hoje estão vendo melhor as coisas censuráveis, rixas velhas, altercações, a má vontade, inveja e ódio para que servem?! Que lucro trouxeram as velhas discórdias?! Em que podem ser úteis?!
Ela - Inteiramente de acordo!
Manteigas
1970-12-31
Ela - Gostaria imenso de que informasse, em ordem ao , Colégio, sobre o seguinte regime interno, método seguido, pedagogia aplicada, aproveitamento e o que resta ainda.
Ele - De boa vontade, tanto mais que isso me é grato em extremo, na medida exacta que posso elucidar.
Fundado há ano pelo actual Vigário da paróquia de S. Pedro, tem prestado às famílias benefícios incontáveis Para tanto, rodeou-se o Director de vários professores , zelosos e dinâmicos, que têm levado a cabo a tarefa do Ensino, com aproveitamento, sem desdour algum.
.Ela - poderá ombrear com outro qualquer, em iguais circunstâncias?!
Ele - Sem dúvida nenhuma!! É verdade segura que não faz propaganda, quanto a resultados, obtidos nos exames, mas nem por isso é menos brilhante a folha de serviços! As estatísticas falam por si!, no que toca à Primária,, Escola Preparatória e Curso Geral
Ela - Não teve ele já o Curso Complementar ou seja o 6º e 7º?
Ele - Sim e podia tê-lo ainda, se houvesse alunos, para se manter, Como ia dizendo, há poucos momentos, o Corpo Docente é bem intencionado e assaz trabalhador.
Em questão de método, utilizam eles o meio termo: nem a dureza e rigor do passado nem o flexível e assaz macio da época presente.
Ela - Mas bom amigo, não acha melhor a pedagogia actual, que proíbe, terminante, os castigos físicos e deixa o aluno entregue a si próprio, olhando a liberdade como intocável?
Ele - Não acho, não! Essa teoria há-de ser adaptada, olhando, com atenção, às várias circunstâncias diria peculiares, que rodeiam os alunos.
O lar paterno, onde correu a infância e parte da adolescência tem a palavra, a este respeito. Não se ignora que a preparação no lar, em diversos casos, deixa muito a desejar.
Se a criança apenas cumpre, temendo o azorrague, não vejo alternativa, ao menos em princípio. Não vem assim habituada?!
Para sairmos do círculo vicioso, urge dosear a cara liberdade, alternando-a, gradualmente, com a chamada responsabilidade.
Urge educar os pais, afim de utilizarem meios diferentes, no trato com os filhos. Formar a consciência, levando as crianças, por modo gradual , a assumir, em cada caso, a responsabilidade. .
De outra maneira, impossível se torna evitar castigos, no mundo luso.r
1
Angola- Cuangar
1976-01-21
No dia de ontem, partiu um casal, rumo ao Calai, onde vivem acampadohá coisa de três meses, 13 dezenas de refugiados, todos portugueses. Este número, porém, vai engrossando com os fugitivos de várias cidades: Serpa Pinto, Moçâmedes e Sá da Bandeira.
O ambiente psicológico, em que todos vivemos, é já o pior que possa imaginar-se. Para infelicidade, bastaria, decerto, o pensamento constante do que vai ocorrendo: deixar tudo para trás - bens, emprego e casa; planos e sonhos e tantas vezes, a própria vida daqueles que amávamos!
A insegurança actual, a incerteza do futuro e a falta de recursos, até mesmo para fugir, tornam isto um calvário: viaturas arruinadas, carência de combustível, esperança destruída!
Se não morremos todos, à fome e ao frio, é que a nossa vizinha, a África do Sul, ainda vai ajudando os que vivem no Calai! Nós, aqui, se tivéssemos randes, compraríamos tudo, do outro lado (
(Sudoeste Africano), onde nada falta, mas onde estão os randes?!
Os nossos patrícios, Duarte e Teresa, que ontem nos deixaram, levam três crianças e não têm que vestir! Largaram tudo, ao longo do caminho, na fuga de Serpa Pinto. A viatura enterrou-se na areia e ficou abandonada. Corre por aí que já foi assaltada, roubando o que havia.
Hoje, vive-se do roubo. Criou-se por aí, mentalidade própria, que é já padrão e nova moral: ser um triunfo locupletar-se, desta maneira!
Os que votam a vida a transacções de tipo comercial e dispõem de meios, enriquecem depressa , aproveitando o momento! Uma simples garrafa de vinho do Porto custa, para logo 600$00;
uma de whisky sobe a 1ooo$00; qualquer artigo de 15 cêntimos, comprado no Sudoeste, é vendido aqui por 50 e mais!
Uma garrafa vulgar de vinho corrente, obtida por 1 rande, além´, no Sudoeste, é vendida por três!
Note-se ainda que pagam o rande a 200$0, havendo já chegado aos incríveis 500!
Cuangar
1976-o1-22
Vivemos do boato e nutrimo-nos de angústia!
Esperando sempre dias melhores, ouvimos atentos o que dizem todos, à volta de nós. Mil coisas se espalham, seguidas logo de amplos comentários, adaptados aos factos. Derramam-se ais fundos e cai-se de chofre em longo cismar.
Avança triunfante o MPIA, que tomou a Cela bem como
Santa Comba, às tropas da UNITA. A FNLA iniciou, no norte, a guerra de guerrilha. O pavor aumenta. Nada vale esperar!
Angola, ao presente, necessita um governo, venha donde vier!
Dos três Movimentos ou apenas dum só? O melhor de todos seria a coligação. Será possível, em África?! A experiência
cria hesitação. Ambição e cobiça, falta de maturidade e interesses estranhos fizeram disto um grande fiasco!
Haja quem governe! Acabe a anarquia! Cesse o latrocínio!
Angola a saque! O MPLA, atendendo ao que se passa, nestes dias sombrios, tem boa orgânica, aparentemente. Grande pena é que seja marxista, em que a fé religiosa não tem cotação!
A Voz da Alemanha propalou hoje haver, ao que sabe, 10000 Cubanos a lutar em Angola!
Se bem compreendi, a Ilha de Cuba prepara, diariamente 200 homens, para lançar em combate. Não sei a valer, quem tem razão! Quem vai lucrando são, na verdade, as grandes potências
que vendem, a capricho, o seu armamento e empregam os homens!
Por aqui, afinal, é tudo ruína! Quem nos acode! Avança glorioso o MPLA! Poderá, na verdade, assegurar a paz, em zona tão extensa e com tantos inimigos?!
Os outros Movimentos e as nações vizinhas continuariam a luta armada .
Vejamos agora como a Rússia respondeu aos Estados Unidos: “ I have no question, about Angola! It isn‘ t my Country !”
SWA Nyangana
1976-01-23
Chegou, por fim, o que tanto desejava! É verdade incontestável que, neste mundo, nada há que satisfaça! Ansiava,
noite e dia, que chegasse a nomeação. Esta efectiva-se, e a tristeza não me larga! Não tive eu de separar-me das pessoas que amo?!
Assim, fica a alma destroçada, pelo mundo além!
Um mês, no Catuítui, Campo de Refugiados; 4 no Cuangar, onde o bom Padre Abílio a todos acolheu!
Cinco largos meses de alto nervosismo, em que a guerra e o terror foram pão de cada dia. Só colunas militares a troar a toda a hora, à volta de nós!
Canhões e Aviões a cruzar-se, a toda a hora, levando a destruição a todas as partes da querida Angola! Deixei-a com saudade, mas ela está perto. Do outro lado do do rio Cubango, acompanha e vive a minha tristeza!
A verdade, nua e crua, é que a amada Angola se apresenta melancólica e me toca fundamente! Ai! Angola querida! Recebeste o sangue vivo do luso coração, que te amou e defendeu! Deixei-te com pena! Durante 500 anos, percorreu os teus caminhos o povo português
Nenhuma força existe, no mundo habitado0 que apague e destrua essa marca indelével! Revela-a o teu rosto! O caldeamento luso é feito de amor, sorriso e ternura: não ao som dos canhões! Aquilo fica na alma, gravado para sempre em letras de fogo!
Minha Angola idolatrada, que encerras no teu seio o corpo infeliz da Maria Margarida, a desditosa que foi assassinada, em Silva Porto, pelo crime de te amar, foste para mim, terra de mil encantos,
em dias de paz!
NYangana
1976-01-24
Desliguei-me de um mundo e encontro-me noutro! É bom o princípio, não haja dúvida! A via achacada, molesta e lamacenta foi
Mmlhorada, há pouco ainda! Para carros pesados, não aparecem quaisquer dificuldades! Viaturas delicadas… entram na desgraça! A trepidação, que raramente cessa, ao longo da estrada, põe os braços num molho!
Enfim, percorridos na calma 2oo e tal quilómetros, cheguei à Missão, onde o almocinho não se fez esperar!
O padre Hermes Wirth, como o Superior, foram muito amáveis.
Em seguida, fui ao Liceu, para avistar-me com o Reitor.
Não obstante os problemas que se antolham, desde já: Línguas doutro ramo que não o latino, costumes diferentes, dificuldades enor mes que os 57 anos trazem sempre consigo, e não sei que mais, estou confiado.
i.
Nyangana
S .W.A-Namíbia
1976-o1-25
Como já disse, a viagem foi boa. Acompanhando sempre o rio Gubango, não havia que enganar! Ficava-me à esquerda, avivado, aqui e além, por cubatas de indígenas.
Do outro lado, era a nossa Angola, que também me seguia, em corpo e alma. Houve certas ideias que foram obsidiantes:
Suapo e terrorismo; seguir pela esquerda; bois e cabras, na e estrada; ultrapassar o Liceu, não me apercebendo de que tal ocorresse!
Apesar de tudo, não houve azar!
As espinheiras, agora reverdecidas por chuvas abundantes, servem de cobertura ao esperto capim! Às vezes, Iludia-me: afigurava-se breve e imensa alameda, alindada pelo homem, onde logo apetecia repousar… esquecer! Impossível fazê-lo!
Viajar é de dia! Para mai,s em terra alheia, totalmente ignorada ! Nkurenkuro-Tondoro: 28 quilómetros; daqui ao Rundu, mais 112; da cidade à Missão, mais 113; daqui ao Liceu,
16 quilómetros. Dá, se não me engano, 269 quilómetros.
Que zonas estranhas e que toada impertinente, melancólica, sinistra.Não sei muito bem o que parecia! O efeito notado semelhava, a rigor, o de serra manual! Durante a noite, era constante o vaivém da serra, notando-se claro, de quando em quando, muito breves paragens!
Engenhos desconhecidos, ali no Cubango?!
Pela madrugada é que foram os trabalhos! Quis sair de casa, mas não foi possível! Era tanta a água que dava a impressão de vir em caudais, por um céu rompido! O chão a pisar assemelhava-se a um rio, cujas águas furiosas caminhavam sem descanso!
Quem me dera botas altas! - disse eu então para os meus botões. Era a cântaros! O que dá jeito é o fim-de-semana ! ( sábado e domingo!)
As nossas aulas são de manhã, cabendo por semana, 35 tempos aos primeiros anos.
Cada tempo escolar dura somente 35 minutos.
Nyangana
1976-01-26
São agora 6 e trinta. Já estou preparado. Às 7 e trinta,
para o trabalho. Sendo o primeiro dia, é cheio de apreensões. Bem pesaram estas na mente agitada, pois que o sono de três noites, que levo na zona, foi algo interceptado.
Na primeira delas, acordei à meia-noite; depois, na segunda, a um quarto para as três; na terceira final, às três e meia. Decrescimento evidente da tensão nervosa!. Estou sozinho, num país estrangeiro, em que tudo é diferente.
Já me não cobre o céu de Portugal nem ouço falar ou ainda cantar, em língua portuguesa! Tudo aqui é estranho, embora rodeado, em toda a parte, de atenções e interesse!
Fosse eu rapaz ainda! Nada haveria que receasse!
Apesar de tudo, com Deus a meu lado, hei-de vencer! O mundo em que vivo, é bem diferente do que me embalou! Procurei, nos meus papéis um mapa de Portugal Havia de ter um! Lá estava dobradinho, com muito jeito e até elegância, como a gente faz sempre às coisas preciosas, que ama deveras
Desdobrei-o, logo, fixando-o ali algo enternecido, e remontei, deliciado, à Pátria dos Rouxinóis. Que eles bem sabem onde é grato viver e cantar a vida! Nunca mais dobrei a Carta, permanecendo estendida, sobre a mesa de trabalho.
Aqui está ela, em frente de meus olhos, a lembrar-me o que fui e deixei de ser! Faz enorme bem contemplar este mundo, tão vivo e amado, enquanto de frente, me fixam em mudez, as figuras apagadas dos entes que amei!
Uma delas está rindo, envolvida em flores: enlevada e meiga, sorri para a vida, que alguém lhe roubou, a 8 de Maio de1975.
Nyangana
1976-01-27
Decorreram em calma as primeiras aulas.
Habituado como estava à canalhice e desordem, fiquei maravilhado com este ambiente! Confesso, em voz alta, que me enche as medidas. Às 7 menos 15, hora regional, encontrava-me já, no Liceu Técnico.
Não vou dizer que é preciso madrugar! Às 4 e 30 da velha Europa, é logo pôr acima. Assim fiz eu, para tudo correr bem.
Na verdade, fazer os preparativos, comer alguma coisa e percorrer, depois, 16 quilómetros, leva algum tempo . Isto, é claro,
não contando, já se vê, com alguma pirraça, que me caia de improviso um furo de pneu; estrada empoçada, ovelhas e cabras. Os animais, em regra, vão dormir à via pública e não querem levantar-se logo tão cedo!
Andando nervoso, acordei mais cedo! O 25 de Abril ou melhor ainda, o seu evoluir, criara-me problemas.
Ir para as aulas, após essa data, era encaminhar-me ao pretório da amargura! Graças a Deus, pois aqui é diferente! Não vi despotismo: antes convicções, aprumo, distinção!
Que bem eu me sinto, num ambiente assim ! Liberdade e convicção, auto-domínio e personalidade! Os materiais que o Mestre precisa basta ir buscá-los..
O Estado fornece-os sempre, gratuitamente! Bendita fartura!
Não parar diariamente e havê-lo feito sempre, desde Bom! Que ao menos o fim seja um pouco animador O corpo docente, ao que me parece, é protestante. Apesar de tudo, começa rezando o dia de trabalho. Que bonito é e que lição para muita gente!!
Estou satisfeito, de caminhar para Sul!
Nyangana
1976-o1-28
Foi compensadora a mudança de Angola, para a Namíbia, governada então pela África do Sul: foi como ir do inferno para o paraíso! Verdadeiro éden era Angola também, mas tudo virou o 25 de Abril, deixando o território sem protecção.
Eu, em pessoa, vi um polícia a chorar, junto da Escola Técnica de Silva Porto. Pergunto eu: sente-se mal? Se está doente, dê baixa de serviço!
Atalha ele, afogueado , quase soluçando:
--
Mais que doente, senhor! Mando ir para a frente, vão para trás; indico a esquerda, vão para a direita!
As minhas colegas de Magistério iam para as aulas, de lágrimas nos olhos. Alguns colegas já tinham fugido!
Foi amargurado que deixei o cargo e parti saudoso para a Namíbia, onde tudo era ordem, progresso e bem-estar.
Entretanto, encontrava-me já nos 57, para iniciar uma vida nova, em nada semelhante à do passado: as três línguas de contacto, do ramo germânico ( Inglês, Alemão e Africânder); o método de análise, usado no ensino em oposição ao método de síntese, utilizado em Portugal; a escrita exigente das frequências mensais; etc..
Já tenho dados para fazer o horário de trabalho. Coração ao largo. É tudo árduo, mas o Pai do Céu vai ajudar-me. Conto com Ele! Hei-de vencer. Necessidade obriga!
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19791979
Doebra (Namíbia) – S.W. A
Nada há tão simples como a Natureza, quando ela se mantém como Deus a criou. Onde o homem pôs a mão, conseguiu entortar, chegando tão longe, que fez irreconhecível a obra do Criador.
Convenho, na verdade, em que algo de belo, engenhoso e prático
Legou a seus irmãos, quer imitando, quer descobrindo. Mas, se comparo o mal com o bem que fez, aquele supera em muito. Até o que é bom converte em mau.
Não é desvario, loucura e sandice o que leve a cabo?! Não devia ser antes garantia da vida, em lugar de obstruir, amputar e destruir, o que não pode reaver?! Regrr erssei há pouco, do giro matinal: uma volta arejada, pelo horto viçoso, na mira de encontrar o simpático Irmão, que se adapta bondoso ao pobre Alemão, em eu me exprimo.
Hoje, então foi longs a conversa: duas horas cumpridas! Por ser hortelão, vem a talho de foice o que o cerca, de perto: ervas, arbustos e árvores; sementes e regas; doenças temerosas que arruínam as culturas; animais daninhos e aves benéficas; vários pormenores, acerca do renovo; tempo favorável e desfavorável..
Junto das tomateiras, avulta a poderosa espinheira, copada e umbrosa. Que atrai as preferências dos belos passarinhos.
Olhei-a de perto e, qual o meu espanto, ao ver, na periferia, lado inferior, um conjunto de ninhos. Estão pendurados, como balancés,
Movendo-se, a rigor, conforme o vento.
Levanto o braço e quase lhes chego! Será, por ventura, algum aldeamento?! Preso do feitiço, entro na pesquisa de vários elementos que me retêm pronto, e dão que pensar!
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Doebra
1979 Cont,
Entrei no meu mundo — a escura solidão.
Pela manhã, senti o conforto, que vinha de fora: algo de interesse e calor humano; aves a cantar ou em busca de alimento; vegetação luxuriante, a falar de abundância, no verde retinto; sombra inebriante, doce e confortável, da espinheira grande. .
Esqueço os males que me seguem de perto. Amando a vida e querendo interessar-me. Regressando, porém, acabou o feitiço. Fenece o lindo sonho, que embala e encanta; d epara-se logo a triste solidão!...
Já no corredor, ouço vozes timbradas, ``a mistura com outras. S ó
Então melembrei de que estavam festejando o 1º de Janeiro! Elementos da Missão e outros de fora, conhecidos e amigos, brindavam hilsriantes,ao ano 79. Achei razoável e trouxe à memória o tempo de outrora. Em que eu igualmente fazia a mesma coisa! Isto, porém, há muito findou.
Sozinho e deslocado, por hospícios alheios,, em tempo de férias, sem alma gémea que note, em alvoroço a minha presença, infunde tristeza o convívio dos outros!, deixando-me aguado, com l´agrimas nos olhos!
Deitei-me logo, por sndsr em tratamento, deixando. Pois, em comunidade em alegre tertúlia. Não sou desprezado! Nada me falta, aparentemente! Apesar de tudo, o vazio é tão grande! Encerrado no quarto, por dias e noites!...Que faria, ao pé deles?! Que prazer me daria?! Só o Irmão Franz se adapta a mim, falando Alemão!
Por este motivo, isolo-me sempre Só tenho deveres?! Serei um escravo, amarrado a leis que os homens fazem?!...
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Doebra
1979
Estudei longamente o caso dos ninhos, observando, em pormenor, as variadas circunstâncias. Por fim, tirei a conclusão: um ser racional faria de igual modo! Como sobe a tal ponto o acerto e a prudência, nas lindas avezinhas?! Só matéria?! Esta não calcula! Tudo na espinheira foi ponderado: espécie de planta; lugar no horto; sítio na planta ; alimento e água; temperatura; tipo d e construção; vantagem de outros ninhos e
Gr r ande solidez.
A que mais atanderia um ser racional? Maravilha-me o facto e deduzp prestesmente: nas avezinhas, não há só matéria, inerte e bruta. Há, certamente, um pr ncípio divino, imaterial,, que preside ao organismo. Chamam-lhe instinto… Seja o que for! É algo do Céu, que transcende a matéria! E fica acima dela. Alma? Sem dúvida, embora mortal. Vejamos, em minúcia.
Havendo três delas, no horto, em causa, preferiu-se a maior e mais copada. Lugar no horto: lá quase ao fundo,, em sítio inverso à porta da entrada. Sítio na planta: periferia, na banda inferior, menos agitada e mais umbrosa, Alimento e bebida: passa junto dela a conduta da água,
Existindo courelas de cenouras tenras e beterrabas, tomates e couves.
Temperatura: estão as moradias voltadas a Leste, Sul e Poente, nenhuma havendo para o lado Norte. Toda a gente sabe que, neste hemisfério, o Sol faz caminho, embora aparente, pela banda norte.
Toda a gente sabe que, neste hemisfério, o Sol faz caminho embora aparente, pela banda norte, or iginando assim, temperatura elevada.
Tipo de construção: em jeito de bolsa, com forma cirular, habilmente presa ao extremo dum ramo. Material empregado: são ervas secas (outro não há), divisando-se a entrada, escassa e redonda. A maids de meia altura , do fundo para cima
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Doebra
1979 Vantagens de mais ninhos.
Abrigam eles, dão solidez e grande conforto. Foi esta, por certo, uma das notas que mais foquei. Talqualmente em as pessoas. Não é admirável!
A grupados a dis encontram-se muitos, havendo também séries d e trê quatro, e mais ainda.
Lá na Europa, nunca vi disto! Aldeia unida…conjunto de lares , em que a vida amanhece, rejubila e canta! Como há-de ser belo ouvir as canções de pais enternecidos, quando os filhitos, bem aconchegados, , na fofa guarida, espreitam receosos, mas enlevados, a luz circundante!
O mundo novo, animado e próximo!
Aldeia maravilhosa, sem terrorismo n em discussões, a gerar inquietude e ensombrar a vida! Que paz invejável, nestas mansões! Nem
Ralhos em fúria, nem tão pouco inveja,cobiça ou vileza! . iguais, em direitos e deveres!... Todos cantando o hino do amor, com a alma lavada!
Quem vos deu, avezinhas , esse belo destino? Como sois de invejar!
Também eu desejava uma existência igual: viver assim a vida, em paz e
Harmonia,, como Deus a criou!
Mas como estou longe de poder imitar-vos, belos passarinhos!
Admiro e louvo, no vosso destino, o s saber infinito do nosso bom Deus. a sua bondade, amor e providência
Após o dia 12, é forçoso partir, mas vai torturar-me a pesada ausência! Lá no Cavango, lembrarei, s audoso as belas manhãs que os
Vossos cantares enchem de harmonia.. As vossas moradas fazem da espinheira uma estância edénica.
Batam e forcejem os ventos em fúria, fazendo balouçar as vossas
Moradas, nada lograrão, que o amor as ergueu, o carinho as envolve
E Deus-Providência as tem de sua mão
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Windoek
1979
Aguardava a minha vez, em frente do Consultório, ao passo que as enfermeiras , em roda viva, caminhavam diligentes, pelo amplo corredor. Algumas delas trocavam comigo olhares de inteligência,
Lembrando a sorrir o período longo que a minha operação ali me detivera. Também eu o recordo e vivo saudoso, pela grande gentileza de que fui objecto, naquele Hospital.
Meditando assim, voltava o p assado, 1ue deixou na minha alma,
gravadas a fogo, essas horas de dor e funda emoção. Foi no quarto 28!
Olhar e fantasia tomavam logo asas, girando buliçosos, por tantos lugares, para sempre inolvidáveis.
Sala do raio X… teatro de operações, pequeno jardim, onde tanto cismei, durante a convalescença! Alheado como estava, quase me esqueci dos outros circunstantes : uns em macas de rodas; outros em carrinhos; estes, esperando; aqueles; aqueles ainda, tenteando seus passos.
Dentre todos eles, chamou-me a atenção um vulto de homem que andaria, talvez, pelos 70 ou mais um pouco. Alto, esgrouviado, a cabeça
branqueada e as pernas retorcidas, emitia sorrisos, fazendo mesuras para gente conhecida. Precedeu-me e segui-o. Entrementes, formulava perguntas, que deixava sem resposta. Uma dentre elas não pode esquecer: “ Que é que eu faria, no seu lugar?”
Calção flutuante , avultando no seio ossos descarnados. Quase no
fundo, peúgas sumidas, fazendo salientar a pele engelhada, com músculos e veias a gritar presença. Grotesca figura, adequada, assim julgo, ao tempo de Carnaval!
Alma bela? É possível Por que não usar calças? Em seu lugar, faria como ele ?
******
Doebra
1979 “ Mein Gewehr ist veg!”
Foi há pouco ainda, debaixo da espinheira. Na frescura da árvore, ao cimo do horto, ouvia as notícias desta bela manhã! Tempo bem azado para grande alvoroço e maus agouros, anseia toda a gente por saber o que vai! Irão e Namíbia… pontos enormes de interrogação!
O caso agravou-se, pois o Vietnam submeteu o Cambodja, tomando o poder. Grandes convulsões, pelo mundo além, apoiadas e
nutridas por grandes potências!
Qe vai ser, pois, o dia de amanhã? O mundo, alarmado, vê com horror, o triunfo do marxismo. A Rússia é capa, foco e sustento. O imperialismo que não é só de Leste, tenta apoiar-se e firmar as raízes.
Prometem mil coisas, afim de iludir. Poderosa máquina de embuste e mentira, pois a razão jaz encoberta.
Remoía sozinho tais pensamentos, quando o Irmão Franz vem na
minha direcção. Novidade? Algo empolgante?
Quando, r oubaram-lhe a espingarda, já perto, assim desabafa, com funda tristeza”Mein Gewehr ist veg!”A minha arma andou!” Esboça leve gesto, com voz embargada,
Sentando-se, por fim, no lugar habitual, Sim, a minha arma já andou!
Entraram no quarto, roubando-lhe a espingarda! Sinais dos tempos!
Durante séculos, jamais um preto ousara fazê-lo mesmo na rua!
Ficavam objectos, aqui e além, … fosse onde fosse! Indo por eles, decerto os achavam! Hoje, afinal, tudo mudou! Lá por Angola, deu-se outro tanto!
Quem se atreveu? Ninguém sabe! Actuando no escuro, apenas as trevas sabem do caso. Triste sinal! É já o princípio da grande tormenta
Pequenos roubos, assaltos frequentes , espancamentos, assassinatos!
Para remate, a guerra civil! Deus nos auda!
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Doebra
1979
Levo as férias todas a caminho do Hospital, aonde já fui, pela terceira vez. A 6 de Janeiro, sobe a 4 vezes. Até aqui, surpresas ingratas me têm surgido. O próprio Clínico fica embaraçado com as minhas reacções a seus medicamentos! O primeiro dentre eles, com fim sedativo, alterou profundamente o sistema nervoso, originando tonturas que me fazem cair ou dar a impressão de que o tecto rodava, com ímpeto incrível
Por esta razão, preceituou o Galeno diferente medicina, com vista a baixar a tensão excessiva, marcando, marcando novo dia, para ir ao Hospital. Apurada a situação com novas perguntas, marcou o aparelho
135. A penúltima vez marcara 170. Entretanto, as mesmas tonturas, com
Enorme desânimo a pungir no peito.
Perante os sintomas que algo estranhou, disse em remate: “Only
Half a tablet, in the evening. I need to see you, on Saturday,”
Só meio comprimido, antes de deitar. Preciso de o ver, no próximo sábado, 6 do corrente”.
Ora bem. Depois de amanhã, chega o dia aprazado. Hoje, afinal, diminuíram as tonturas e creio, realmente haver melhorado. Terá o meu Clínico acertado já? Basta! Dormi pior e tive suores, mas o estdo nervoso é bastante diferente. Aguardo, pois, o final da visita, pela quarta vez.
Na semana próxima, juntinho ao fim, tenho de partir, rumo ao Cavango. Com efeito, chegando a 16, reabre o Liceu, urgindo assim que esteja presente. Gostaria imenso de que a minha saúde não perigasse, afim de
Lutar, por mais um ano.
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Doebra
1979
Cheguei aqui em Dezembro, ainda no princípio. Volvido um mês, aproxima-se o fim, que desjo ansioso, poia o ermo do lugar e q falta de variedade originam tédio. Não sei o queé, mas após oito dias, fico saturado. Dava-se o mesmo, quando estava em Lisboa. Com mais razão sucede isto agora. Tem-me valido a sombra das árvores e o ar do campo
A grata companhia de livros e cadernos, o Diário fiel e o canto das aves
Horas bem longas eu cismo no horto, onde vejo com gosto o trabalho agrícola: sementeira e plantação; a rega e a sacha; colheita e ensaque. Vão-se-me os olhos, pelas várias tarefas e sinto no peito o frescor da infância!
O bom Irmão Franz, já quase nos 80, lá anda afanoso, em constante lidar! Tem por ajudante um rapaz nativo que é originário de Okakandjia.
Lembra-me agora uma frase de Garrete , no Frei Luís de Sousa:”
Necessidade pode muito!”
O rapazinho todo o santo dia, curvado e paciente, lá anda ele, envolvido em tomateiras ou então no meio do couval. Não olha nem fala: não perde tempo. A 60 quilómetros, deixa Augustinus, seu lar em
apuros, onde a mãe, viúva, espera ansiosa a féria ganha. Com ela só,
pagará, em seu tempo, a renda de casa e o magro sustento.
Enquanto assim, o bom do velhote orienta e vigia, ensinando o rapazinho que prepara para a vida.
É assim, naquele horto, onde canta a água que os felizes passarinhos demandam pressurosos, em tempo de calma.
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Doebra Namíbia
1979
Isto é África! Ontem, após o jantar, ficou assente a viagem, pelas 8 e 15. O padre Venâncio iria hoje a Windhoek, levando-me com ele.
Tendo o carro em Nyangana, estou à mercê das almas bondosas.
Por outro lado não é diversão, mas tratamento, no Hospital católico.
Dormi sossegado. Hoje, às 8 horas, já estava no local, aguardando o colega.
Até à meia, nada estranhei, pois fora previsto. No entanto, chegam as 9, passam as 10 e assomam as 11. Nada! Só às 11 e 30, decidi levantar-me e perder toda a esperança! Passou por mim, a caminho do almoço, ou lá o que era, mas sem explicação!
Depois, regressou ao trabalho: aprontar uma carrinha, não sei para quê!
Perante o sucedido, não posso conformar-me. Haverá direito a coisas do género?! Que lei o permite? Os pretos são assim?!Não têm palavra em sequer humanidade! Foi para isto que me prepararam, lá em
Portugal?! S er delicado! Não fazer esperar! Cumprir resoluções e manter
Promessas! Ser bondoso em extremo, prestável e humano, dando primazia àqueles que mais sofrem e precisam de auxílio…
Surpresas e logros, decepções e amarguras é o que a vido me oferece?!
Jamais eu faria uma coisa tão reles, mormente a refugiados, que
trazem a vida suspensa da sorte! Foi mais um quinau a juntar a muitos outros! Será este o final?! Pretos e pretas são todos assim?! Queira Deus
que não!
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Doebra
1979 Uma Visita
Inesperadamente, surge padre Hermes, rumando a Joanesburgo. Simples acaso? Assim julgam os homens, que atendem, no geral, a meras coincidências. Eu, porém, navego noutras águas, não por ser fanático ou ter por fim distorcer os factos. Basta ser crente, para ver nas coisas, boas ou más, o selo da Providência. Não é Ele Pai?!
Sem que eu previsse, irrompe na galeria a figura gentil do querido amigo, a quem devo finezas que jamais pagarei. Com Ele junto, vem sempre a alegria, a paz e o bem-estar. Esquecer o que é próprio e lembrar-se dos outros faz, na verdade, o seu lema constante. Elegante de corpo, é-o mais ainda, na alma peregrina.
Simples coincidência? Não creio assim! Desde 75, foi ontem para mim, o dia mais pesado. Nutri pensamentos, que raro aparecem: Julguei interminável o fim dos Reis. Há outro pormenor a que devo atender.
Vinha do Tondoro com o seu amigo, padre Manfred. Ora, chegados aqui, este foi para Windhoek, onde permanece Sendo od dois inseparáveis,, pergunto eu: por que razão ficou o padre Hermes, tendo hoje de ausentar-se, para embarcar?!
Duas coincidências?! Este é o facto certo. Por esta razão, estivemos conversando, por longo tempo, sobre vários assuntos, entre os quais figuraram os que me dizem respeito. Foi belo o serão, culminando,
Finalmente com jogos de bilha. Não fui parceiro, mas segui atento o rolar imprevisto da branca esferazinha.
Ziguezagues e torções, ricochetes a montes e indirectos, tudo acompanhei, espraiando a minha alma pelos campos da amizade.
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Doebra
1979
O dia-a-dia vai-me saturando. Sempre a mesma coisa, sem tirar nem põr gera na minha alma fundo abatimento! O ambiente, na verdade, é propício ao descanso: reina ordem e calma; não há problemas. Apesar de tudo, como vivo num ermo, vai para dois meses, perdi o incentivo e desejo vivamente regressar ao trabalho.
Tenho 4 dias, para ultimar o que resta das férias. É forçoso partir, ao longo deste espaço, mas ainda não sei como a vida correrá. Apareça um
veículo, que rume ao Cavango e logo disporei. Isto enerva a gente! Sem carro próprio, não há decisão nem dia aprazado! É quando é! Mas que hei-de eu fazer?! Aguardar sempre, com muita paciência!
Tentarei, de qualquer modo, ocupar os breves dias, até que alma
benévola me transporte a Nyangana. Já não leio. Só o meu Diário que nunca omito, e um pouco de rádio, que também não perco! São noticiários do que vai pelo mundo; opiniões e comentários; viragens e surpresas.
Fazendo assim, mantenho bem vivo o que importa saber e aumento, de igual passo, os meus conhecimentos, em assuntos linguísticos. Assim
vai deslizando a pobre existência, que levo neste mundo. Ao que já enumerei acresce ainda a visita diária que faço ao horto, à qual sou fiel.
Às 7 da manhã, demando o local, procedendo igualmente, às 5 da tarde! Por lá é que eu ando, a maior parte das horas: já falando Alemão ,
Que o bondoso Irmão Franz vai tornando acessível, já colhendo lições que a Natureza me dá.
As aves aproximam-se, de modo familiar e parecem alegrar-se com a minha presença. Efeito provável do contacto diário!
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1979
Segundo informam, poderei amanhã regressar ao Cavango. Alguém daqui vai para Otjicoko, no Ovamboland. Como é assim, pernoito sossegado, no Otjiwarongo, e pela manhã de sábado, rumo a Nyangana, com o padre Bauer Vem de Swacopemond, estância balnear, na costa do
Atlântico
Se não falhar, chegarei a Nyangana, em 13 de Janeiro, podendo assim ordenar a minha vida, a tempo e horas. Em 14, domingo, repouso da viagem e, no dia seguinte, preparo o necessário, em calma e sossego .
Acaba assim o tempo de férias e a longa temporada, nesta solidão.
Nada há para queixar-me: tudo foi propício!
Verdade seja que, em gozo de férias, não é ideal, uma vez que trabalho, em zona semelhante. Seria desejável uma estância balnear
Procedente do Cavango – desolação e mato . impunha-se desde logo
a costa marítima. Factores diversos fizeram barreira.
Esperei em vão pelo que não veio.
Se ao menos ultimasse o caso do passaporte! Aguardemos!
Vou, pois, iniciar mais um ano lectivo, no Liceu Shashipapo, onde
Comeceii, a 23 de Janeiro de 1976. Perfarei 4 anos, em terras da Namíbia, exilado e só! Deus-Providência decerto me ampara, assiste
e defende! Se não fosse Ele, já tinha sossobrado!
As contrariedades vieram exacerbar-me o sistema nervoso, já
Depauperado, em terra angolana.
Se fosse a Portugal, como havia projectado, sanaria de males que há muito me afligem. Será para Junho? Tudo farei, para alcançá-lo!
Até lá, dois períodos lectivos me aguardam, no Liceu.
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1979
Doebra Moçambique (ensino religioso)
Coração português terá de sofrer, quando esteja a par do que vai, por ali. Ironia da vida? Sarcasmo e logro? Satanismo e loucura? O que é
Não sei, mas fico suspenso, ante a realidade!
Soube, de manhã, que o ensino religioso não é permitido, no amado rincão de alma luso-africana. Nada interessa, se os pais desaprovarem.
Serão forçados!
Quanto a Sacramentos, s ó com 18 anos, por escolha livre, pessoal e consciente, podem baptizar-se! Usar a Escritura ou qualquer outro livro de carácter religioso, também é vedado. Este o panorama, deveras lastimoso de uma terra infeliz, que já foi cristâ, onde houve sempre liberdade religiosa!
Poderei eu, crente português, ficar indiferente, face a esta desgraça? Não terei eu voz, para alto bradar, contra o despotismo e vil tirania?! Haverá inda alguém, à face da Terra, que não erga protestos, sendo honesto e sincero?!
Por direito natural, quem é senhor de seus próprios filhos?! Os autores de seus dias ou também o Estado?! Sobre quem pesa o dever sagrado que fará das crianças, perfeitos cidadãos e crentes piedosos?!
Sobre os pais das crianças ou sobre o Estado?!
Como se justifica um Governo assim, que não respeita o povo nem o representa?! Que espera Machel de ppobres criancinhas, educadas no ódio, que destrói e mata?! Que espera Moçambique de filhos e filhas, a
Quem ensinaram a lei de Satã?! O amor verdadeiro gera, nutre e ampara;
O ódio satânico enfraquece e oprime, acabando por matar.
Que intentas, Machel, fazer do teu povo?! A quem deves tu servir,
temer e amar?! A Deus ou ao diabo?! Ao Senhor Jesus Cristo ou a seus inimigos?! À tua pátria ou a outra estranha?!
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Doebra
1979
Cheguei de Windhoek, em visita a um amigo. Não queria partir,
Rumando ao Cavango, sem informá-lo e dizer-lhe adeus. Após indagações, lá dei com a vivenda nº 21, na Strassa Louis Botha.
Negros desocupados olhavam despeitosos. Imaginando, talvez, a minha destruição. Amontoados em cordões, jaziam pelas bermas, aguardando o que não sei ou fazendo correr o tempo a vida.
Senti-me, em breve, assaz desamparado, lastimoso e pequeno.
Uma vez chegado e trocados os cumprimentos, expus brevemente a razão da minha presença, a que seguiram logo impressões diversas. A nota dominante foi o grande perigo, em que vivo, no Cavango.
Rentinho de Angola, sublinhou o meu amigo, podem raptar-me e criar problemas. O senhor Gonçalves deu opinião: sair já dali, o mais breve possível e fugir à desgraça, tentando pôr-me a salvo, em terra portuguesa. Não ligar a documentos, acentuava, com entono. Largar os meus deveres e pedir a reforma a que tenho direito, segundo ele disse.
Estou inclinado a seguir-lhe o parecer. Não tenho ambiente, aqui no Sudoeste. Sempre nervoso, julgando o pior, não durmo que preste! S ó em Portugal os nervos cessarão.
Pensarei, a valer, no destino a seguir, começando brevemente a dar soluções que aplanem o caminho. Saúde e bem-estar, em solo africano, foi
chão que deu uvas! História longa e cheia de tragédias! Fico cismando, só
d e lembrá-las! Quem dera esquecer, para todo o sempre!
Que o tempo melhore e venha a Primavera, ostentando um sorriso de paz e bonança!
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Doebra - Namíbia
1979
Último dia que passo em Doebra!
Para mim, foi bom permanecer. Não fossem, realmente, os graves problemas que vieram de fora e, com eles, juntamente, os muitos dissabores, imprevistos e contras!...Mas a vida é assim?! Os homens fazem e logo desfazem, segundo lhes apraz ?! O eixo central que tudo manobra é o egoísmo?! Primeiro, ‘nós’; depois,’nós’ ainda; em seguida, ‘nós!’
Interessa alguma coisa a dor e a angústia que vão a meu lado?!
Importa, de facto, a desgraça alheia?” Vale a pena atender, a fim de melhorá-la, já partilhando, já destruindo, a raiz do infortúnio?! Nem pensar! Por esta razão, a dor se avoluma, tendo como fonte o vil egoísmo!
Devido a isto, não pude sossegar Os bem instalados julgam, na deles,
que podem abusar, fazendo o que apetece… ignorando os outros! A hora,
poré, não há-de tardar, para contas sérias! Nada fazemos que fique impune! Às vezes, paga-se cá: falhando na Terra, ninguém escapa à justiça divina!
Pergunto ainda: que razão haveria, para me deterem?”Não fui eu peado, na minha liberdade?”Mês e meio à espera, sem conseguir! Quem
Se arroga o direito de fazer-me escravo?! Disporem de mim, qual reles objecto!
Iria a Portugal, onde tenho o que mais amo e não vejo, há 7 anos!
Mas os grandes da Terra não quiseram permitir-mo ou fizeram-se esquecidos! Quem lhes outorgou tamanho poder?! Que fizeram eles, durante as minhas férias?! Não pedira eu antes, há mais de dói anos,
Que fosse legalizada a minha situação?! Por que é que não foi?!
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Em viagem
1979
Levantei-me bem cedo a fim de chegar a Maria Bronn, ao varrer do Sol. Foram nada menos de sete horas e meia. O nosso percurso foi interrompido e cheio de longas pausas: Doebra e Windhoek; Maria Bronn a Gfoot Fontein, donde saímos, já pelo meio dia. O padre Manfred,
Missionário do Tondoro, vinha apenas a 60! Era de prever que o veículo fora arranjado, levando motor novo.
Esperar muitas vezes não é agradável mas, ainda assim, fiquei satisfeito! Como não?! Transporte gratuito! Alimento de igual preço!
Amanhã, pelo meio dia, se tudo correr bem, chegamos ao Rundu, capital do Cavango! Restam, depois, 112 quilómetros.
O meu amigo corta dali para a Missão do Tondoro, não sabendo eu que vida arranjar! Incerteza não falta! Se o carro do Liceu vier à cidade,
resolve o problema! De outra maneira, chego atrasado, o que nada aprecio! Hoje, de manhã, aguardando transporte, em ordem a Windhoek,
relanceei os olhos, sobre a encosta da montanha que abriga a Missão, pe
la banda nascente. Sinistros pensamentos vieram assaltar-me!
Paisagem deprimente! Nada mais oferece que erva ressequida, arbustos
espinhosos, de um verde tão escuro, que todo me confrange! O verde enegrecido que ali é dominante e a flora em desespero, por falta de humidade geraram na alma a ideia da morte e hórrido inferno… o desespero! Caminha rei para ela?!
Serei raptado, levando-me para a mata? Que fim será o meu?! Não
Gostaria de ser torturado! Luto pela vida, minha e dos meus! Só por isto, exactamente, eu me encontro no Sudoeste!
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Cavango- Nyangana
1979
De Maria Bronn, são 10 quilómetros a Groot Fontein, De lá saímos nós, por volta das 8. Nada permitia arrancar mais cedo. Com efeito, só às
Oito horas fornecem gasolina, finalizando a tarefa, às 6 da tarde. Tem isso em mira poupar carburante, dadas as circunstâncias, em que vive a União.
Ao chegar à cidade, tive uma surpresa, bastante agradável: encontrei o Reitor, que vinha de Cape Town, juntamente com a esposa e as duas petizes. Resolvido o problema: tinha transporte, do Rundu a Nyangana! Assim aconteceu. Deixei o companheiro, ainda antes do Rundu, fazendo as despedidas e oferecendo os meus préstimos, que agora são nulos. Só em Portugal valerei alguma coisa.
Custou-me deixá-lo, que é bom e prestimoso! A Holanda e a Alemanha têm, no Sudoeste, excelentes Missionários! Entrando na carrinha, instalei-me, à vontade, logo atrás do casal,
A Volkswagen, espaçosa como é, dá enorme conforto. Se não fosse a poeira que surge na estrada, à passagem de outros, ia ser um regalo!
Mas, ainda assim, de nosso vagar, chegámos ao final. Quinze patos novos e um lindo cordeiro, nascido no Kalahari, faziam companhia.
A petiz, Ónica, dois anos incompletos, fez tiroteio, durante o caminho! Isto é a vida!
Às três e pouco, Nyangana à vista! Grande problema tenho a resolver!
O padre Hermes na África do Sul! E as minhas chaves que lhe haviam entregado, antes de eu sair?! Cinco bons agentes, durante duas horas,
li dando incansáveis?! Onde foram encontradas? Dentro do cofre!
Nova surpresa, à hora da merenda! O novo Bispo do Sudoeste africano achava-se aqui! Saudei-o cordial, pois somos amigos!
Mr. Bonifatius é preto africano e recebe já o episcopado, no dia 27
Do mês corrente (Janeiro)
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Katere (SW A)
Liceu
1979-01-27
O buraco a luzir e eu a caminho! Separava-me apenas o batido percurso que liga Nyangana ao Liceu Shashipapo : 16 quilómetros.
Entretanto, para arrumar a vivenda e pôr as coisas em ordem, foi preciso madrugar. Acontece, pois, que agora é meio –dia: só faltam 6 minutos.
Transpiro à saciedade, que o repouso foi nulo.
Às 8 menos 5, bastante mais tarde que a hora habitual, fiz caras ao Liceu,
Para abrirmos em conjunto o novo ano escolar de 1979. Cinco brancos apenas! Este era, realmente, o número de professores, que se via ladeado por número igual de pretos do Cavango, também docentes.
Militares havia só dois. Os outros docentes, igualmente do Exército,
Ainda não vieram. Encontram-se em férias. Pelo fim da semana, creio chegarão. Dentre eles todos, conheço três.
Uma vez no Salão, vem o hino da entrada, a leitura da Bíblia,
cumprimentos e rotina. Em seguida, encaminho-me logo para a vivenda.
Nenhuma actividade me foi destinada, cabendo tal múnus a outros colegas . Apesar de tudo, não olhei para trás.
Já pouco me falta: u m Diário atrasado, cor ecção de três e leitura de jornais: 6 em Poruguês e os restantes em Inglês. Amontoaram-se em férias. O Southern Cross vem de Cape Town. O Século de Joanesburgo, o nome esclarece.
Achei duas cartas: uma delas em Inglês, e a outra em Africânder.
A primeira vem de Pretória: informe alargado, para eu escolher o
Curso preferido que a UNISSA me faculta.
Estou hesitante, por falta de saúde. Não durmo que preste: não posso trabalhar! A noite de hoje nem a comprimidos!
Veremos, pois, como diz o cego, mas tenho agora mais dúvidas que nunca
Formar-me em Letras? Acabaria somente aos 65 anos!
“Tudo vale a pena…”
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Liceu
Dirico
1979 Ainda o Apartheid
Não posso nem quero defender o costume, sendo legislado. É desumano e contra os princípios que regem o amor. Se Deus é Pai, somos todos irmãos e, como tais, devemos colocar-nos em pé de igualdade.
Teoricamente, isto é assim, devendo a prática seguir no encalço.
As circunstâncias, porém, afastam, em parte. O próprio sujeito é que deve separar-se. Assim acontece, lá na Europa. Entre fulanos da mesma cor. Lei proibitiva é desnecessária.
Se eu estou sujo, exalo mau cheiro, tornando-me por isso ente abjecto. Se eu próprio recuo, tudo está certo. Caso contrário, os outros viventes, põem-me de lado! Para confirmar, só um episódio, observado pela manhã.
Cinco rapazolas , todos eles pretos, aguardavam comigo, frente ao
Liceu, que chegasse o Reitor e os restantes professores. Trata-se já de Ensino Secundário, e os 5 indivíduos têm pelo menos o standard 8 (5º ano velho, em terra portuguesa). Não é raro, também, possuírem o 7º
Standard 10). Ora, com tal preparação, deviam ter maneiras a fazê-los aceitáveis. Isto, porém, não se verifica.
Um daqueles 5 levou 10 minutos, fazendo limpeza às fossas nasais. Todos os dedos, por forma variada e longa insistência foram utilizados. Senti náusea ali, até vomitar! Costumes diferentes? Outros padrões?
Esquisitisse, da minha parte? Desprezo? Falta de interesse, para colaborar na sua promoção?
A minha resposta é sacudida, pronta e decisiva. A nte a imundície, fico desarmado! Impossível, desde logo, estender-lhes a mão! Ou contactar! Não é a cor, mas a falta de asseio, que está na berlinda Faço a mesma coisa, tratando-se de brancos! Enoja-me aquilo: tenteamento,
Várias insistências, ora de frente ora de banda; fricções e arremesso,
recurso ao fato! Não posso com tal!
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Liceu
1979 Surpresa agradável, embora pesada.
Ontem, por noite, chega o Reitor, para troca de impressões. Como
Início, vem prestesmente o menos esperado: reger Alemão, na turma D o menos esperado: reger Alemão, na turma D. standard 6.
Standard 6. A princípio, fiquei hesitante, pois me constrange a duro trabalho: rever noções, estudar Africâder, ver os programas e fazer o esquema, relativo ao ano. Ficarei assim bastante ocupado: três aulas de Inglês, standard 6; leitura de Alemão, standard 6, form one D; 1 turma de Alemão, etc.
É mais um obstáculo à minha matrícula, na África do Sul. Que pena eu tenho! Tirar o B A era meu desejo e grande aspiração! Ficará somente a memória disto?! Para já. Recebi mais encargos: registo de faltas, em uma das turmas e leitura da Bíblia, à sexta-feira. Diz o povo, em gracejo, que é dia de bruxas, mas eu não nisso!
Pelo que noto, vamos ter decerto, em 79, 230 alunos, esperando-se mais, nos próximos dias. A semana que finda, passou em arranjos: Internato e sala de aula; marcação de livros; distribuição de cadeiras; formação de grupos e várias equipas , com vista ao desporto.
Dentro do Liceu, pouco eu realizei, mas ando atarefado com as minhas diligências: carrear materiais para o Alemão; ler os programas e
obter o necessário, a fim de limar quaisquer dificuldades que possam emergir.
O corpo docente já está completo
´´´´´´
Nyangana
1979
Às 5 da manhã, chegava à Missão, o que pude alcançar, levantando-me às 4, Não será demasiado, para os meus 60?! Mas, se eu tenho e fazê-lo! Há tantas razões, militando a favor! Não interessa! Tudo esqueceu, vendo uma carta, em cima da mesa. Palpitou-me logo que fosse de minha irmã! Era exacto. Cessaram preparativos! Casos milhentos!
Quatro laudas em pleno! Parece um testamento! Óculos a postos e mãos ao papel! Eu gosto assim! Cartas pequenas revelam escassez , falta de interesse e pouca amizade! Esta é grande como outras do passado, mas o recheio vem doloroso! Cinco pessoas daquelas seis que viveram no Chitembo, distrito do Bié, onde a vida era um sonho!
Angola querida, mundo encantado, que a negra adversidade transmudou em inferno! A Maria Margarida ficou em Silva Porto, dormindo ali, até ao
Juízo. Mão assassina logo a prostrou! A dor foi imensa, não havendo palavras que a possam exprimir!
Os outros 5, pais e três filhos, foram scorraçados, alma a sangrar e o peito em ferida! Expoliados de tudo, nem o ente inditoso lhes deixaram chorar! Estão a fazê-lo como retornados em solo querido, mas na pobreza ! Diria até, quase na miséria, onde não falta a própris doença!
Natal de 78! Cunhado e sobrinha gemendo no leito! Os outros três arrastando os fardos quer pessoais quer alheios!
Carta lamentosa, onde perpassa e adeja também a asa da morte?
Sinistro ruflar que põe calafrios em todo o meu ser!
Senhor, que és Pai e sentes fundo o nosso tormento, volve o teu olhar, amoroso e clemente , para o lar em crise, onde vivem esmagados
corpos sem alma! Manda-lhes pronto um raio de luz que desfaça a treva, em que vivem imersos!
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Nyangana
1979-o1-21 A Carta
Ao fim da leitura, fechei a missiva, ficando as palavras a soar plangências. Se eu não quisera, havia de escutá-las. Dolentes e tristes, vivas eloquentes, persistem, avolumam-se, no íntimo da alma! Não quero nem posso repelir tais sons. Almas congéneres os soltam a uníssono; corações torturados por dor semelhante, se não cobram o mínimo, a fim de arrostar com a negra miséria!
A dura realidade é que fala por si: o mínimo exigido para a existência condigna jamais luziu, após Angola! Quela pobre irmã lamenta-se e chora, implorando e gemendo! Mas diz o rifão: Quem precisa precisa sempre e quem dá não dá sempre
Necessidades vitais e longas privações… Como pode tal mãe sofrer a desgraça?! Marido e filhos, prostrados no leito, havendo para agravo, desemprego e fome! Se recorda o passado, maior é a dor! Armas de guerra prostrando seus filhos! Assassinos e ladrões, bandidos e corruptos
Exercendo cruamente em pobres inocentes, extorsões e vilanias! E não houve, a esse tempo, justiça humana, a fim de punir esses delinquentes!
Há-de haver um dia, a Suprema Justiça do nosso bom Deus, que é santo e justo.
Aquela pobre irmã sofre e consome-se! Duas filhas inocentes, jazendo para ali, em campa rasa, no cemitério de Silva Porto. A ninguém prejudicaram! Nem os pais tão pouco! Atirou-os a mentira para a dor que não cessa, o pranto que não enxuga, o inferno da vida, estilizado em fome, desespero e amargura.
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Liceu
1979 O Serpa do Chitembo ( Angola)
Velho amigo de Angola, embora de cor, é um belo carácter, Com ele, na verdade, privei bem pouco, já que a tarefa obrigava a deslocar-me, para fora do Chitembo.
Silva Porto, sim, foi teatro vivo, onde iriam realizar-se bem trágicas cenas! Ali estudavam os sobrinhos todos, no Liceu Silva Cunha, exercendo eu, na Escola João de Almeida. Entretanto, em fim de semana ou durante as férias, galgava diligente a estrada de Serpa Pinto, rumo ao Chitembo.
.A pequena distância, avistava, gozoso , o coruto verde-negro do pinheiro gigante, alongando seus braços, para receber-me, no quintal de minha irmã. Pouco depois, surgiam duas casas: a de meu cunhado, junto à estrada; a do bom amigo, no desvio, à direita, rumo ao cemitério
Que saudade me faz lembrar o passado! Pois o velho Serpa que, a
rigor, não é idoso, gozava ali do apreço e estima de quantos o cercavam.
Fazia lembrar, pela inteireza de carácter impoluto e nobreza de sentimentos, os lusos genuínos do lindo Portugal!
Amigo provado, estimava os meus, recebendo, por igual, provas de carinho.
Pois o bom Serpa, que nós deixámos, em 75, na fuga desvairada,
enviou uma carta, endereçada ao nosso Portugal, a fim de lembrar-nos que não olvidara os velhos amigos. Para confirmá-lo, dizia assim: “ Fui ao
cemitério da cidade Silva Porto visitar a campa rasa da infeliz e querida amiga. Levei flores e rezei por ela.”
Bom amigo Serpa, Deus te agradeça! Quem dera abraçar-te, fazendo a vivos o que tu, generoso, fizeste a mortos!
O impossível da guerra ata-me os braços
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Liceu
1979 Sonho desfeito
Saúde precária destrói os meus planos! Que pena me vai, se tudo ruiu! Sonho acalentado, ao longo da existência, por motivos diversos, fica irrealizado: mesquinhez do ambiente; erradas concepções e abusos de autoridade vieram interpor-se. Agora, já independente, livre de preconceitos e peias absurdas, tinha bom ensejo. Entretanto, se Deus o não quiser, submeto-me a Ele, pois na verdade é o meu Senhor!
São 10 e 35. Já dei 4 aulas ao Standard 6. Afinal, couberam-me em globo as turmas inteiras do 6ºano! Belas turmas são elas, em matéria de Inglês! Todas elas, afinal, com mais de 40 alunos! Uma dentre elas vai a 45! É possível, ainda, que abranjam os 50.
Multiplicando por três, vem o que é temível: número astronómico de cartas escritas; várias redacções; diversos exercícios que hei-de corrigir! Às 11 e 35, vou dar Alemão à turma A. Lecciono a matéria, pela vez primeir aqui no Sudoeste. Dá-me canseiras, mas gosto da Língua!
O nosso Reitor deslocou-se ao Rundu, a tratar de assuntos, relativos ao Liceu. Convidou-me para ir, mas tão deprimido não pude
Aceitar. Outra vez será. Fi-lo portador de uma carta enorme, dirigida a minha irmã. Tenho para mim que vai aliviá-la no seu desconforto e grande penúria. Este é, na verdade o meu objectivo e, a consegui-lo, dá-e alegria.
Sinto a fundo, no peito, os casos da família. e jamais descansarei, se não lograr o que intento. É por esta razão que vivo exilado e a tudo me sujeito. Há horas temíveis e dias pesados, como foi o de ontem.
Procuro reagir mas, tantas vezes, não sou capaz!.
Entretanto, confio em Deus que ouve as minhas preces. A cruz e a dor fazem parte da vida. Tentando alijá-las, agravam-se mais. Com o bom Deus a prestar-me ajuda, resolvo o problema!
Nyangana
1970-01-29
A luta é forte, contra as dificuldades!
Com o tempo em cima, vai-se tudo aclarando e torna-se mais fácil. Uma coisa é mais que certa:
: começar é bom, mas para jovens! Aos 50 anos, perde-se a cartada! O que me vale a mim são as base que tenho e a grande experiência, adquirida, no passado! De outra maneira, não era possível!
Ensinar Inglês, numa nação estrangeira, cuja língua oficial é também a Inglesa, até parece um sonho! E há uma grande verdade que ninguém contesta: só nos despachamos, convenientemente, na língua suave que aprendemos em criança e que a nossa mãe transmitiu com o leite.
Preparar a s lições, fazer o meu Diário e rever os anteriores!
Após quase uma semana, em contacto frequente com as lidas habituais, é fácil, pois, elaborar o meu horário. Não posso descuidar-me e hei-de ser pontual, pois que as minhas aulas começam, às 7 horas. Um quarto de hora antes, vamos todos rezar. O pessoal docente bem como o discente congrega-se em pleno, no grande salão.
Acho bonito! Julgava eu que era somente , pela abertura do ano escolar mas, ao que vejo, é função quotidiana. Quando chegamos, já os nossos alunos se encontram em forma, ao longo da quadra; no proscénio, ao cimo, tomam assento os professores.
A primeira parte é um canto religioso; logo em seguida, lê um docente um passo da Bíblia, a que segue a oração, utilizando-se uma das seguintes línguas: Africânder, Inglês,Alemão ou Dirico.
Segue-se, depois, a ordem do dia, transmitida, ali, pelo Reitor.
A isto que digo, sucedem as aulas, todas pela manhã. À s 13 e 20 acabam as tarefas. Para mim, é coisa excelente! Devendo estar no Liceu, às 6 e 45, é forçoso levantar-me, às 5 e 30.
Há coisas diversas que precedem as aulas, não contando já com a pobre estrada, que é, na realidade, um montão de empecilhos. Se estivesse livre e fosse alcatroada, eram só 10 minutos, mas como ela se encontra!...Nem falo já no deplorável estado em que as chuvas a põem!
São poças e lagos, e lamaçais enormes!
Lá vão dormir e descansar as cabras e os bois. Chamo-lhe com verdade, sala de estar, durante o dia, e dormitório, ao longo da noite.
Lx. Alcântara
1981-o1-02
Dia segundo que a roda fatal já vai encetar! A vida prossegue, constante, porfiada, aumentando as horas e formando os anos. Sono profundo e bem-estar, meditação e inúmeros cuidados urdem, sem notarmos, boa parte do tempo!
Por esta razão, ao sair para a luz, sentimo-nos velhos, alquebrados e trôpegos, e a roda gira sempre, com percalços variados, através da existência. Força nenhuma consegue detê-la!
Todo homem, por seu lado, nota claramente que o terreno lhe falta, debaixo dos pés. Vive inconsciente, alheado e preso, como se, na verdade, fosse este mundo a Pátria verdadeira! As lições que vai colhendo não chegam jamais a convencê-lo! Os outros morrem…finam-se, pois… desaparecem!
Ele, porém, tem outro destino! Tudo, julga ele, será diferente, no que toca à sua vida, planos e acção! Parece estupidez? Aos outros, realmente, afigura-se tal, mas é puro engano e falham, por inteiro!
Por esta via, segue o homem imprudente, caminhando, apesar seu, para a morte fatal! Não pensou nisso? Jamais se ocupou de tais realidades? Importa lá! Não fará excepção! Há-de suceder-lhe o que vê realizar-se, à volta de si!
Regra de prudência vai ser como ouro: abrir os olhos, à luz de Deus, clamando por Ele, como é de avisados!
Desta maneira, podemos realizar-nos e ser felizes! É Deus, na verdade, o nosso princípio e fim derradeiro! Repelindo-O de nós, fica apenas o vácuo! Só a mentira! A triste desolação!
Que valerá o homem, entregue a si mesmo?! Impotente e vil, pobre e mesquinho, fica desde logo, à mercê do mal ! Impotente e fraco, chora de imediato seu triste fadário, lamentando-se e carpindo!
Seres desditosos, filhos de Adão e pobres mortais, voltai-vos para norte, onde reina a ventura. Procurai-la em outra parte?! O alvo é Deus, princípio e fim da vida que amamos e razão de ser da nossa existência.
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Lx, Alcântara
1981
Baixou a dois graus a temperatura. Lá para a Guarda foi negativa, o que não admira; aqu, porém, muita gente se alarma .
Falhas na voz e anginas é sintoma geral. Que o diga eu próprio!
Ontem, por manhã, cheguei a desanimar! Faria ouvir-me?! E então a garganta, a doer grandemente!
Estranhá-lo? Fui sempre assim! Sempre mudanças e com fartura! Poderei esquecer o triste caso da pleurisia?!
Quatro meses de hospital, na vila de Manteigas! É obra!
Nesta ordem de ideias, quantas ocorrências de triste memória! Haverá lucro, ocupando assim o tempo?! Amolece o corpo e desalenta o espírito. Procuremos, pois, águas diferentes, para a navegação!
Lx Alcântara
1981-01-O4
O nosso engenheiro, acabadas as férias, faz logo caras à cidade invicta. Hoje ainda, vai ele sair da Praça das Cebolas,
em grande auto-carro! Por volta da meia-noite, arribará ao Porto
Frequenta o 2º ano e tem 22, ainda incompletos. Se não fora aquele ano, decorrido em amargura, num campo de refugiados! Mas isto é a vida! Ainda assim, não vai muito mal!
Se não houver percalços!
Estamos receosos de não vencer os obstáculos! Terá
Força de vontade, para ir em frente?!
Bom rapaz é ele, amável e dócil. Parece-me, no entanto,
algo flexível, ficando assim apto, para sofrer influências,
mesmo deletérias, caso ele dialogue com elementos danosos. Reagir continuamente não acho improvável. Mas tenho receio. É matéria acomodada a sofrer alterações, que
poderão lesá-lo! Esperamos que não!
Passaram as férias, em novo ambiente, pois a nossa aldeia foi cedendo lugar à linda capital Também isto influi: mudança de professores, outros contactos, interesses… Esperámos o Carlos, em grande ansiedade, vendo-o partir, com muita saudade. Que Deus o acompanhe, abençoe e proteja, afim de que o labor o não faça vergar!
Agora, por tanto, só na Páscoa do Senhor o tornamos a ver.
Até essa data, confiamos em Deus para que ele obtenha o resultado previsto.
Quanto â Regina, modifiquei já a opinião de outrora. Admito, na verdade, que seja capaz. É trabalhadora e tem aspirações, o que é bom prenúncio, Em criança, descri bastante.
Amanhã, inicia com alma a vida escolar, para levar a bom termo o 10º ano de escolaridade. Corresponde ao 6º, como antes se dizia. Veremos, pois, o que o tempo nos traz!
• Quim Isaías é o mais preguiçoso. Não pegou em livro, durante as férias! Confia no talento?
Pensa e discorre infantilmente?! Por enquanto, é massa.
Oxalá que triunfe!
Lx, Alcântara
1981-o1-05 Preferências i
Reportando-me aos sobrinhos, que se encontram em Lisboa, onde estudam, agora, ou passam as férias, não posso omitir as suas preferências, algumas das quais bastante acentuadas.
Vamos, num pronto, ao Quim Isaías. Os seus 17, ainda incompletos; ano e meio, em campo de refugiados ; a vida irregular que tem levado sempre, ora aqui, ora além, fizeram-no inconstante, sendo o caso extensivo aos outros irmãos que não sofreram tanto o efeito deletério.
Futebol e cinema é a sua paixão. Por isso, exactamente, gosta de passear, seguindo a pé, ao longo das ruas, que são intermináveis, aqui em Lisboa. Localizar os Estádios, ouvir os relatos e avistar os Cinemas é aspiração, entre todas favorita.
Dedica-se também, à recolha de selos, havendo já formado várias colecções. Aprecia imenso que lhe respeitem, mas a valer, a personalidade, reagindo prontamente, se o caso não agrada.
Rejubila fundo, se vir bons pratos e dinheiro bastante, para gastar. Adora também ser muito acarinhado, cedendo-lhe sempre o primeiro lugar.
Sua irmã, Gina, ocupa-se ao vivo com matérias escolares. O que ela deseja, acima de tudo, é um Curso regular, que ofereça garantias, em ordem ao porvir. Como ronda já pelos 20 anos, encara a sério, a vida e o lar. Nas horas vagas, faz ela croché ,movendo os dedos, a incrível rapidez. Pouco haverá quem ombreie com ela, na tarefa em causa.
Enquanto se entretém, movendo as agulhas, que os dedos impelem, escuta deleitada música em surdina. Dá tudo por isso!
Até se afigura qual panaceia, para todos os males.
Geralmente, isola-se, ficando introvertida, Esta situação é-lhe bem cara, pois a livra sempre de grande mal-estar e ditos molestos.
No trato é áspera, até impetuosa e deselegante, não tentando ocultar o seu estado de alma. Isto sucede, quando alguém a contraria ou tenta bulir com os seus ideais. No entanto, se está bem disposta, é amável e grácil, pronta e jocosa.
Após o duodécimo, quer prosseguir, no Curso de Românicas.
Lx, Alcântara
1981-01-06 Dia de Reis
Era, realmente, a 6 de Janeiro. Natal… Ano Bom e os Reis! Três dias bem gratos ao meu coração! Como vão distantes!
Ao mesmo tempo, quase se perdem, sendo muito a custo que chegam ainda os ecos do passado! Cinquenta e cinco anos!
Mais de meio século! Onde estais vós, dias tão caros, que trazeis delícia amparo e conforto à minha alma inocente?! Para onde fugistes, que o vosso perfil se apresenta minguado, a pontos de enxergar-se, com dificuldade?!:
Às vezes, porém, era algum dinheiro, embora raramente!
Que bom aquilo era! Regalavam-se os dentes, e o peito rejubilava! A minha alma, então, desentranhava-se em cantos que os anos futuros, não lograram apagar!
Chegam as canções, um pouco desmaiadas e quase em surdina, mas eu adivinho-as e sei distingui-las.
Nessa tardinha, em 6 de Janeiro, acorriam as crianças ao
Velho presbitério. Num pátio enorme e assaz desafogado, ( julgo-me lá) apinham-se todas, esperando ansiosas que chegue depressa a figura paternal do velho pastor. É o Padre Zé Maria.
Vem sorridente, amigável e bom, trazendo nas mãos os tostões da manhã, ao beijar o Deus- Menino.
Tinham caído na antiga bandeja que o ti Cabral segurava, com todo o empenho.
Agora, porém, as exíguas moedas vão ser dos miúdos. Esperamos todos, com grande alvoroço, a distribuição. Parece ali um acto litúrgico! Algo de sagrado, bem apetecivel e misterioso! Um tostão a cada um era já suficiente para tornar feliz o nosso coração!
Belos tempos esses! Horas bem suaves, cujo perfume inda agora recende, para inebriar o peito, cansado já e desiludido!
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Manteigas
1981-01-07
Pequeno desvio, para distrair.
Espeta mais do que assa! Casa onde caibas, fazenda que não saibas. Trazer o rei na barriga. Quem pensa não casa, quem casa não pensa. Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo. Por cima de melão, vinho de tostão. Em casa de ferreiro, espeto de pau . Só lembra Santa Bárbara, quando se ouvem os trovões. Vale mais pedir logo a Deus que aos santos do Céu!
O amor e o ódio são filhos do mesmo pai. Quem cala consente. Vêem mais 4 olhos do que dois somente. Alma sã, em corpo são. Coração pressago nunca mente! Estar farto até à sarapa. Muito se engana quem cuida. De esperanças vive o homem, até que morre. Um santo triste é um triste santo. Trabalha, que Deus dará pão. Enquanto o pau vai no ar, folgam as costas.
Quem não tem vergonha todo mundo é seu. Quem não tem barba não tem vergonha. Limpa-te a esse guardanapo ! Fazer um serviço como as suas trombas! Gato escaldado de água fria tem medo
Quem desdenha quer comprar. É mais fácil destruir do que
edificar.
Nyangana
1976-01-30
Hoje, foi um caso sério a condução do meu Taunus!
Arranquei da Missão, às 6 em ponto, mas cheguei mais tarde, por causa do Sol. Batia-me de frente e era tão vivo, que tolhia a visão. Fosse apenas isso! Centenas de cabras, confiadas em excesso, dormiam na estrada, ocupando-a, em cheio e persistindo em erguer-se mais tarde.
Por outro lado, os poços de água abundavam também, constituindo, sem dúvida, obstáculo medonho! Julgava eu que algo aborrecido iria acontecer-me. Entretanto, Deus acompanhou-me ou Santo António, correndo tudo bem.
Em razão do exposto, resolvi o seguinte: levantar-me bem cedo e partir para o Liceu, antes que no horizonte aparecesse o astro. Talvez às 5 ou antes ainda, em vez das 5 e 30. Havendo eu de fazer isto, prefiro dispor de casa própria (flat)
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Vide –Entre-Vinhas 1966 FIM DO LIVRO 28
Como estudar os verbos da Gramática.
Chegou, prontamente, o primeiro dia de aulas, no mês de Outubro de
1932, com trabalho a sério. Tudo agora é diferente a nossa escola, o professor e o próprio método, não falando no local e materiais didácticos.
Um pouco antes das 9, lá vão, de facto, 4 rapazinhos, em grande alvoroço e funda angústia, rumo ao Outeiro, onde se ergue airosa a nova escola. Ai! Velha escola, sita na Portela, sombreada ali pela grande nogueira, que surgia promissora, lá do Chão da Fonte. Em seus ramos viçosos, pendurava eu o corpo delirante e inebriado!
Ali, no antigo edifício do ‘ Velho Casal´ fora eu bem feliz!
Que saudade eu guardo, no íntimo do ser, por uma jovem adorável, que
Me acarinhava, qual mãe extremosa! Chamava-se ela Maria do Carmo
Nunca mais a vi! Parece que morreu, ainda novinha!
Também não posso esquecer as outras professoras, muito
dedicadas e boas amigas: Maria do Céu, Maria do Carmo e Clementina.
Passar duma jovem, na qual reside sempre um coração de mãe.
Para um cavalheiro, por melhor que ele seja, é motivo de angústia! Por
Isso é que o António , o Joaquim, o Pedro e o Fernando ( 13 anos, e 16, o último). trocando impressões, acharam demais!
Ficámos abalados, sem pingo de sangue! É que ele mostrou-se exigente e determinado. Como iria ser a nossa existência, a partir de então)! Por fim, pegou da gramática, indicando a página, com o verbo
‘haver’.
Recordo ainda o momento preciso, em que se deparou a meus olhos pasmados o quadro verbal, completo e simétrico. Ao alto da página ‘haver’. Mais abaixo, em pequenos quadrados, encontrava-se exarada a conjugação verbal. Achei engraçado tanto quadradinho e demorei o olhar, fixado neles.
Nunca vira linhas e figuras geométricas tão desempenadas e em tanta profusão! Bem, diz então o novo professor, José Ribeiro de Almeida,
Hoje, não damos nada, porque é o primeiro dia. Amanhã é que ai já como de ser! Estudais muito bem as lições marcadas e ai daquele que se apresente em branco! Racho-lhe os miolos, de alto a baixo!
Íamos penar, avaliando pela amostra.
Cá fora, uma vez sozinhos, fizemos em surdina comentários lastimosos,
Avivando-se mais os dias saudosos, que haviam passado. Mas que fazer?!
Trabalhar e mais nada!
No dia seguinte, esperava-nos já uma grande surpresa.
Começou-se pelos verbos. O primeiro mártir fui logo eu.
Diz lá tu, Pedro! Presente do indicativo do verbo ‘haver!’
À quelas palavras, turvou-se-me a vista, sentindo claramente que o chão me faltava, debaixo cós pés.
-- Presente do indicativo…
-- Ada, rapaz, tu não sabes já o tempo presente do modo indicativo?!
Arrisquei duvidoso o que vira, na véspera, ao alto da página: haver!
Todo eu tremia, da cabeça aos pés. Jamais na vida me vira tão nada e, ao
mesmo tempo, de forças tão débeis, para triunfar!
Adeus, adeus, carinhos do lar e de mestras adoráveis que me olhavam com ternura! Em seguida, via na minha frente um homem forte, decidido e pronto, sem ares de compaixão, tendo sempre â vista a “menina” de 5 olhos, Era volumosa essa palmatória! Que iria ser de mim!
Se apenas sabia a palavra ‘haver?! Julgava eu, na minha ingenuidade, que
bastava aquilo!
Então, esse homem terrível desvia de mim seu olhar inflamado e
Avança para outro, que apenas repete o que eu havia dito: haver!
— Ai os almas dum raio! Nascestes aqui, debaixo das lapas, mas hei-de matar-vos! Agora, já trememos todos! Nós, de medo: ele, de raiva!
Repetia-se o mesmo, ao terceiro e ao quarto!
—Já vos desgraço!
Enquanto profere as palavras escaldantes empunha a palmatória que
assenta frenética em nossas mãos, Em pleno dia, vemos, com nitidez as estrelas do céu!
Foi aquela, por certo, a primeira hora negra da nossa existência!
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Vide-Entre-Vinhas
1966 Pranto desfeito
O pobre miúdo, que era eu mesmo regressava da Escola, mas subia os degraus com maior lentidão O seu olhar mortiço fixava-se então em lugar incerto e perdera inteiramente o brilho peculiar Agilidade em seus movimentos, pressa de comunicar ,ademanes de criança, tudo se fora!
Por isso é que a mãe, supondo coisa grave, irrompe, angustiada, na
pergunta seguinte: Que tens, meu filho? Estás doente?!
Neste passo, rompe-se o dique. Como água represada se esgueira precipite, através duma abertura, assim correm as lágrimas, vertiginosamente, sobre o rosto pálido da criança amargurada. Aproxima-se da mesa, à entrada da cozinha e, apoiando a cabecita sobre
os braços trémulos, soluça oprimido e já inconsolável.
. Impossível exprimir-se! A mãe, alvoroçada, esmera-se então em desvendar a causa real da triste ocorrência, mas tudo é vão! Só lágrimas a flux e fundos suspiros, entremeados já de soluços arrepiantes! Impossível! dialogar! Era preciso, já de antemão, aliviar o espírito, deveras oprimido,
em que a dor se instara, como dona e rainha, agindo e dominando.
Carinhos maternos, súplicas ardentes, extremos amorosos… tudo se
perde na angústia lastimosa do pequeno desditoso.
Pedido e rogado, por meios carinhosos, consegue balbuciar trementes palavras: a senhora vai-se embora!
Maria do Carmo, docente oficial, leccionara alguns meses em Vide-Entre-Vinhas, que deixou penaliza da e meio retalhado o coração do miúdo Instintivamente, sabe a criança quem lhe quer bem. Quão breve se prende! Onde vê carinho ou pressente afecto, onde há sorriso e mostras leves de bem-querer, aí cria logo seu mundo encantado!
Nada há que a afaste de um alvo assim! Qual borboleta, em volta da luz também gira fatalmente, em volta de alguém que a estime e acarinhe!
Forte coisa o amor! Seu grande poder abrange todo o mundo e penetra além-campa! Ninguém jamais se lhe pode furtar!
O maior facínora, o ser mais odiado, encontrando no caminho um peito amigo, fica logo rendido e chega a transformar-se! Também o pequenito que chorava inconsolável a desistència da Mestra experimentava, no peito saudoso, o golpe forte do tal sentimento.
Ela era tão meiga, olhava para ele com tanta doçura, falava-lhe amiúde, com tal vibração!
Doce mel da vida que tudo suporta , criando em nós o gosto de viver e de trabalhar! Começava fagueira a vida escolar, mas, como tudo o que é bom, em breve se foi! “Naquele engano de alma, ledo e cego\ Que a fortuna não deixa durar muito!”
Que importa?! Fui feliz, a meu modo e como o pode ser uma obre criança, de 8 anos apenas! O meu sonho era a Escola… a minha ânsia maior… estar ao pé dela… o único anelo: ser objecto constante da sua predilecção!
Tudo acabou! Ela morreu, na flor da vida! Assim me constou!
Quanto gostaria de que ela vivesse!
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Vide-Entre-Vinhas
1966 Um Bilhete Postal
Era em Agosto. Os raios do Sol espelhavam-se ao vivo, na água das presas, enquanto vorazmente absorviam a humidade que as leiras continham. Aqui e além, arrancavam-se as batatas, pois era imprudência conservar o tubérculo, durante mais tempo, no solo escaldante.
Meu pai, por seu lodo, mourejava diligente, nas Espadanas, procurando, sozinho, levar a bom termo a faina do campo.
Era um homem dinâmico, respeitador e honesto. Granes virtudes me deixou como exemplo e tarde será que eu possa esquecê-lo.
Minha mãe encontrava-se então, na Figueira da Foz , aonde levava meu irmão Manuel que era doente. O nosso Médico havia aconselhado banho s do mar e assim também o ar da praia, afim de tonificar o organismo do bebé. Por esta razão, causasse embora grave transtorno à vida no lar, não
Se hesitou.
Pai e filho ficámos sozinhos ,no tempo das colheitas. A faina do campo, os animais domésticos e a vida de casa, tudo ia resolver-se! Todas as barreiras seriam transpostas! Que amor de família e que firme confiança
Entre os membros do lar! Fora assim mesmo o convívio humano, que
Haveria a temer?! A ventura sonhada iria converter-se em pura realidade!
Cabe-me a vez de ir ao povoado e, de caminho, perguntar no Correio se havia carta. “ Tendes um bilhete que é de tua mãe!”
Oh que alegria! Alguma coisa decerto havia a falar por ela! A sua meiga voz, expressa ali, em caracteres visíveis! Que loucura! Eu olhava, olhava aqueles dizeres, lançados, no postal. Não podia arredar os olhos curiosos.
Não podia ser! Caso bana? De modo nenhum! Era preciso, afinal de
contas, aprender a ler, para decifrar os postais de minha mãe!
Assim aconteceu!
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Vide-Entre-Vinhas
1966 Provas Escritas
Os nervos de afinam-se, à medida exacta que se vem aproximando a hora fatal! Tanta esperança que fica gorada! ´
Tanto sonho desfeito! Este espera dispensa; aquele está confiado em ir à oral; outro ainda alimenta ansiedade, como se, realmente lhe devêssemos dinheiro?! Um quarto afaga apenas débil esperança!
Como vai apresentar-se o papão tenebroso, cuja só lembrança faz
Acelerar o nosso coração?! Virá, por ventura, de ceno carregado, como se,
na verdade,, lhe devêssemos dinheiro?! Ou, pelo contrário, chegará, com disfarce, na mera intenção de figurar mau humor?!
Terrível monstro, que segue, a rigor, as pisadas maléficas de seus
Irmãos, Adamastor e Atlas e tantos outros!… A vingança, afinal, é o néctar dos deuses Será que os gigantes também se alimentam, com esta iguaria?
Mas vingam-se de quê?! Eterno falhado nos seus planos de grandeza,
orgulho e ambição?!
Qual é a nossa culpa, se eles, por inépcia, não conseguiram escalar
os céus e expulsar dali o poderoso Júpiter?! Entretanto, é sina dos fracos
sofrer caprichos de tiranos fortes. Porque assim é, não convém o desespero nem a tristeza!
Há que reagir como homem forte. Com seu braço viril, arreda obstáculos, arrosta firme com o destino e, confiado também na boa estrela , caminha sereno, pela estrada terrena, em cujo termo Deus o espera.
Vide-Entre-Vinhas
1966
Intrigado e curioso, arrisco um dia a pergunta seguinte: minha mãe,
donde vêm os meninos? Foi célere a pergunta? Não o foi menos a resposta materna!” Vêm do Porto!”
Inquiri, então, sobre o termo em causa, Ficando-me a noção de um grande aglomerado, onde havia muitas casas e também muita gente.
O caso passou. Era natural, pensava eu, que exportassem crianças, para
toda a parte. O caso passou, mas não me satisfez, de maneira cabal!
O que mais inquietava a minha fantasie era, realmente, o lugar exacto, por onde entrava, na .casa paterna. Eu, afinal, não tinha dado conta. Abstraindo da porta e das e das escadas, janelas!
Passado tempo, na mesma salita, onde fora desfechada a minha pergunta, outra arrisquei, afim de inteirar-me.
Por onde é que entram, querida mãe?
— Olha para além!
Enquanto respondia, apontava serena para uma pedra, harto saliente,
a meia altura da parede lateral. Fixo, então. Já longamente. O granito
enegrecido, convencendo-me realmente de que assim teria sido. Pois
qual a razão de uma pedra escura, afeando a parede?!Não tinha, por
certo, qualquer noutra explicação!
Dali por diante, as visitas de inspecção tornaram-se frequentes,
Embora o efeito não me quadrasse, por não ser visível
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Vide-Entre-Vinhas
1966 As Pontes do Burgo
Ao falar deste assunto, há que encher-me de coragem, pois de outra
maneira, falece o ânimo. De facto, quem atravessa as úteis servidões há-de saber, de antemão, que tais lugares se convertem, desde logo, em
vazadoiro de toda a porcaria. Não sei, que me lembre, nem consta ainda
que haja no mundo tão vil associação: progresso e fedor que vem da
imundície
Em boa verdade, estas servidões representam um avanço, tanto mais que são feitas do próprio granito, sólido e tenaz que nos envolve aqui.
Mas vão lá pensar naquilo que parece um alto contra-senso!
Ex actamente, o que é moderno é que põe em fuga os que são ousados!
Com efeito, põe mais deficiente que seja a pituitária, não me convenço de que alguém haja aí que suporte, sem má cara, o cheiro
fétido! Quem se julgue forte, para tais demonstrações, experimente sozinho uma só travessia, pelas 11 da noite! Então se convencerá daquilo que eu disse!
Como explicar a triste ocorrência, no século das luzes, com possibilidades que outrora não havia?! Como justificar que ali, precisamente, é que a fetidez aflige os transeuntes?!
Naturalmente, em redor e por baixo é que se acumulam os detritos
humanos e tudo aquilo que exala mau cheiro. É cómodo, bem sei, empunhar o caldeiro, atulhado de matérias e, das guardas da ponte as atirar, com destreza, para inquinarem as águas ou então , sacudidas pelo vento, conspurcarem os ares.
Ninguém me pergunte onde é que isto se faz, mas não é na minha aldeia.
É lastimoso que isto aconteça, em terra portuguesa, nos tempos modernos de tanto espavento e de realizações que engrandecem os povos e entusiasmam a população!
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1966
Terminaram já, em 1 do corrente, as provas escritas dos nossos alunos. Horas longas, longas, infindáveis até, após noites de insónia!
A vida é isto: sofrer e morrer! Desaparece um motivo: outro surge logo.
Há férias para tudo: menos para a dor! É certo, porém, que avolumamos
bastante a própria desventura. Mercê, quantas vezes, da viva imaginação, harto exaltada, somos nós os autores da própria desgraça.
Conviria encerrá-la em boa camisa de sete varas, refreá-la com denodo, e impor-lhe, em seguida, o caminho da ordem.
De outra maneira, joguetes constantes de seus caprighos, quais
Folhas impelidas por tremendo vendaval, nada r estará senão pobres destroços! Aproximam-se agora os temidos resultados das Provas aludidas!
Entre as candidatas, encontra-se a Glória, filha de meu irmão. Que
gande ansiedade e que tormento! Esquecida como estava da instrução primária, e já numa idade um tanto avançada, para estudos liceais, foi
pesada cruz que eu tive de suportar, durante dois anos. Houve de leccioná-la, em todas as matérias, incluindo a Matemática
Eu que jamais lhe pegara, desde os anos 30!
O pior de tudo é que o lucro, na verdade, foi tão diminuto, que é débil
A esperança de conseguir média. Tudo ao contrário dos meus belos projectos e das aspirações que sempre alimentei!
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1966 O Mondeguinho
“ Não deixes crescer a erva no caminho que leva a casa do teu amigo “ Para que este anexim não seja vão, que eu tenho respeito ao saber condensado, cá estou outra vez, Mondeguinho amigo! Tua água fresquinha está derivando, por meio de 3 canos, sempre amistosa para quem passa! Como és benevolente! É que tu, a rigor, não fazes jamais acepção de pessoas ! És igual para todos, sem preferências nem antipatias!
Modelo incomparável és tu para mim! Só por ideal eu seria capaz! Por amor de Deus e da minha salvação, ainda me sorriria. Com base, porém, na mera filantropia, sem ligação com a vida futura, muito pouco ou nada poderia fazer. Escasseia-me o alento, falta coragem, mingua a devoção!
Por isso, realmente, é que não deixo de olhar para o teu exemplo,
rememorando o que tu fazes e reflectindo no teu belo agir.
Se bem reparo, a tua linfa esmorece. Porquê?! Será que, ao presente, não és generoso?! Estarás indisposto com a vil ingratidão e lamentoso desleixo de quem passa a teu lado, julgando talvez que sucederá o que eu não posso crer?!
Em vez de água, lágrimas em fio, motivadas quiçá por um destino infeliz. Se assim fosse, eras mais um irmão, em negra desventura, restando somente unir as nossas lágrimas e chorar a desgraça de um destino cruel.
Levará muito ainda a imitar outros povos, em que uma pessoa se guarda a si mesma, não sendo necessário que a Polícia intervenha e
bem assim a Guarda Republicana?! Seria interessante viver com tal gente
e observar o esmero, por parte de todos , no intuito louvável de fazer da nossa terra um belo paraíso!
Tenho para mim que essa hora virá, mas cumpre a todos nós
Apressá-la também, esforçando-nos ao máximo por colaborar, de maneira activa, no grande projecto, que se impõe, com urgência..
Então, a s ala d e visitas do nosso Mondeguinho, na Serra d a estrela,
Inspirará confiança e não será com repulsa que o turista de longe se há-de abeirar da sua nascente! Até lá, porém, sofre resignado, paciente e sereno, a javardice e os insultos malignos de quem não teve chá, logo em
Pequeno.
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1966
Dia de Reis
Ainda muito cedo, já o rapazio, de saco na mão, andava hilariante. de porta em porta.
Ó ti Ana Rosa, dê cá os Reis, faça favor! Feito o pedido, aguardam pacientes. Daqui, era certo jamais ir alguém que não levasse alguma coisa, para trincar: figos bem secos, castanhas e nozes, maçâs e mais.
Lá vem a ti Ana, velhinha sorridente que a todos contempla, sem
fazer ali acepção de pessoas. É assim a bondade: folga imenso de comunicar-se, não vivendo jamais para outra coisa!
“Tomai lá, mês meninos! Abre o taleigo. Isso!
Todos vão de sua casa mais humanizados e até mais felizes
A ti Ana Rosa é sempre um encanto de velhinha santa! Ela já morreu há 33 anos, mas a sua memória ainda em nossos dias me provoca
lágrimas. Enquanto, porém, os outros meninos se dão à folgança, eu fico
alheio, imóvel, pensativo!
Quanto eu não daria, para ser livre como os demais que passavam a meu lado, com figos e nozes, sorriso nos lábios e desafio no próprio olhar! Entretanto, havia por força que obedecer à ordem materna!
Só tinha licença para ir à ti Ana, à tia Conceição, à Quinta do Crucho e ao
tio Manuel. Também para ir, já pela tardinha, a casa do Prior, em cuja presença as crianças da aldeia se deviam encontrar.
Aguardávamos no pátio que chegasse o bom Pároco, para dar a cada um a moeda cobiçada – um tostão! Precisava de muitas, pois ninguém faltava e todos recebiam Como lembro saudoso essas tardes de magia, em que a vida era bela e os caminhos sem abrolhos!
Tudo isso passou e, em sua vez, achei o amargor, na senda tortuosa que meus pés trilhavam. O que jamais passará é o perfume inebriante desse tempo delicioso. Quem dera, ó Céus, que a minha existência fosse como então: cheia de sinceridade, carinho e ternura, sem o travo amargo,
que deixam na alma certas convivências!
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1966
Dia de Portugal Dia de Camões!
Uma das coisas toma-se pela outra! Bastante curioso e, ao mesmo tempo,
Irrefragável Esta espécie de equação não está mal posta, já que o grã
nde
énio, infeliz e depreciado, foi a concretização da Pátria Lusitana.
O seu coração bem como a alma eram estruturados em puro lusismo.
própria vida e o fim da existência figuram, a rigor, o ciclo da Pátria.: grandeza e colapso. Não morreu ele na pujança do talento?! Pois que representam 50 e poucos anos?! Mas a Pátria Lusitana ia adormecer, em
tempo beve. Urgia, pois, que o vate lusitano se finasse também, para que até nisso fossem imagem perfeita de um sol esplendoroso que, após a caminhada, agoniza e se esconde .
Camões! Grande Camões! Assim disse Bocage, um émulo seu, tanto na grandeza como no infortúnio, deixa que te preste sincera homenagem.
Com teu livro de ouro, cingido ao peito, sei quanto vales, para o mundo português e quanto nós te devemos, em amor e gratidão!
Breviário da Pátria que eu também prezo, há-de ser na minha vida a fonte de água viva, aonde pressuroso vou dessedentar-me, quando a minha alma, sequiosa e dúbia, se estiver debatendo na luta inglória de minguado patriotismo
A Pátria não morre, porque lhe legaste um caudal inesgotável de amor e vida, no relicário precioso mais firme e sólido que o mesmo granito, o qual é imperecível, como a alma humana.
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1966
Vinte para as 10 ! Sozinho e mudo, encontro-me agora, na sala de visitas do velho Hospital, transmitindo ao papel as amargas impressões do meu peito em angústia. Pela vasta janela, descubro ao longe o vale glaciar, que se recorta grácil e majestoso, nesta aba da Serra.
Do lado nascente, apresenta sombreados, aqui e além enquanto o lado oposto envia generoso um sorriso franco, dourado e bonançoso como o Sol brilhante, a que deve a origem.
A brancura alvinitente do bairro de S. Domingos deslumbra os nos sos olho e, mais adiante, as Caldas da vila aguardam ansiosas que o Sol benfaze jo dardeje em profusão mil raios dourados.
Ali em baixo, parou uma camioneta. Vem de Sezimbra e, segundo parece, encaminha-se breve às Penhas da Saúde .
Quem vive ao pé do mar ou trabalha na cidade gosta do campo e da própria montanha. Vejo em redor atitudes sérias, compostas,
estudadas Alguém dentre o grupo tira fotografias. Se fosse ao natural, ficavam melhor, ma s bicho humano, pedante e vaidoso, quer apresentar aquilo que não é!
Partiram eles, mas eu fiquei! Nada me prende à gente estranha.
S into fundo, como ave de gaiola, imensa nostalgia do ar puro e livre e da
Vida em potência, que os homens destroçaram!
Tento, às vezes, fugir de mim próprio, reencontrando-me algures,
Pois urge procurar os destroços inúmeros que o naufrágio dispersou.
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1966
Vem um sinistrado a caminho do Hospital. Desde S, Gabriel, desliza
um táxi a grande velocidade, com um pobre operário. Lastimoso destino que obriga o homem a defrontar a morte, para ganhar o pão da vida!
Em pouco tempo; duas fatalidades; no mesmo lugar! Tantas são, pois, as famílias enlutadas
À volta da ocorrência, prostração de uns, curiosidade de outros,
lágrimas escaldantes, em rostos desfigurados! Não posso observar!
Esmaga o coração! Gemem … Choram… Lamentam ! Ai o meu irmão!
Ai o meu irmão! Como a vida é triste!
Simultaneamente, outros , se divertem, sem a mínima atenção para o facto lastimoso. Mas, que seria de nós, atendendo piedosos a todos os lutos e partilhando ,igualmente, em todas as dores?!
A vida humana que já de si própria é bem tormentosa, ficava
Insuportável Não levemos, pois, a mal, que outros se divirtam, enquanto nós choremos! Tempo virá, em que nós, decerto representaremos o mesmo papel, em sentido inverso!
Aquele sinistrado foi para Deus, e nós iremos também.
O Céu nos chamará!
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1966
Solidão: Mondeguinho-Nascente-Serra da Estrela
Havia já dias que não vinha a ti! As Provas Escritas do 2º liceal
absorveram-me todo, razão pela qual esqueci tua presença, ao menos em parte. Deleita, sobremodo ouvir o murmúrio de tua meiga voz respirando, sem embargo, a frescura da brisa, que se vai gerando, à volta de ti.
Em paz eu te encontre, Mondeguinho saudoso, companheiro
Inseparável das minhas horas, tão solitárias! Somos dois amigos, que
prezam em muito a solidão e se comprazem de viver neste mundo, sem falsas presenças.
Ainda não me contaste o segredo misterioso, que te prendeu aqui
Nem tão pouco revelaste a causa da tua amargura, em que vives mergulhado, ao invés, um ser privilegiado, que harto se deleita na própria solidão?!
Fora assim, de facto, não podia compreender-te!
A mim, declaro, punge-me em extremo que deteste e aborreça o isolamento; além disso, faz-me até nervoso e torna-me infeliz!
Não gostei jamais de viver só! É jeito contrário à `propensão natural, já que o homem é gregário, de sua própria natureza. Mas o que prende não é, a rigor , o contacto social. Esse detesto-o eu. Amo, sim, a família, os amigos, sinceros a saúde e a luz, o calor humano e a bênção divina
Isto é,na verdade, o que me dá prazer e eu gostaria de encontrar eéu gotaria de usufruir. Ser á também, por modo igual o que te vivifica,
N esta solidão, em que vives mergulhado?! Ou é s tu, possivelmente, de outra natureza?! Um ser esquisito, diferente de mim?!
Hoje, decido não demorar muito, porque não estás só! Veio alguém cá limpar-te as impurezas, que são mesmo tempo sinal denunciador.
Q uando eu me lembro de que lá, na Suíça lacustre e montanhosa,
falta coragem a todos, para atirar ao chão papéis e cascas! E se juntar
a isto que até na própria Serra,, vão as coisas pelo mesmo! …
É lastimoso que, no teu arredor, jazam por acinte ou ainda volteiem papéis imundos… se avistem detritos de natureza vária e, sem rebuço. façam do teu átrio um lugar asqueroso, onde não há pejo de atirar ao chão seja o que for!
Quando será, Mondeguinho amigo, que o povo te respeite e que,
Satisfeito da água refrescante que tu lae ofertas, se afaste saudoso,
Deixando a testada, como a encontrarei!i
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1966 Corpo de Deus
Manhã nebulosa, húmida e fria! O vento agreste dobra inclemente
os ramos das árvores, enquanto a minha alma é vergada e sacudida pela desventura, que a tem acompanhado, ao longo da vida.
Hoje, é um dia festivo: grande milagre estamos comemorando!
Como católicos, vivemos e sentimos a grandeza do mistério, pois tem como centro o Deus que se fez Homem , para nos tornar de homens em
deuses!
À meia tarde, organiza-se, pois, segundo é hábito, luzida procissão,
tomando nela parte os Organismos Católicos e bem assim as Autoridades. Para o nosso bom Deus, tudo o que se faça, nunca á demais!
São 20 para as 9. Todo o mundo, nesta hora, anseia a valer por
tempo bom, pois é dia de festa! Entretanto, o cariz não vai de animar!
A chuvinha está caindo, lá do céu pardacento, em jeito de ameaça!
“Parece azar!- diz um sujeito, quando o nosso burgo deseja bom tempo é então precisamente, que ele vem mau!”
Não vale a pena abespinhar-se alguém, A efectuação duma coisa desejada está, realmente, ao nosso alcance” Está vedada
As condições climatéricas são pertença absoluta da vontade humana)! Podemos nós orientá-las a bel- prazer?”
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1966
Junto à Dorna
É o tempo das vindimas. Por isso, o ti Cândido aproveita a ocasião, dispondo as coisas, para a nova tarefa. A dorna antiga encontra-se, de facto, junto à fonte do cão, cheiinha de água, para embuchar; o cesto velho e algo achacado sofrera um concerto, ao vir o cesteiro; a cesta de verga aguenta bem as tarefas anuais.
— Ó Ana, pas que vou até ò Chão! Os gachos vão stando!
— Olha, vai quer não, Antonho!
Pensando o caso, era logo resolvido. À noite, junto com as cabras, vinha também o primeiro cesto de uvas, para a dorna grande. Ao outro dia, um pela manhã, outro de tarde. e sempre assim, até findar!
— “ Os cordões do Chão, os da Tapada e o da Ladeira bem como os da Horta quase emeiam a dorna! Agora, é esperar somente o esmagador! Ficara apalavrado. Num pequeno serão, faz de enfiada uma lavagem às pernas, como não fizera, havia já um ano!”
Todos os dias, à noite, se verificava a dorna. Eu acompanho também a dita operação, assistindo, embora embasbacado, ao correr
da cena.
Vamos à loja das cabras, onde tudo se arruma, na primeira divisão,
separada por caniços que observo ali. Faz-me dar mil voltas ao miolo espavorido! A candeia de petróleo é logo introduzida no vasto recinto,
não se apagando., ao entrar na dorna.
A ordenha das cabra e a velha candeia
A loja dos animais fica por baixo da casa habitada. É muito quentinha, ainda no Inverno, pelo que o gado se deleita imenso, dormindo ali. Nem por sombras algum resfriado ou coisa no género!
No regresso da pastagem, vêm como pipas, abarrotadinhas !
Dá enorme prazer olhar com demora, para as 4 cabrinhas , tão meigas e dóceis, que parece fugirem à regra geral: Laranja, Nogueira,
Negra e Rouxinol! Nota-se claro, nos olhos de todas, a alegria de viver.
Sentem-se felizes, em grata companhia, tendo por boas todas as canseiras, só para encherem o ferrado habitual.
O ti Cândido está já dentro, com a vasilha na mão direita. Abeira-se então dum orifício, que leva à cozinha e toma a candeia, que a ti Ana lhe chega, do 1º anda.
Quanto à ordenha, o ponto mais belo e cheio de interesse, é a disputa em conseguir o primeiro lugar: ela própria se ajeita, sobre a vasilha!
Restava agora saber qual o dia exacto de tirar o vinho e fazer a água ardente. A reacção da candeia, ao entrar na dorna, daria a resposta. “Ó Ana, inda num stá: a candeia num s’apaga!”
sábado, 12 de setembro de 2009
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