sábado, 5 de setembro de 2009

Memórias 8

Silva Porto
20-9-1973
Primeira Lição.

Procurei, de início,ver logo o assunto, com todos os alunos. Enveredo agora por este caminho, reconhecendo vantagens, em tal agir.
Efectivamente, sucede muitas vezes que os nossos educandos não sabem trabalhar.

No tocante ao livro. acho-o acessível e bem elaborado.O seu título - Read and Speak - diz claramente o fim a atingir.
Assim fosse o do 3º!! Ainda o não vi nem tão pouco sonhei!

Quanto às aulas do Colégio, que é tanbém Seminário, aquilo é outro mundo! Lembra-me, neste passo, o que diz Miguel
Torga, em um dos seus Diários.

Creio seja talvez no volume IX. Apreciando o estilista as atitudes submissas de quatro admiradores, esboçou com tal rigor o retrato psicológico dos seus visitantes, que me deixou assombrado!

Trata-se, evidentemente, de quatro universitários da Coimbra Doutora, os qiais em velhos tempos eram seminaristas.
Acertou no alvo, com muita presteza. Arguto psicólogo e, de igual passo, atento observador, nada lhe escapou.

A maneira acanhada, palavras a conta-gotas, aquiescência espreitada e o ar subserviente que atraiçoa e denuncia, foi já o bastante para o autor os compreeender e chamar-lhes então, graciosamente, "melros sem asas."

Porquê? Por não terem, de facto, recursos económicos e até
por falta possível de iniciativa? Por seus modos canhestros e grande timidez? Por se admirarem, excessivamente, do que outrem faz, revelando surpresa?
Lá o que foi não sei eu dizer, mas ele acertou. como astuto caçador. Haverá, talvez, um cunho indestrutível, diria quase indelével? Só o brilhante escritor o pode esclarecer.
Por mim, jamais esquecerei a fina argúcia que revela o seu Diário.
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Silva Porto
21-9-1973
Às seis menos 10, encontro-me já, na sala comum, aguardando para breve que chegue o Carlos e a mana Cuida.
Vai começar o estudo habitual, orientado por mim, o que os obriga a constante madrugar e a ser cuidadosos, naquilo que fazem.
O facto importante de serem sobrinhos torna-mos, desde logo, objecto constante de solicitude. Afeiçoei-me a eles e tomo
a peito a sua formação, com vista ao futuro.

Quem me dera a mim que, frequentando mais tarde a Universidade, conseguissem realmente o que eu tanto desejo.
Seria este, portanto, o maior e melhor dote que podia oferecer-lhes.
Sacrifício para eles estas madrugadas? Assin o creio eu, mas de igual modo o são para mim! Entretanto, obedecem e eu sacrifico-me, de boa vontade.
Apenas a Gina é que fica mais tempo, olhando para dentro,
uma vez qe o Ciclo ainda não abriu, por falta de professores.
Este ano corre assim:: Gina - 1º ano; Carlos - o 4º; Guida - o 5º.
Que Deus nos ajude e queira alegrar-nos, levando connosco
tão grande canseira!
O ano que vem, teremos, por Deus, mais um elemento: o
Isaías, nosso benjamim, que o Chitembo .retém, para fazer lá a 4^ª-Classe. Afim de conseguir a promoção da família, todos se interessam e colaboram. Refiro-me aos pais e à minha pessoa.

O cunhado Martins, na vila do Chitembo, aguarda sozinho que venham os clientes; a mana Agusta, aqui na cidade, com seu espírito e coração divididos; eu, já quase jarreta, a dar por fora aulas sem conto e lições aos sobrinhos!

Sikva Porto
22-9~1973
Hoje, sem falta, vamos ao Chitembo, após a minha faina. Três aulas de línguas, no Seminário-Colégio; almoçar em seguida e pormo-nos em marcha...

Faz precisamente duas breves semanas, que deixámos a vilória, para rumarmos à capital de Província.
Afinal, foi só ontem que abriu o Liceu.
A Escola João de Almeida antecipou-se alguns dias, pois iniciou os trabalhos escolares , em 18 do corrente.

O Ciclo Preparatório só em 1 de Outubro, segundo consta.
É desanimador aguardar longamente. Ignoro as razões,mas até
julgo que seja talvez, por falta de professores.

Isto de eventuais, embora eu o seja também, é uma grande cantiga! Muitos haverá que sejam competentes, mas quantos outros o deixam a desejar!

Apesar de tudo, são entes humanos, com obrigações a que não podem furtar-se.
Muitos deles ficam pelo caminho, por falta de recursos: outros
ainda não tiveram ambiente ou influências benéficas, que fazem
singrar os mimados pela sorte!
Deficiências lastimosas desta sociedade, em que vivo imerso!
Recordo, nesta hora, o nome de uma aluna que foi assaz
brilhante nas matérias que eu dava: Português, Inglês e
Francês. Conseguiu no 5º ano 18 de média!

Frequentou ela o 4º e 5º ano, no Colégio de Manteigas e
creio ser Figueira de Castelo Rogrigo a sua terra natal. Fez
depois na Guarda o 6º e 7º. Após isso, perdi o contacto, mas não
era de ficar pelo caminho!
Pois esta aluna de recursos negativos ganhava em lições
para fazer face a todas as despesas e apurava 1000$00, para
ajudar os pais, todos os meses.
O que isto representa de enorme sacrifício! Revelou-me a hospedeira que o trabalho da Ilda começava diariamente, às 3 da
madrugada.
Condenação eloquente do capitalismo, sem que eu embarque no sistema comunista!

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Silva Porto
23-9-1973
Escolher a vocação. Ser feliz.

Definir, a rigor, a felicidade, é coisa difícil. Não atinge certamente o nível do amor. que parece, a meu ver, bem mais
complicado, mas encerra contudo bastante dificuldade.

Se não fossem os factores de carácter pessoal, como a vaidade,, hiper-sensibilidade,, orgulho e ambição!...
Mas estes dados atrapalham tudo. E, para já, não ficamos por aqui, pois também a inveja, o egoísmo e o ciúme fazem parte
do cortejo.
Que fazer então, perante forças deste jaez?!
Quem enferma de todas ou de grande parte , asim como eu !...
A afectividade e o sensualismo vão ambos a par, formando desde sempre a comitiva habitual e caprichando, a valer, em fazer-me companhia
A mínima coisa é motivo para amuos ou até para zangas!
E sofro com isso. Aquilo que para outrem é coisa sem valor,
representa para mim horrorosa montanha!

Afirmei já, em Diários passados, consistir a ventura, como eu a entendo,, em sentir gosto naquilo que fazemos
Hoje, acrescento ainda:: e permitir aos do nosso convívio a realização de qualquer anseio.
Evidentemente que se pode errar em tal objectivo ou até
nos meios a isso conducentes, mas não importa. Cada um de nós
há-de viver como ele entende e de facto aprecia.

A experiência dos outros, em classes evoluídas, não é tomada em grande conta."Os outros não fizeram, mas eu consigo quanto desejo". Nada aí há como a experiência que eu próprio
adquiro.
Sentir gosto naquilo que fazemos! Palavras ideais, quando
realizamos o que foi de nossa escolha. Se, pelo contrário, efectuamos na vida o que outrem quer (mesmo os pais) ou exige de nós, constituímos, por isso, uma classe inferior - a nova escravatura dos tempos modernos.

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Silva Porto
24-9-1973 /cont,)
Do que levo já escrito deduzimos pronto: que a tal felicidade é coisa relativa.
Quanto mais acessível o alvo a atingir tanto mais fácil saciar
aspirações
Quando, porém, o alvo fica longe, no momento de o notarmos, começa a nossa dor.Duas coisas sérias poderão impedir-nos de chegar, sem falta, aonde queremos: uma pessoal, outra estranha.
A primeira delas, por insuficiência da nossa parte; a restante causa, devido à oposição de quem nos cerca.

Fazemos de nós, por modo geral, o centro do mundo, esquecendo-nos breve de que também os outros o querem ser.
Agindo assim, entramos desde logo em colisão,sendo por vezes algo arrepiante o entre-choque!

Reconhecer, nos outtros, direitos iguais aos que nos assistem é coisa raríssima. Hão-de estar às nossas ordens, obedecer prontamente,... satisfazer os nossos caprichos,... saciar o noso apetite, caso contrário, vem logo o despeito, a funda amargura e a colisão,
Triste condição a do ser vivente! Fazer a sua desgraça e
prosseguir, de olhos abertos! Que temos nós com as outras pessoas?! Não lhes assistem, realmente, direitos iguais?!

A que é que nos atemos?!Por que não ceder e até recuar?
Meter as mãos na própria consciência, reflectindo alguns minutos, para assim cairmos na devida razão,
Como tudo seria belo, se pensássemos no caso!
De outro modo, a vida é negra e insuportável, nada apresentando que a torne risonha!

Pôr forte barreira aos anseios pessoais; limitar os apetites;
respeitar no próximo, seja ele quem for, as suas preferências é
caminho certo que leva ao bem-estar.

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Silva Porto
25-9-1973
O que agora me tortura é o 5º do Seminário!
Aquele Inglês desfalcado, a timidez natural, filha da ignorância
e, mais que tudo, as faltas de presença!....
Ontem, precisamente, iniciei a lição com metade dos
alunos!
A culpa, afinal. de quem será? Julgo que é de todos, excepto
minha. Efectivamente, consagro-me à tarefa,ingrata e árdua, com
toda a munha alma, sem faltar o coração. sempre aventureiro e harto pisado.

Gostaria imenso que este Seminário se impusesse deveras,
caminhando na vanguarda e mantendo ilibado o prestígio que tinha. Pus nisso a experiência , não faltando igualmente a boa vontade e fiz de cada aula uma cena vivida, em que as partes ambas se interessassem.

Afinal, verifico agora , cheio de emoção e com franca revolta que as minhas diligências não são apreciadas.
Fui sempre, até à data, um professor caprichoso, muito exigente e
bastante solícito.
Será isso talvez ou ainda outra coisa por mim ignorada?!
Seja como for, a verdade crua é que eu , a rigor, perdi o entusiasmo: um profundo abatimento se instalou na minha alma.

Recompor-me? É o que falta saber. Espero ainda o resto da semana e, se as coisas persistirem, peço a demissão.Vale mais nesta data que no dilúvio geral, provocado por eles. e nutrido
inabilmente pela minha tolerância. e falta de reacção.

Que dará tudo isto? Vê-lo-emos em breve.
Para já, com o meu feitio, assaz derrotista, não prevejo sequer a amostra do pano.
Deus venha ajudar-me, neste passo delicado, que sinto a alma deveras oprimida!

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Silva Porto
26-9-1973
Âs 5 da manhã, começou o meu lidar.
Deitei-me às 23, sendo o pôe-acima, volvidas seis horas.Foi um
sono entrecortado, como se graves cuidados agitassem o meu cérebro.
Para quê, afinal, viver em profundidade, quando à minha volta só vejo incúria?!
Gostaria de cumprir, mas sem enervamento. Efectivamente, a minha vida assim é toda convulsão.Não sei eu, há muito já, que tudo isto é ilusão?!
Satisfazer a minha conscência, voz falante por Deus, mas nunca ir além! Razões de vaidade? Motivos financeiros?Capricho
inadm'ssível?
Aos 55, devia ter mais senso! Pois se tenho para mim, por que mourejo e aspiro a muito mais?! Por que desejo mais aulas ainda?! Se as que tenho sobejam afinal! Aspirações de sempre que talvez só a morte será então capaz de vir a extirpar!

Locubrações, cálculos, insónias, pensando apenas en lidas constantes, sem repouso bastante para a cabeça, em extremo saturada!
Agora mesmo está ela pesada, custando não pouco iniciar outro
dia. Mas que hei-de fazer? Poderei eu, mesquinho e triste, alterar no meu ser o que achei já feito e me afecta em cheio?!

Esta força brutal que me arrasta e fixa, impedindo altiva que
mude o trilho, não será fatal?!
Fatalidade é coisa inexistente - sei isso há muito - a não ser como ornato, para agravar os meus próprios males.

Existe, sim, motivo bem forte, que vem já no sangue e na própria alma, agindo qual tirano e inpondo-se ousado. Isso, sim, é pura realidade que me leva e puxa, de escantilhão, sem deixar tempo, afim de rever o que levo feito,
Para além de tudo, é Deus na verdade quem rege os destinos da minha alma sedenta.
Sinto peso em mim?
Não é a minha cruz?! Importa levá-la, sem tentar fugir-lhe.
Deus me ajudará.
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Silva Porto
27-9-1973
Ontem, foi a rigor um dia agitado que não deixou tempo nem boa lembrança. A questão do tempo é coisa já velha,
pois tendo muitas aulas, não pode sobejar.
Quanto a lembranças, o caso foi notável, por causa das abelhas.
Eram 8 menos 5: o tempo necessário, para chegar ao Liceu e à Escola João de Almeida. Aquecer o motor e pô-lo em marcha era tudo à justa. Entretanto, o homem põe e Deus dispõe, já que, desta vez, saiu tudo furado!

Comer à pressa, juntamente com a Guida e o mano Carlos,
por motivo do trabalho, que nos havia atrasado? As pressas,às vezes, dão em vagares.
Ao galgar prestes a escada exterior, noto à minha frente um zumbido esquisito: uma abelha enfurecida, acompanha, lado a lado, com mágoa e acrimónia da minha alma angustiada.

Até aqui, nada a lamentar. Enfio-me no carro e ponho-o a
trabalhar. Com surpresa minha, pega logo à primeira! Não sei como tal! Era asim há tempos, mas ultimamente, faz-se um pouco rogado!
Efeitos da velhice? Falha da bateria? É bem possível que
seja ela, pois na verdade já serviu longamente. O Taunus só
gastou duas, no período longo de 11 anos contados. Saíram maravilhosas!
Agora noto eu que me afastei um pouco do assunto inicial.
Como o tempo urgia, businei forte, a chamar os sobrimhos.
Estranhando a demora, volto a repetir.

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Silva Porto
28-9-1973 (cont,)
Nervoso em extremo, olho para a porta, a ver se lobrigo
algum dos pequenos.Tudo cerrado! Coisa estranha! Cá fora, há também novidade!

É com espanto que me inteiro do que vai. Observo, inquirindo, janelas e portas. Vasculho tudo! Nem vivalma! O que mais desperta a minha atenção é uma pasta, abandonada ali ,à saída do pátio.
Nisto, sai a Guida, na sua bata impecável e eila apressurada
que desce o balcão. Encaminhando-se ao Taunus, abro a porta de chofre e, ao meter-se dentro, noto com espanto que as abelhas a cobrem.
Reajo prontamente e falo em voz alta, reprovando que entre.
Afasta-se logo a pobre coitada, mas eu no entanto, fico no interior.
Alguns insectos mantiveram-se ainda junto de mim,dando-me a honra bem dispensável de acompanhar-me à Técnica.

Foi uma tragédia aquele percurso! Encerrado no veículo, fui
mordido e torturado, sem auxìlio de ninguém.
Lá fora, só pretos a fugir, sacudindo os braços, violentamente e açoitando o próprio corpo, sem dó nem piedade.

Nisto, paro uns momentos e abro em seguida a porta do carro, tentando pressuroso expulsar as intrusas.
Tudo em vão e contraproducente!.
A verdade nua é que, em vez de saírem, outras companheiras se meteram dentro.
Arranco, de novo e avanço tresloucado, por entre as gentes.
quase espavoridas
Os insectos molestos aferram-se ao nariz, orelhas e testa, cabeça...
tudo! Nem os lábios escapam!.
Entretanto, às 8 em ponto, dava entrada na Técnica, suando
já por todos os poros.
Lembranças destas são de esquecer! Só pode fazer ideia quem experimentou!
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Silva Porto
29-9-1973
É manhã de sábado e pesa-me ainda a canseira da
véspera. Sexta-feira, dia trabalhoso, pois tenho 9 aulas! Já dei
este número, 5 vezes por semana, durante anos seguidos, mas esse tempo já se afastou, sem nenhuma esperança , quanto ao
ao retorno. Quem dera que voltasse!

Lá diz a cantiga: Primavera vai e volta sempre\ Mocidade não volta mais.! Quem andou já não tem para andar!

Chegado ao fim do rego, pára de trabalhar!
Retomando, pois, o fio, foram 9 horas seguidas, mas não acabei!
Em seguida, tinha de corrigir 32 exercíciios, fazer as minhas rezas, escrever o Diário e ajudar os sobrinhos na correcção do
Ponto escolar
Tudo isto bem contado, representa, na verdade, um bom número de horas, em plena actividade.
Comecei a mourejar. às 5 da manã, dormindo somente, pelas 23
horas.!
Não é isto exagero?! Mas quem me diz a mim o que será realmente o dia de amanhã?
Esta incerteza, mercê do terrorismo, é que aflige e angustia!
Impossível é já tomar decisões, planear vida nova ou coisa no género!
Mas, voltando uma vez mais à vaca fria,deviam ser, ao que julgo, 8 horas, bem medidas, em contínuo labor, após as primeiras 9.
Já não é para mim! Por outro lado, invade-me logo o triste pensamento: como posso ajudar quem precisa de mim?!

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Silva Porto
30-9-1973
Bem dz o Poeta : - Oh! caminho da vida nunca certo!
Ontem, querendo partir, recebi surpreendido inesperada visita, cruel e atrevida, O carro estava pronto, à porta de Leste e, como a Guida é bastante alérgica aos terríveis insectos, fi-la entrar primeiro, como é já uso.
Houve, porém, algumas abelhas que ali apareceram,
inesperadamente. A princípio uma.... logo depois outra e outra
ainda!
Pronto me indispus com a primeira atrevida. Precisava de arrancar para certa viagem, um tanto longa: 150 quilómetros. A
estrada é boa, valha a verdade, mas não aprecio viajar de noite!
Agitei o braço, em perseguição, para que a abelha fugisse dali.
Ela, porém, interpretou a seu modo: fez algumas piruetas,
em volta da cabeça, agitando-se nervosa e assim que viu o braço
actuar com prontidão. decidiu castigá-lo, ferrando-se nele.

Houve de aguentá-la. Ferroada louca, desesperada e magiatral que não apoquentou, excessivamente, embora me doesse!
Eu, no entanto, não sou castigado por tamanhas mordeduras.

Assim não vai com a pobre Guida!
Basta uma delas injectar-lhe líquido, para no momento inspirar cuidados, algo sérios! Incha que é pavor, ganha febre alta e não
pode trabalhar!
Deus me liberte de peste assim e que a praga horrorosa não
caia jamais nos meus próprios inimigos!
O que temos passado, por causa das abelhas!
A casa de Silva Porto, devido à situação, foi por elas escolhida
para criar a prole.E agora afastá-las?! Não há maneira

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Chitembo
1-10-1973
A vida no Chitembo é sempre agradável: desanuvia o espírito, quebra a monotonia; gera e acalenta novos projectos.
Calmo e pequeno, de ares lavados, é meio ideal, para a gente repousar.
Desta feita, porém, vim um pouco forçado: mole e exausto,
apetece-me o leito, em vez da condução.

A semana transacta foi cheia de canseiras : aulas e pontos; provas escritas e aborrecimentos.É isto, na verdade, o que me angustia e prostra a valer.barulho nas aulas; falta geral de pontualidade....incompreensões!

As coisas que digo respeitam em globo ao Seminário-Colégio, avesso a ruídos, em tempo de aulas. Fico nervoso, de falarem à margem, enquanto vou transmitindo conhecimentos e
diversas noções. Para mais, nem me faço ouvir!

E se, além disso , não preparam as lições, convenientemente?! É borrasca, por certo!
No Ensino Oficial, as coisas são diferentes,. embora me esforce de modo igual. Os seminaristas precisam, julgo eu, melhor preparação, devido certamente ao papel religioso a
desempenhar, na sociedade..

Bem sei eu que alguns colegas meus opinam já diferente.
Penso, às vezes, que serei escrupuloso, em grau extremo, no entanto sendo assim, fico ilibado.

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Silva Porto
2-10-1973
Vão passando as horas e os dias arrastam-se,
dolorosamente. A vida actual, se não houvesse intromissões, não
seria talvez muito desagradável. Seguir cada um o curso da Natureza,sem barreiras humanas, creio estar aí o ideal supremo.

Não quero expressar, de modo nenhum nem tão pouco insinuar uma vida sem moral.
Isto, simplesmente: realizar-se alguém, a talante de seu gosto.

Esses travões que os homens criaram, sugerindo e impondo caminhos a trilhar e normas tão severas que, por vezes, nem eles respeitam!...

É isso, na verdade, que faz, desde sempre, o homem infeliz.
Comer do que não gosta,enveredar, forçosamente, por onde não apraz, subordinar-se, enfim, àquilo que não ama... Pois não é
desdita ver o semelhante fruir de bens que a todos pertencem?!

Não vejo eu ser feliz o animal da floresta?! Porquê? Anda
saciado, por ter o que deseja Que mais quer ele? Se a mais não aspira!
Eu, porém, desejo a valer, o que me pertence e não posso alcançá-lo! E acontece deste modo, porque é deveras tarde.

Os homens deste mundo cavaram este abismo, lançando-me nele, sem dó nem piedade. Foram habilmente velando a claridade, para eu não ver, em dada altura e, então às cegas, abraçar naturalmente o que eles intentavam.
Em nome de quê ou então de quem?!
Em nome do Senhor que era bondoso, compreensivo e tão liberal?!
Em nome da estupidez que os sujeita a outros, vendo neles afinal o próprio Deus?
Como pode ser isso?!Ver Deus no homem?! Cheio de mazelas e, às vezes, de vícios, miserável e trafulha,ingénuo por vezes e macaquito?!
Quem dera ser jovem, para eu traçar o meu próprio caminho!
Ouviria, certamente, o parecer de outrem, mas seguiria o meu, havendo colisão
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Silva Porto
3-10-1973
Temporal desfeito! Às vezes, há na vida coisas horrorsas! Basta uma palavra ou simples frase, para gerar tremendo rebuliço. com escarcéu. Foi o caso de ontem.à hora de jantar, O culpado fui eu.

Se previsse o resultado, agiria de outro modo.Pudesse eu
adivinhar! Seria muito rico . O número da sorte não teria segredos! Tais zonas, porém. são vedadas ao homem.
Estávamos à mesa e havia bom humor! Graça daqui, xiste
dalém, comiam todos com satisfação, procurando em breve saciar o apetite
Eis senão quando atiro, impensado, com esta frase: a nossa Guida, se ficar dispensada, nas duas secções, quer farra animada , até às 5 da manhã do próximo dia!

Ouvira eu esta frase, em dias anteriores e lançara-a de propósito, afim de avivar o bom humor de todos.Não imaginava, de modo nenhum, a evolução de certas reacções!

A pequena sorria, do outro lado, gostosamente, acrescentando logo: - Pois têm de me aturar, ao longo da noite, e
bem assim aos meus colegas! Por outro lado, saindo às 15, só
apareço às 18 horas!
Nisto, objecto eu: mas sem dinheiro?!

Até aqui, nada houve ainda que destoasse, pois era tomado como simples gracejo.
Neste passo, exactamente, é que tudo se agravou, quando a mana
Agusta juntou, em remate:
- Nem com dinheiro nem sem ele! Não te deixava andar por lá sozinha!
Foi o inferno que logo se abriu!
A meúda levanta-se da mesa e entra de pronto no quarto de banho, dizendo acalorada:
- Já comi hoje o que havia de comer!
Os pedidos que faço nada conseguem! Chora e protesta! Minha irmã chora também.
Entre fogos estou eu, debatendo-me em vão.
Obrigo-a a comer, lembrando-lhe em seguida, serenamente, que é bom pedir perdão. Ela,porém, não quis, por mais que eu instasse.

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Silva Porto
4-10-1973
Encontro-me, â data, algo desiludido e bastante angustiado. Julguei um dia, talvez ingenuamente, haver encontrado plataforma aceitável que me daria gozo e bem-estar
permanente: um lar fictício, por ser artificial, em que eu, na verdade, me sentisse bem e aqueles que me rodeassem.

Pagaria em benefícios o prémio recebido e, além da parte de cunho material, viria, já se vê, outra de mais relevo: a afectiva
e psíquica. Na mimha idade, bastaria, talvez.

Viver para os meus, sendo julgado amigo especial e retribuindo essa dedicação, era para mim o ideal a atingir.
Quanto à mana Agusta, tudo está bem e não há desilusão.
No tocante aos meus sobrinhos, já não me agradam as suas atitudes.
O que ontem se passou revela bem claro que não são dedicados nem tomam a peito ser agradáveis.Refiro-me, claro,
à cena do jantar, em relação com a nossa Guida.
Assume atitudes que são desconcertantes: em ordem aos pais.
Pois o caso de ontem deixou-me perplexo e quase revoltado!`
Fazer chorar a mãe! Caiu-me tão mal o seu proceder, que perdeu bastante, no meu conceito!
Se eu fazia tal coisa à minha querida mãe! Andaria com remorso, jamais tendo paz!

Ora, em vista da cena, concluo deste modo: se faz isto à mãe, que não fará ela às pessoas estranhas?!
Por mais que eu pedisse, não acedeu, fazendo as pazes e dando um beijo a quem lhe dera tantos!
«Não vou!» foi a resposta seca e desnaturada que lhe ouvi então e deveras me aterrou!
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Silva Porto
5-l0-1973
Com os anos a correr, tudo vai fenecendo e então o pior, no que toca a mim, é julgar que sou único em prender-me a valer.
Pensarão de igual modo os que o sangue e a amizade ligaram a mim? Sentirão no peito o acúleo acerbo que punge e faz
doer? Com a família e pessoas estranhas é sempre a mesma coisa.

Sofro em vão e elas não me atendem, julgando talvez , erradamente, que apenas eu não estou amarrado pelas fortes cadeias da bela amizade ou do amor sem igual.

, Triste sina esta que força e me arrasta!
Não dizia a mesma coisa o inditoso Camões?! Quantos não bradaram. em voz comovente, que só eles amavam, enquanto alguém não vibrava por igual?!

Terei a mesma sina, falte embora o talento, como dizia Bocage, ao comparar-se a Camões.
A Gertrúria cruel, esse amor fatal que lançou no abismo ao
nosso Bocage!

Horrorosa desgraça que lhe transformou a vida em fel e amargura! E para cúmulo de grande infortúnio, em casos de amor,
seu irmão atravessava-se, roubando-lhe a noiva! Nem família nem amor! O seu caso piorou, tornando-o pessimista.

Será o meu destino semelhante ao dos ourtros
que a vida terrena crucificou impiedosa, inexoravelmente ?! Há muito já que me lembro do facto, aceitando cabalmente que assim terá sido?

Sofra, pois, em silêncio, não tendo peito amigo, que se abra como a flor, para verter bálsamo nas feridas abertas, que agora me
torturam.!
Ou haverá não sei quê, afinal, que atormenta a minha alma e
também os que amo?! Sendo isto assim, já não posso incriminar quem esteja a meu lado, pois sou causa de amargura, para aqueles que me cercam.

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Silva Porto
6-10-1973
A vida e um logro em todos os aspectos. Põe-se a mira no alto e, quantas vezes, nem um grau se venceu! Quanto maior
a ambição e mais forte o desejo, tanto maior por igual o sofrimento e a dor que logo sobrevêm.
Criou-se um ideal, divino ou humano? Empregam-se os meios. para o levar ao fim, mas tudo falha, de um momento para o outro
É assim, pois, que o o homem vive, fiado nas aparências e levado em tropel pelo seu egoísmo. Este, realmente, é que o torna infeliz.
Centro de si mesmo, tendo-se elevdo à nobre categoria do
próprio Deus, exige peremptório que o mundo em redor lhe preste homenagem, lisonjeando seus actos e prestando-se a tudo.

Conta só ele e mais ninguém, Os outros mortais não passam de serventes que, doando-se por inteiro, hão-de estar noite e dia ao serviço do ídolo.
Quando, porém, não fizerem isso ou mostrarem desagrado, cai-lhes tudo em cima, não podendo sequer alegar seus motivos.
Endeusamento do homem: esquecimento de Deus! Eis os factores que abrem as portas do grande abismo! Mas então como vencer essas altas barreiras?
Pelo amor somente: amor a Deus sobre tudo e ao próximo em Deus.
Quão longe eu me encontro deste belo idal! Amarrado a mim próprio, egoísta e sensual, orgulhoso, irreflectido, que vou
esperar da vida senão logro e decepção?!
Corri, desatinado, atrás de coisas vãs que o vento leva e já não traz!
Borboleta encantada pelo brilho de uma luz que foge, se a procuro... foi tudo miragem... qual nuvem brilhante que passou no céu.Inundada pelo Sol, desfaz-se num momento , ficando aguados meus olhos saudosos!

Vim ao mundo sem saber e, quando partir dele, fá-lo-ei na ignorância. Que valimento é o meu, que nem me consultaram?!
Esperanças vãs que assaz me afagaram todas vejo sepultar-se,
ante os olhos marejados , que não se abrem, de agonia.
Este,realmente, é o dote que me ficou de uma vida torturada, em que as lágrimas abundaram, sem haver compensação!
Nada mais haverá, para além do que vejo, sinto, palpo e se desfaz?!
A fé que professo vai dar-me a resposta.

******
Silva Porto
7-10-1973
Vi o último texto, no livro de Inglês, para o 5º ano do
Ensino Liceal. É um livro novo com o título seguinte: Englsh Three. Foi preciso primeiro ler os textos em cheio, esclarecendo, uma vez ou outra, dúvidas em pronúncia ou apurando melhor a
significação de algumas palavras.

Trabalho duro, afinal, que levou boas horas e ao qual me votei, de alma e coração. A última parte é Antologia que pode ou não ser dada na aula.
Examinei, correndo, alguns textos em verso: pequenos poemas que não parecem difíceis.

No geral, este livro é mais trabalhoso que o anterior.
Intelectualizado, em extremo grau, põe quase de parte a sensibilidade no próprio aluno, elemento valioso que acompanha
o ser humano, em todas as fases da sua existência.
Outro enorme contra é o propósito insistente de evitar,
de lés-a- lés, aplicações gramaticais.
Para mim. tal defeito é grave, pois desperta nos alunos um conceito errado, sobre a prova escrita. originndo assim um desastre no exame que não prescinde, realmente, daquelas aplicações.
De modo especial, tem isso ocasião, se o professor da matéria, faltando~lhe experiência, não fornece aos estudantes o
que o livro lhes nega.

Aponto ainda alguns bitafes mais: há textos ali que fazem o
livro algo pesado, indigesto e maçador.
Bem sei, há muito ,que não é aconselhável traduzir a lição, mas é forçoso entendê-la bem, para falar dela e fazer também a interpretação. Ora, o dito processo gera dificuldades.

Por outro lado, os inventos da Técnica , se bem que em geral
tenham interesse, não é decerto em língua estranha de acesso difícil que devem transmitir-se. Até porque os alunos não vêem o obecto ou a sua imagem.
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Silva Porto
8-10-1973
Na Rua de Silva Porto, aqui junto da vivenda, era tudo
alvoroço, Crianças então acorriam de toda a parte, afim de ver, com os próprios olhos, uma cena horripilante. Até a Paula do Samalenso, que trouxemos connosco, fugiu à bicha do talho, para observar o motim da manhã.

A carne de vaca e as ordens da senhora foram postergadas,
interessando apenas inteirar-se bem do que havia sucedido.
Face ao patrício Varandas, estaciona um veículo que larga em seguida pretos vigorosos, em número de 4.

Meu dito, meu feito. O seu aspecto é feroz, e a decisão já tomada antes: espancar o branco, estivesse ele onde calhasse!
O infeliz abusador encontrava-se ali.
Sem temor de ninguém nem sequer da Polícia, atiram-se a ele, capazes de o esganar!
O agredido nada faz então: eles são 4, cheios de razão, o que
vale por mais! Havia brancos à volta, mas nenhum acudiu!
Certamente lhes doía a cena violenta, humilhante em extremo. para a sua cor! O que é não ter razão!

O inditoso bobo serviu de tambor, sem dar consentimento e malharam nele, por largo tempo! Era onde calhava: faces, nariz.
cabeça e pernas... Com as mãos e com os dentes!...

Atirado ao chão, calcaram-no ali, furiosamente, saltando~lhe em cima. Era com as unhas e a pontapé! Nem pode relatar-se!
Fora ele o culpado! A preta que trouxera, dum quimbo vizinho, é que originou esta cena macabra.
Por um lado, foi-lhe bem feita, embora eu tenha dó e censure os brancos, por nada fazerem. Ao menos, evitavam sevícias.

A preta em questão seria forçada?
Não conheço pormenores! A verdade é que os brancos, abusando
às vezes ou excedendo-se, provocavam, desde logo, a ira dos pretos
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Silva Porto
9-10-1973
Até que enfim acabaria já o grande pesadelo! Os dias
passavam e jamais o horário chegava aceitável! Colisões e furos,
omissões, aglomerado!...Já sabia a esturro! Cheguei a desanimar!
O labor e a orgânica do Seminário-Colégio! Ontem, porém, se não houver mais encrencas, terá sido, naverdade, a última demão.
Oxalá que fique estável, para bem dos alunos e seus professores! Que maçada! Situar exactamente 20 horas semanais, em tempos à escolha, sem haver colisões com as aulas da Técnica! Parecia um labirinto! Uma faina apavorante!

Furos,então, haverá mais agora!
Vou ter um ano cheio de cuidados: 23 aulas, na Escola Técnica e mais 20, no Seminário-Colégio!
Já está dobrado o cabo dos 50! Não será uma aventura, a caminho dos 60?! Para mais, com livros novos!

É obra! Ver os textos, um por um... palavra por palavra,incluindo a pronúncia!
O fardo presente está distribuído pelas seguintes matérias: Inglês e Francês; Português e Ciências!

Se não fossem, agora, os graves problemas disciplinares, a falta de livros e os atrasos lamentáveis , não tinha dificuldade absolutamente nenhuma, em dar estas aulas. Mas assim!

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Silva Porto..
10-10-\973
Um protesto veemente, lançado no papel. Escrever o Diário é sempre um desabafo e, na falta de alguém, que me ouça clemente, afável e terno, ele ouve sempre lamentos e ais. Depois ,
reveste alguns aspectos que não encontro facil, em seres humanos.
É discreto e afável, circunspecto e leal. Inconfidências não tem jamais! Guarda cauteloso o que lhe é confiado e a ninguém descobre o que um peito lhe entrega.São queixumes e angústias, de que ele é sempre fiel secretário! Nem sequer admite um leve pensamento de negra traição.

Julgarão talvez que ele desabafa? Não! É como o túmulo, em que jaz para sempre um depósito sagrado .
Quanto mais infeliz é alguém neste mundo, mais circunspecto ele se apresenta.

A dor e a tortura, a angústia de alma, a decepção e o desamor tudo ele arruma, em escaninhos secretos.

Que seria, realmente, dos grandes solitários, se não fosse o Diário?! Corações apaixonados que o amor atraiçoou... peitos inflamados que uma cega paixão votou à desdita... almas laceradas que a vil incompreensão deixou no lamaçal ... eu sei lá bem!
Tantas misérias... tantos vilipèndios se estadeiam aí, pelo mundo além, amargurando a vida e tornando-a insuportável!
Tudo isso confiamos ao Diário fiel, amigo certo e leal que nos estende os braços e sorri amavelmente, sem fim velado ou segundas intenções.
Como eu te prezo, Diário querido e inestimável, sempre o mesmo... sempre igual!
Jamais uma palavra que seja discordante ou qualquer atitude que não seja humana!
Também eu te quero, em sumo grau, pois nunca me traíste.
Prossegue benévolo essa faina sem par, que eu, em retorno, serei sempre teu, na dor e na alegria.

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Silva Porto
11-10-1973
Sinais dos tempos.

Nada li sobre o caso, mas sinto no peito algo a dizer-mo. O que todos, à porfia, sustentam e defendem, calorosamente, quer na ordem material, quer ideológica, deve ser tomado em linha de conta por todo aquele sobre quem impende a responsabilidade.

Tenho( a) certeza de que,à semelhança de enorme furacão ou onda furiosa tudo leva na arrancada. Perante factos destes, nada a fazer, criando barreira. Urge, sim, estudar o fenómeno e criar para logo estruturas diferentes, acomodadas a ele.

Negá-lo simplesmente é não viver, de facto, no mundo real.
Diria até ser grande loucura! Detê-lo, alguma vez, imprudência grave... temeridade! Ignorá-lo, falta de visão e causa certa de grandes perigos.
Entre os sinais, há um grande número que me apraz citar:
contestação, inconformidade e revolta geral, contra a lei do celibato; oposição declarada à mesma autoridade, em globo tomada;
protesto da juventude, reivindicando participação, no
campo social, na área política e administrativa; desacordo total entre pais e filhos, recusando a tutela, à maneira antiga; irrupção
violenta dos povos de cor, exigindo direitos iguais aos dos brancos;
surto poderoso do 3º mundo, pretendendo enfileirar na lista dos povos, de cabeça erguida, sem intromissões de qualquer espécie.
Ajuizado e prudente é aquele que , não fingindo ignorar realidades palpáveis, como as referidas e a do mundo agrícola que já vai acordando, se debruça nelas, para dar solução.

Limitar-se a negar, pura e simplesmente, é querer espevitar uma fogueira ateada, onde há-de queimar-se.

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Silva Porto
12-10-1973
As abelhas de novo.

Após as cenas chocantes que abundaram aqui, na Rua Gil Ferreira, o caso referido não ficou arrumado, pois logo de manhãzinha, chegando eu à sala de trabalho, ouço o tal zumbido que me pôs no ar os cabelos todos,

Ontem, que me lembre, vitimei só 10. e hoje, por certo, vou já na terceira. Entretanto, cremos para já que tudo vai melhor, uma vez que, a não ser de manhã, raramente se vêem.

O mais bonito, porém, deu-se ontem no Colégio.
Ao princípio da aula, no grande salão do 1º ano, verifico assombrado que os insectos zumbidores invadiam a quadra. E era maré cheia!
Como as águas do Mar vão, por modo gradual, em ritmo ascendente, de igual maneira, as abelhas diligentes o iam fazendo, no lugar referido.
Fiquei logo sem comando! Desditoso que eu sou! Se não chorei então, foi certamente, por não haver oportunidade!
Amaldiçoei, nessa hora, o diabo do Inferno e todos os diabretes que tem ao serviço, pronunciando monossílabos de sentido obscuro, que já olvidei.
Só lembram tais coisas ao Grande Diabo! Irra! Que inferno de abelhas, aqui nesta Angola! É de tirar-se o chapéu! Arre com
mil pipas!
Na primeira aula, após o almoço, foi pavoroso! Mais de 500! Fiquei táo desnorteado, que nem o livro de Ponto me lembrei
de assinar! Mandei buscá-lo e sempre recuando!
Parece, no entanto, que ninguém foi mordido! Ao menos que eu saiba!
O lugar da cátedra é que elas preferiam. Nada! Isto não chega a netos! Safa daqui!
Hoje, é sexta-feira! Veremos em breve se as bruxas malditas vão
fazer das suas!
Que eu não creio nelas!

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Silva Porto
13-10-1973
Motorizadas
Nunca vi tantas, em vida minha nem supus jamais que fizessem
doer.Aqui, são elas, a verdade, quais vespas do mato, que vão e logo vêm, sem conto nem medida.

Conduzidas por idiotas que são, em regra os piores alunos,
rapazes sem honra nem vestígio de senso,verdadeiros trambolhos, numa sociedade que mal os tolera,atiram-se para a estrada, impensadamente, constituindo ali perigo sério para os utentes.

Se fosse a passar, não voltando já! Era horroroso, durante momentos, vindo logo a calma serenar os ânimos.
Mas não! Passam una vez... tornam a passar,em excessos e maneiras que denotam claramente falta de senso e grande imaturidade.
Para a existência em comum, valia bem a pena verificar, uma vez, o que se passa dia a dia, entre o Liceu e a Escola João de Almeida. Lugar privado, pois não tem saída, reservando-se apenas
aos Estableciimentos que ministram o Ensino, é utilizado, a cada
momento, já por insensatos, já por tresloucados.

Nada importa que seja até durante as aulas.
Como se isto não bastasse, vêm os soldados, para fazer o quadro mais negro ainda.
Motorizadas e motos, carros partculares e do nosso Exército
vêm todos para aqui, afim de enxamearem e deleitar-se.
Como passa a aula, enquadrada neste fundo?!
Nervos e revolta, dor de cabeça e protestos amargos!
Os alunos então sorriem parolos, trocando entre si olhares de inteligência.
Claro se deixa ver que nem todos eles procedem assim. Os que
amam a vida e a querem preparar vivem o momento e afligem-se
também. São os bons elementos que amanã ou depois, vão já contar na sociedade.
Os idiotas ou imbecis ,gozadores da vida e tormento dos outros ficarão apagados, no distante porvi r.Zeros à esquerda não valem nada!
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Chitembo
14-10-1973
Voltámos ao oásis. De 15 em 15 dias, regressamos ao lar, para auferir algum conforto, mergulhar no sossego e tonificar o nosso espírito.
Na verdade, este isolamento, em que ouvimos o nosso
próprio eu, sem ruído molesto nem grave inquietação, é bonificante, pois muito agrada e bem dispõe.

Após uma semana, em que vai alma e vida, fazendo face a obstáculos e sérias dificuldades, é qual aroma que desliza pela alma, dulcificando as suas agruras.

A Guida, coitadinha é que pensa de outro mdo, pois os seus 18 anos preferiam Silva Porto, com belo cinema e agitação,
alvoroço e colorido. Um dia, porém, quando as peneiras deixarem de actuar, ao pôr os olhos neste Diário, verificará, reflectindo melhor, que é muito outra a realidade.

Um peito amigo e dedicado raramente se encontra: só temos (a )certeza, procurando-o no lar. No exterior, há fantasia , engano e traição. Admito,sim, raras excepções.
À mesa de trabalho, sentam-se três: a Margarida, o Carlos e eu. Cada um de nós tem seu labor.

Ela estuda Português, a que se agarra, com toda a alma, pois vai para Românicas; o mano Carlos que tem a bossa da História, prepara a matéria, de modo igual, por haver-lhe dito que é sempre
número 1; pela minha parte, vou escrevendo o pobre Diário e ajudando a resolver o que acham difícil.
Tenho sempre em vista ensiná-los a estudar.

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Silva Porto
15-10-1973
Acabo de chegar da viagem matinal que, do Chitembo, me trouxe breve à capital do Bié. Até ao cruzamento que dá para o Huambo, a média alcançada foi 110, a maior conseguida, sendo eu condutor.
Quando agora me lembro de que em vias da Metrópole , ia
apenas a 50 ou 55! Isto foi o máximo, de Manteigas a Lisboa.

Viemos todos por aí fora, sem o mínimo percalço!
Por vezes, ia até 130, mas tenho para mim que o ideal, nestas vias, é 90-100. Tanto mais que faleceu, em 13 do corrente, o bispo de Benguela, por exceder-se, na velocidade.

Todo o cuidado ainda é pouco!
Uma surpresa ingrata... um pneu rebentado, mil coisas possíveis!
Por outro lado, eu tenho limite, quanto a velocidade.

Quererei fazer milagres, agindo na condução como os de vista sã?
A tempo e horas, remedeia-se tudo. Entretanto, havendo receio, um pouco exagerado, tenho para mim que parte dos mortais não
ousava nascer.
Isto, evidentemente, a serem consultados e alguém os informar, sobre os perigos da vida. Mas,enfim, o asfalto é chamariz e não oferece muitos contratempos, a não ser, já se vê,,
ao animal borracho ou então verdadeiro animal, que muitos se encontram, pela estrada fora.

Apesar de tudo, vale mais ser prudente,, não excedendo os 110. Mais segura a minha vida e a de quem me acompanha!
Afinal, a nossa existência não interessa apenas ao grupo familiar: contribuímos todos para o bem da sociedade, em âmbito nacional.
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Silva Porto
16-10-1973

A minha cabeça, ainda de manhã, parece estourar. Pois, na verdade, que descanso foi, afinal de contas?! Era assim o ano findo? Não! Sendo embora o primeiro, em terras de Angola, com aulas na Técnica, ia tudo melhor. Não consigo repousar, que me preste e ajude!

Afigura-se um vulcão, em plena actividade ,esta pobre cabeça que me rege e governa! Quando vierem as férias!... Mas
estão muito longe!
Descontraído e feliz, poderei então sanar o espírito que ferve, sem detença.
Continuando assim,é difícil aguentar. Aulas em barda, exercícios frequentes e às centenas, livros novos também...
milhentas coisas a que tenho de ligar e que bastante me enervam!
Aborrecimentos, nas salas de aula, desinteresse, por parte dos alunos. Rosário longo, longo, de contas,assaz grandes e movediças!
Mas, enfim, levarei a cruz até ao calvário,se tiver alento e muita paciência
Haviam de ser dois anos, a lidar, activamente, para conseguir resultados razoáveis, que tranquilizassem! Acalmaria, decerto, postergando os cuidados que , ao presente, me torturam!

Desceria, então, ao peito dorido uma gota de bálsamo.
Ou estarei, por ventura, condenado a prosseguir, indefinidamente,
num alvoroço de alma que não deixa jamais tranquilidade nem permite descanso?!
Seis horas já, menos 25!
É tempo de lavar-me, chamando logo o Carlitos que dorme tranquílo, aqui mesmo ao lado.
Irei depois à Guida, no quarto imediato.Em seguida, vem logo o estudo, por 90 minutos.
É esta a rotina que eu julgo útil, no dia de amanhã, para todos os sobrinhos.
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Silva Porto
17-10-1973
Se bem me lembro, faz agora um mês, que as aulas começaram.O rendimento é escasso, que mal noto progresso, ficando-me a impressao de que os alunos pararam, sem o mínimo desejo de avançar um passo. Produz-me calafrios tal situação e,
por mais que imagine, impossível se torna ajuizar com acerto.

O excesso de trabalho que tive no passado também contribui, sem dúvida alguma, para tornar-me um pouco diferente.
O sistema nervoso alterou-se em extremo, o que não permite usar agora da paciência devida e criar ambiente que os alunos apreciem.
O pior de tudo é que as mazelas são crónicas, só desaparecendo, se a morte as escorraça.
Não suporto já qualquer graça ou ruído, por mais leve que seja.

Nem me lembro, às vezes, de que o tempo é outro e pertenço a uma fase que atingiu o limite. Foi chão que deu uvas. Agora, já nada produz, a não ser inconformismo, revolta, agitação!

Se me toleram ainda é, julgo eu, por terem necessidade.
Caso contrário já me tinham corrido! Serei eu mais cordial. humano e compreensivo, para a nossa juventude, perdoando os seus defeitos e a atendendo, além disso, a que o tempo é outro?

Devo ir ao seu encontro; ganhar-lhe a confiança; ajudá-la sempre na busca da ventura. sem contrariar os seus ideais.
Pelo simples facto de o tempo ser outro, não devo opor-me, de jeito radical.
Cumpre estudar os problemas vários da mocidade.
Mas, se eu casualmente estiver envelhecido, em corpo e alma?!

Será, na verdade, o que vai ocorrendo? Haverá inda um tónico a fazer-me reagir?! Ou estou condenado a total inacção?
A vida que se agita fala ainda forte, dentro de mim, quando ferem acaso o meu orgulho ou me pisam a vaidade!

Não sinto eu coragem para lançar no papel o que houve de mais chocante, no decurso da vida ou ainda o que foi belo e me confortou?. Tudo iisso registei, ao longo de 3o anos.
Merece confiança o meu diário fiel! Tudo guarda em segredo.
Só a mim obedece, cumprindo estritamente o qu eu lhe ordeno. Alguém verá um dia o seu conteúdo? Terá ele, de facto, as honras gratas da publicidade?

Dúvida séria me assalta agora. Por um lado, a sua revisão
demanda, por certo, enorme trabalho, habituado como estou ao
nosso Garrete,Eça e Torga.
A forma enfeiiça-me: torço por ela, desde a juventude.
Por outro lado, há passoas visadas ( nas suas acções ) que são
ainda vivas, não gostando eu de fazê-las sangrar ou levar tristeza a seus últimos dias.
Ainda outras razões podem levantar-se, a impedir o meu desejo: regras disciplinares, consagradas pelos séculos; sentimentalidade, já cristalizada, que o tempo sancionou; e o que falta aumentar.
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Silva Porto
19-10-1973
Ontem, houve festa: foi o aniversário de meu cunhado:
dobrou agora o cabo dos 52. São menos três e oito meses do que eu tenho já.
Como a vida se gasta! Como o tempo roda célere! Não que seja muito, podendo até afirmar-se que é, de facto, um jovem de certa idade! Então não há pessoas com 8o e mais ainda?!

Entretanto, uma nota de tristeza envolveu a festinha.
Doente como andava, pelas nevralgias que o não deixam comer,
apresentava, por isso, aspecto envelhecido. Sorria não de leve, mas notava-se claro que era forçado, causando em nós todos uma dor profunda
A mana Agusta e eu é que sentíamos fundo o desgosto ingente.
Recobrasse ele a estimável saúde, podíamos viver juntos , para
mútuo auxílio e total realização de nossas aspirações.
Será possível? Não digo que não. Apesar de tudo, vem-me certa dúvida, porque a gente, em regra, passa a vida a comer daquilo que não gosta.

Que prazer não seria, vendo graus académicos em alguns dos pequenos! Isto que digo, havendo capacidade e firmeza no
querer.
É por isso mesmo que me bato agora firme e decidido.
Já na Metrópole bastante me ralei com os outros sobrinhos, embora não lograsse o que tanto desejava. A culpa, no entanto, foi estranha ao meu querer.
Verei agora se, cá em África, os meus ideais vão de facto
àvante.
Para tanto, é fundamental a saúde da mana e a do cunhado Martins.
Deus ajude a todos, para O servirmos com grande fervor,
realizando nós, ao mesmo tempo, alguma coisa de belo e construtivo
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Silva Porto
20-10-1973
Mais um fim de semana que o Sábado nos traz. Para
mim não é tal, porque tenho 5 aulas, mas a culpa foi minha, que
aceitei os encargos. Amor ao trabalho é mais que certo, mas podia fazê-lo, em termos diferentes.

A Técnica chegava. Eram 23 aulas, ao longo da semana, tendo só duas,à Terça-feira. e três, à Quinta. Maravilhoso. assim!
Se, em vez de ter sete, à Terça-feira, fossem apenas as duas de Segunda,, podia ausentar-me para o Chitembo, com meia semana.

Era ideal! No entanto, há factores que bastante me impelem,
sendo importante ajudar o Seminário.
Pessoas aí há que deixam correr, mas eu não posso.
Que lhes faça bom proveito é o mais que eu desejo.
Cada um é como é!

Metido em princípios que estruturam a vida, sejam bons ou maus, o homem é fruto necessário da sua época e efeito forçoso de mãos alheias. Nada o pode afastar do caminho aberto. Obedece
qual autómato ao que lhe ensinaram, em anos distantes..

Tal como a cera, onde pode imprimir-se a marca desejada, assim o homem, quando moço ainda.

Apenas vejo alguma diferença: na dita cera, apaga-se tudo e
é substituída; no homem desditoso, fica indelével, ainda que não goste!. Somos fruto e efeito de quem nos precedeu.

Vá eu remar contra a maré!
Agora aguentar e cara alegre!
Se houver algo de bom como é natural e eu ainda creio, seja
isso, para logo, razão de apoio e motivo de alegria.

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Silva Porto???????????????????????
21-1o-1973
Hoje é Domingo.Apesar de tudo, não fui ao Chitembo.
Deveres prementes requerem a presença, como por exemplo: as notas do Internato e os Pontos da Técnica.
Isto continua algo embaraçoso, embora lucrativo.
Vale em tudo minha irmã, cuja solicitude não tem igual, quanto à nutrição.
Depois que vim, nem uma dor nem um receio, provenientes de iguarias, o que sucedia, bastante amiúde, quando na Metrópole.
Desta maneira, posso ir trabalhando.
Este ano calculo ganhar, se bem avalio, 180 contos. Gostaria de manter um ritmo igual, durante dois anos, após os quais reduziria a minha actividade em 50%.

: Entretanto, a felicidade, cá neste mundo, jamais é possível.
A mana Agusta vive desolada, por ver o consorte mirrar-se dia a dia , pois ela não quer, de maneira nenhuma, que ele se apague.
Passou apenas os 52.
Nem sei, a rigor, que género de mal tem ele na boca: deixa de comer,sente enormes dores e procura isolar-se.
Claro que, assim, não pode continuar!
Minha irmã tem , certamente, de ir para o Chitembo mas,sendo assim, desmorona-se já o nosso "edifício"
Ia tão bem!
São apenas 9 e 3o. Os miúdos estudaram 3 horas, com a minha presença.De tudo me privo, afim de os ajudar.

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Silva Porto
22-10-1973
Segunda-feira! Nova semana. Retomar da faina, com 8 aulas: 4 na Técnica e o resto no Internato.
Disse eu ontem à mana que é por ela somente que faço tudo
isto. É certo que não minto, pois se nunca o fiz, de vida minha!
Precisasse eu disso, jamais o faria. Repugna sobremodo e é contra os meus princípios.

Vejo nisso uma quebra de personalidade; uma traição à dignidade pessoal; volubilidade igual à do cata-vento, que muda constantemente.
Uma sociedade, apoiada na mentira, é campo vasto, onde lavra a destruição.Desmantelam-se breve todos os fundamentos
que geram a confiança e trazem a harmonia.

Efectivamente, se a mútua confiança não passasse de palavras, que seria logo da pobre Humanidade!

Desconfiar a toda a hora...esperar, por norma, a cada momento, uma nova triste ou ainda depararem-se atitudes dúbias, inconfessadas ou mesmo fatais, naquelas pessoas que tínhamos por sérias. Que grande tragédia!

Aquele que mente perde logo o crédito.Destroçada a confiança, que nele depositavam, faz-se elemento inútil, na
esfera social.
Por isso, realmente, é que nunca menti, a não ser por brincadeira ou como alibi em pequenas coisas, sem nenhuma importância.

A restrição mental uso-a, de vez em quando, por ser necessária. Trata-se de uma resposta com dois sentidos.
O parceiro que entenda! Se opta pelo falso, a culpa é dele!
Por outro lado. são coisas em que vai, muitas vezes, a honra e a vida e os próprios bens.

Exemplo: Santo Atanásio andava fugido à ira feroz do Imperador.
Alguém lhe pergunta: Viu o Bispo Atanásio, que fugiu da cidade?
Responde ele prestesmente:, sem hesitar: - Vi-o, na verdade.
Não deve estar muito longe!
Os perseguidores apressam-logo, na mira de o encontrar.
Mentiu o Santo? Não! Foi sua a culpa de o não entenderem.

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Silva Porto
23-10-1973
Ter alguém um filho é desejo natural que o peito alimenta. Lembra-me, a propósito, o Franco da rabeca, ao pronunciar jubilossamente as palavras sentidas: - Agora, realmente, já sei para quem trabalho. Não é filho do casal, mas é meu... muito meu.
O que isto significava, em lábios de poeta! Realização de
belo sonho, gerado ( quem sabe? ) muitos anos atrás.
Apesar de tudo, ignoro realmente, o que seria melhor: ter filho ou não ter?!

Efectivamente. pela influência nefasta que hoje o meio vai exercendo, predomina o exterior, demolindo em pouco tempo o
que anos construíram , com amor e carinho.
Também eu já fui louco por ideal semelhante: os meus Diários são disso a prova.

Hoje, uso reticências.Gostaria igualmente, sendo um filho amigo ou melhor ainda, uma filha dedicada. Suponho que, apesar de tudo, ainda as há.
Entretanto, creio que são raras.
O jornal e a revista, o teatro e o cinema, a televisão e o impudor
estragam em breve o que leva anos a edificar.
Que desolação para os tristes pais !

É afronta e desdém, pois lá no fundo, há viragem total, sombrio afastamento. "Velharia", dizem agora os mafarricos.
" As ideias dos velhos já estão ultrapassadas! Hoje, a vida é outra!
Havemos de vivê-la, já sem peias nem entraves de qualquer natureza!"
Palavras satânicas de efeito mágico! Actuam logo como punhais!
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Silva Porto
24-10-1973
Duas fortes arrelias foi o rol de 23!
Uma delas ocorreu na Técnica; outra, no Internato.Agora, julgo eu, em boa verdade, que nenhuma delas havia de ter surgido ou
talvez melhor. que a nenhuma dei motivo.

Falta de domínio? Idade e sobrecarga? Falta de compreensão? De tudo um pouco, mas antes de mais, vou agora recordar como os factos se deram.
A da Escola Técnica houve como centro o 3º Industrial. A
turma é formada em globo por 31 alunos que pertencem, afinal, a

4 secções: a de Mecânica, Electricidade, Agricultura e Formação
Feminina. Ficou, pois, heterogénea e é muito apática.
Dá-me a impressão de que tanto sabem hoje como saberão
daqui a um mês.Claro! Isto vem bulir-me com os nervos
excitáveis.
O facto de não saberem é já enervante, agravando-se o
problema com a falta de vontade e o espírito forte de
insubordinação. Deu-se, na verdade o que era de prever: forte
explosão da minha parte..

Ouviram então o que não queriam: protestos e gritos, alguns
impropérios, depreciação e muitas censuras.
Qual seria o meu lucro? Pelo menos, uma carga de nervos e
depauperamento! É dentre tudo o que mais me prejudica, em
matéria de saúde.
No Internato, foi a turma B de Português I.
Esta aula é ministrada, em geral, no salão de estudo

Faltando a luz,, às 10 e pouco, logo o ruído começou a
avolumar-se, mantendo-me calado e sem reaccão, durante algum
tempo. Suportei, à data, quanto era possível,dominando-me em
extremo, até que, por fim, veio a tempestade. Parecia Júpiter, em
noite de trovoada!
Fez-se, depois, um silêncio de morte. Nem um ruído, por
mínimo que fosse, ouvi então! Distinguia-se nítida a respiração de
todos os presentes!
Chamei-os selvagens, cobardes e hipócritas.
O fim do mundo, na selva africana!
Devia recorrer ao Superior da Casa,mas...

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Silva Porto
25-10-1973
Entregando os Pontos, na Secretaria, foi-me respondido que jã não era ali Procurasse, portanto, o Mestre de Grafias, pois estava encarregado. Aparece então ele, mas qual o meu espanto,
ao vê-lo aproximar-se, para ver os rascunhos! Dizia em
simultâneo: - Quero ver primeiro se entendo a letra.

Nisto faz carantonha, desajeitada e harto lamentosa,
causando-me arrepios, dos pés à cabeça.
Inglês! diz ele, aterrado e já vencido, isso não! Línguas
estrangeiras?! Isso não é comigo! Em Português pode ser tudo.
Nessas Línguas!...
Bem! Tartamudeei, sem tomar resolução.
Interiormente, pensei na maquineta, mas estava no Chitembo! Foi
mesmo azar! Se a tenho conservado aqui em Silva Porto, como
era costume!
Isto decerto é coisa do mafarrico e, se o não é, ao menos
parece.
Dali, então, vai o caso ao Director, que também encolhe os
ombros. Esclarece apenas que se esquecera das Línguas, sendo
necessário fazer cada um o trabalho em causa.
- Sabe, por ventura, escrever à máquina?, inquiriu solícito.
No teclado nacional e de vagarinho.
Pois bem! Vai-se arranjar!

Espero confiado, mas encontrá-lo?!
Ainda tentei, em máquina diferente, mas não fui capaz! Dava que
rir! Nada feito. Cá para mim,encomendava ao diabo esses
teclados internacionais.
Quem me valeu foi a chefe prestimosa da Secretaria que
resolveu o magno problema.
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Ssilva Porto
26-10-1973
Florbela Espanca.
Antes do sono, relanceei o olhar pelos sonetos. Que horror sem
nome e que excelsa maravilha!
Estarrecido e deslumbrado, ao mesmo tempo!
A par da fluência e da sinceridade, um oceano tempestuoso
e um lago de águas turvas!

Como é possível, em tão verdes anos, encarar assim a vida?!
Quando tudo é sonho... imenso lago azul e tão sereno, ... noite
maravilhosa de fulgurante luar, e céu primoroso, recamado de
estrelas, sobrevém deste modo horrenda tempestade... amarga
decepção, noite de breu que gera o desespero?!

Como entender, se ela tinha apenas 23 anos?! E não houve
ninguém que a livrasse do abismo?! Uma alma bondosa ,
surgindo, por encanto, jovem e bela, ardente e humana!

Alma gémea da sua, alguém como amigo que se econtra na
via e logo oferece a mão... uma luz fulgurante que ilumina e
aquece... Uma inspiração que demove e obriga!

Mas não! Aquela noite de breu, o desespero e
inconformismo, o exigir da vida o que ela não tem, para oferecer,
continuaram forçosos a obra destruidora

Tenho pena desta jovem. marcada pelo génio e também pela
desgraça. Quem dera ser capaz de oferecer-lhe apoio e livrá-la da
morte! Que pena me vai de extinguir-se uma luz,assim tão
brilhante! Deus a tenha recebido nas eternas moradas, onde
acharia decerto o que os homens lhe negaram.

Falta de mãe extremosa que lhe apontasse meiga o rumo
das estrelas! Falta de lar , acolhedor e amigo, que lhe embalasse,
cantando, a vida nascente?
Crueldade talvez levada a efeito por quem ela não julgava?
Desconheço inteiramente a causa real do seu ifortúnio!

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Silva Porto
27-10-1973
As cartas rareiam, cada vez mais, dando visos claros de enorme secura e desinteresse.

Começou isto pelo amigo X. Ele que é tão espontâneo,
fluente e judicioso... que eu tinha no rol dos amigos verdadeiros
e de quem o sou ainda, enviou uma carta, já retardada, estéril e
chocha! Desapontamento e funda mágoa!

Só eu, por minha parte, me interesso a valer por tudo aquilo
que me diz respeito?!
Serei eu, neste mundo, um ser diferente de todos os outros?!
Impossível confirmá-lo!
Seria, talvez, por nada apurar, a caminho de África?! Mas,
se o não fiz, foi por não poder ou faltar ambiente! Valha-me
Deus!
Ocorrerá o mesmo com outros amigos que julgava
sinceros?! Bem parece que sim! Agora me lembro eu de alguém
sempre querido e muito prezado. Fez-se à distância e nem uma
palavra, ao menos por carta,dizendo adeus!

Passado algum tempo, veio descansar e não me procurou!
Nem sequer mandou recado! Mais tarde já, regressando então em
definitivo, a mesma coisa!
Houve eu de procurá-lo, ignorando o paradeiro, quando ele
sabia o meu! Isto panaliza-me! É a vida? Porquê fazê-la assim?!

À data, é meu irmão que enfileira também no longo cortejo,
pois não escreve, há já 4 meses!
Finalizando agora, aparece uma carta!

Vinha ele sempre com ditos chistosos, gracejos diversos,
criando ambiente! Desta feita, porém, é uma carta diferente! Só a
queixar-se de várias desditas! E assim será, infelizmente!
Coitado!Inspira compaixão! Gostaria de ajudá-lo!

Não sei que é isto! Choro as minhas penas - ser o que náo
sou - e tenho de associar-me às mágoas dos outros! Negra sorte!
Nem aqui longe terei repouso, tão isolado?! Só já no túmulo
poderei esquecer, aliviando então penas e dores e mágoas sem
fim?!
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Chitembo
28-10-1973
Desta feita, escrevo calmamente, no nsilêncio
repousante da pequena vila! Após uma semana de grandes
canseiras, em que dei ao todo 45 aulas, ( o número vai
crescendo!) sinto-me aqui bem, desejando não voltar ao
bulício da cidade.
A mudança de ambiente, a diferença enorme de ocupações,
e a paz dourada que tranquiliza o espírito e embala o coração
não tenho palavras que lhe expressem o valor nem há dinheiro
que lhes pague a valia.
Dormi bem esta noite. não obstante o vento e a sonora
trovoada: foi na verdade um repouso longo, reconfortante e assaz
prestimoso..
O peso molesto que ontem me vergava fugiu para longe e
passo melhor.
Lembrava-me bastante o professor de Genebra, ao referir-se ,
nos seus Diários, à dor de cabeça, precisamente na zona em que
ela me atinge. Sintoma de cansaço, apoquentou-me em extremo,
no dito lugar, sob o occipital.

Velhice já não creio que seja , pois os meus 55 apresentam
laivos de alguma juventude. Pelo menos o espírito é moço e
jovem: nutro esperanças, elaboro planos...

Quando isto acabar, então...
O estadista alemão, de nome Adenauer, tendo já 90 anos, era
ainda jovem: outros, porém, são velhos aos 20.
Morrendo os ideais e nutrindo-se o homem de fel e
margura, temos um morto que parece vivo.

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Chitembo
29-10-1973
Para distracção, fiz hoje acompanhar-me dum romance
curioso de Ferreira de Castro.

Acabo de ler os primeiros capítulos. Os Emigrantes é o
título da obra, que desperta no leitor elevado interesse, por versar
uma questão profundamente humana: a luta ingente por um futuro
melhor.
Quem não sente no peito este anseio gritante, que provoca
breve resoluçóes desumanas e tão violentas?
Abandonar, talvez, a casa amiga ; deixar para trás os entes
queridos; voltar as costas a tudo, sabe Deus até quando!

É isto próprio de quem sente aspirações e não se conforma,
de modo nenhum, com a mediania em que viu a luz.
Almas sedentas pensam e defendem que o direito à vida é igual
para todos Quantos, porém, sossobram prestes, na luta ingente
morrendo obscuros, na liça hostil a que desceram?!

Querendo voar alto, em esferas de seu gosto e tendo pela
frente os grandes do mundo que lhes tolhem o passo e os querem
somente para serventes, desanimam uns e tombam os outros, para
jamais poderem levantar-se!
Como eu tenho pena destes seres infelizes... imensa
compaixão ... entranhado afecto!

Gostaria também de fazer algo por eles, colocando jubiloso ,
nos Lares de caridade, algumas achas pesadas,com chama
escaldante!
Abater denodado, montes enormes de egoísmo e avareza...
romper muralhas de orgulho e inveja... derribar montanhas de
exploração e sórdida rapina!
Quem dera fazê-lo em voz tonitroante, contribuindo assim
para o bem dos humildes e humilhados!

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Silva Porto
30-10-1973

Foi o caso há anos, em casa de X. Mulher casada e mãe de
filhos estava descansando, no lar amigo. Ninguém mais no
interior. Marido e filhos realizavam no campo as fainas
diárias
Parece normal que uma pessoa em casa deva estar segura e
deveras tranquíla, mas não foi assim.

Aparece-lhe o terror, na figura do rapaz, cujo instinto
ferino é há muito conhecido. Até já espancara os seus
progenitores Pelo menos constava e falava-se do caso, à boca
cheia.
Não obstante serem eles primos, começa de malhar na pobre
mulher, aplicando, sem prelúdio, uma sova mestra, diabólica, tre -
menda
Bem grita por socorro! Entretanto, quem ousa aproximar-se,
ao ter conhecimento das pessas em causa?!
Ele é temido e as suas ameaças fazem intinidar, gerando
logo imobilidade.
Que grande sarilho! Há homens, neste mundo que são, na
verdade, autênticos diabos! Já não falo dos maus tratos, infligidos
à esposa, que passa o tempo a lamentar-se, perguntando amiúde
por que é que a morte a não leva a ela!
Por que razão,???* afinal, espancaria o primo a mulher
em questão?!
Por um motivo banal que náo era ,realmente, de tomar em
conta!A bem dizer, não estava culpada! A filha mais nova fora-se
ao presunto da sogra dele que é tia da pequena. Certamente levada
pela confiança, visto serem família.
Apanhada em flagrante divulgou-se mais tarde a triste
ocorrência Esta razão levou o sujeito a espancar a mãe.
Acudiu a vizinha,mas criou para logo horrível situação, por
causa do tribunal,
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Silva Porto
31-10-1973
Sempre o mesmi e sempre igual! Monotonia perpétua,
enjoo da vida!Não apresenta o mesmo, feito de igual modo?!
Levantar às 5 horas, tendo eu velado, já quase duas? Certo é
que, deitando-me às 22, acordo forçosanente às 3 da manhã.

Dali em diante, moer o espírito e ocupá-lo em ninharias,
para dar-lhe pasto e assim o enterter!
Chegadas as 5 ou ainda um pouco antes, a claridade que traz
a manhã e os múltiplos afazeres convidam em breve a entrar na
liça. Um casaco pelas costas e eis-me ocupado nos primeiros
cuidados: fazer logo a barba, escrevendo em seguida o meu pobre
Diário.
Sobre a mesinha de cabeceira, aguarda paciente a hora
propícia.
Neste momento, são 5 e 25,razão pela qual já está recebendo
a confissão franca de tudo o que faço.
Após haver escrito, vou então lavar-me , do que peço desculpa ao
meu Diário; devia fazê-lo, antes de pegar-lhe!

Finalizados, pois, os cuidados higiénicos , retomo para logo
as funções habituais: pôr sempre em ordem as cadernetas,
consultando o horário que tenho à mão; dispor livros e cadernos
que hei-de levar; tomar ainda algumas notas.

Em certos dias, verificar também uma palavra ou outra, por
causa da pronúncia e averbar o resultado no livro de consulta.
Por outro lado, há sempre dúvidas que urge dissipar o mais breve
possível..
Um relance de olhos aos textos de Inglês ´é ponto assente,
embora na verdade já os tenha preparado, por forma global, no
princíoio do ano.

Também impende sobre os meus ombros o alertar dos
sobrinhos.para o estudo matinal, que vai das 6 até ás 7,30.
Assim decorrem estes meus dias, em terra africana.

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Silva Porto??????????????????
1-11-1973
Mês de lembranças, gratas ou amargas, que deixam na
alma o travor agri-doce da formosa saudade.
Precisamente em dia como hoje realizava.se, em Pinhel, a feira
dos Santos.
Por duas razões esta data me alvoroça, reacendendo no peito
evocações de agonia que são também de agradável sentir.
Feira anual. em que meu pai magicava sempre, com larga
antecedência, prevendo até e acautelando, com vista imediata a
comprar ou vender.
Da minha aldeia à velha cidade, fazia meu pai 6 boas léguas.
Era, porém, julgo eu, um pouco mais longe.Apesar dos atalhos,
pois fazia a pé o longo percurso, fica ainda, por certo,
considerável distância.

Saindo de Vide, fazia logo caras a Aldeia da Serra,
entestando em seguida com a Lajeosa. Vem então a subida, rumo
ao Sobra,l para nos surgir a Souropires. A pouca distância ,
avista-se Pinhel.
Evidentemente, coisas do género guardam~se intactas no
peito das crianças! Que grande alvoroço no meu coração,
enquanto aguardava o regresso paterno! O que ele traria!

Gado excelente por muitos cobiçado; novidades curiosas e
guloseimas várias Mais que tudo para mim era um brinquedo que
deslumbrasse os meus olhos sedentos!...
E tudo morreu, deixando no meu peito a marca da
saudade, em extremo avivada, com o tempo a rodar!

Mês de Novembro, mês das Alminhas! Entre elas
todas,avulta uma, que partiu em 12. Já lá vão 9 anos! Parecem,
às vezes, como eternidades!
Cá me deixou, neste mundo ingrato, aquela mãe santa que
tanto amei e de quem fui amado! A sempre querida e extremosa
mãe!
Estás longe de mim ou bem pertinho? Ouves a minha voz?
Escutas o meu lamento?
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Silva Porto
2.-11-1973
Ontem,lembrámos todos a família santa - os bem-aventurados da Ci«orte Celeste; hoje, outro ramo da mesma
família - as almas do Purgatório.
Tudo pertence à família de Deus, pois as três igrejas -
militante e purgante e a triunfante - são os três ramos dum só e
mesmo tronco - Jesus Cristo,

Uma dentre elas está sujeita a perigos - aquela a que eu
pertenço. Em boa verdade, não faltam ciladas, tentações e
percalços e até embustes. Confiada, porém, na clemência do
Senhor e também no auxílio, deveras prestimoso dos que já
partiram, avanço tranquíla pelos caminhos da vida., com a
esperança fagueira que doura a existência e a torna
suportável.
Hoje, é o dia dos mortos, Encontram-se as almas,assim o
cremos. nas chamas ardentes, expiando na dor o que está
manchado, para depois entrarem no Céu.

Embora sofram bastante, é a dor atenuada, pois têm a
certeza de passar, finalmente, às moradas eternas. São, por isso,
ditosas, para todo o sempre e objecto de ternura por parte do
Senhor.
É nossa obrigação aliviar o seu tormento, por meio de
orações, asmolas e sacrifícios, até porque elas um dia, saberão
interceder pelos seus benfeitores. Por outro lado, fazendo assim,
é prova de gratidão para quem nos amou, durante a vida terrena.

Pelo que me toca, assim tenho feito: rezar e sofrer pelas
almas do Purgatório, de modo especial, pelas dos meus, as mais
abandonadas e aquela mais próxima de entrar no Céu.
Que essas almas benditas sejam, de facto, minhas
protectoras, na celeste morada.

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Silva Porto
3-11-1973
Seis menos 1o! Estou a braços com o meu Diário. Este
convívio lançou raízes fundas e não sei que haverá, capaz de
impedi-lo.

Bem dizem as gentes: o hábito adquirido é segunda
natureza.
Forte e minaz, dominador e prepotente, manobra, à-vontade, os
pobres mortais. E como é hábil, astuto e manhoso em arrastar a
pobre criatura!
Docilidade encontra sempre. O que estou fazendo é prova
sobeja daquilo que afirmo. Sinto-me bem a desabafar!

É isso na verdade, perfume inebriante que se entorna em
meu peito e o dispõea para a luta.
Algo maravilhoso que na vida encontrei, para desafogar de
mágoas e dores, Quem seria tão discreto, ouvindo confissões?!

Onde paciência que bastasse para tanto?!
Tudo encontrei, no meu Diário querido: circunspecção,
amabilidade , aviso pronto, discrição extrema e afabikidade

Jamais retraído, nunca aparenta má disposição!
Boas maneiras, sorriso atraente, cortesia sem par!!
Que direi eu mais?!

Amoroso Diário, tão fiel companheiro: jamais te deixarei,
Apenas a morte vai separar-nos! Só ela, de facto é capaz de
imobilizar a mão afagante que te acarinha!
Serei fiel ao compromisso e, como tu, sempre leal e bom
amigo!
Se nada houve entre nós,a embaciar o brilho das nossas
relaçóes, também o tempo futuro respeitará´, decerto, o que
trouxe o passado.
Caminharemos juntos, até a luz se apagar. Depois
sorrir-te-ei bondoso, dos Umbrais da Eternidade, enquanto vais
prosseguindo no mister confiado: espalhar na Terra a mensagem
de luz, amor e justiça que guardas contigo

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Silva Porto
4-11-1973

Hoje, é Domingo, mas nem por isso o trabalho diminui.
Ouvir por hábito a mana chorar-se, por não estar no Chitembo,
em fim de emana; dirigir o estudo aos meus sobrinhos;
preparar lições em livros novos; corrigir ainda montões de
Pontos!
Já nem me refiro a leituras estranhas e proveitosas.
A gora, tenho ante mim 40 Provas do 2º de Comércio; ontem
eram 38 do 5º de Inglês, dado no Internato.Há sempre que sobeje,
embora se trate do fim da semana.

Este ramerrame não terminará com a própria morte.
É sempre grato afanar-se alguém , ajudando prestes quem está
carentemas é faina tão pesada, que toma a vida inteira! Dias há,
,por vezes, que não deixam um momento!

Lufa-lufa apressa aqui... foge dali... Como é de fugida, não
posso descansar. As minhas noites decorrem agitadas, revolvedo
na mente o que hei-de fazer,às 5 menos 15. Desta maneira, o
próprio sono é já tocado, sucedendo não raro que lamento a
existência, por incómodos e dores que me vão tortorando.

São as minhas costas e, em geral, a própria cabeça. Sei eu
muito bem, por minha experiência que, se não aperto demasiado,
tudo vai correr mal. Fui sempre exagerado, metendo na cabeça
que tempo é ouro e não deve perder-se.
Tal afirmação tem seu fundamento, mas eu,afinal, apliquei-o
à letra. Ora, é verdade que eu não sou máquina, para me
aplicarem determinados conceitos. Deficiência minha ou daquele
ensino que me foi ministrado?

Inclino-me já para este lado, uma vez que, na adolescência, não
há personalidade e é-se tronco bruto, nas mãos do escultor que
imprime o seu cunho.
Este fica marcado por tempo sem fim.

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Silva Porto
5-11-1973
Sempre o mesmo e sempre igual!... Sinto agora bem
mais a fundo, a monotonia da minha existência!
Quem me dera em férias! O cansaço aumenta, debilitando assim
as fontes da vida.
Noto claramente que vou em declínio. Aulas em barda
aguento ainda,mas Pontos e Testes, cortando o fim de semana!..
É chão que deu uvas!
Começa, desde hoje, nova arrancada, pois é segunda-feira.
Após o Diário, vou já iniciar a terefa habitual

Durante o estudo, o Carlos e a Guida entregam-se a fundo às
lidas escolares. Nessa altura, corrijo eu Pontos, lançando a nota
nas cadernetas; apronto lições; resolvo problemas; esclareço
dúvidas. É infindo o cortejo que não cheda ao termo!

Os ponteiros do relógio marcam 6 e 3o. Agora, acordar o
Carlos e logo a irmã que dormem, bem entendido, a sono solto,
descansado, proveitoso.
Dói-me assaz fundo cortar o repouso mas ,de outro modo,
ficam no caminho.
Aceitarão a chefia de má vontade? Aquilo que eu faço é para
bem deles. Actuo, realmente, desinteressado e, se algo intento, é o
seu bem-estar. Para mim é bastante o seu afecto e dedicação.

Terão eles o regime como indesejável? Um dia mais tarde,
pensarão de outro modo. Sem esforço e trabalho, disciplina firme
e tenacidade, que podemos esperar?! Gastos improfícuos e vida
falhada.
Continuaremos,pois, lutando sempre, havendo em mira o
bem da família e sua promoção.

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Silva Porto
6-11- 1973
O grande problema que a fundo me atormenta é o 5º
do Internato. Sobre o atraso, deveras lamentável, em que se
encontram os nossos estudantes, tenho a defrontar uma turma de
4o, acrescendo a isto a circunstância agravante de 12 externos.
Contrabando escusado, faltam as vezes que lhes apetece e
vão, a qualquer hora para onde querem.

Bem os tenho apoquentado, com muitas revisões e
exercícios mas, no fim de contas, sabe-se de antemão
quem sofre as consequªencias! É assim a vida. E para o ano?!

Aceitarei aulas, fora da Técnica? Temível ponto de
interrogação! Na verdade, sinto-me exausto, porque é trabalho
excessivo. Por isso, é caso de pensar três vezes ou mais!

Até me comvemço de que o ano imediato srá pior ainda.
A professora suíça do 3º e 4º, sendo estrangeira, que não sabe
Português nem tem maneira de vir a aprendê-lo, não pode, claro
está, preparar para exame

Se dominasse o Inglès,! Entretanto, nem uma coisa nem
outra! É um absurdo! Que vai ocorrer, já desde agora?
Sem anos de exame, as coisas piorarão, sensivelmente. O
caminho a seguir está indicado!: largar!
Gosto de ajudar as obras da Igreja mas, nestas condições,
não me apraz trabalhar. Quem dá o 4º deve prosseguir.
Há outras coisas ainda a que não me adapto e que, realmente
podiam modificar-se, chegando a acordo.

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Silva Porto
7-11-1973
Fazer do meu Diário choradeira habitual, já é tempo de
acabar!
Mas, então, como vou proceder?Não deve ser ele a
expressão da verdade, reflectindo exactamente o mal o bem,
a felicidade e a mesma desgraça?!

Tenho para mim que, à maneira de espelho, há-de ele
acusar tudo quanto lhe aparece, quer seja agradável quer o não
seja.
Que me vai a mim,se outrem não gostar?! Importa-me
pouco e, para bem dizer, nada ligo a isso! Continuarei, pois, a ser-
lhe fiel, usando de lealdade, confiando-lhe o que sinto e me
peneliza..
É pura verdade que abunda o pessimismo e choro amiúde
o ressentimento. Mas que havia de esperar-se de alguém
frustrado, a não ser aquilo que levo escrito, já de longa data?!
Milagre seria que uma árvore destas, enxertada e nutrida com
substância estranha, produzisse outros frutos?!.

Objecto de cuidados e bem assim de interferências, que
tinham em mira despersonalizar-me; sujeito a repressão,
automatismo e até violências que fundo oprimiam e tiravam o
querer, envolvendo-me habilmente num mundo artificial, que
outro desfecho poderia haver?!

Que se havia de esperar?!
Até o processo de ensino conduzia a tal fim: decorar, decorar, sem
compreenfer! Matar o raciocínio e o ver pessoal.Lavagem ao
cérebro?
Foi uma injustiça o treino falhado, para uma vida, em
mundo irreal.
Não pude escolher: tudo foi imposto!
Apenas aceitei, curvando-me submisso a uma vontade que não
era a minha
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Silva Porto
8-11-1973
Ela é avó e, por via de regra, não fala de outra coisa!
Ouvindo-a expandir-se, raramente se afasta do tópico diário.
Netinho para aqui, netinho para além, é já obsessão. Veio há
pouco, de Novo Redondo, se a memória não falha.
Professora de Inglês, satisfaz agora o 1º ano, que andava
desolado.
Até que enfim o quadro docente está completo! Já não era
sem tempo! No Estado se Angola, há sérias dificuldades em
arranjar professores!
O Liceu, então, muitíssimo pior!! O 5º de Matemática sem
professor!.... Quanto ao de Inglês terá vindo agora.

Voltando ao mesmo, a colega referida é original..
Baixa e loura, de tipo algo fino, olhar vivo e penetrante,
chama as atenções. Dir-se-ia uma gaiata de 21 anos!.
Maneiras livres, desempoeirada e harto afável, tona-se em breve
centro de interesse e alvo constanta de curiosidade

Fala, fala, pergunta e responde, interessando-lhe apenas que
ouçam atentos. Nada mais ambiciona! Isto lhe basta: um cigarro
aceso, fumegante e volumoso; perna cruzada; bom arejamento e
assistência de nata que a ouça interessada, quando apresenta suas
motivações
Bem apanhada esta avozinha moderna, com ares presu
midos de garota séria!
Ao deslocar-se, fá-lo em geral com distinção e certa leveza de
movimentos, requintado gosto e fina elegância.
De sua família nao conheço ninguém.
Aspira ansiosa ao fim de semana, como ao cigarro que não larga
nunca,
«Aih! Quem me dera chegar a Nova Lisboa, à hora exacta
de o petiz acordar!» "É um belo amor aquele menino!
Enquanto fala, enternece-se às vezes.e, não raro, até rejubila.

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Silva Porto
9-11-1973
Desta feita, houve assunto indesejável e muito de
lamentar. Foi aqui perto, onde é já costume aparecerem casos de
igual natureza.
Na rua Gil Ferreira junto à de Silva Porto, não longe do
cruzamento, aconteceu, infelizmente o que não devia ser, pois é
grave atentado aos direitos sagrados da pessoa humana.

O facto de ser mulher contribui também para agravamento
da situação. É nova ainda e, por necessidade, frequenta agora
um Curso nocturno. Ora, pelas 22 horas, regressava a casa, para ir
adiantando e pôr brevemente as coisas em ordem.

O jovem marido ficara mais um pouco, no Pavilhão da
cidade., para assistir ao futebol Até aqui tudo ia bem,

Entretanto, o diabo tece-as por ele ou por outrem.
A jovem mãe abeirava-se de casa, um tanto apressada, quando
inesperadamente sem ter ouvido o mínimo barulho, sente aperto
na garganta e braços possantes a envolvê-la, mas sem pieade.

Um mulato selvagem e luxurioso ia dar largas a seus
instintos. Dali, é transportada em seguida para o exterior,
enchendo-lhe a boca de terra e lixo.

Os movimentos peados e a garganta impedida não pôde
clamar, implorando socorro.
Perde os sentidos, após luta inglória, violenta e brutal , ficando à
mercê dos instintos lúbricos.

Após o triste caso, a esposa infeliz arroja-se a custo em
direcção a casa, mais morta que viva.. A filhita, ainda
adolescente, chora inconsolável; o marido fica desolado. .
Interrogada, não pode falar.
Monologa e geme. A afronta e o cansaço não lhe permitem logo
qualquer desabafo.
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Silva Porto
10-11-1973
Agora, diligêmcias porfiadas, afim de encontrar o
sinistro mulato. Comunica-se à Polícia, narrando a toda a gente o
caso infamado. Uma mulher raptada, no silêncio da noite! Sem
poder gritar...espancada brutalmente e, por fim, atingida na
honra!
Erguem-se protestos, violentos , ruidosos, clamando
vimgança; esboçam-se gestos de breve retaliação.

Os brancos reagem, prometendo ali exercer represálias.
Proferem injúrias e pedem a cabeça do mulato selvagem. Há
gritos de furor: «Mata-se a besta! Esfola-se o bandido! Apareça
ele, para o desancarmos!»
Alguns havia, dando murros tremendos no primeiro objecto,
que se deparasse.
Todos vêem na infeliz uma vítima inocente de instintos
sádicos., apresentando-se o facto como sendo contra eles.Filhas
e esposas são mais acarinhadas, recebendo protecção contra o
mpudor.
Levantam-se punhos, em ar de ameaça; vociferam e clamam
pronta vingança, O mar tempestuoso, encapelado e bravio atinge
o sumo.
A Polícia diligente já se encontra em campo. É um tipo
mulato, de camisola rosa... um valentão que terá fugido! Ela, se o
vir, reconhece-o logo. Mas onde estará, a estas santas horas?
Longe, decerto! Há-de temer a justiça popular!

Em tais circunstâncias, ficará impune o crime revoltante,
estimulando o apetite para factos semelhantes.

Há grupos variados, aqui e além,comentando azedamente
o caso lastimoso. Querem ver o impudico, vazar-lhe os olhos.
moer-lhe os braços, cuspir-lhe o rosto e ultrajá-lo.
Perigoso este mar, em que o réu se desloca! De águas
revoltas, quem se atreve a sulcá-lo?!

******AQUI
Chitembo
11-11-1973
«Ele que diga se minto!»
Ignorava de todo o escritor, António Botto. Melhor diria:
familiar só o nome e breve referência.
Entretanto, há dias, vi um livro seu na Biblioteca: Ele que
diga se minto.
Decidi pronto levá-lo comigo. Sempre amei a leitura. Noutros
tempos, fazia-o decerto com maior entusiasmo e em grau mais
alto.
Hoje, ainda aprecio, quando me traz a realidade, viva e
palpitante.
Este livro é dos tais: quadros bem vivos, apaixonantes e breves
em extremo,que mais deixam, julgo eu, adivnhar que apresentam
as coisas
Realidade pura e vista ao pé, com olhar de lince. Memórias
lhe chama o aludido autor.

Digo sinceramente que o livro me cativou, razão pela qual o
devorei sem piedade! Gostaria,sim , de o ler pausado, mas a
verdade é que não posso adiar!

Sofreguidão, ânsia, alvoroço, espanto,âs vezes! É assim a
vida, nos dias que passam.Seria também assim, em tempos
decorridos? Mas estes quadros, breves e mimosos, a pinceladas
marcantes e assaz objectivas são algo de magistral, formoso e
perfeito que não pode esquecer.

Cenas vivas e breves,em que passa a vida, já débil e frouxa
ou o rio inclinado,em que o batel hesitante vai aos solavancos.
após alguns momentos de suave ilusão

A vida é isto: decepção e amargura. Se não fosse,realmente,
o destino eterno, concedido por Deus ao ser racional, seria o
homem, por certo, o mais infeliz de todos os seres!
Após este mundo, há outro mais belo, pelo qual vou lutando
com toda a firmeza.
******
Silva Porto
12-11-1973
Uma dor, uma saudade! Um gemido, uma súplica!
Ternura, ansiedade! Luto, aleluia! Evocações a montes
abarrotam o meu peito, nes e dia amargurado!
Faz agora 9 anos. Ela partiu, em dia como hoje 12 de
Novembro, para mais não voltar!

Lembro com amargura, quer dizer,em agonia, essa hora
negra, sinistra e lutuosa, em que eu fiquei só, incompreendido e
assaz perturbado Ficara na vida aquela prancha sólida, a que um
dia me agarrasse, em caso de naufrágio.

Partiu ela primeiro e eu assim fiquei, desolado e caído, ante
a luta da existência e a tremenda logração que nos traz a morte.
Lutámos os dois em espírito igual, ficando vencidos pela
trsgédia que havia de pôr remate à vida terrena.

Sofremos ambos, antecipadamente, as agonias da morte e o
travor amargo da separação. Aconteceu deste modo. afim de que,
em vez de um passamento , fossem realmente dois, apunhalando.

Dias de luta, porfiada, incessante aqueles que precederam
esse dia fatal!Corações generosos, em que o amor, deveras
acendrado, se alimenta, dia a dia , quando não hora a hora, com
o pão da ternura e o leite do afecto.

Prelibámos em angústia o momento que viria, quando o
nosso coração estalasse de dor.
A mãe e o filho, prevendo o futuro, choravam amargurados
o porvir de agonia.

Vinha a fé consolar-nos e, juntamente, a esperança do Céu,
em que um dia nos veríamos, para sempre reunidos . E essa
esperança aviventou-se mais, derramando em nosso peito suaves
gotas de bálsamo.
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Silva Porto
13-11-1973
Decorreram 9 anos e parecem 90! Aquela que tanto
amei, com amor inexaurível, apartou-se de mim, para jamais
vê-la, cá neste mundo!.Levaram-na a enterrar, por uma terde
outonal que foi maravilosa.
Na vila de Manteigas, coração resistente da serra mais alta
de Portugal, iria jazer, até chegar o dia final.

Novembro é frio, desengraçado, ás vezes, não permitindo
saída alguma nem sequer passeios que sejam a pé. Aquela tarde,
porém, foi talhada no Céu. Bem o merecia a extinta criatura cuja
vida terrena fora, na verdade, perene oblação, em louvor do seu
Deus
Acompanhei-a também ao cemitério local, derradeira
morada, cá neste mundo. Coragem não faltou.Como havia de ser
isso?! Última homenagem, preito derradeiro à mãe adorada que
tanto me queria!
Recordo ainda, como se fora hoje, o cortejo brilhante que foi
acompanhá-la! Terra , Céu e Natureza associaram-se todos,com
vista a honrá-la. Cortejo de ternura, em que brilharam luzinhas
sem conto!
As Confrarias da vila inteira, com suas opas e luzentes
,insígnias, formavam, nessa tarde ,espectáculo sem par!

No céu de Manteigs, nem uma nuvem!
E eu acompanhava, de alma enegrecida, mas um raio de luz a
romper na esuridão. Segui amortecido, com andar inseguro,
duvidando e temendo não chegar ao termo.
O Senhor, porém. ajudou-me nessa hora e lá fui,tremebundo
avistar o sepulcro.

O céu bondoso comungava também: nem chuva nem vento! A
trovoada que é muito frequente naquele fundão, fugiu para
longe,como por encanto!

Céu azul e sem mancha!; terra silenciosa, em que apenas
se ouvia o murmúrio das prerces!
Até o rio Zêzere sempre irrequieto e arrogante, depusera, nessa
tarde, seus ímpetos de fúria.

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14-11-1973
Nyangana
Um Cancro
Esta palavra espanta a gente. lançando no peito um bloco de gelo
que sempre esfria e logo consterna.Não sei que outra exista de
maior assombro e grave inquietação. Paraliza-nos a mente de
trazê-la já no pensamento, imobilizando o corpo, só de a
lembrarmos!
Desse horrendo mal finou-se minha mãe. Quantos e
quantos, pelo mundo além, caem diariamente, sob a garra adunca
do papão medonho, que não perdoa!
A ciência do homem, não obstante o progresso, não
consegue jamais erguer-lhe barreira!
Como a tuberculose, no século passado, campeia infrene o
horrendo cancro, por esse mundo além! Que triste e desolador ver
dia a dia consumir e angustiar-se uma pessoa querida!

Vai-se mirrando, a pouco e pouco, ante nossos olhos, chorosos,
impotentes.magoados e tristes,sem podermos valer-lhe nem
mitigar o horrível sofrimento ou dar lenitivo que suavize ao de
leve!
Assim definhando, chega o dia extremo que nos leva o ente
amado, para nunca mais podermos avistá-lo,cá neste mundo!
Que suprema tragédia! Que amarga desilusão! Quantos
sonhos gorados e planos destruídos! Quanta dor se prolonga,
neste vale de amargura!
Será maos um caso, para angustiar-nos a alma dorida?!
O cunhado Martins a mirrar-se também, constantemente?! Virá
de novo o papão exacerbar a ferida, no peito doente?! Aqui
mesmo, em terras distamtes?!. Aqui, onde a morte e o crime é o
pão de cada hora?!
´´E triste,por certo, a condição de viúva que fica só, no
deserto, com filhos pequenos! Bem sei eu que Deus é Providência
amor e sustentáculo! Sei também que Ele é ´Pai, sempre
aguardando o filho transviado ou em perigo de sério risco!

Entretanto, a vida é tão árdua! Origina tamto espinho! Há
tanta inveja, pelo mundo além
Valei-nos, Senhor! De outro modo, perecemos!

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Silva Porto
15-11-1973
Hoje, afinal, vive-se para os alunos! É precisamente ao invés de outros tempos, em que o Mestre-Escola punha e
dispunha, a começar pelos castigos.Evidentemente, havia abusos
graves mas, em nossos dias, virou tudo ao contrário.

!O que os alunos querem ou então sugerem a Pais e
encarregados da educação é o que tem de fazer-se. Podem eles até
servir-se de mentiras e recorrer à trafulhice; alegar, no ensejo,
falsas razões; alterar ou falsear assinaturas e ditos.

Iso não importa! Por mais que o Meste se afadigue e esforce, logo
que haja má vontade , tudo será vão!
Dão-se Pontos Escritos só quando eles querem: jamais, é
evidente, quando nos convém.
Antecipam-se bastante, para o caso especial de pedirem
outra via.
Havendo protestos ou reclamações,então a coisa é mais que
falada!
Confesso e porfio que há muito exagero. Até porque é diícil,
à data presente, arranjar professores , para várias disciplinas.
Um Liceu da Metrópole pediu uma jovem para dar Francês,
batendo à porta de alguém, formado em História.

Insistiram, porfiaram mas ela não quis, alegando sensata
haver esquecido o que aprendera, em tempos idos.
Como explicar estas exigências?
O que sei, realmente, é que fomos há pouco notificados , de modo
estranho, Por não estar habituado, fiquei sem saber!
Não haverá seriedade? Creio que um mínimo nunca faltará

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Silva Porto
16-11-1973
Casamento... lotaria?
Em acertar reside obviamente o grande segredo. E consegui-
lo? Fora de hipocrisia, não era difícil, mas se o mundo, afinal, por
via de regra, joga com isso tão habilmente, como vai alguém, de
recto pensar, livrar-se de engodos?!
Sorrisos e manhas, falsidade e manias, deficiências graves
tudo se oculta afim de mostrarem,unicamente, grandezas e
pompas.
Quem alude, alguma vez, a restriçõea ou pouquidades?!
Tudo maravilhas! Apenas excelências!
Que digo eu?! Um mar de rosas, oásis mimoso, sempre
verdejante, prometedor!
Disfarçar é que interessa... esconder e iludir... Palavrinhas doces...
ares de boa gente, ostentação ronhenta daquilo que não existe!

E queriam, na verdade, que tais manigâncias dessem bom
resuitado?! Pode a árvore má produzir bons frutos'!
Era, efectivamente, pretender o impossível!

Vê-se, pois o ser humano ante sérios problemas que lhe
afligem a alma, torturando o peito! Como resolver?
Em sociedade, já paganizada e sem escrúpulo, é fácil
decidir: cada um talha e corta , a bel-prazer, lançando-se na
aventura de várias uniões, Mas a vida não é isso!

O fim do homem não é gozar sem barreiras, em busca do
impossível! A vida é sofrimento que limpa e redime, cruz
abençoada que transforma e diviniza.

Por meio da morte, consegue-se a vida.
Há limites para tudo! A Moral vem dizê-lo!
Viver à cão é só para animais!

Como educar os filhos do casal? Como resolver dificuldades
graves que se apresentam difíceis? Malquerenças e ódios, rixas
sem fim, maledicências, nervos e insónias?!
Não é este o preito que a libertinagem paga, logo em breve,à
doce leviandade?!
E, finalmente, as consequências de ordem eterna?!
Como é lastimoso, amesquinhante e vil um esposo adúltero...
e uma esposa infiel
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Silva Porto
17-11-1973
Conviver não é fácil. À primeira vista, afigura-se banal
e, algumas vezes, ate agradável. Também não vou negar que, em
certos casos, seja isso aprazível. Mas o que tenho em mira, neste
exacto momento, é o ramerame de todos os dias.

Nada há que não canse, por belo que se apresente. Vem o
enfado, logo o tédio; em seguida o enjoo, rematando com
a náusea. Pois viver lado a lado, cada hora que passa,por noites e
dias, julgo ser angustioso, maçador e importuno.

Só me parece exequível, tratando-se realmente de pessoas
virtuosas ou que muito se queiram.
Em outras circunstâncias, creio não ser dado. Já tive uma amostra
no grave encontro que ontem ocorreu.

Veio do nada... coisa banal, mas avolumou-se, originsndo. em
seguida, molesto dissabor e até indisposição que perdura ainda.
Dormir após isso é coia que não posso. Sinto o fartum de quanto
me rodeia, perdendo em breve o desejo de conviver.
Talvez antes o silêncio de um Mosteiro solitário!

Diria até o abandono da mesma sociedade. Ensimesmar-me, viver
só para os livros e para o grato ensino? Sou feito de vidro, na
sensibilidade; de fumo leve, no meu orgulho. Se eu me convenço
de que tenho razão e alguém me contraria, é logo o fim do
mundo!
Por que hão-de torturar-me?! Não é isso prova certa
de incúria e desamor?!
E foi para isso que saí da Europa?!Viver em alvoroço,
fatigado de insónias?! Ser contrariado, nos meus ideais e até
bloqueado nas minhas pretensões?! Contestarem levianos a minha
experiência e oporem-se firmes ao que eu intento?!

Tenho para mim que, onde tal sucede, não viceja o amor!
Pode haver ilusão, disfarce, hipocrisia, mas sinceridade,
compreensão, amor e carinho, isso é que não!

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Silva Porto
18-11-1973
É dia assinalado, porquanto volvido um mês, são as
férias de Natal! Como será bom repousar tranquílo, sem
horários a cumprtr, sem Pontos nem aulas a preparar!
Haver certas horas - e tantas são elas, no dia a dia! - a que
temos, sem falta, de subordinar-nos, é grande maçada que se torna
fatigante! Um dia e outro dia, sempre o mesmo lidar e sempre de
igual forma, enerva altamente e origina mal-estar!

Quando, porém, se apresenta uma aberta, em que nada preocupa,
então sim, dilata-se o peito, rejubilando a alma!
Um ambiente sossegado, familiar e amigo, refeições
garantidas ( acomodadas aos males da vida) e um clima
agradável, é ideal para mim!

Aguardo essa data, com enorme entusiasmo, ansiando
vivamente porque os dias se abreviem! Não devia ser assim,
porquanto abrevia-se a própria vida! Quanto mais caminhamos,
avançando para a morte, mais esta se abeira e toma importância.

Apesar de tudo, não me importo muito! Afina de contas, não
é, a rigor, a morte que se depara mas sim a vida autêntica - o
nosso encontro com Deus- Amor, sim, e tudo o que é belo: a
nossa família... as coisas predilectas!

Após vida sombria, cheia de percalços e medonhas ciladas,
não será bom entrar no Céo, onde tudo é excelente?! Deixar
correr os dias e apressar as férias mal nenhum isso faz!

Vinde brevemente, dias tão gozosos, passados em descuido,
no remanso de um lar, em que me sinto feliz!
À margem de canseiras e trabalho extenuante, sem nquietações
nem imprevistos. cobrarei energias para o resto do ano.

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Silva Porto
19-11-1973
Uma tarde em lágrimas! Afinal, porquê? Chorar,
gemer derramar-se em ais e fundos suspiros! Valeria a pena?! São
os 18 anos, harto sensíveis e inexperientes, que agora se debatem,
violentados por choques amargos.
Amostras do muito que a vida promete aos que julgam,
errados, ser a vida na Terra um mar de rosas!

Amizades, afecto, laivos estonteantes ou vislumbres de
amor, que é tudo isso? Aparência, ilusão, fantasia apenas! É
realmente como se nada fosse! Efectivamente, o homem ama a si
mesmo e a Deus Criador. Primeiramente, endeusa a si mesmo,
tornando breve a sua pessoa em centro do mundo;

logo em seguida, esfalfa-se e luta porque todos reconheçam
tamanha grandeza, para que, rendidos, prestem seu culto ao
único númen.
Mas é evidente que os outros seres não estão pelos ajustes, pois se
empenham também na mesma cruzada.

Tarefa grandiosa, única a seus olhos, é dever de
connsciência e acto de justiça que todos se dobrem e ponham
contemplando o novo prodígio, aceitando-o como tal.

Endeusamento, auto-adoração!
Como tudo isto brota do egoísmo em toda a pessoa, quais serão,
desde logo, as consequências?
Ao fim de algum tempo, vem decerto a inveja com a
malquerença, a detracção e a mesma injúria.

Pequenos amuos e leves partidas, quando no princípio,
chegam depois a fazer-se gigantes, que assim amedrontam, se não
horrorizam.
Postas assim as coisas, em dado plano, cheio de amargura e
negra desilusão, volta-se o homem para seu Deus e Senhor de
todos, o único ser que pode compreenê-lo e torná-lo feliz.

A nossa Guida chorou amargamente, por não virem buscá-la,
segundo ajuste. A menina Z e a outra colega faltaram à palavra, o
que a levou, desde logo a passar a tarde num pranto desfeito.
Por que não viriam?! Pequena amostra de fundo ciúme ou
até despeito!
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Silva Porto
20-11-1973
Aulas... aulas... sempre mais aulas e exercícios!
O ar do ambiente satura-se breve de vapor de água; esta, por sua
vez, satura-se igualmente de açúcar e sais.
Como não saturar-me, passados que foram 29 anos?!
Se apanhasse tantos Anjos, à hora da morte, como aulas já dadas,
ao longo da vida! Que belo cortejo não seria aquele!.Que luzente
e numerosa tal companhia!

Entretanto, não foi o número que me fez saturar, porque eu
deliro, com a minha profissão! Ainda hoje, aos 55 anos, dá
enorme prazer o múnus que exerço.

Atirei-me em excesso, levando o meu arrojo a 45 aulas, ao
longo da semana. É autêntica aventura,, se levo em conta a
situação do 5 º ano, a Inglês e Francês, no Seminário-Colégio!.

Nunca mais esquecerei aquele fim de semana, que levei
inteiramente a corrigir os Pontos dessas turmas enormes!
Quarenta alunos é obra de temer!
Sem noções basilares nem qualidades para trabalhar... sem
proveito nem estímulo...

Dá vontade enorme de largar tais alunos, como ontem lhes
disse, na aula de Francês!

Quarenta matolões, após o fim de semana, aiegam, sem
pudor, que não tiveram tempo de preparar a lição!
" Arre bogalho", como lá dizia um velhote de Manteigas.

Era só vomitá-los! Nem um santo os aturava! O que eles
precisavam bem sei eu!
Ainda porfiam que não deve ser!
Abusos e sevícias também eu os condeno,mas para
grandes males, só grandes remédios. Pode lá ser ou admitir-se!

Já homens feitos, sem a mínima noção do que há para
cumprir! Será esta, realmente , aquela sociedade que o
amanhã nos trará?!
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Silva Porto
21-11-1973
" A lã e a Neve"
Ouvira dizer, da maneira vaga.que este romance de Ferreira de
Castro , tem como fundo a vila de Manteigas, Jamais, no passado
o houvera à mão, motivo pelo qual o não tinha lido.

Agora. porém, que frequento amiúde a vasta biblioteca do
Seminário- Colégio, chegou-me ao alcance e toca de lê-lo, não
obstante, já se vê , o escasso tempo de que posso dispor. Mal fica
espaço, para respirar!

Ia ser curioso e bastante divertido ler em Àfrica um livro,
cujo enredo ocorre em Manteigas, onde trabalhei, desde os 39 aos
54 anos, fase da vida em que o homem,.neste mundo, já se
encontra apetrechado, para ir fazendo alguma coisa útil.

Ali me gastei, entre gente remota e deveras singular que
vive afogada entre serras e abismos. Razão é esta por que acho
graça ao romnce em causa. Connheço bem a topografia, pois hei
calcorreado vales e montes, desfiladeiros e penedias, em cujo
dorso aprazia descansar.

De manhã e por noite, no silêncio nocturno ou com o Sol
a pino, fiz andanças por ali, em tempos que recordo, com certo
alvoroço!
De permeio, vem também a saudade, que nem tudo foi
tormento, naquele meio serrano.
As horas de ventura, que sempre foram breves, guardo-as
cioso, no peito sensível.
Ferreira de Castro, que li entusiasmado, avivou-me
a lembrança de momentos felizes e deleitosos.
Vou na página 100.

Idalina e Horácio, personagens principais, bailam-me na
memória. Encarnam. a rigor. as ânsias dos humildes, na busca
dolorosa dum futuro melhor. O que, à volta deles. se vai
desenrolando, avulta no romance: o feitio buliçoso e, às vezes,
mexeriqueiro, da gente serrana, enclausurada ali pelos deuses
pagãos ou então por demónios infernais.

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Silva Porto
22-11-1973
Ontem já, pelas 16, realizou-se na Técnica a grande
reunião do Conselho Escolar, em que foram ventilados assuntos
importantes, relacionados todos com a vida escolar e respectivas
actividades
Sucedeu então que o nosso Director, Dr. Manuel Buco,
ministrou directrizes de grande utilidade, todas elas fruto de long
longa experiência e pronta observação.

De quanto ouvi, saliento o seguinte: a preparação dos Pontos
é assaz frutuosa. Entretanto, não vai além de um teste de atenção,
caso não sigamos determinados princípios: hão-de ser ser os
alunos a expor as dificuldades e não o professor a apresentar as
diversas matérias

Partindo da classe,embora não se tratem, directamente ,
assutos dos Pontos, obtém-se atenção e grande eficiência, pois
nessa altura está mais receptiva.
No tocante a informações, ditas mensais, haverá cuidado em
aprontá-las, devidamente, sem ir além do dia 5, no mês seguinte,
para não causar apreensões nem gerar distúrbios.

Convém sumamente que a nota qualificativa seja equilibrada, não
se afastando, excessivamente, da nota numérica, ao fim do
período.
Quanto aos livros de Ponto: se houver, acaso, mais de uma
secção, o que se passa comigo, em dois cursos diferentes - 3º
Industrial e2º ME, fica agora resolvido levar apenas o de
Mecânica, para uniformizar e evitar ainda gasto de tempo aos
Directores de Curso.

No respeitante, agora, ao 13º mês, alguns aí há, sem dizer
quais, que não virão a recebê-lo, pelo facto simples de, no ano
transacto, a classificação ter sido um "mau."
Uma das causas que mais influi é, decerto,"a falta "
censurável de justificação, por aulas omitidas. Já foi pedida a
confirmação, mas não veio ainda.

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Silva Porto
23-11-1973
Estou ansioso por que cheguem as férias. Entretanto,
sei de antemão que vou saturar-me, porquanto, afeito ao labor, de
que sempre fui escravo, se me privo dele,vou estranhar,
profundamente!
A vida, porém, é mesmo isto! Só estamos bem onde não
estamos Que pode fazer-se?! O que não tem remédio remediado
está, como diz o povo.

Encontrámos assim o o curso das coisas! Também não sou eu
que vou modifocá-lo! Uma coisa, no entanto é certa e sabida;
tarefa diária que não exija demasiado, vem a ser o ideal, na vida
terrena!
Sem ocupação, não ia, desde logo, sentir-me bem, sendo as
consequências para temer! Estou convencido de que ha-de ser
esse o pior mal da vida. Imergir no tédio!

Nada como isto: absorver o tempo no útil e agradável!
Poderia ter assim um regime de vida?

No ano que passa tudo se encaminhou em sentido contrário.
Acntece ainda que, por fora, sem contar com isso, tenho as
mesmas aulas, numericamente, quer dizer: 23 na Técnica e
número iguai, no Seminário- Colégio.

Isto acarreta, de imediato, preocupações de toda a ordem,
por os nosso alunos se encontrarem fracos e sem aspirações.
A culpa não foi minha: a consciência está tranquíla.

Entretanto, no ajuste de contas, perante a derrocada, ninguém
perguntará quem leccionou em anos anteriores. O professor
visado é sempre o último. que leva a exame!
Não posso, creio eu, nem devo asumir a responsabilidade,
pelo fracasso, provocado por outrem, nos primeiros quatro anos.!
No foro da consciência tudo estábem, mas no rxterior, em frentte
da vida!
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Silva Porto
24-11-1973
Ontem, foi anunciado haver Pontos de Frequência no
Internato. Nem pensava em tal, pois há exercícios hebdomadários
e chamadas frequentes. mas, enfim,aguentar sempre e cara alegre!

Não é assim? Quatro Pontos diferentes a turmas horríveis de 4o
alunos! É obra, hem?! Mas bom! Quem quer bons ofícios tem e
aprendê-los! Se tiver Pontos de Colecções, o assunto resolve-se
com facilidade!

Não os tendo, é já mais difícil. por quanto levam tempo de
que eu não disponho!. Quem me dera em Angola, com o material
que deixei em Lisboa!

Seja como for, darei cumprimento aos programas em voga e
porei tudo em ordem, ainda que, para isso haja de rebentar!
Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele!
Não é assim que reza o ditado?! Pois seja então!

Quatro Pontos enormes, em assuntos desiguais! Até dá gosto!
Para o ano que vem, serei mais prudentte.. Em meu interesse!
(refiro-me à saúde)! Se estivesse nos meus30 ou mesmo 40!.

Após os 50, exige-se cuidado, pois um homem, em
morrendo, fica logo cadáver De que serve, depois, aquilo que
ganhou?!
Só cuidados e amarguras, sem distracção! Que horrenda
tolice! Rematada loucura!Trabalhar sem descanso e privar-se de
tudo, passando a vida sem leve mudança!
É estupidez... escravização!

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Chitembo
25-11-1973
"A lã e a Neve"
Acabei, por fim, a leitura do livro a que já me referi e que tem por autor, Ferreira de Castro. Foi com alvoroço que o
passei de lés a lés, pois ocorre num lugar, onde vivi 15 anos.

Quanto ao título, não me parece muito apropriado, por
não sugerir o que o romance apresenta. Apenas ao de leve lhe diz respeito. Região montanhosa: logo neve, claro está, e gado lanígero.
A verdade, porém, é que a tese do livro nada tem a ver com a neve e a lã, por ser extensiva a todas as regiões, em que o homem sofre.

Afigura-se antes a tese seguinte: as pessoas humildes, provenientes que sejam da pastorícia, agricultura ou então das fábricas têm vida penosa e não vêem satisfeitas as suas aspirações.
Isto sucede com o jovem Horácio que desposara Idalina. Quantas locubrações, quantos projectos,... mas tudo
em vão! Se melhorava a féria, aumentava, de igual passo, o custo de vida.
A mudança de lugar ou de ocupação nada resolve. O seu viver como o dos parceiros, com sorte igual, foi sempre miserável, como pobres de pedir, de modo especial, no fim da vida.
Vejo, nesta obra um grito forte, veemente e sacudido
contra as injustiças de carácter social: apreenta os operários a arrastar a vida, denunciando, para logo, o estado lastimoso em que foram lançados, pela demissão.

Garantias de qualquer natureza jamais conheciam.
Aprecio esta obra pelo seu conteúdo, altamente humano:
a piedadede e o carinho que dedica aos infelizes, calcados e esquecidos; a eloquência vibrante , no protesto e censura da
orgânica social, que se imobiliza e logo emudece, ante males chocantes e habilmente se acomoda à ordem vigente

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Silva Porto
26-11-1973
Regressámos do Chitembo. De 15 em 15 dias, vamos
passar lá o fim de semana: é necessidade e sedativo para os nossos nervos.Após 5 dias em intensa labuta faz imenso bem dar costas de pronto àquilo que preocupa, durante a semana. Para mais, sendo 15 dias, em vez de 8!.

É verdade óbvia que, para mim, também surgem logo :sérias dificuldades: a condução do veículo, pincipalmente, não vendo bem ou caindo muita chuva. Hoje, esteve bom e a
nossa viagem correu à maravilha!

Os primeiros quilómetros, num total calculado em 118,
foram vencidos em pouco mais de 60 minutos, o que perfaz, bem entendido, média razoável, para quem vê mal.

Se os cálculos são exactos, ascende tal média a 108
quilómetros. Nada mau, no caso pessoal!.Outro contra:
é preciso também levantar muito cedo - 5 menos 15!
.
Em seguida, não sendo manhã clara, não há visibilidade que seja bastante, o que me traz agitado, ao longo da estrada,

Isto, realmente, afecta-me a saúde, aumentando a tensão, mas tenho para mim que as vantagens são maiores: respirar
novos ares,ver ouras caras,fixar deleitado outra paisagem, não são elementos, para descurar!

Desta vez, porém, nada levei, para trabalhar. o que me deu, para logo, enorme valia.
Sinto-me já bastante melhor, à sexta-feira, dia 23!
Andei, nessa data, muito preocupado, com algumas dores que assaz me afectaram!

******
Silva Porto
27-11-1973
Aniversário de anos, festejado em família.

Há quanto já que tal não sucedia! Primeiramente, ocorreu logo o de meu cunhado, no mês de Outubro..Alugou a carrinha do professor Julino, para vir aqui.

Desta maneira. pudemos juntar-nos, para o efeito que
tínhamos em vista. Mal a gente se precata, já é defunta!

Hoje, cai também o de minha irmã. São 47 anos! Menos 9 do que eu, pois daqui a três meses,perfazem-se já 56.. Inda ontem era jovem,! Como isto voa e logo se dissipa!
É só abrir e fechar os olhos!Bem lá diz o João de Deus: " A
vida é nuvem que voa... ai que mal soa... folha que cai!"

Se, ao menos a vida verdadeira, que toca nesta e entra
logo pela vindoura, fosse desforra para tantas provações e maus bocados!
Estreita e mesquinha, a vida presente é o que não queremos. Deus do Céu, por ser Bom e Amigo, faz diligências, para alertar-nos! Consegue-o Ele, por meio do sofrimento, contrariedades, longas doenças e limitações,

Por vezes, nem damos conta!
O certo. porém, indiscutível e bem calculado,é que Ele guia a barca, fazendo-a seguir no sentido correcto.
Quarenta e sete anos!

Que Deus-Pridência fecunde e abençe os trabalhos da mana,
enchendo-a de gozo! Esmagada pela vida, tem corrido por ela sob peso constante. Trabalhando e sofrendo, teve sempre o Norte em frente dos olhos, procurando não perdê-lo.

Humanamente infelz, ela já é santa, aos olhos de Deus! Pôde fazer o mal e optou pelo bem ; tinha outro chamo e recusou segui-lo. Quantas ocasiões não teve, para isso!

Que o bom Pai do Céu, tão misericordioso, continue
a guardá-la, por meio da santa que foi a nossa mãe, afim de manter e educar os filhos, sendo para todos amparo e guia.

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Silva Porto
28-11-197
Agora, é tempo de azáfama! Nem o descanso ´já
me aproveita, uma vez que a fantasia anda alvoroçada e todo
o meu ser é Oceano revolto.Ondas encapeladas se movimentam, por dias e noites, sem que deixem uma aberta ,
afim de aquietar o peito arquejante.
A própria noite é assaltada por certos monstros que fazem de verdugos, sobre a minha alma. Mas porquê agitar-me assim, a ponto de não dormir nem de modo nenhum conciliar o sono?! Não haverá tempo, que baste para tudo,
incluindo a morte?1

Não sou capaz! Forças estranhas e mais poderosas obrigam-me agora a ser o que não quero! Marca indelével do maniqueísmo, em educação, gravou-se em mim e faz do
meu ser escravo perpétuo, a quem não é permitido gozar,
neste mundo o Sol de Deus!

Os brutos,sim, é que não se incomodam!
Eu, como ser racional, moldado outrora em formas apertadas, é que gemo e sofro, até por aquilo que pertence ao futuro!
Por que não enquadrar-me num sistema diferente?!Por que não renegar de tais ensinamentos, em educação?!
Eu vejo e quero, entretanto náo posso actuar!

Que me importa amim que as Provas sejam muitas, não podendo apresentá-las a tempo e horas?! Que me vai no caso se eu, aproveitando a noite,não consigo o que desejo?!

Nem tempo disponível para descansar!
Não tenho eu o corpo dorido, sendo agora manhã?!
Devia, julgo eu,ter-me restabelecido, após uma noite, consagrada a Morfeu!
Mas quê?! Pontos e Provas, contas e números... coisas
sem fim...
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Silva Porto
29-11-1973
Ontem, grande alvoroço, na aula vizimha! A colega de Inglês estava a braços com graves problemas!

Não gostava eu de entrar-lhe na pele! Efectivamente, em casos destes, há só uma coisa, para decidir: pegar nas malas partindo em seguida. Mas isso implica, em boa verdade, tanto dissabor! É ocasião para tanto rebuliço!
Aconselharam então que participasse dos próprios alunos
Achei eu ali que náo devia ser esse o melhor processo.
Entretanto, martelaram-lhe o ouvido, com tanta insistência, que ela até parece que resolveu fazê-lo.

"Participe deles, para escarmenta de muitos outros e
castigo adequado a seu atrevimento."

Tais eram, pois, as vozes soantes, ontem de tarde.
De facto, eles foram ousados, talvez insolentes, pois ao
chegar a D,M. à sala de aula, o jovem Ponces levanta-se prestes, sendo imitado por uma parte da turma em causa.

Que é que desejam, pergunta ela, cheia de angústia.
A descompostura e os modos agressivos, a que seguiu a confissão espontânea de a não quererem já, espantou-a
fundamente, provocando.lhe lágrimas.

Cena horrorosa, em que ódio e má vontade campearam infrenes..Achei irreverente, despropositado e mesmo insano.
Às vezes, basta, na verdade, um mau elemento, para virar uma turma inteira. Ignoro os precedentes.

. É natural ter havido já antes, alguma coisa harto desagradável. O certo é que ontem foi a grande explosão.
Tive pena da colega, tanto mais que é sozinha.
Viúva já e desamparada, com o filho distante, vive agora entre espinhos.
Um professor, recusado pelos alunos, já não tem lugar!
Lamento o sucedido, mas na minha óptica,, tentaria antes acarear os alunos, chamando-os a mim.

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Silva Porto
30-11-1973
Mal seguro a caneta nos dedos flácidos e tremebundos, apoderando-se de mim horrorosa ansiedade, que me enerva e faz cismar.A negra perspectiva de uma trombose aflige os meus dias, pondo- me o corpo em alto desalinho e o coração agitado no peito.

Que Deus me valha. porquanto só Ele pode agir com êxito e, embora realmente eu nada mereça do Pai celestial, a quem já ofendi, confio plenamente no seu perdão.

Os ameaços de ontem, pelas 19 horas, precisamente à hora de jantar, puseram-me em quebranto,enchendo a minha alma de enorme angústia. A grande custo vou escrevendo e me tenho de pé. Meu Deus! Hoje, é sexta-feira, dia tão cheio, com trabalhos e canseiras! Vou levar a cabo tantas coisas diferentes! Onze aulas!
Tenho a impressão de que todo o meu corpo se acha insensível e que os próprios nervos já paralizaram! ?!Quem havia de aturar-me?! Aquela guinada, ontem à noite!
Sentira já o mesmo, por mais de uma vez, na perna direita mas, passados momentos, voltava ao normal!

Ontem, porém, complicaram-se as coisas: perdi o apetite e fiquei paralizado, ao que parece, durante duas horas! Vi-me sozinho e desamparado! Não podia falar nem mexer-me na cama! Querendo alguma vez entrar em acçao, os membros recusavam-se.
Quatro pessoas em casa e, não indo jantar, ninguém se abeirou, a perguntar se estava mal disposto.Senti bem fundo o vácuo da vida e a desgraça ingente de não ter lar.
A mana Agusta não estava presente.
Continuo sozinho, infeliz e miserando como sempre vivi.

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Chitembo
1-12-1973
Anda nos ouvidos e arde no peito.Aquela frase
pronunciada sem tino, feriu-me pronto a sensibilidade e
abalou-me, profundamente..Jamais ouvira coisa semelhante e é contrária aos meus princípios. Adorei sempre os queridos pais e, embora não tenha filhos, sustento o contrário, sem nenhum receio de contradita.

Uma colega de Inglês proferiu afirmações, levianas e tolas que me puseram em fogo o peito revolvido.
Na sala de professores da Escola Técnica, aventurava opiniões que, desta vez, incidiram por acaso, em relações de
tipo familiar.
Falava-se de Natal e também a propósito daquelas pessoas que, nesse dia, se preferem a todas.
"Eu, dizia ela, com fundo acento de convicção, passo o Natal com o meu filho! Minha mãe que tenha paciêncis! Em havendo filhos, os pais desaparecem! O Natal é com o meu filho e os queridos netinhos! Ela tem já 80 e pico, mas paciência!"
Queimaram-me as entranhas aqueles ditos e não há jeito de apagar a chama!
Aquilo, sem esperar, foi como centelha que atirasse, num momemto, a um poiol de pólvora!
Não estaria a velhinha em primeiro lugar?! Até podia ser aquela a última vez!

Não tem o filho boa companhia - a esposa e os bebés?!.
E a pobre velhinha que se desfez em beneficência e doces carinhos, tem de viver só, à-parte da família?!
Que negra sorte! Descaroável atitude!
Confesso dorido que jamais esperava disparate assim, nuns lábios de filha!
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Chitembo
2-12- 1973
Este fim de semana foi maravilhoso!. Arrasado como andava, não ia suportar, assim o julgo eu, o peso de 15 dias. que antecedem as férias..
Os Pontos de Frequência, na Escola João de Almeida, a partir de 5, prolongam-se até 9; os do Internato, com início em l0, vão até 14, finalizando assim a longa temporada que
denominamos 1º período.

Quem há-de corrigir os montões de Prorvas?!
Eu, com certeza! Abatido como andava, não podia com o fardo! De facto, 5ª feira passada, notei alguns sintomas que provocaram alarme: guinadas na cabeça, tonturas frequentes, insensibilidade, estremecimentos, em todo o corpo.
Até me arrepio, de julgar o pior!
A verdade inegável é que a minha cabeça não é, à data, o que era dantes! Dificuldades no raciocínio; um peso esquisito que me deixa perplexo e deveras triste.
Como vão ser os derradeiros anos?

Deus é quem sabe mas, se acontece ficar inutilizado, sou
logo um fardo para quem me rodeia..Com siso ou sem ele,
maçada para os meus que têm seus encargos, a que eles, de facto, não podem renunciar!

Mas não vale a pena insistir demasiado, pois Deus do Céu é que há-de resolver, pelo modo melhor.
Que Ele não me falte, por insuficiências e infidelidades.
Guardados por Ele, nada a recear!

Vinte e duas horas e os meus olhos cheios de somo!.
Morfeu benigno venha sem demora, para que a viagem a fazer, amanhã, decorra normal.

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Silva Porto
3-12-1973
Cheguei do Chitembo, às 7 menos 2o, preparei
. as minhas coisas e provi de gasolina o Taunus 17.

Após isto, vem o normal dos outros dias: escrever as minhas notas que, se outro mérito não têm, expressam, pelo menos,
sinceridade, resagnaçáo e prestabilidade.

Jamais, que me lembre, adiei trabalho, refusei esforço
ou desatendi um pedido expresso.
Mesmo agora, para atender um pedido caloroso que alguém me fez, no Internato, estou sujeito a esgotamento. Vou tentar
alguma coisa, para evitar um mal maior!.
Os rebates fortes que tive já, alertaram-me ao vivo!
Esta semana e assim a próxima vão trazer tarefas que me deixam ajoujado
Da Escola Técnica, elevam-se as Provas a 133, com
três Pontos diferentes; no Seminário-Colégio, 4 Pontos diferentes, ascendendo a um total de 152.

O somatório geral vai , pois, atingir 285!
Pode acontecer ( basta para isso que os alunos o queiram)
uma realidade muito indesejável: haver de repetir alguns dos Pontos! Para já, são 7 diferentes, Vamos ver se aguento!

O mais difícil há-de ser este período que vai já em três meses e representa, em globo, meio ano escolar.
Apelo, desde já, para a bênção do Céu, que é generoso e sempre clemente.
Não mereço, bem sei, que Ele me ajude mas, como é bom, indulgente e carinhoso, tenho (a)certeza de não ficar
sozinho, nesta confusão

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Silva Porto
4-12-1973
Devia repousar, deixando a cama um pouco mais tarde,
pois vejo as forças diminuír já. É o trabalho exaustivo e as
enfermidades a rondar bem perto as fontes da vida.
Mas que heide eu fazer?!
Este génio apertado, múltiplos afazeres e o capricho
impertinente, que é timbre meu, forçam todos juntos e tiranizam.

Descanso que preste não é comigo! Descansar, durante o dia, não
vou à péla, com isso. Só a negra morte é que porá barreiras ,
acalmando, por fim, este génio infeliz que me vai atormentando!

É véspera de Pontos que amanhã terão início
Cabe-me então a vigilância às 15, e depois ainda, âs 18 e 30.
Em seguida, efectua-se logo a Prova de Inglês 3º RA, pelas 20
horas.
Nem tempo me sobeja, para ir jantar!
Durando as Provas 90 minutos, não resta, de facto, qualquer
intervalo, possa aproveitar! Isto é a vida:
Bem! Vamos lá ver! Tambem não morro, se acaso não
comer, à hora de jantar!

Cabem-me ainda três vigilâncias, no dia de amnhã: duas
para outre, e uma para mim. No dia 6, tenho duas, e no seguinte
apenas uma.
A partir das 6, começo então a rever as provas, uma vez que,
às 13 e 30, findam as minhas.. Vem, seguidamente o fim de
semana que vou aproveitar, classificando os Pontos dados.

Os da Escola Técnica vejo-os eu bem!
O grande busílis está no Internato, em 10, 11,12e 13!

O final da semana que podia aproveitar, para corrigir,
é destinado, na Escola, às reuniões para notas, em antecipação,
caso contrário havíamos de ficar, nos dias 19, 20 e 21.
Férias minguadas, aborrecias e mordicadas!
Não sei, de modo nenhum, como isto vai ser!

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Silva Porto
5- 12-1973.
Chegam, finalmente, os Pontos de Frequência, na
Escola Técnica.Vai grande azáfama, erguendo-se da alma funda
ansiedade. que oprime e afronta.

Embora, sem esforço, alunos e alunas querem, a todo
custo,bons resultados. Prémios em vista, belos presentes em
perspectiva, mil e uma coisas que alguém insinuou, tudo agora
se agita e vem redopiar na leve cabeça dos estudantes.

Um vai-vem contínuo de ideias e projectos,sentimentalismo
e grandes aspirações que se atropelam e encantam as almas!

O passado morto não conta para eles Só o presente é que fala,
recorrendo por isso, a vários expedientes: cábulas diversas,
sorrisos de ocasião, vénias baratas, lamentos falsos, para
comover as pobres mães; gentileza postiça, habilmente calculada

e até, por vezes, a certo afã, um tanto fictício, em preparar os
Pontos Escritos. Isto é dos livros e já tão velho como o proprio
homem! Não vou, por certo, mudar agora o giro da Natureza
nem alterar a marcha galopante aos vários casos.

Entretanto, as coisas afectam-me, pois mergulho nelas e
não vejo saída para escapar-lhes!
Se a nossa juventude fosse mais prudente e um tanto ajuizada,
aplicaria de longe as medidas preventivas, com vista ao futuro!

Mas, se a mocidade é isto! Irreflexão, leviandade frequente.
fantasia e sonho! De outro modo, já não era mocidade!
Ser ponderado, calculista e prudente é de gente adulta!

Deixemos, pois, à grácil mocidade o que lhe é consentâneo,
arredando inconformismos, coveiros da graça que a vida
apresenta, no sonho e fantasia da nossa juventude!

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Silva Porto
6-12-1973
Vi-o ontem passar, Não era a primeira vez que tal
sucedia, mas não me lembrava. Mil coisas pequenas absorvem-me
todo, pondo em olvido muitíssimas outras.

Segui, enquanto pude, aquela marcha animal, até alcançar a
infeliz criatura. Rastejava, na picada, assente, como vi, em 4
apoios, limpando amiúde as bagas de suor.

Nessa intervenção, apoiava-se ele em três pontos somente.
Que impressão esmagadora e que momento de angústia!
Um ser humano, de pernas aleijadas, que fixa os joelhos, à maneira de pés!
Aquelas mãos terrosas, criadas por Deus, para se erguerem,
ao Céu, com função igual à dos próprios animais!

Caminhava incessante, em marcha regular,tactendo com as mãos e usando os joelhos. Apesar de tudo, via-se claramente ser aquele esforço deveras intenso. para deslocar-se.

Estremeções vultuosos, contosões e esgares revelavam no peito esforço incalculável!
Cada arranco dos seus me apunhala e punge, deixando na alma ferida a sangrar! Como vive o infeliz?! Que sentimento lhe invade o peito? Haverá naquele seio algum lenitivo?

Ficará saciado aqiele pobre estômago, sem meios de vida nem peito amigo que o ajude a viver?
Gostaria imenso de embrenhar-me um dia, no seu viver amargo,
inteirando-me de tudo quanto a ele respeita.

Infelicidade assim tão grande não posso encontrá-la, a não ser
no miserando que se arrasta, a solavancos.
Gritos de alma não ouvi...não escutei esses gemidos profundos., mas suponho que os lança, em vozes que amarguram.
Quem ouve os seus ais,acorrendo pressuroso?!

Meu Deus, que pena eu tenho daquele pobre irmão que ali passa na rua , de pernas para o Céu e a cabeça para o chão!

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Silva Porto
7-12-1976
Se fosse noutros tempos, o dia de hoje alterava-me em cheio. Eram. na verdade, as férias de Nata, com seu cortejo, assaz luzido, belo, inolvidável: a minha família, o lar e os amigos,
recordações da infâncial, brinquedos e jogos, as coisas falantes e os próprios animais
Que mundo vivo, curioso . agitado, a revolver,por modo intenso, as entranhas da alma! A fazer soar, no peito sequioso, doces harmonias!
Hoje, tudo morreu, ficando somente o perfume inebriante.
Que mais foi então o que ficou desse tempo, assim tão belo!
Débil chamazinha que mal se enxerga... eflúvios amorosos que me tocam de leve! Esbatidas figuras , cujos contornos já se furtam à vista!
Ao chegar este dia, todos na Guarda rumávamos `à Sé, em
preparação de grande festa à Imaculada! Que esforço eu punha,
entoando louvores à Mãe tão querida! Tinha ainda a daTerra,para encanto e ventura!
Hoje, afinal, tudo acabou! A mão invisível da negra morte, com garras aduncas, associando-se ao tempo, levou em tropel esse mundo encantado: ilusões e sonhos, planos grandiosos ,arrebatamento e loucura estonteante, confiança na vida e no
amor à Humanidade
À data presente, afigura-se tudo qual noite de breu, que veio
sem demora, após um dia belo, radioso, inesquecível!...
Em 8 de Dezembro,a caminho da Sé, nos meus tempos da Guarda, para rezarmos à Virgem pura, cantando jubilosos,, hinos
de louvor
Então, figurava a existência um mar de rosas, em que o barquinho vogava tranquílo! Espinhos e abrolhos quem falava em tal?! Obstáculos a vencer? Isso, afinal, era para os adultos que não
tinham, decerto, envergadura!
Amargura e decepções? Isso era com os outros

Como é louca a mocidade! Ao mesmo tempo, é bela e saudosa, porque tudo crê... tudo facilita
Generosa e pronta, delirante e risonha,é ela o íman que tudo atrai,
a mola forte que tudo impele.
Hoje, é noite!... Ficou-me apenas a luz da fé!

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Silva Porto
8-12-\973
Fui hoje ao Ninho, pela Eucaristia..É perto daqui e
oferece vantagens. Efectivamente, residindo a três passos, não
fazia sentido ir ao Seminário, que fica nos arredores, lado oposto
à minha residêmcia.
Era aonde íamos, quando o fim de semana decorria, em Silva Porto.
Ontem, porém, como estava cansado, surgiu-me a hipótese de ser ali. Medi contras e prós que, afinal, são grandes, e mandei alguém pedir informações. É que eu sabia apenas o nome vulgar - Ninho.
Quem estaria à frente da Casa Religiosa? Caso afirmativo, haveria decerto uma capelinha. Sendo isto assim, teria poss´velmente quanto era necessáriopara a sagrada função..
E quanto à hora?
Chovia, de momento, que Deus a dava!. Retardou isto a saída de casa. Depois, aqueles trovões, pavor e agonia dos semabrigo?
A informação veio sem demora, apresentando-se harto favorável. Não iria ao Seminário que fica longe e exige automóvel. Um descanso!

Há Religiosas, têm capela e tudo o que é preciso.
Lá vamos, pois: a mana Agusta, eu e o Carlitos, e a servente
Paula, mulata do Samalenso. que veio connosco, para os recados e lavagem da roupa.. Tem apenas 10 anos, mas ajuda bastante e é muito reinadia.
Cumprido o preceito, por ser dia santo, consagrado à Virgem, tentámos o regresso, mas não foi possível
A chuva era tanta, que impedia o trânsito.

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Silva Porto
9-12-1973
À hora do almoço, terminava eu já o 3º Industrial,
última Prova da Escola João de Almeida.
Somaram os Pontos 132! Comecei na sexta-feira, quer dizer,
ante-ontem, com ânimo firme. Não gosto de adiar!

"Guarda que comer: nao guardes que fazer!". Assim reza o provérbio. E eu, então, homem de princípios, não quero jamais
passar desmentidos, na ordem prática, à sabedoria que vem do povo.
Para mais, num tempo de moleza, capricho, a valer, em
conservar-me fiel aos velhos princípios Sempre que vejo alguém molenga, altera-se logo a circulação. Dinamismo constante e
actividade é que fazem progredir! Sem isso, não há pão! Pois já
revi un montão de Provas e sinto energias, para começar outra
leva diferente!
Amanhã, às 8 horas, é a vez do Internato.. Pelas 9 e 30, já
disponho certamente de 4o Pontos de Português, numa escrita, indecifrável! Pretos, brancos e mulatos originam decerto algaravia.Muitos deles vie,ram do mato e vão mostrar, uma vez mais, as noções adquiridas, ao longo de três meses.

Quero ver se, na verdade, a 14 do corrente ou 15 de manhã,
já não tenho, ante mim, trabalho considerável. De facto, sendo as últimas aulas a 18 de Dezembro, na Escola João de Almeida,
é preciso dar-lhe, para não adiar a viagem de regresso.

A mana Agusta j´anda em brasas pois, nesta data, há grande afluência à vila do Chitembo: toda a gente ali vem , para fazer compras, na quadra natalícia. O marido está só e precisa ajuda!
Mãos à obra!
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Silva Porto
10-12-1973
Cumpriu-se meio ano, que deixei a prazo, no conhecido Banco Pinto Sotto Mayor, a importância modesta
de 45 contos. Em 4 de Janeiro, sucede o mesmo a 15 mil escudos,
o que totaliza a insignificância de 60ooo $00. Com outro meio ano,vêm as datas: 1o de Junho e 4 de Julho de 74.

Nessa altura, é meu desejo transferir a importância para o
Banco de Fomento, em Nova Lisboa, avaliada que é em mais 10 contos.
Aqueles 100 contos ficarão constituindo um fundo de rreserva, paraeventualidades que surjam na vida (minhas que sejam ou de família.: doença grave e imprevista; compra de automóvel, em caso de avaria para o meu Taunus; aquisição de
vivenda, em Sá da Bandeira ou Nova Lisboa, caso esta, de facto, se torne, em breve, cidade universitária

Evidentemente que tal importância não cobre certos gastos, mas
é uma base, um tanto segura, a partir da qual se resolvem problemas. Com outras achegas, à volta de 50, já se enfrenta, por vezes, um dso imprevisto ou negócio vantajoso.

Não intento, por agora, acumular mais: desejo, sim, pô-lo em movimento, ajudamdo carentes,, sem esquecer também as obras sociais de caridade.
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Silva Porto
11-12-1973
Vi agora a lista de horas extraordinárias, afixada e visível,na sala de professores.As do ano anterior, correspondentes
a Abril,Maio, Junho e Julho, totalizam 10400$oo; as do ano precedente constituem o montante, formado por 5, mais 10, mais 1o, faltando o mês em curso, por não sabermos ainda se
omitiremos aulas.
Caso não dê faltas, vou receber por 35 aulas, distribuída que e por 4 meses.
Se olho, efectivamente, para colegas meus que mensalmente já
dão 40, das extraordinárias ( além das 88)!
Por que não me davam um número igual?! Se eu o pedi,
antecipadamente?! Por esta razão, se for criado o Ciclo, na vila do
Chitembo, vou concorrer.
Voltando uma vez mais às extraordinárias e assuntos relacionados, conto receber, por ocasião do Natal, um montante
aproximado a 45 contos, incluindo Dezembro - 10.515; 13º mês,
com igual pagamento; 13.900 de horas extraordinárias; 1o.000 no
Internato
Isto é o que julgo, em perspectiva.Pode acontecer que haja algumas falhas.O dinheiro do Estado é o mais seguro Por isso,
costuma dizer-se: Não há patrão como o Estado!

Não aspiro a ser rico nem jamais o desejei, mas quero actuar de maneira eficiente,para ter o necessário que permita viver segundo o meu estado, podendo realizar-mee, ao mesmo tempo, satisfazer ainda outras aspirações.

Não esqueço a família, as obras sociais e outras necessidades que seria grato ajudar também.
Se Deus for comigo, não havendo contratempos, irei
naturalmente pelo caminho certo

A última palavra pertence a Deus do Céu, pois tudo se encontra nas suas mãos!
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Silva Porto
12-12-1973
Daqi a 8 dias, com todo o rigor, é tempo de abalada.
As férias do Natal são pura realidade! Quem as dera já presentes,
com amável sorriso a bailar em seus lábios e o olhar de magia prometendo coisas de entontecer! Até lá ,porém, muito há que sofrer.
Acabar, de uma vez, a revisão dos Pontos; dar ainda algumas aulas; assistir paciente a longas reuniões, com vista às notas. Mas, enfim, tudo vai passar e, até eu, umdia virá,em que
passarei, desta vida buliçosa para outra melhor. Quando isso
chegar, que seja bem tarde,com pouco mal, serena morte e a glória do Céu
Este é mais difícil de ganhar e garantir, pois destina-o Deus a quem já travou o bom combate e lutou ainda por um mundo mais belo
Ora, este combate é luta ingente contra si próprio, total esmagamento da vontade própria,trituração de más inclinações.
numa palavra, aniquilamento de quanto é vaidade, soberba e ambição, para reinar somente a vontade celeste, que deve ser a bitola,para aferimento..
Portanto, vê-se claro : para atingir este grau maravilhoso, é
necessário esforço e muita coragem..De facto, satisfazer, de maneira louca, paixões e sentidos, em vida porcina, é agradável e
atraente, pois vai ao consoante da natureza humana, mas enveredar por caminho oposto, representa desde logo, acção contrária, de efeitos diferentes, que exige a toda a hora, luta e sacrifício.
Lá diz algures o Livro Sagrado: "Militia est vita hominis super terram".
Quem isto escreveu não estava dominado pelo espírito mundano;
inspirado, sim, pelo Espírito Santo.
Senhor, valei-me, sem demora: olhai, clemente, para a minha condição!
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Silva Porto
13-12-1973
Era no intervalo.
Ela, viúva alegre, de 40 e poucos anos, mas aperaltada e com pretensões; ele, por seu lado, médico militar, em comissão de serviço, todo pachorrento e bonacheirão!
Sendo 14 horas é mais favorável um sono tranquílo ou
breve descanso que longo questionário, pesado e minucioso,
relativo a males e indisposições. Mas se a vida é isto!
Acabara o almoço.
Como é dever, todos se encaminharam à Escola João de Almeida,
para dar suas aulas. Desta vez, os primeiros a chegar foram aqueles dois. Mal podia o bom Clínico adivinhar então as intenções da molesta viúva.
Aquilo foi assédio como se faz aos próprios baluartes
O pacente médico ouvia, ouvia e dava assentimento, lamentando,
às vezes
Elam por sua vez, notando ali que a esperada atenção lhe não era negada, fosse embora mera cortesia, importuna e forçada,
ia aproveitando, manhosamente, com vista a desfiar o rosário longo de seus males reais ou imaginários.

Quando mais tarde cheguei também à sala de professores e me apercebi do facto em causa, quase lamentei, cá no meu íntimo.
Não a mim, já se vê, mas ao Galeno que certamente desejava o intervalo, para aliviar, fosse pouco ainda.

Mas não! Aquilo era tal qual um matraquear infindável de
perguntas certeiras ... um imenso estendal, em que avultavam
as anomalias de maior gravidade e inquietação.
Logo em seguida, pedidos insistentes de investigação,
insinuaçóes e meneios de concordância, enfim,uma seca daquelas que não podem prever-se e cujas personagens são dignas de piedade!
Aquele inditoso parecia vencido, aniquilado e, interiormente, a pontos de enjoar: ela sempre airosa, imaginativa,
tentando alindar o fraseado abundante e, ao mesmo tempo, o ar do
rosto, para insinuar-se no espírito dele.
Saturação? Impertinência? Enjoo, talvez ou até náusea?

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Silva Porto
14-12-1973
É uma colega que veio este ano. Acho prudente, ajuizado e sensato que uma passoa, estramha a um lugar,tente
conhecê-lo, para tirar as suas conclusões e adaptar-se Acho desassisado fazer ao contrário, quero dizer, impor os seus gostos,,
lançar preferências, falar do que é seu..

É isto, precisamente o que ela tem feito.Regendo a vida por este padrão, com toda a certeza, há-de ser reparada e objecto de crítica. Fazem-se juízos, notam-se reservas e até,vamos lá,
um pouco de suspeita e má vontade.

O gosto dela é falar continuamente, sem peso nem medida .
Ora, se os intervalos das nossas aulas são para descanso, nao viola este plano fazer-lhe barreira?! Não será de sobejo o ruído nas aulas, onde a gente se enerva e ouve, por vezes, tanto disparate?!

Como é bom o silêncio ou então uma conversa, apenas a meia voz, com pessoa ajuizada, espirituosa e lhana que sabe dispor bem, nos assuntos mais diversos!
Que ligam os outros àquilo que é meu ou então que só mim respeita?!
Pois se lhe toco, vão eles interessar-se?! E, se além disso, matraqueio o mesmo, tornando os pacientes vítimas imbeles de
meus gostos exóticos e das minhas preferências?!

Poderei sujeitá-los a caprichos meus?! Que importam,. na verdade, filhos e netos a quem me rodeia?! Livra!
Aquilo é, na verdade o que pode chamar-se potente grafonola, mas sem registo e de corda automática.

Começou? Nunca mais acaba! Deixá-la ir, mas não ao pé de mim, que faz doer os ouvidos, pondo logo os nervos em grande tensão!
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Silva Porto
15-12-1973
Tanta canseira, para vermos derribados sonhos maravilhosos que um dia acalentámos! Lidas e projectos,,
esforo e tarefas, planos grandiosos, ambição desenfreada, tudo se
descarrega, no porto da sepultura!

Até as vaidades, junto com o orgulho, a soberba e a preguiça, lubricidade e sorriso largo, afecto e promessas; requintada falsidade, hipocrisia e manha, habilidade e astúcia, conhecimento e vasta erudição... tudo vai ficar e nós partiremos!

Por outro lado, não irá o sonho, que um dia gerámos,
comprometer o nosso destino?! Não sabemos, há muito, haver-nos Deus criado, sendo Ele de quem viemos?!

Se tudo lhe pertence, como podíamos nós escapar à regra?!
Antes que seja tarde, meu Deus e Senhor,fazei que Vos conheça,
para mais Vos amar e me conheça a mim, para me desprezar!

.Era este o pedido que o bispo de Hipona, fazia a Deus, logo pela manhã (o grande e imortal Santo Agostimho)
Não será bom tempo de rever a minha vida e enquadrá-la em
outro moldes?!
Claro e assente! Não há crimes a manchá-la nem grandes malefícios que os homens condenam e o mundo aborrece.

Entretanto, a consciência onerada, com faltas e pecados de
toda a sepécie, levanta o alarme! Aqui Vos peço perdão, Senhor meu Deus, na quadra do Natal.

Aqui Vos imploro que o Menino-Deus venha trazer-me, neste ano da graça, desejo imenso de inteira reforma, pois já vi claramente que o mundo falaz não pode trazer-me aquilo que sonhei, deveras inebriado: felicidade e paz
É um dom maravilhoso que vem lá do Céu, perdendo~se o tempo a buscá-lo na Terra!

******AQUI
Silva Porto
16-12-1973
Último dia, para reuniõea, com vista às notas. Tarefa enjoativa, em que os nervos se alteram e o peito carregado
modifica o agir.Horas e horas, sempre tudo a fio, comendo à `pressa, em correria louca, para não esperarem! Basta dizer que fui às 10, para regressar às 22!.Já não sabia de quem era a cabeça!

Havendo começado às 8 da manhã fomos adiante,com grande persistência Na verdade, economizámos três dias de férias! Um fim de semana deveras excelente! Hoje, são apenas 4 horas que vão seguidamente, das 8 às 12! Termina, pois, ao almoço. Falta
somente a secção agrícola.
Distribuímos ontem as actividades pelo Comércio, junto com a Indústria e Formação feminina. Olhei, de momento, para o relógio, notando surpreedido que eram já 5 e 30.

Escravo de meus hábitos e sempre cumpridor, aqui venho eu
confiar ao papel o que o Diário exige, dando conta rigorosa de todo o meu agir.
A pobre cabeça, um tanto aliviada,leva-me desde já a fazer
preparativos para a faina diurna. O dia anterior foi bastanta carregado, embora o tempo se escoasse, de maneira imperceptível.
Houve sessões que bastante demoraram; outras, porém, foram mais rápidas. Isto é devido, naturalmente, a certos factores.

Entretanto, aquilo que mais temo e assaz me afronta, é o
hórrido matraqueio de alguma "grafonola" ( só temos uma!)
Autêntico inferno haver de escutá-la! Digo até ser a coisa pior que Deus permite à mulher, para humilhar o seu adversário

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Silva Porto
17-12-1973
Amanhã, finaizam as aulas, acabando assim um período longo, que roça, ao de le, pelos 4 meses.
É certo e sabido que as nossas actividades não começaram no dia
próprio mas, ainda assim, bastaram já, para fartar!

Entretanto, para confirmar o velho rifão "Não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature", lá vêm as férias, com as festas do Natal e do Ano Novo!
É, na vedade, uma quadra tocante, mas para mim já perdeu o
fascínio, pois faltam os vínculos, sagrados e profundos, que ligam
e unem os filhos aos pais.
Tenho uma família que me estima e preza e no seio da qual me sinto bem, mas verei este ano, pela primeira vez, se me julgo um estranho, em noite de Natal.
É tão cordial a solenidade, táo cheia de ternura e doce encanto!...
O belo sapatinho e o júbilo sem par das lindas crianças,
que foram adivinhadas em suas pretensões! O sabor e aconchego do lar amigo,onde se juntam alegres os membros da família,
incluindo, já se vê, os mais respeitáveis, pela idade e pelo afecto.

Esses entes adoráveis não os tenho há muito. que a morte impiedosa ceifou-lhes a vida prematuramente.
Hão-de estar,assim o creio, num lugar bem melhor, onde
são, junto a Deus, advogados prestimosos

Aih! Natal belo da infância perdida! Como eu te quero, à
luz do passado, na poesia formosa dos longes que te ocultam!
É que o tempo inexorável os afastou de mim1

Natal de 73! Não podes já ser o que foste um dia. No
entanto, vais lembrar-me esse tempo formoso e trazer decerto o Menino Jesus ao meu coração.

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Silva Porto
18-12-1973
"Emigrantes"
Acabo de ler este livro curioso de Ferreira de Castro. Já conhecia a Lã e a Neve, assim como A Selva, mas só há pouco tempo os pude ter à mão. Em dias passados, havia lido apenas alguns extractos. Agora, pois, que é boa ocasião, mergulho com prazer
nos escritos do autor.
A biblioteca do Seminário contém, sem dúvida, livros marcantes que D,Ildefonso, primeiro bispo desta cidade, havia
adquirido.
Quanto a conceito, acerca do escritor, não dispõe certamente
do que eu muito aprecio: forma literária , cudada e mimosa.

Habituado a Garrete., Eça e Latino, Castilho e Torga, é
difícil encontrar, à margem deles,algo que satisfaça ou me encha as medidas, no aspecto em causa.

Apesar de tudo,há nele,sem dúvida, excelentes predicados,
que não posso agora deixar no escuro: argúcia invulgar,sempre que interpreta os actos humanos; espírito fino de observação;
minuciosa informação; suficiente noção da Lingua Portuguesa.

Julgo, no entanto, que falta imaginação e um pouco de lima.
Deparam-se ainda asperezas frequentes e ritmo débil.
Moralmente, é indelicado e um tanto grosseiro, na maneira de tratar assuntos escabrosos, podendo omitir algumas cenas.

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Silva Porto
19-12-1973
Partida! As férias são agora viva realidade! Vá de
aproveitar!
É já por isso que me levanto mais tarde! Como é repousante não ter cuidados! Dormir a sono solto, descansar tranquílo, sem aqueles sobressaltos que o horário levanta!... Agora, porém, não é assim!
Navegando já em mar de bonança, com vento favorável, é
delicioso balancear-se, a capricho, no dorso fofo das ondas mansas.
Levantei-me assim já perto das 7, Depois, é só tomar o dejejum e encher o carro de pequenas coisas a levar para o
Chitembo.
Fui ao Banco e Crédito, para resolver um problema grave ,
sendo infritiferas as minhas dligêmcias!
Impossível actuar sem procuração, reconhecida pelo Notário
Em casa, tudo arrumado e toda a bagagem dentro do carro1.
Aguardando alguns minutos, viram qu eu, afinal, voltava desiludido.
Agora, é só arrancar! Outros ares no esperam... outras caras nos fixam.Novos ares se respiram..Isto, por cá, já tresanda a bafio. É fugir quanto antes! Pôr as coisas de parte, olvidar Pontos e livros, afastando-nos em seguida, a passos largos, desta monotonia!
Três longos meses, sem interrupção, entrando já no 4º!.
O Manicómio seria, naturalmente o abrigo e refúgio dos professores
Se não fossem as férias! Que triste fadário e negra sorte!
A correria para o Chitembo, lugar tranquílo e já sem ruídos.
é pura realidade! Ao fim de 100 minutos ou menos ainda, chegamos à vilória!
Para 150, faltam apenas 5 quilómetros, mas o Taunus vê nisso mera bagatela!
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Chitembo
20-12-1973
Pensava eu, com demora, no aniversário da morte de
meu pai, ocorrido em 18, quando a minha saudade, gemente, inconformada, se viu amortecida por cena chocante,que
fundo impressionou.
A nossa gata seguia atentamente, a passo medido e bem calculado, os movimentos de certo lagarto, que preparava a fuga.

É no amplo quintal, adjacente à casa, onde se ergue alteroso
um pinheiro de jardim. Alto e copado, oferece a toda a gente a sombra refrescante, quando os raios solares afligem oa mortais.

Insectos e aves, bem como répteis não deixam de procurá-lo, para ali saborearem os doces eflúvios que dele emanam.

Lagartixas e lagartos, camaleões e gafanhotos, baratas e aranhas tudo ali se acolhe, afim de escapar aos raios ardentes,em
dias insuportáveis de forte canícula As aves do céu fazem lá os seus ninhos, para mais tarde porem os ovos a incubar.

Enquanto isto se passa lá em cima, cá em baixo, no chão, é
muito frequente vermos, deliciados, rostos enegrecidos, que ali
se refugiam, para descansar,tendo a seu lado vinho e cerveja,que
dentro em breve os põe alegres.
Outras vezes, alguém é julgado. à sombra protectora do
velho pinheiro, como eu vi um dia.
O caso em foco respeitava à mulher que se mantinha de pé,
enquanto os seculos ( homens com mais de 40 anos) e o soba da
vila aguardavam ali, sentados no chão.
Logo perto da roda, via-se um garrafão,mas ninguém falava.
Chegado o momento,o soba do local inicia o acto, expõe o assunto - adultério da mulher - e pede aos seculos que dêem o parecer, acerca da pena.
Pagaria de multa 700$00.
A parte final dizia respeito ao garrafão e seu conteúdo.

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Chitembo
21-12-1973
Grande labuta, nesta data, em lugares de venda. As
proximidades do Natal suspirado originam movimento e
despertam o folclore
As numrosas garrafas que agora se esvaziam bem como as
saudações que na quadra se trocam revelam para logo imensa
alegria.
Não é só a Europa que se regozija, em casos desta ordem. Os pretos,afinal, excedem os brancos. A exuberância ,nas demonstrações, constitui para mim quadro bem vivo e pitoresco,
levando-me sempre a observá-los, com enorme atenção.
.
Vêm de longe ( 20 e 30 quilómetros), por sendas e picadas,
afim de festejarem o alegre Natal. Uns recebem provisões, outros
ainda ajudam a gastá-las.
A indumentária é simples e muito descuidada, limitando-se ao mínimo. De nada se afligem. Preocupações em geral, é coisa
inexistente. Se têm,gastam; se não têm, por acaso, acompanham outros.
Para vinho e cerveja, é raro que não haja. Pena é, realmente, que se embriaguem, pois deste modo aviltam a raça.
Tristeza neles é raro encontrar. Entre muitos deles, só um se queixa de as coisas subirem. Falou com acento, comovendo a
valer!
Dizia então ele: - Há que voltar para a mata e cingir-nos à
mayema!
Trata-se da tanga. Ajuntou ainda que a vida é impossível para a pobre gente da sua raça, com poucas excepções.

Os que se instruem, esses vivem bem e podem acompanhar a carestia da vida, mas os outros?!."Se aquilo que eu vendo é ao preço de há muito, como posso acompanhar a alta de preços?!"
Penalizou-me fundo o bom do pretinho que, afinal, expressava ali o sentir de muitos outros.

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Chitembo
22-12-1973
Ando a ler agora o ensaísta Rui Belo.
Demasiado filólogo, exige atenção e grave reflectir,para
imergirmos sem entraves de monta, no mundo abstrato, em que intenta lançar-nos. Por esta razão, com leitura desatenta ou feita
à pressa, não nos apercebemos do sentido abstruso da obra em
causa - Na Senda do Porvir.
Há-de ler-se de espaço, com breves intervalos, repoudando
um pouco, afim de aliviar o nosso espírito.
Não deixo de apreciá-lo.

Apresenta Rui Belo maneiras de ver que são originais. e de
que eu não discordo inteiramente, Levanta problemas e sugere conceitos em que vou debruçar-me, logo que possa.
Cheguei ultimemente à página 200, havendo mais ainda, para deleitar-me.
Até agora, o que mais incita a curiosidade é de facto, a maneira de ver, sobre Camões e Fernando Pessoa.
Se lhe pedirem um mestre - diz ele - não escolho Camões;
sim, Fernando Pessoa. Aquele foi mestre, na sua época, que não é, demodo nenhum, a que nós atravessamos.

Estou muito empenhado em ler a Mensagem, para inteirar-me do seu conteúdo.Não adiro inteiramente à opinião de Rui Belo, emquanto náo vir aquela obra famosa.Apesar de tudo, há certos aspectos, embora raros, em que é forçoso seguir o autor, pois que
Luís de Camões viveu numa época de grande euforia, que hoje se
ignora.
O cunho de eternidade, atribuído aos Lusíadas, não se estende, geralmente, a todas as facetas. A Grande Epopeia é fruto de uma época e não exprime, de modo nenhum. o sentir e os anseios bem como o pensar do nosso tempo.
Apesar de tudo,
a arte consumada e a pintura inigualável da alma lusa, os valores morais e todos os grandes valres ali defendidos não pode o tempo jamais fazer-lhes mossa. pois são eternos

Como insigne Mestre, jamais Pessoa atinge a craveira de
Luís de Camões! Este é clássico e imortal: aquele não!

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Chitembo
23-12-1973
Voltando uma vez mais ao assunto de ontem, embora eu não pretenda, que não quero nem posso, depreciar o valor da
Epopeia Naciona,formosa jóia literária ,única no género e a maior de todas, a título universal, é certo que, em nossos dias, não se
admite nem tolera, pelo menos em teoria, que um povo qualquer
invada outro, a pretexto disto ou então daquilo, para impor suas leis, credo ou língua!
Na prática, porém, que é o que vemos?!
Que nos diz o Iraque e o Afeganistão?! Que lição nos deixou a segunda Guerra Mundia?! E no porvir, pelos antecedentes,que
lição deixará a Coreia do Norte, para não juntar o Irão?

Alguma vez Portugal fez coisa que, de longe. se parecesse com isto?! Não toquemos na epopeia, bíblia humana,sagrada,
imortal!
Que nos ensina também o Ultimato Inglês de 1890, sobre as tterras africanas do mapa cor de rosa?!
E o concelho de OLIVENÇA, ocupado pela Espanha, logo no
princípio do século XIX?
E a conhecida fábula do Lobo e o Cordeiro?!

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Chitembo
24-12-1973
Noite santa, noite sem igual, em que o Redentor surgiu entre nós! Quantas recordações, ora doces, ora amargas não me traz à memória! Este ano aprazível, passei-a com os meus, em
ambiente agradável, que me encheu de alegria.

Quão diferente a minha consoada, se a comparo, a rigor,
com a de tempos já recuados.Vivendo minha mãe, tudo era enlevo, pois restava ainda a pessoa mais querida que eu tinha no mundo
Após a sua morte, ocorrida há 9 anos, como era pesada esta
noite longa, para o meucoração! Apenas um som, a emergir de ruínas!
Em1964, por estarem correndo as férias de Natal, encontrava-me em Lisboa. Bem memorável tal consoada!

Um ambiente suave, de paz e amor envolvia então os pobres mortais, Eu, porém, fazia excepção.! Âs 18 horas, meti-me no quarto, sem haver jantado Chorei amargamente a minha solidão
e assim decorreu aquela noite santa, em que até os mendigos rejubilam e cantam!

Hoje, na verdade, já foi diferente. Entretanto, a aura antiga perdeu-se inteiramente! O canário, por vezes, é quase tudo.
A velha cozinha, fuliginosa; o seu caniço escuro, atolado de castanhas; o fumeiro pendente, cobiçoso e farto, era ambiente propício, deveras acolhedor.
Qual sala de jantar, ali se comia a gostosa consoada que vinha de Antanho.
Enquanto em baixo, no velho terreiro, ardiam. cintilando, caules gigantes de velhos castanheiros, também nos lares, por mais humildes, crepitavam as achas, à volta das quais a família se juntava.
Amor e ternura... carinho, aconchego!
A candeia escura,pendurada na cadeia, clareava frouxamente o bacalhau e as couves, mal podendo atingir a bacia das filhós..
centro de convergência para os olhitos vivos das criaanças gulosas

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Chitembo
25-12-1973
Um Natal a mais, na roda veloz da vida presente.!
Afirmar que não foi agradável é coisa que não ouso, pois o Deus- Menino lembrou-se de mim. Maravilhado fiquei, deparamdo-se um embrulho, à minha frente, em cima do sapato!
Sinal de velhice? Manifestação de apreço?

Diz o nosso povo, judiciosamente: De velho se volta a menino.
A questão dos sapatos respeita aos meninos! Eu que já ando, nos 55! O caso de hoje faz pensar com demora!

A nossa Guida veio, pressurosa, buscar o meu sapato, mas pu-lo outra vez ,no mesmo lugar.Ela,porém,dando conta do facto, de novo o levou, colocando-o junto ao dela e dos irmãos.

Contrariado embora, cedi então, para não entristecê-la.
O que é certo, por indubitável, é que, pela manhã, rumando pressuroso ao quarto de banho, avistei um embrulho que deveras
me intrigou.
Nem lhe mexi, supondo até que houvesse engano, ao porem ali tal encomenda!
Se eu, em tempos idos, jamais fora contemplado, em iguais
circunstâncias! Ia agora,depois de velho, habituar-me a prendas, à
maneira das crianças?!
Perante a insistência e formal garania de que não houvera qualquer engano, mandei abrir ao noso Isaías.
Cheio de curiosidade, lá foi desatando a fita envolvente.

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Chitembo
26-12-1973
Acabei de ler hoje a obra famosa " Jesus passou por aqui", de Guedes de Amorim, ilustre escritor da nação irmã.
Ouvira falar dele, com grande apreço e justa admiração,
mas sem oportunidade, afim de consultar os livros de sua mão.

Agora,pois, que se deparou uma bela ocasião, aproveito o
ensejo, para matar a viva curiosidade. São 500 páginas
acompanhadas, por modo geral,de boas fotografias,
Lê-se eata obra com enorme interesse e acha-se escrita em bom português.
Não é, certamente, linguagem castiça ou deveras limada, vendo-se
claro o desígnio do autor: jamais estadear sombra de glória nem
satisfazer aspirações de artista; desinteresse marcado por aspectos humanos, afim de realizar um fim definido - iluminar, com fervor e carinho, os Santos Lugares, em que os pés do Salvador se poisaram um dia ou onde se fez sentir a voz do Senhor.

Enternece, para logo, a maneira subtil como o autor piedoso,
em linguagem chã, sem pruridos de estilo ou qualquer intenção de glorificar-se, por meio da arte, fala de tais sítios e de quanto se prende ao meio ambiental,

Não é rico também de vocabulário, mas exprime-se, em regra, com bastante eloquência, usando com esse fim termos adequados, para nos prender, ao longo da narrativa

Fornecendo-nos dados, sobre o Estado de Israel e suas realizaões, dá belo ensejo de admirarmos um povo, sempre
tenaz e empreendedor,cuja sólida esperança o mantém alerta e
de igual passo, em constante expectativa
Não ser ele, afnal, o povo eleito!

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Chitembo
27-12-1973
A Beaudelaire perguntaram um dia que era a inspiração. Este simples facto não impressiona, porque é vulgar
fazer alguém perguntas curiosas, logo que se ignora determinado assunto. Entretanto, já o mesmo não digo, acerca da resposta do grande estilista: " Inspiração é trabalhar todos os dias!"

Alguém havia dito: " O génio é uma longa pciência!"
E o provérbio latino: "Labor omnia vincit" O esforço ultrapassa todas as barreiras).
Nota-se convergência, em todos os casos.
É de todos conhecida a mágica forma que o insigne estilista soube imprimir aos seus escritos.À primeira vista, afigura-se logo ser tudo espontâneo, brotando do autor como água da fonte.

A sua definição vem dizer-nos, porém, que tal não foi o caso. O que se apresenta como natural, fluente e delicioso, é fruto de canseiras e lidas sem fim.
Não foi o mesmo com Garrete e Eça?!
E se vamos para Virgílio e sua Eneida, poema famoso, entre os grandes?
O trabalho de lima levou 12 anos! Não obstante isso, após tanto esforço de arranjos e mudanças, cortes diversos e substituiçóes, decidiu queimar o famoso poema, por não corresponder a seus altos anseios..

Se não fossem então as advertências graves e harto ponderosas de um amigo seu, haveria destruído essa obra imortal.

Tudo que é belo, grande e imortal passou interiormente pela mágica bigorna de uma longa paciência. e terminou, já estamos vendo, com o forte martelo da teimosia.

É também conhecido o caso de Miguel Ângelo. ao trabalhar a
estátua de Moisés. Alguém que passava, fixou-a delirante e exclamou:" Senhor, mais nada precisa essa maravilha"
O escultor ouviu, mas só a largou, passados 4 anos.

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Chitembo
28-12-1973
Vou lendo, à data, "O Homem da Rua" por Guedes de
Amorim.
Este escritor vibra intensamente com os problemas de ordem social. Mais uma vez ele se detém, neste assunto de predllecção.
O seu livro é um grito veemente , lançado um belo dia pelo seu coração,. em favor daqueles que se arrastam gemendo, pelos caminhos da vida,sem obterem justiça, amor e pão.

Quem vai lastimar os pobres infelizes que, por serem obscuros, ninguém sabe deles?! Apenas o Céu é quem o faz ou bondoso coraçao por amor do seu Deus.

Quanta miséria dor e angústia não vai perpassando, ao longo dessas páginas! Desprotegidos e lançados à margem, objectos de irrisão por parte do mundo, são escravos de irmãos, tendo um fim lastimoso
Quanta desgraça não emerge desta obra, em que um nobre coração pulsa com vigor!
Francisco e Margarida, Lourenço e consorte, e a filha Violeta, como outros ainda, são personagens, tão bem delineadas, que jamais, nesta vida poderemos esquecê-las

 porta de muitos bate impiedosa a esquálida miséria!
Que longo cortejo, em que a dor é senhora, estadeando-se fraquezas e altas restrições!
É esta, de facto, a nota predominante: um quadro vivo,Humano, eloquente da miséria ignorada que pululaà nossa volta, É Diário tal quadro!
Só fechando os olhos à triste realidade não pode observar-se! Quantos males deploráveis!

Lemos, pois, e sofremos com Gomes de Amorim, ao pôr em foco
operários despedidos. Que podem fazer estes seres miserandos a
nada mais habituados?!
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Chitembo
29~12-1973 ( cont,)
Acabei a leitura e dou por bem empregue o tempo dispendido. Na verdade, é uma obra excelente, de sentido construtivo e moralizador. Exemplos daninhos não são estadeados, porque é tremenda a responsabilidade que impende sobre o homem, perante o noso Deus e a sociedade.

"Ai daquele por quem surge o escândalo!"
Não foi Jesus que proferiu estas palavras? Verba volanl; scripta
manent. As palavras dissipam-se; a escrita permanece.

É interessante olhar ao seguinte: Guedes de Amorim, embora remexa na lama do vício, não só aludindo ,mas também
encarando-o em toda a crueza, fá-lo com aprumo e delicadeza,
mostrando para logo os efeitos lastimosos que vão dali seguir-se,
por modo fatal.
Margarida, irmã de Francisco, aliando.se a um gatuno, é
finalmente condenada à prisão, junto com o esposo, durante 4 anos, abandonando o filhinho, ainda em tenra idade.

Violeta, fazendo-se a um casado e conseguindo levá-lo ao que tinha em mente,(uma boa parte das suas intenções), é posta
na rua, com palavras desabridas e ditos ofensivos.

Francisco, porém, não obstante os seus deslizes, porque
foi esmoler e bondoso, em todo o tempo, utilizando palavras
de carinho e dando subsídios a pobres e outros infelizes, teve
depois um final invejável e estimulante, pois veio, mais tarde, a casar com Violeta.
Esta, após a queda e a lição tremenda, que lhe serviu de escarmenta, fez-se ajuizada, respeitadora e honesta.

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Chitembo
30-12-1973
O grande problema, que absorve e tortura, diz
agora respeito à Margarida. Tem o 5º ano bastante arriscado,
pois lhe couberam algumas negativas. É desconcertante!
Receoso em extremo de tal desfecho, causou-me a notícia
grande mal-estar! É apenas uma, na parte de Letras e outra ainda,
na de Ciências.Mas o caso não é esse.

Detesta vivamente a secção de Ciências, excluindo o Desenho.Grande seca! Isto só vivido é que pode entender-se!
Perdendo este ano, quantos sonhos desfeitos! Quantos planos gorados! Quanta dor e angústia, vindo a caminho!

A minha ocupação, nos dias que passaram, era mostrar-lhe
claramente que devia estudar, por muito mais horas!
Aceitará ela ou, bem ao contrário, fará ouvidos surdos?!
Muito acriançada, figura,às vezes, não levar a sério
aquilo que lhe dizem.
Entretanto, se ela não fizer o 5º do Liceu, compromete
o futuro, originando problemas. O dano é enorme!
Se criam o ciclo, na vila do Chitembo, como vai já soando,
haverá, desde logo vários concorrentes, para leccionar.

Até eu próprio gostava de lá ficar. Havia de ser em
extremo agradável.
Português e Framcês ou ainda Inglês eram para mim uma
pechincha! Há tanto já que lido com isto!

Voltando uma vez mais ao caso inicial, há na verdade uma série de problemas,cujo desfecho ignoro e temo.
Tudo vem ao de cima, nas horas de angústia. Por isso, exactamente, ouve aquilo que não quer!
A minha intenção projecta-se ao longe, na linha do horizonte. que mais tarde enxergará.

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Chitembo
31-12-1973
Chegar ao termo de una jornada coisa é que se deseja,
de modo partcular, se atingimos um fim ou então realizamos um
vivo anseio. Esta jornada está longe de ser tal ou trazer realizações que deveras me encante. Foi mais um ano a juntar a outros, um passo para a morte, um avanço fatal, a mostrar claro ser tudo vaidade e aflição de espírito.

Aumentou em mim o rosário, já longo, das contas negras;
avolumou-se ainda o corpo de delito; engrossou também a longa
cadeia de logros e fracassos.
Terei feito, na verdade, alguma coisa de bom, para compensar as minhas decepções, amarguras e falhas?
Enveredo, sem receio pela afirmativa, embora de positivo não encontre muito.
Dei muitas aulas e, embora pagas, sei com certeza que levaram a luz a muitos espíritos, contribuindo assim para um mundo melhor. Isto,afinal, enche-me o peito de vivo prazer, pois
é, a rigor, ajuda valiosa, no campo moral,

Durante as aulas que fui ministrando, aproveitei sempre o belo ensejo, para lançar a boa semente, no campo do ensino. Seria
já bastante, para compensar, devidamente, o mal que tenha feito?!
Haverá, neste caso, saldo positivo?!

Perante Deus e a minha consciència, não fiz tudo quanto devia.
É por isso, pois, que ao findar este ano, só pendente, a rigor, de algumas horas, agradeço a Deus os bens recebidos e imploro a sua graça, para melhor cumprir, no próximo ano

Com esta súplica, vai outra de perdão para as infidedelidades, negligências e pecados.
Abençoai-me, Senhor e vinde em meu auxílio.

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