terça-feira, 8 de setembro de 2009

Memórias 13

Silva Porto
17-11-1974
A Epopeia Nacional e o Mundo Negro.

Vai surgindo um problema que é para mim algo delicado: banir os Lusíadas, maravilha incomparável do engenho humano, ficando os estudantes , à margem da Epopeia. .

Consta-me já que alguns alunos o pediram sem rebuço. Alegam, para isso, que se trata, a rigor,dum poema colonialista, razão pela qual não morrem de amores, pela Bíblia da Pátria.
Eliminá-la?!
Aquilo que encerra beleza eterna impõe-se de tal modo
à Humanidade inteira, que força nenhuma, por mais poderosa, lhe pode fazer frente!É um destes monumentos de carácter eterno e universal, em que se defendem , primorosamente, os valores humanos,em linguagem bela, superior a tudo, num ambiente constante de sonho e fascínio.
Sendo embora nacional, tem o raro condão de se estender ao Orbe. Abrange-o, sim, pela arte consumada; pelo ideal humano; por todos os valores que ali se defendem; pelo patriotismo deveras acendrado e pela Religião, que o Mestre Divino veio um dia ensinar a todos os homens.

É colonialista? Que sentido atribuir à discutida palavra? Bom ou mau? Falar alguém em colonialismo é tomar em conta erros nocivos e depradações, abusos graves e extorsões.. Isso, no entanto, é a parte negativa

Numa realidade, interessa balancear o aspecto negativo com o positivo.Sabido é já que toda a obra humana tem os seus defeitos e as suas qualidades. Ora, todos os povos são colonizados pelos mais evoluídos.

Deu-se no passado e sucede no presente. Que é a propaganda, o sectarismo e a intransigência senão meios sub-reptícios de colonialismo?! Como há bastantes crédulos e muitos ingénuos, o processo continua, revestindo, por norma, aspecto diferente e utilizando, para tal efeito, modos sofisticados.

Não vou eu dizer que foi isso um mal, no tocante ao passado! Já o mesmo não direi, em ordem ao presente!.

Não foi a Hispânia dominada outrora, ao menos parcialmente, pelos Romanos? Não sucedeu a mesma coisa a muitas regiões do imenso globo? Não cometeram eles abusos tremendos?! Apesar de tudo e conra tudo, essa colonização foi muito benéfica.

Deixou-nos em herança a Língua que falamos, apoiada e
caldeada com a dos Lusitanos: os costumes e as leis; as tradições; o Direito Romano; o cultivo da terra; a promoção da liberdade; o abandono dos montes, para viver nas baixas,etc.

Não falo já de várias instituições, de que restam vestígios. Herdámos defeitos? A culpa. foi nossa!

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Silva Porto
18-11-1974
Colonização ( cont.)
A famosa cidade, Roma imortal, no topo da grandeza e celeste esplendor, praticava a escravatura. Claro está,
digo eu, que não venho defender tal abominação!

Admito-a, no entanto, olhando, já se vê, à mentalidade, que
reinava então.Era coisa aceitável, naquela época e ninguém achava mal!

Tinha-se por ventura como realidade assaz fatalista e
por vezes, até, como um mal necessário, o que sucedeu, nas ex-colónias britânicas do continente americano. (Refiro-me às do Sul) Era um mal necessário? Facto incontroverso, à data de então? Impossibilidade, absoluta e constante, de reacção e protesto? Consciencialização ainda inexistente? Seja como for!

Embora repugnante e assaz condenável, para os nossos dias, não o era então.
O que é engraçado e muito curioso é que o "colonialismo,"agora tanto em foco e altamente vaiado, nem sempre com justeza, foi quem trouxe à América a Doutrina de Jesus, que liberta o homem e lhe defende, por modo integral, a dignidade!!

Não foi o Brasil colonizado por nós? Que mal adveio para os Brasileiros, de facto semelhante?! Não receberam eles uma Língua ideal, que todos falam hoje e por meio da qual se põem em contacto com o mundo civilizado?!

Acaso baniram eles a epopeia camoneana, relegando-a, insensatos, para o plano da indiferença e votando ao abandono uma obra imortal?!
Nem essa nem outras que são, na realidade, património de Portugal e do grande Brasil!
A História de Portugal é igualmente a História do Brasil, por ela ser comum aos dois Estados.

O Padre António Vieira, Anchieta e tantos outros não são, acaso, glórias do Brasil?!
Não teve o primeiro de fugir très vezes, por defender,
resolutamente, os direitos dos Índios?!

Não recebeu o Brasil uma herança imensa,que já se impõe, no mundo inteiro e será, no futuro, uma super-potência?!
Não foi a diplomacia e rara acuidade do Rei português, D, João III, que garantiu, para sempre, a imensidade brasileira?!

Os outros povos sul-americanos foram colonizados pela católica Espanha, Foi um mal ou um bem?
Todos os povos foram colonizados e, se não fora deste modo, tanto a barbárie como. a lei da selva reinariam
infrenes, sobre a face da Terra.
Até a própria Roma, na sua arrogância de colonizadora, se volveu em colonizada, ao comparar, surpreendida. as suas instituições, Lingua e tudo o mais com as do povo imortal - a Grécia antiga!

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Silva Porto
19-11-1974
O que atacam os Lusíadas.
Quanto de mau e deveras iníquo havia no mundo é repudiado, com vivacidade, pelo vate lusitano. Causará estranheza defender a honra e, bem assim, erguer protestos contra os inimigos?
Quem estranhará que alguém ,neste mundo, melhore o seu património, criando aos vindouros uma situação bem mais desafogada?

Em relação mais directa aos Turcos e Árabes, inimigos figadais da Europa de outros tempos, que tentaram invadir e logo escravizar, se assim o entendessem, Camões é violento e duro em extremo, porque tem razão. Era acção contrária ao Direito vigente:
"Res primi capientis" e tratava-se mais de violar fronteiras!

Que um povo civilizado ofereça benefícios ao que o não é, recebendo em troca certas regalias,coisa é, na verdade, que ninguém censura, pois em tal caso, fica-se grato.

No caso dos Turcos e dos povos Árabes, eram de facto menos civilizados que a Europa de então, que já , nessa altura, dava leis às gentes e conhecia, a fundo, a Lei de Cristo.
Se eles, realmente, viessem a dominá-la, seria a barbárie a instalar-se de novo, em solo europeu.

É verdade aceita que os citados Árabes possuíam já brilhante civilização, mas sendo fanática e harto sectária, não seria acolhida pelos cristãos da velha Europa.

Quanto ao grande Império, espalhado por todo o mundo, nunca Portugal se valeu do domínio, para amesquinhar ou então perseguir. Respeitou sempre as diversas religiões, crenças e tradições dos povos indígenase permitiu o casamento com as gentes aborígenes.

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20-11-1974
Silva Porto
A quem ataca o Poeta?

Ergue censuras e fere com violência alguns povos europeus, que não somente Árabes e Turcos, inimigos da Pátria e do nome cristão. Atinge, de facto, a Inglaterra,bem como a Alemanha e a própria Itália.

Acaso, por isso, não são amistosas as relações com elas?!
Foram problemas do passado remoto que hoje não existem: jamais são tomados em limha de conta.
Encarados os factos no seu conteúdo, aceita-se a crítica e
ninguém protesta.

Acaso os povos, por ele atingidos, deixarão por isso de prestar homenagem à grande epopeia? Seria fechar os olhos à luz meridiana. Temos, por força, de ser moderados,realistas, positivos.
Referindo-me agora ao caso de Amgola, em que pode alguém censurar os Lusíadas? Que me lembre, de
momento, não há referências que sejam desprimorosas, para os nativos. Faz aí menção de uma baía, a de Santa Helena, para situar lá o conhecido episódio de Fernão Veloso.

Em que pode ser ele inimigo de Angola e dos Angolanos? Muito ao contrário. amava e defendia, acendradamente, quanto fosse português, cristão e humano, vergastando, sem piedade, vícios e extorsões.
Ora português e muito português era o mundo angolano.
assim como também as outras parcelas do luso império.

Há injustiça flagrante em chamar colonislistas, no mau sentido, aos portugueses de todos os tempos. Se o fossem, realmente, como diz a propaganda, seria Portugal um pais riquíssimo! Tal não sucedeu, tendo embora na mão, primeiro que ninguém, os maiores bens que há neste mundo.

Se houve alguns exploradores, não foi realmente o povo português como tal considerado.
São as tais manchas que denota qualquer pano, ainda o mais alvo!

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Silva Porto
21-11-1974
Reunião magna do Conselho Escolar.

Durou três horas.Tomaram parte, nesta assembleia, professores e alunos (delegados somente), para darem opinião, sobre a reforma, atinente ao Ensino, em terra angolana,, visando apenas facetas várias de superfície.

Demorado embora e com óptimo espírito de colaboração,
este Conselho não tem eficiência, pois a última palavra pertene aos Movimentos, segundo prevejo.

Julgo pois, não me enganar, dizendo agora que a sessão efectuada,em 18 do corrente, na qual houve provas de alta generosidade e muita renúncia, é um trabalho inútil, avaliando já pelo que tenho observado, noutros campos de acção.

Nesta onda efervescente, em que se respira ódio em barda e grande má vontade, ignoro a fundo o que possa mediar, satisfazendo, ao mesmo tempo, as partes em questão.

Vinganças e despeito, má interpretaçao do sentir alheio, aleivosias gritantes, atrevimentos brutos e despudorados, enfim, um sem núnero de aspectos que vêm ao de cima e deviam guardar-se...
Nestas circunstâncias, impõe-se muito siso e notável equilíbrio, por parte de governantes e mentalizadores. Faciosismo e ambição... remexer no que lá vai... deturpar o sentido de palavras e atitudes, há-de banir-se com prontidão. Isto, bem entendido, só para bem da nova sociedade, que ensaia agora os primeiros passos.

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Silva Porto
22-11-1974
Cancro terrível das novas sociedades.

Os Movimentos independentistas assumem encargos muito pesados que, a não serem firmes, constantes e prontos, farão certamente dos povos africanos hordas numerosas de gente alcoólica, supersticiosa e até ignóbil!

Efectivamente, grande e tenaz esforço é logo exigido, para desarraigar, da natueza habituada, vícios e costumes que
atingem o ser e assim fazem dele autêntico farrapo.

São eles, na verdade, por ordem prioritária,: o meretrício, o alcoolismo e a superstição. Outros ainda haverá que desconheço talvez e cuja importância deve também ser tomada em conta.Mas os que apontei assumem, desde logo, tal gravidade, que naturalmente hão-de constituir, já de momento, objecto de luta , a empreender, com ânimo viril, pelos novos governos, com assento em África.

Terão de ser duros e, por vezes, severos, uma vez que tais moléstias se encontram radicadas, no mais fundo recesso
dos grandes anseios. Só com vigilância, permanente e activa, ,eficiente e receada!
Como vão os povos largar de si o que tanto apreciam
e a que tudo sacrificam?! Enumerar os males daí decorrentes não é para agora nem pode fazer-se, de ânimo leve.
Em primeiro lugar, o meretrício. Natureza sensual, instigada ainda pelo ardor climático, sem falar já da atitude artificiosa destas mulheres negras, que vestem, no geral, indecorosamente, importando das brancas o que algumas praticam, sem olhar ao bom exemplo que outras lhes dão,oferecem largo campo à lubricidade,

Que pode acontecer a uma sociedade, em que a mulher se degrade, não procurando regenerá-la com brevidade?!
Corrompida esta, di-lo altamente a História dos povos,
caem pela base majestosos Impérios e afundam-se para sempre. as mais auspiciosas civilizações.

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Silva Porto
23-11- 1974 Cont.

Voltando à vaca fria, ouso afirmar que os novos governos terão em África pesada tarefa, para limar as ditas arestas.
A mulher africana, habituada à vida fácil, que lhe permite longo tempo viver desafogada e a bel-prazer, só com dificuldade e à custa se punição, abandonará o campo onde julga erradamente correr leite e mel.

Tudo é possível, mas hão-de conjugar-se esforços porfiados e envidar todos os meios, postos ao alcance, não esquecendo a influência religiosa.

O génio político, o tacto administrativo,o diálogo frequente e interessante, a delicadeza de uma boa consciència e a acuidade mental hão-de levar breve os responsáveis a utilizar a Religião, com tal finalidade. Ela é, de facto, a poderosa alavanca, a única por certo, capaz de virar e revirar ainda a natureza humana e fazer de pecadores, heróis e santos.

O que a dureza dos homens não é capaz de obter ,com policiamento e repressão contínua, consegue-o ela
paulatinamente, por meios suasórios.
É obra de Deus a quem tudo se curva, no Céu e na Terra,
e graças ao qual as mesmas pedras se convertem em pão.

Diz o provérbio: " O pouco com Deus é muito e o muito, sem Deus, é nada!" " Aquele que o impossibil pode"- Camões,
Estou convencido, por modo pleno, de que sem a Religião, praticada a sério e vivida hora a hora,,jamais lograrão transformar os costumes e a própria vida.

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Silva Porto
24-11-1974
O alcoolismo entre os Negros.
O segundo cancro, também radicado e com vínculos perduráveis, é sem dúvida o vício do álcool. Por meios suasórios, nada se consegue. Nada aproveita que a gente lhes diga:"Não bebas mais! Vai-te embora! Compra vestuário e outras coisas mais! Lembra-te dos filhos!"

Tantas vezes ouvi isto à querida mana Agusta, em conversa, no Chitembo, com os pretos da vila! O mesmo que nada!
Incorrigíveis e dominados por hábitos, já de longa data, tudo sacrificam à bebida aliciante.que, por força, os cativa!

Nada lhes importa que o lar tenha falta! E o que é mais grave é que as mulhere negras também fazem o mesmo ou pior ainda!
É constrangedor e digno de lástima ver mães e esposas em estado inconsciente, indecoroso e reprovável!

O que então se passa! Impudicícia e graves abusos...
indiscrição e grande miséria!
Que dizer das criancinhas, geradas no álcool, como trapos humanos, sem respeito nem estima? O sistema nervoso como ele vai ficar, sob tais pressões e impulsos desregrados!!

Que povo é este que está em formação?! Não havendo repressão, vigilância constante e regeneração, teremos, a rigor,um povo a mais, de insuficientes, à mercê de abutres que lhe sugarão, provavelmente, o sangue e a vida!
Companheira do álccol e fazendo coro, em simultâneo, está desde logo a terrível droga que faz do ser humano uma coisa nula, brutal e incómoda. Opera neste campo uma série incalculável de transtornos e desgraças:
a inconsciência; incúria, apatia; alheamento completo das grandes realidades; fuga total à responsabilidade.

Afinal de contas, são evasivas, harto fascinantes, para fugir à dor e olvidar prontamente os males e torturas da existência humana. Mas o homem põe e Deus dispõe.
A dor e o sofrimento têm na vida papel redentor.
Não foi pela cruz que Deus nos salvou?! Fugir-lhe...
impossível!
Deus é quem governa, embora os homens se enganem a fundo, a tal respeito. Se a dor, realmente, é a chave do Céu, por que não aceitá-la, enobrecendo a esistência?!.
Que os novos poderes se apoiem no Céu, para que o seu labor seja eficaz. À margem de Deus ou então contra Ele, é vão, inoperante o esforço humano!
Se Deus não guarda a cidade, em vão luta o homem por defendê-la.
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Silva Porto
25-11-1974
Morreu a cantar!

Embora eu, de facto, não tenha experimentado, assiste-me
desde já, profunda convicção de que há-de ser agradável um fim como este.
Deu-se o caso no Chitembo, a semana passada! Uma jovem perdiz achava-se perto da zona povoada e entoava seu canto, alegre e matinal.

Que razões teria, para fazer assim? Ignoro-as, bem entendido. mas deviam existir. Acabaria, talvez, de pôr mais um ovo, engrossando a ninhada e preparando-se logo para chocar?
Seria o perdigão, afastando do ninho olhares indesejáveis? Efectivamente, enquanto a fêmea zelosa se ocupa dos ovos, costuma ele afastar-se, para iludir os transeuntes. Está bem provado que, junto ao ninho, ninguém jamais o ouviu cantar.

Fosse como fosse, ela ou o parceiro encontrava-se no arredor, fazendo exibições, o que valeu, para logo um tiro certeiro a pôr o remate à linda canção. Depois, vingou-se do frio, entrando na panela, onde muito saltou, mas inconsciente.

Uma canja de perdiz é coisa apetecível.. Para mais, foi nos anos da Guida! Melhor do que isto não podia haver!
Dezanove primaveras iam ser festejadas, com a bela perdiz, que deixara este mundo, no acto de cantar!

Um bom prenúncio, não é verdade?
Foi o caso assim: meu cunhado Martins, ouvindo aquela voz, tão alegre e vibrante, sentiu logo prestes a veia de caçador a instigá-lo! Ouvira tantas vezes cantos iguais na frescura das manhãs! Não podia enganar-se nem falhar o alvo!!

Pertinho de casa... logo a dois passos!
Vai pressuroso pela 22 e volta logo célere, de espingarda na mão.
Havendo puxado a móbil culatra, para meter no cano a bala fatal, une-se ao muro do próximo quintal e, de olho pronto, desfecha certeiro contra a pobre criatura.
Assim acabou, sem dar por isso, a perdiz enamorada!

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Silva Porto
26-11-1974 Morreu a cantar ( cont.)

Descuidada e feliz, ergue o canto da aurora a venturosa perdiz. Razões para tanto não é dado sabê-las. Apesar de tudo, julgo não ser estranho o caso familiar.

Postura dos ovos? Arrebatamento, face ao agregado, já em formação? Hino triunfal ao Sol nascente? Ignoro isso, mas sinto e creio apresentar a vida, em certos momentos, razões bem fortes, para regozijo!
Apesar de tudo, que desairosa a vida se apresenta, neste pobre mundo! Quando a ventura sorri e negaceia, vem logo a desgraça entenebrecer a nossa existência! Ela cantava, a perdiz hilariante. Não faltavam razões! Por que não deixá-la, gozando em cheio o doce enlevo que lhe enchia, nessa hora, o coração amoroso?!

Quase sinto remorsos, fundos e negros, dum crime nefando, que não cometi! No entanto, há-de ser belo morrer a cantar! Até julgo, na minha, será o melhor remate, para a vida terrena! Viver em plenitude um sonho arrebatador e, no auge da paixão, desprender-se da vida!
Que bela dita, para invejar!

No reino da matéria, nada aí há que de longe se compare!
É verdade, realmente, não haver despedida nem fazer contactos, dolorosos e tristes, motivados então pela abalada! Mas que importa isso?! Se a vida foi ditosa e não houve prostrações!
Para simples animais, que haverá, aí no mundo, coisa mais invejável?!

No tocante a pessoas, já muda de figura um caso assim. Na verdade, o seu destino imortal exige tempo de espera, afim de arrumar assuntos graves. É bom, na verdade, morrer sem dor, mas igualmente sem peso de consciência e de alma lavada.

A cantar, sim, pode ser também, mas como fruto maduro que a mágoa de pecar gerou em nosso peito e é forte garantia, para obter, no Céu, um lugar venturoso.
A perdiz não me esquece. Nem pesares nem dor! A
suprema ventura!
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Silva Porto
27-11-1974
Um Lar à porta.

Ouvira ja, por várias vezes, o pipilar angustiado, insistente e suplicante de certa andorinha. Que havia de ser? Lanço-me em pesquisa, vassouro tudo, tudo, com o olhar, Qual não é logo a minha surpresa, quando se me apresenta um ninho confortável, na fachada oeste, por cima da porta.

Fixo nele os olhos e, enquanto deliro, contemplando embevecido tal prodígio de amor, paciência longa e sacrifício, o casal não me larga. Pipila e ralha, suplica, protesta... ameaça até, adeja e foge, para voltar, logo em seguida.
Eu, porém, estou preso ali,sem arredar passo e nada resolvo, em tempo breve! Ergo-me, depois em bicos de pés, chego-me atrás e volto de novo, em sentido contrário, mas tudo em vão! Descobrir a ninhada é que são os trabalhos!

, Por baixo da telha, sobre um velho caibro, lá está erguida autêntica fortaleza.
Vista de fora, aparenta, decerto, algumas rugosidades, mas no interior há penugem e conforto. Modelado com areia, envolvida em argamassa, volta para Sul a entrada circular,
ao passo que o mais se fecha ali hermeticamente.

A dona do lar é que agora se aflige com a minha presença, deveras odiosa. Averiguando melhor,.. enxergo-lhe no bico alguma coisa estranha, semelhante a insecto. Suponho logo haver mais inquilinos, na velha habitação, em que eu resido.
Leve gorgeio se ergue prestes, no interior, ao passo que a mãe volteia lesta, pousando ao de leve e roçando com as asas: ouve-se um ruído, quase imperceptível.

Acabam as dúvidas.Os passarinhos haviam nascido,
mas estão implumes. Assomar à entrada nem por milagre!
Mando então breve pelo escadote, para tirar-me de grandes apuros: queria vê-los bem e saber quantos eram.
O nosso Carlitos executou o mandato e ofereceu-se logo, para averiguar: umas grandes barrigas, de olhos fechados!

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Sillva Porto
28-11- 1974
Unidos sempre, na vida e na morte. Deu-se o caso, no Chitembo.
A gatinha preta, que é fecunda e magrita, apresentou, há dias, uma ninhada, algo curiosa: três filhos matizados,
ávidos, qual mais , de quentura e leite.

Instalados, pois, na velha cozinha, onde havia, por norma, trastes variados, e també,m alguns panos, davam-se eles tratos de polé, para chegar devidanente ao úbere inchado e apreciarem o calor materno.

A solícita mãe era incansável, na mira gostosa de satisfazer as débeis criaturas. Deitada sobre o lado,fazia
acrobacias, para torná-los em extremo ditosos Excessos de mãe! Maravilha e prodígio que assombra e deslumbra a inteligência humana!

Pois lá estavam eles, de olhos fechados e aspecto feliz, sugando o úbere e roçando se em volúpia no colo materno.
Iamos ali todos frequentes vezes, para contemplar o quadro pitoresco e enternecedor, avaliando então os recém-nascidos, pelo tamanho do corpo e o matiz das cores..
Um dentre eles é preto retinto, no que sai,afinal, ao progenitor e a todos os irmãos que o haviam precedido; os
outros dois ( coisa de pasmar!) eram matizados de pêlos brancos, o que os tornava, sem dúvida, lindos, lindos!

Tínhamos já decretado que um deles ficaria, visto que se afastava dos padrões anteriorres. Cálculos e projectos, cada um diferente, era o que mais se fazia. Corria tudo pelo melhor! Eles, realmente, iam cresendp e engordando, ao mesmo tempo, fazendo-se dia a dia mais e mais engraçados, quando, uma tarde, aparecem todos mortos!

Ausência da mãe que iria caçar? Mordedura infernal de alguma serpente? Os corpitos exangues, já imobilizados e cheios de frio, encontravam-se inteiros, o que mais confundia.
Examinando ali, em pormenor, deparou-se-nos logo um pequeno orifício, ns zona do pescoço . Cobra ou serpente, enviada pelo inferno, lhes sugaram o sangue.
Ficámos desolados, ante o quadro, assaz mortificante,
que os nossos olhos tristes não deixavam de fixar!

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Silva Porto
29-11-1974
Os Feiticeiros. Seu destino, ao presente.
Esta profissão, vulgarizada em África, tem as raízes na noite dos tempos. e exerce, por certo, arreigada influência, nos povos do Continente.
Para estas gentes, o feiticeiro é um ser terrível, ameaçador e harto poderoso.que importa, ao máximo, satisfazer, pois caso contrário exerce logo retaliações, que podem incluir a própria morte.
É por isso temido e algo odiado, esconjurado por uns e acarinhado por outros. Com poder ilimitado, actua o feiticeiro,pelos modos mais diversose imprevisíveis: dispõe da vida e assim da morte;
tem ao seu alcance a felicidade alheia, assim como também os haveres do próximo; está na sua mão o bom e o mau tempo.

À mínima oposição, vem qual ciclone, medonho e tremendo, levando após si bem-estar e haveres.
Nestas circunstâncias, há no íntimo do peito horror declarado à sua pessoa e mais ainda à sua intervenção.

Ora, como a História de África, de modo especial, a
África portuguesa está agora a começar, para seguir um rumo novo, desenvolve-se já larguíssima campanha, bem
desfavorável aos feiticeiros, poderosos sempre e bem temíveis.
Até consta por aí haver injustiças , em alguns casos,
cevando ódios e má vontade, a respeito de alguns.
Seja como for, embora se trate de elementos perigosos e
por isso indesejáveis. em qualquer parte do mundo, tem de
haver prudência, ao detectá-los, e alguma caridade, no acto
de puni-los.
São seres humanos e foram remidos pelo sangue de
Jesus, derramado no calvário.

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Silva Porto
30-11-1974
Tensão nervosa que afecta as aulas.

Após a Revolução que chamam dos "Cravos", reina um ambiente insuportável que se propaga, logo em todos os campos, fazendo-se notar, de modo especial, na esfera escolar.

O desplante e o à-vontade, a incorrecção, o impudor e o atrevimento bem como a lubricidade campeiam infrenes, por terras de Angola. O ambiente calmo de eras passadas faz-se agora indesejável, porque nele perpassa a ingrata desconfiança, o rancor infernal e a má vontade.

Os alunos, em geral, são irreverentes e
indiscretos, julgando resolver todos os problemas, com greves e descaro.. O fim de todos é obter diplomas,sem bases nenhumas, que o trabalho garante.

Linda sociedade, para o amanh!ã do nascituro! Chego
a ter pena, lamentando sincero : os ânimos, afinal, andam exaltados, por não vir pronto, um Governo indígena, pôr tudo em ordem.. Não me engano eu, se disser, para já, que este anseio é geral.Desejo de calmia... Os nervos desafinam-se e o mal-estar grassa por toda a parte!

Os pretos vão colhendo agora o fruto diabólico. lançado à terra, nos anos anteriores, em deletéria e bichosa propaganda. É esta que leva aos abusos, exorbitando amiúde e perdendo a vergonha!

Nas minhas aulas, em que podem achar-se mais pretos do que brancos, não são aqueles os piores de todos.
De maneira geral, são os europeus que fazem distúrbios e provocam discórdias, criando ali um ambiente insuportável!

Devo acrescentar os próprios mulatos que são, em regra, mal comportados. Mercê do atavismo e pensamentos recalcados, constituem eles, na maioria, um elemento assaz perigoso.

São revoltados, por causa de tudo e até pela origem. Alardeiam alguns que foram abandonados pelos progenitores. Por esta razão, mergulham em ódio e malquerença.

De tudo isto, que havemos de colher?!
Qual será, na verdade, o futuro do Ensino?
Quanto a discórdias e mal entendidos, nada verifico,
entre os meus alunos: dão-se à maravilha uns com os outros.


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Silva Porto
1-12-1974
Habitualmente, levanto-me cedo, pois às 5 horas, vem a claridade fazer-me sinal. Assomando à janela que dá para o Levante, não consente delongas e empurra-me do leito.
Estando eu na cama, deixar, preguiçoso, que o Sol inunde a Terra, só por doença! A conteceu isto, em 1969, quando tive a pleurisia, no pulmão esquerdo.

Então, sim, foram 4 meses, no Hospital de Manteigas, sendo três deles sem ir à rua! Que tremendo sacrifício! Mas, enfim, o homem põe e Deus dispõe! Essa doença alterou a minha vida., no
campo da acção.
Terá sido melhor? É provável que sim. Deus o sabe, pois o nosso destino conhece-o Ele bem. É facto incontroverso que os hábitos de longe se radicam de tal maneira, que força nenhuma os pode barrar!
Vêm já formados, nos tempos da infância! Clareando a manhã, vinha certeira a palavra de ordem:" Acima!

A lavra dos campos, o pastoreio do gado, a rega das leiras e a devoção matinal exigiam, de todos, sacrifícios notáveis. E fossem esses, afinal, os hábitos piores!
Hoje, porém, avancei uma hora: às 4 da manhã, antes do galo cantar, já estava na liça.
Falta um quarto para as 5!

Se olho alguns momentos para a rima de Pontos, de Língua Inglesa. logo me cobrem os suores frios! Mas impõe-se o trabalho, para afasta o enjoo, ser útil aos meus, como à sociedade e fazer só o mínimo de mal que a nossa natureza teima em realizar
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Silva Porto

2-12-1974
Após um fim de semana que envolveu também o 1º de
Dezembro, vem novamente a lufa-lufa! Outra semana de enorme trabalho, exaustivo e doloroso, como preparação, imedita e directa para os Pontos do mês.
É difícil, ao tempo, lidar com os jovens! Insatisfeitos e já corrompidos, intoxicados a fundo por deletéria campanha, sem freio moral nem qualquer vigilância do lado paterno, são presa infalível de vícios e paixões. Chego a enjoar do que vejo e ouço!

Após o tal 25, ocorrido em Abril de 74, é uma onda extensa de puro vandalismo, descrença e ousadia... um voltear de paixões,
instintos e à-vontades, que dá ganas de fugir!

, Seriam, realmente, bem intencionados aqueles que fizeram o 25 de Abril? Ignoro os motivos e desconheço as intenções.
Às vezes, até creio que sim!

Democracia, mas liberdade... mais justa repartição dos bens terrenos e outros valores que são de todos, é mágica doutrina que seduz e encanta. Entretanto, na prática, respira-se já um clima insuportável. Tensão nervosa, inquietação de espírito, insatisfação
desconfiança mútua, entre raças e cores! Um cortejo imenso de atropelos revoltantes e atitudes soezes!

Gostaria imenso de trabalhar em Angola, contribuindo assazmente para o brilho e grandeza do Novo Estado. A Língua Portuguesa como grande veículo de nobre cultura e transmissão
pronta de conhecimentos úteis, tem na minha pessoa um cultor
apaixonado.
Mas é tão ineguro o que respeita ao porvir! Que trará o Governo, já formado por nativos? Tudo vai daí! Haverá compreensão e boa vontade? Serão justos e clementes os que vão
tomar as rédias do Poder?
Que venham breve e Deus os encaminhe, pois é absurdo e já
impossível o viver do momento. Desapareceu a vergonha, o mesmo temor e tudo se amesquinha!

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Silva Porto
3-12-1974
Passou o dia 1, que a gente em Portugal fesejava com júbilo, recordando o golpe, audacioso e terrível, infligido aos Castelhanos.por intromissões e atropelos que estavam praticando. O seu domínio durou pouco tempo, uma vez que, tentando enraizar-se, foi logo jugulado pela Revolução de 1640.

De facto, o Duque de Olivares, sendo Monarca Filipe IV, é que tentou, baldadamente, converter Portugal em província de Espanha, acabando de vez com os símbolos lusos. da soberania:
bandeira e moeda e a própria Língua, que mantivéramos sempre.

Em teoria, como na prática, nunca o meu país foi assimilado
por qualquer potência, já que os Espanhóis, com Filipe II, I de
Portugal, se haviam comprometido a respeitar fielmente os foros e
liberdades que os Portugueses tinham.

Com Filipe IV, III de Portugal, os nossos vizinhos decidiram olvidar os seus compromissos, mas nessa hora de afronta suprema, para a gente lusitana, ergue o povo a cabeça e, num arranque ousado, violento, irresistível, elimina, para sempre, as tendências de absorção.

Os conjurados venceram, e o nosso Portugal ficou para sempre aquilo que tinha sido: país independente, a reger o seu destino com gente heróica, inassimilável e de fortes pensamentos.
O Conde Duque perdeu a cartada, sendo alvo impiedoso dos críticos espanhóis, por agir canhestramente.

Na verdade, a falta imperdoável de tacto político foi muito desastrosa, para a sua pátria.
É que os dois países pdiam, nessa data, prosseguir ligados.
com governo misto, formado por elementos de ambas as nações.
Seria, possivelmente, uma dualidade politico-social, à semelhança exacta do Império Austro-Húngaro.

A Providência, no entanto, não o quis assim.
Este ano, porém, ouvi Lúcio Lara, do MPLA, que disse às crianças:" Isso que se passou, entre gente longínqua e para nós estrangeira, não nos diz respeito".

Eu pergunto: sendo ele mestiço, não lhe diz respeito?! Negou ele a origem?! E pode negar-se?! Fez ele sempre assim?!
Ó gentes, pasmai! Um caso mais de vira-casacas, igual ao dos
Espanhóis de Filipe IV e do Conde Duque de Olivares.Olvidaram eles os compromissos anteriores de Filipe II?!

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Silva Porto
4-12- 1974 (Cont.)
No Diário precedente, já no final, foquei um assunto,
bastante delicado, mas fi-lo contra vontade. Não gosto de ferir seja quem for nem foi essa, de facto, a minha intenção

Entretanto, há um aspecto da questão que me indigna e revolta: ser vira-casacas; ser oportunista; dizer o que não sente e
fazê-lo sem rebuço; desdizer-se alguma vez; atacar ainda as suas raizes; dizer mal dos pais, sejam eles quem forem, é sempre uma baixeza
Devo fazer aqui menções e referências, harto honrosas,Nem
todos os mestiços ficam abrangidos pela minha censura Alguns conheço eu de bastante idoneidade e brilhante carácter

Que me perdoe a sua modéstia, mas não resisto agora, à
tentação premente de apontar aqui um, que vivia no Chitembo, distrito do Bié, o muito saudoso e íntegro Serpa, que dá lições a muitos Brancos!
Deixemos, no entanto, as muitas excepções, para tratar de momento, uma faceta ignóbil, que indispõe e revolta o caro leitor

Antes do tal 25, orgulhavam -se os tais da ascendência branca,
fazendo menção disso, com muita vaidade e grande relevo.
" Sou filho dum Branco! Meu pai era branco!"Que honra!
Jamais punham em relevo a origemia materna! É algo estranho!

Ora, é isto exactamente que eu reprovo e condeno, com toda a alma! Inadmissivel e vergonhoso tal proceder! Haja dignidade!

Se gostavam do pai, por que não gostam agora?! Se não gostavam da mãe, por que gostam, à data?! Onde a vergonha e a coerência?
Onde está, pois, a personalidade?!Têm problemas de carácter familiar?! Reprovam alguma coisa de que não tiveram culpa?!

Ninguém os incrimina, pela origem que tiveram, sem culpa disso.
Veio tudo isto a propósito de Lara. Não ataque jamais as suas raízes! Não é ele primo de Alda Lara, que deu nome a Benguela,
pela sua poesia, mimosa,encantadora assaz delicada e sentimental?!

Não deprima os Portugueses, que foram no passado e sempre serão os melhores amigos dos Angolanos e da sua prosperidade

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Silva Porto
5-12-1974
Acabaram as frequências, cuja finalidade é trazer-nos dados, relativos a Novembro, para efeito de notas. Sempre agitados, os finais de mês são agora efervescentes, devido à tensão que empolga a juventude.

Hora temerosa, em que os novos se erguem contra usos e barreiras, recorrendo à guerra no enxovalho e à morte impiedosa,sem ponderação nem justa medida.

Hoje, só agrada quem vomite o passado, aderindo firme aos
ideais da juventude e negando-se a si próprio. Renunciar pronto
à personalidade, quebrar cerce os laços da famílialia, reprovar e denunciar quanto houve injusto, numa paiavra, deixarem de ser aquilo que eram!

Nada se respeita, nesta hora trágica! Nem o que há de mais santo! É uma onda de protestos. um mar sem fim de recriminações, uma onda incontida, para fazer todo o mal e derrubar o que subsiste ainda.A ambição desenfreada e os instintos perversos vêm também avolumar o cortejo, ao qual emprestam cores, deveras atraentes e alvoraçantes!

Quem escapará da grande procela?!
Deus nos acuda, abençoe e proteja, numa época assim de furor incontido e tão grande insensatez, que nem Ele próprio,
verdadeiramente, é já respeitado, como tem direito!

Lidar hoje com jovens é o que há, por certo, mais delicado!
No entanto, é sumamente nobre e até requerido exercer na juventude acção moderadora e elucidativa.
Aceitam-na os jovens? Deixar-se-ão quiça liderar por alguém?
Não vou até ao ponto de negá.lo cabalmente, porquanto alguns deles são bastante equilibrados e não julgo que repelem aquilo que é justo, mas é preciso tacto e acamaradar, apagar-se em muitas coisas, usar de paciência, equilíbrio firme e sensatez,
perdoar leviandades e assim também inconsiderações!

Tarefa espinhosa árdua e saturante, imprópria já da minha idade, convicçoes arreigadas e do meu carácter

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Silva Porto
6-12-1974
Aguardamos, com ânsia e funda amargura, o chamado
Governo de Coligação, de que façam parte os três Movimentos de
Resistência Armada.
Efectivamente, ninguém pode viver num clima hostil, em que tudo aborrece, humilha e oprime. Optimistas e ferventes apenas os pretos e a leve juventude, na sua maioria, Esta, em nossos dias, mostra-se irreverente e harto insubordinada, entregando-se prestes, a desvarios.

Julga ter na mão a chave de tudo, inclusivamente. a felicidade própria e o sestro maléfico de afligir os outros. Carregado e medonho é tudo, nesta data, para quem exerce um cargo, relacionado com jovens estudantes! Creio não me engane, afirmando isto. Hoje, os alunos fazem o que querem! São como
alimárias!
Tomando nos dentes o freio molesto, cortam a direito, por montes e vales, expondo o cavaleiro a perigos diversos e surpresas horrendas!
O grande problema dos nossos dias é o de todos aqueles que
exercen autoridade: exército e polícia; magistrados e docentes; pais e substitutos ou encarregados.

Que foi, a rigor, o que fez a ruína do Império Romano? Ficar o
poder ao sabor e capricho da demagogia! Logo que a dita se instalou no poder, deixando-o à mercê da venal multidão, cavou-se o abismo que havia de submergi-lo.

Concedia-se ao povo quanto ele pedia. Elegia-se também para o governo os que mais pagavam e tudo prometiam, não se atendendo às qualidades pessoais e à sua honestidade.

O povo deliberava, julgando ser chegado o momento da ventura! Era o poder, à mercê da canalha!
Assim, Roma caiu, para todo o sempre!
Foi grande e temida, enquanto houve autoridade, respeito e seriedade.
A multidão, em geral, não sabe o que quer: É realmente cega de gota serena!
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Silva Porto
7-12-1974
Deu-se no Lobito, durante a semana.
o Sr, Valdemar, pai ditoso e jovem do único pimpolho, que amava em extremo, dirigiu-se prestesmente à sua garagem, onde tinha o veículo.Negra hora foi essa, em que tal resolveu!

O lindo petiz, de um ano apenas, já burrinhava e, vendo sair o autor de seus dias, lá foi também, sem que o pai o notasse.
Ora, ia seguir-se, em tempo breve, um evento macabro.

O infeliz papá que punha na criança todo o seu enlevo,
( não ser o primeiro e único filho!), originou então a cena mais trágica da sua vida! Ao recuar do veículo, ignorando inteiramente, que o inditoso menino se encontrava nas traseiras,
esmagou-lhe o tronco, reduzindo-o logo a massa informe.

Estremeço já , de horror e confusão, não conhecendo embora estas duas criaturas. Não posso conter as lágrimas que brotam escaldantes e atrevidas, do meu peito em fogo. Narraram-me ontem o caso infando e deixou em mim tão funda impressão, que
não vejo maneira de afastá-la, esquecendo.
Só uma pergunta eu pude fazer: o pai não se alterou, ao verificar a triste ocorrência?!
-- O pai não se alterou, ao verificar a triste ocorrência?
-- Parecia louco!
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Silva Porto
8-12-1974
A hora actual impregnou-se de azares.
Já pela noitinha, foi a mãe ao Ninho buscar o bebé.No seu carrinho, deveras engraçado, sorria o petiz para a mãezinha, enquanto ela, embevecida, o empurrava suavemente, descendo
cautelosa os degraus do balcão.

Nisto, um danoso solavanco, inesperado e trágico,arremessa-o à distância, ficando por isso estatelado no chão. Para maior desgraça, o ponto de embate foi a cabeça, originando-se logo horrenda abertura.
Levado ao Hospital, com a máxima urgência, confirma-se a fractura, sendo esclarecido que precisava breve de ser operado.
Para gente sem meios, tudo se complica! Entretanto, o pior de tudo não era isso! " Abyssus abyssum invocat" diz há muito o provérbio latino.
Uma desgraça nunca vem só! Para cúmulo horrífico de tanta desventura, se o prognóstico feito é exacto a rigor, a pobre criancinha ficará para sempre, num mundo sem luz!
Pobre inocente! Ceguinho no mundo! Que destino infeliz!
Como não sofrer esta mãe inditosa, ao longo da vida, tendo ante os olhos a cruel realidade!.

Que será do bebé, nos dias maus, em que vivemos?! É tão inseguro o dia de amanhã! Deus é Pai! A ninguém despreza nem abandona, mas é necessário actuar com prudência, utilizando os meios que põe ao nosso alcance.

Esta mãe infeliz não terá remorsos?!
Se fosse mais prudente, eviitaria, por certo, a grande tragédia,
Por que não levava nos próprios braços o fruto inocente do seu amor?! Se eram degraus de balcão, por que não usava da máxima cautela, subtraindo o inocente ao maior dos infortúnios?!

Na verdade, muita coisa nos tortura que podia evitar-se! Um pouco mais de prudência, algo de serenidade,umas gotas de tacto e pureza de consciência fariam certamente que o sofrimento decrescesse na Terra.
A maior parte do sofrimento humano e desgraças da xistência é o noso descuido a e falta de prontidão que lhes servem de fonte.
Pobre criancinha cuja cegueira total mergulhra a sua vida numa noite de trevas!
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Silva Porto
9-12-1974
Caprichos de estudantes originam, para logo, árduas tarefas, que levam tempo infinito e consomem a vida.
Optaram pelo não, quanto a Pontos de Frequência.

A mira de todos é furtarem-se a provas ou noutro arranjo, serem facultativas. Esse objectivo não foi alcançado, porquanto os
obriguei a Pontos normais, cujos dias e horas estão marcados.

Ora, precisamente por isso é que não me foi dado ter fim de semana. Elaborar, de uma vez, e copiar a stencyl pontos diferentes, ignoro ainda se terei de fazer mais. É o caso que, tratando-se de Frequências, é bastante 1 Ponto, para turmas do mesmo ano, mas no caso de " opção", multiplicam-se logo tais exercícios, para não copiarem. Vontadinhas baratas da nossa juventude! Veleidades e caprichos!
Que eu, declaro abertamente, se fosse coisa razoável, estaria
do seu lado mas, tratando-se aqui de pura fantasia, que traz peso e tédio, não posso conformar-me! Seja como for, nada se endireita,
antes do Governo de Coligação, que vai formar-se em breve e no
que tomam parte os três Movimemtos de Libertação, hão-de ter o seu papel, definittivo e eficiente.

Nessa altura, se eu não me engano. as coisas de Angola terão novo cariz! Até lá, precisamos de paciência e muita fortaleza, que não chega, possivelmente, a meio caminho!
Receio por mim e por todos os outros, principalmente, sendo senhoras! Convém, neste caso, um tanto especial, ter muita
fé e colaborar, o que não se compra nem se encontra no mercado!
Sofrer e chorar é um meio precioso que faz parte da vida e se torna útil, para obtermos a redenção.

Silva Porto
10-12-1974
Dou aulas de Inglès, na Escols ,João de Almeida, vai já
para três anos, perfazendo-se o rol de 3o anos, dedicados ao Ensino. Tivesse eu, pois, à hora derradeira, tantos Anjos a velar-me como de explicações e aulas diversas já levo registadas! Que bom seria!
Quantos elementos, úteis à Pátria, não ajudei a formar, fornecendo rudimentos, funcionais e práticos, para o dia a dia! Que feitios diferentes e, por vezes, caprichosos! Quantas vítinas de taras e outras moléstias hereditárias! Pois nesta data, com o 25 do Abril!... É de tirar-se-lhe o chapéu e benzer-se à canhota!

Só visto! Lá os vou levando, nesta crise aguda de autoridade, em que os chefes abdicam . Não sei nem presumo aonde tudo isto vai descambar!
Ainda assim, os terceiros anos lá vão singrando, com hilaridade e certa almia, não sucedendo a mesma coisa, nas turmas dos primeiros, já referidos. Só me cabem três, vindo a ter mais uma. no próxlmo Janeiro. à qual vou dar Língua Portuguesa.

A que maiores desgostos me tem originado é a turma Agrícola, designada por A. São nuito garotos e, em geral, bastante vivos.
Já experimentei os cartuxos todos e, se umas vezes consigo, outras, como ontem, nada aproveito!
Estou muito apreensivo, pois não queria, de modo algum, usar meios violentos.
Estão neste caso as faltas disciplinares e a expulsão da aula!.
Que aproveitam eles, fora das aulas?
Por outro lado, não é educativo: origina malquerenças e gera fundos ódios. Custa prejudicá-los mas, por agora, não vejo mais
saídas!
" Observação" no Caderno Diário? Falta disciplinar, mas fingida? Consultar a turma? Vou pensar...

Silva Porto
11-12-1974
Sinto hoje, afinal. um pouco de alívio, porque as férias se abeiram. e amanhã, exactamente, cessam já os compromissos que trazia a Metrópole
Estou em África , há mais de 2 anos e só agora termimo os
trintários gregorianos e outros encargos que tinha assumido Pelos dias que vivi, nesta zona africana, rondaria por mil o número de intenções que me foram entregues, lá em Portugal.

Ora por eu não gostar de certos compromissos, em ponto de atraso, sinto nesta hora, um tanto de leveza, a que não é estranha uma certa alegria.
Realmente, caminhar na incerteza e viver inseguro, com ónus às costas, não dá tranquilidade. Quero morrer, quando Deus for servido, tendo paz no coração e repouso na consciência. Há outra razão que é também relevante: a vizinhança das férias.

Nunca, em vida minha, as desejei assim.
Não é a tarefa que me leva a tanto, pois este ano só tenho ainda 24 tempos, ao longo da semana: serão acrescidos, no período seguinte., com lições extra.

A razão de tudo é muito diferente: vivo saturado, no ambiente estudantil.Efervescente e assaz atrevido, irreverente e insensato, não me sinto bem nele nem à-vontade!
Benvindas, pois, as férias salvadoras! Se isto não mudar, abandono o Ensino que tanto gosto me dava!.

Silva Porto
12-12-1974
Vão já decorrendo as Frequências de Inglês, do 4º ano,
RA Agrícola. São apenas 5 alunos, alguns dos quais já estão casados. José Adelino, Costa Ferreira, Rosa Marta e Balaca Queiroz .
Em época assim de tantas convulsões, é um prazer indescritível dar aulas nocturnas. Estes alunos já olham a vida por um prisma diferente, pois vêm maçados da labuta diária. O que eles desejam é paz no coração e sossego de espírito .

Cai-me tão bem esta aula, de noite, após um dia agitado!
Bálsamo refrescante que vem inebriar-me! Não perguntram ainda coisa nenhuma! Se tento, acaso, ouvir um insecto, jamais o consigo! É um rico ambiente, em que reina, de facto, a compreensão e o respeito mútuo!

Parece até ignorarem o tal 25, mal interpretado por colegas seus! Quem me dera, Senhor, ter só cursos destes! Mas,enfim, a vida, agora, é duro calvário e tenho forçosamente de suportá-lo,
quando mais não seja, até ao fim do ano!

Entretanto, se houver de aguentar o labor docente, vai-me custar os olhos da cara! Será como o peixe, fora da água!
Foram já 30 anos! Isto, afinal, faz parte da alma e constitui
a substância da minha existência.! Sem isto que digo, tenho para mim que perderia a vida o pouco de interesse que lhe encontro ainda.
Por meio do Ensino, escrita e leitura, vou esquecendo ou, pelo menos, atenuando um pouco as frustrações e logros da vida! Através dele, me vou realizando, enquanto ganho o pão da subsistência..
Derivativo mágico! À maneira de narcótico, adormenta as faculdades, quando graves problemas me trazem a montes.

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Silva Porto
13-12-1974
Fim de semana e, ao mesmo tempo, de período lectivo.
Este equivale, a bem dizer, a bo a parte do ano escolar.É quase metade! Efectivamente, que vão aprovettsr os três primeiros dias da próxima semana?!
Com fogo no peito. já efervescente, embalados por mil sonhos e fiados em promessas, havia mais a esperar dos nossos alunos?! Ainda assim, os que mais trabalham são os nativos,
aludindo, neste passo, aos alunos diurnos.

Sabe logo a mel pensar nas férias!
Como há-de ser bom nada haver que moleste, correndo horas e dias, sem perturbação na minha alma chagada! Cessarão inteiramente as cenas que me gastam, as palavras que doem, as
maneiras que detesto!
Alunos drogados ou etilizados não virão angustiar-me, como se eu fora o bode espiatório! Que martírio o meu, nesta conjuntura, assim desgraçada!
Fui educado, sempre a tremer! Receio enorme de tudo e de todos, pelo mero facto de ser humilde a minha origem!.
Por norma vexado, fui arrastando a mísera existência, conseguindo triunfar somente à custa de pulso forte.
Foi tal o esforço e a renúncia imposta, que estive a pontos de sossobrar! Horas lentas, infinitas, consimi-as labutando e, para
vencer os mil obstáculos, que luta gigantseca não houve de travar?
Agora, pois, aos 56 anos, passados todos eles em colete de forças, vem a reviravolta criar circunstâncias, bem mais perigosas do que as primeiras.

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Silva Porto
14-12-1974
Sendo tempo de chuva, não há que esrranhar o clima de agora! Nunca ele satisfaz o desejo de todos, pois cada cabeça,
sua sentença, como reza o adágio, o que é motivo bastante, para nos convencermos de que está certo.

Eu prefiro o tempo com o céu limpo, iluminado e brilhante,
que penetra no ser como bálsamo celesre. Chão bem sequinho e
belas sombras que as plantas oferecem a todo ser vivo! Como isso é bom e deixa na alma viva saudade!

Homens e gados, todos à porfia, deliciam-se a fundo, nos
viçosos relvados, usufruindo ali a sombra acolhedora, que os
gentis arbustos e as mimosas plantas de grande porte concedem
por amor. Sorriem de longe, a estender seus longos braços, experimentando, interiormente , inefável consolo, por servirem quem passa.
À volta é fogo e viva chama. Debaixo delas, que regalo sem par, deitar-se a gente!
Agora, porém, há coisa de uma semana, tem chovido noite e dia,
mostrando mau cariz o céu brilhante dos trópicos.

Que saudade eu já tenho de vê-lo sorrir, inundando-me de gozo a alma sequiosa! Como ´e delicioso este céu fascinante! E o
mimo gracioso da vegetação que o viço faz pujante?!
Entretanto, ao passo que eu sofro, o agricultor diligente percorre extasiado a lavra em promessa!
Esta chuvinha, miúda e constante, é ouro reluzente, que vem lá do céu!
Passado algum tempo, sorri de novo o Sol, podendo ver-se então o campo dilatado a verdejar e as plantas a crescer, de maneira assombrosa!
Que seria de nós, sem a chuva benfazeja! Com a fome aturada, a peste e a guerra, nada mais era preciso, para fazer desta vida um inferno constante de maldição.

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Silva Porto
15-12-1974
" O homem põe e Deus dispõe".

Assim reza o provérbio, afim de elucicar-nos, sobre a acção da Providência, no mundo que habitamos. Efectivamente, sendo Deus o Criador de tudo quanto existe, é necessariamente o Governador e também o Senhor da obra criada.

Entretanto, já que fomos dotados de belas faculdades, de cunho espiritual, devemos aplicá-las argutamente, afim de subsistirmos,
levando uma existência digna e humana. Por isso trabalhamos, se fazem economias, procurando todos realizar-se na vida, perfeita e
sabiamente.
Com vista ao fim, calculamos os meios e, verificando haver ineficácia, pomo-los de parte, recorrendo a outros. É próprio do homem agir deste modo e sair-se bem. Nesta linha de acção, trabalhei eu sempre, afanosamente, a vida inteira.
Umas vezes compensado, outras ainda, ficando-me a olhar!

Poupei ao exagero, tendo hoje para a velhice uns míseros escudos que valerão de muito, nos dias molestos. A quem viveu de pouco, tudo parece muito! Ainda assim, Deus seja comigo, para lograr em paz o fruto maduro de tão árduo trabalho.

Não havendo, para já, convulsões sociais, que reduzam a zero esforços e poupanças, não terei dificuldades , nos anos ingratos, visto que, à data, me cabe o seguinte: 640, a 10%, lá na Torre Alta; 782,no Stand Paris- Lisboa - Mendes e Saraiva, a 8 %; 314, no Banco de Fomento, em Nova Lisboa,a 7%; ainda uns restos à ordem, no Banco Comercial e Industrial, em Silva Porto.

O rendimento, em contos, do montante a prazo, é respectivamente : 64; 58; 22, cujo total ´144.
Entretanto, o homem põe e Deus dispõe.

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4Silva Porto
16-12-1974
O Movimento UNITA la vai actuando, com eficácia. Isto, para nós, é muito agradáve, pois, de outro modo, ninguém
podia manter-se, em rerras de Angola. Os pretos de agora assumem, por vezes , ares picantes, inoportunos e inesperados, que os levam a roubar, demolir habitações e ousar espancamentos.

Irromperam breve, de seu peito em fogo, tempestades violentas de ódio e vinganças, que dia a dia mais se encarniçam.
Nestas circunstâncias, apenas Deus pode valer-nos e por Ele os três Movimentos de Libertação. Não conheço o agir dos restantes Movimentos , mas suponho haver neles o sexto sentido.

Aqui, no centro e Sul de Angola, vai a UNITA exercendo um papel rectificante que é muito de louvar. Ao mesmo tempo, lança os fundamentos da nova sociedade, lutando nobremente, contra as chagas sociais: o alcoolismo, a prostituição e a fetiçaria.

Nota-se claramente que não trabalham em vão. De facto, o
espectáculo horrível, amarfanhante e lastimoso de ver prostrados no chão homens e mulheres, a curtir bebedeiras, vai-se atenuando e creio até se encontrar em notável declínio.
A prostituição que, em parte, é devida aos pais de família, por forçarem as filhas a ganhar dinheiro, também se vai debelando
Quanto aos feiticeiros, trazem-nos pelos quimbos, ligados com algemas, expondo-os assim às populações, que os olham estarrecidas.
No tocante aos bens, pertencentes aos brancos, mantêm
respeito e condenam o furto.

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Silva Porto
17-12-1974
Véspera de férias ou melhor, talvez, penúltimo dia, consagrado às aulas. uma vez que, em 19 e 20, hei-de ficar ainda, para reuniões, com vista directa às notas do período, Entretanto, o ambiente é já de euforia, para alunos e docentes. Estes últimos dias, pouco ou nada aproveitaram.

Enorme dissipação, planos de férias, presentes da família e coisas diversas, factores são estes que intervêm fundo, na vida estudantil. No tocante a mim, também sou afectado, em medida
extrema, pois o longo período foi cheio de canseiras, logros, dissabores e quebras notáveis.

Aquele entusiasmo que logo me invadia, em tempos idos,
dissipou-se já, como por encanto!

Agora, fico-me nas tintas para tal ensino! Esta mocidade é tão irreverente, insana e leve! Foge ao trabalho, quer agir, afinal, como sendo adulta ou impor-se como tal! É insubordinada e, no
fim de contas, não sabe , a rigor, para onde vai. Deste modo, não cria ambiente para seus Mestres! Fala de saneamentos.de sexo e liberdade!
Acerca-se de tudo, menos do importante, como preparação para a vida social; entra nas aulas, falando e rindo como na rua;
ocupa-se ali de ninharias e bagatelas; são senhores absolutos, cruéis e absorventes.da vida e saúde e maneiras de agir de seus professores. Juro que, assim, mandamo-los prestes a outro lado.

Aprovar, alguma vez, o que reprova a consciência, é coisa
que não faço! Renunciar aos meus princípios jamais o farei!
Permitir lorpamente que destruam, com argúcia, a personalidade que tenho e sou também não sorri!

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Slva Porto
18-12- 1974
Último dia, no primeiro período.

Nunca sofri como agora ocorre, para atingir a meta final.
Que ela, realmente, não é final, uma vez que põe termo ao primeiro período.Seja como for, respiro já fundo e encho-me, a valer, de grande euforia, pois vou abandonar, em tempo breve, a tarefa diária.

Vou para o Chitembo, onde olvidarei quanto me atormenta:
as pesadas lições, alunos e aulas; má criação e interferências, harto abusivas; insuficiência mental e taras de família; excrescências várias de lombeirões, numa palavra, o que a canalhice e o mesmo descaro põem logo na rua, assim que lhes
falta mordaça e travão.
Impossível de aguentar um ambiente viciado!
Por isso, estou ansioso e deveras sedento, para desforrar-me de tanta idiotice e não ouvir já, mais imbecilidades e despropósitos.

É certo, na verdade, que grande parte destes alunos conserva
ainda o juízo, mas há sempre uns quantos, às vezes um, dois ou três que vêm deteriorar o ambiente geral.

Esses referidos são exactamente os que menos trabalham.
Apesar de tudo, querem ter boas notas e, quando as não tenham,
assacam o facto ao corpo docente. Pontos e exercícios mal classificados; acepção de pessoas; grande má vontade; falta de
competência!
Um cortejo de lástimas e graves disparates, que jamais têm fim!
Ainda ontem se deu um caso, no 1º de Mecânica.
O Porfírio Araújo lançou, a despropósito, o que já antes havia esboçado: "Este Ponto há-de ser visto por Lúcio Lara! Está mal classificado! Ao quadro deve ir quem sabe menos!"
Sempre às ferroadas, sentindo prazer em que sejam ofensívas!
Já não sinto forças, para aturar tais destemperos! Os outros condiscípulos estavam contta ele, o que o levou, desde logo. a baixar as orelhas!
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Silva Porto
19-12-1974
Enfim! Terminaram as aulas! Acabaram como tudo, neste mundo pecador! Um dia agitado e cheio de episódios! A
nossa mocidade entrega-se a devaneios, loucuras e desacertos;
apresenta-se breve, em todo lugar, com ares descompostos e usa
de um à-vontade que bastante escandaliza.
Tive alguns alunos que entraram na aula, de cigarro na mão,
borrachos ou drogados! Alguma vez, passará tal coisa pela cabeça de alguém?!
Entretanto, não fui eu que o inventei. Deu-se comigo ou melhor ainda, na miinha presença! Muitos deles não estavam já presentes. Como eram de longe, haviam partido, ficando os restantes, inteiramente alheados, à última aula.
Para eles, nem contou a aula nem conselhos amigos nem a despedida!
Juventude rara e auto-suficiente, com dotes especiais de inteligência e vasto saber! Os novos de hoje conhecem tudo! Só
eles é que sabem! Censuram tudo e tudo reprovam! Puro vandalismo, numa sociedade, já civilizada! Causa pasmo e horror o que está sucedendo!
Nem respeito há nem subordinação, grassando por todo lado
apenas desordem e libertinagem! Quem viu jamais coisa semelhante?!
Os alunos de agora interrompem as auulas, falam quando querem e sobre o que agrada; levantam-se, a capricho, do seu lugar e fazem tropelias; reprovam os métodos e põem seu veto; numa palavra, não há expressões, para traduzir, com bastante precisão, tanto a insensatez como a brutalidade que se verifica, hora após hora.

Saturado que baste, para continuar! Oxalá eu possa acabar o ano corrente, para ajudar os alunos a ultrapassar as dificuldades,
pois que nem todos eles são malcriados! Aqueles que o são chegam sobejamente, para criar em Angola um clima de mal-estar e profunda náusea
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Silva Porto
20-12-1974
Estão já correndo, em acelerado, as reuniões, para notas e bem assim para comportamento.
Escola Preparatória, Liceu e Técnica são focos de actividade, com
vista imediata a fornecer, aos pais, dados suficientes, para governo próprio. Também eu, por minha parte, vogo nas mesmas águas, motivo pelo qual trazia ordenadas todas as cadernetas, poupando assim tempo, energia e paciència.

Ontem, fui lá três vezes: reunião prévia, Formação Feminina,
Comércio diurno e também nocturno.O trabalho em si nem é pesado mas, no fim de contas, pelo que tem de prisão, bastante
delicadeza e concentração, apresenta um aspecto que o torna indigesto.
Por outro lado, é já tempo de férias e, devido, sem dúvida,
à saturação, que as lidas escolares originam sempre, ao longo do ano, cada um de nós anseia por ausentar-se, deste lugar.

Os que vivem cá, mercê talvez de actividades, algo lucrativas ou razões de outra ordem, variam um tanto ou quanto ou desligam-se em parte, durante algum tempo.
No tocante a rendimento, eu fui aumentado em 1500$00, o que representa 18000$00, ao fim do ano. O vencimento é agora de 12o50$00.Não que seja grande, mas é já razoável. Se não fora realmente, o custo de vida, que é assustador, seria na verdade um belo ordenado!
Salvo melhor juízo, tenho para mim que o vencimento
mensal deveria ser de 15000$00. É exactamente o que me darão,
pois em Janeiro, terei mais 16 aulas, ao longo do mês.Juntando as 16 às 14 que já dava, eleva-se o total para 30 mensais, o que perfaz um acréscimo de mais 3 contos, em cada mês.

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Silva Porto
21-12-1974
Escoou-se breve o primeiro dia de férias de Natal.
Climaticamente, foi detestável, na parte final. Efectivamente,
para turistas, professores e alunos, é ingrato, em extremo, fechar-se a gente, dentro de casa, ao longo das férias.
Não é tempo adequado a percorrer mundos novos e contactar ainda com velhas civilizações, que deixaram, após si, vestígios luminosos, através dos séculos. Foi, pois, carregado, tristonho, aborrecido!

Nem luz nem calor! Em meios pequenos, como o Chitembo, passo o tempo fechado, o que é insuportável! Envolve-nos assim um ambiente pesado, em que julgamos ser desiguais, vincando-se a tristeza.
Que fazer, afinal, por alturas destas?!
De tarde, veio a trovoada,ecoando em rompante, para as bandas de Leste, onde se empilhavam nuvens carregadas, ressumando humidade.
À hora em que escrevo, são exactamente 22 e 30, hora habitual de largar o trabalho. Os olhos fatigados já fazem exigências. Perante o sinal, curvo-me submisso, pois é de facto o
momento exacto, que Morfeu impõe. Agora, só dormir! O primeiro sinal chegou às 22!
Os livros, cadernos e leituras preenchem o tempo e fatigam o
espírito
Ao menos agora, descanso tranquílo, até que chegue, depois, a grande labuta, com o advento de 1975!

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Silva Porto
22-12-1974
É algo perigoso viver neste mumdo, principalmente, neste século, de modo especial, em zonas colonizadas.Respira-se o ódio, por todo lugar, sendo os Brancos europeus objecto de escárnio, alvo de insolência, mofa e mal-dizer.

Não há respeito por nenhuma pessoa. Idade e classe ou merecimento e experiência, como ainda estudo.Nada vale tudo isso, perante um jovem, assaz pretensioso, cuja boceta, como a de Pandora, contém medicina para todos os males.

Este fervilhar, intenso, incorrigivel, só terá fim, quando chegarem os Movimentos de Libertação. É, neles, realmente, que estamos confiados. Oxalá correspondam às nossas aspirações, que são harto justas e clamorosas.

Prestarão eles,,de facto, a ajuda incalculável, por que todos ansiamos? Brancos, Pretos e Mestiços aspiram por igual à paz dourada! Deus os traga prestes, que em sua companhia, trabalharemos , com eficiência e grande entusiasmo.
Até lá, vá de aguentar!
É tendência dos Brancos acomodar-se já e obedecer às novas leis,
mas desejam segurança, respeito e carinho.
Muitíssimos dentre eles sentem orgulho e até prazer, em colaborar, de maneira activa , nos fundos caboucos desta nova Pátria.
Não é ela,de facto, a projecção gloriosa do Portugal europeu? Oficialmentr, nada há, por certo, que envergonhe a minha Pátria, encarados os sucessos, à luz da História e dentro do contexto de cada época.
Dentre os povos colonizadores,, nenhum houve, até hoje, que fosse tão humano, tratável e compreensivo.
Ninguém apreciará ouvir dizer mal dos seus antepassados.
Parecem alguns dar essa impressão Não creio eu! Há-de ser oportunismo, necessidade do pão... receio da morte!

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Silva Porto
23~12-1974
Céu carregado!

À medida exacta que o tempo avança, após a Revolução, desencadeada em Abril, mais e mais se adensa o negro horizonte,
sobre as nossas cabeças. Refiro-me agora aos Brancos angolanos ou vindos da Europa.

A propaganda, harto insidiosa,malévola em extremo e persistente; a credulidade, assaz infantil, destes povos simples, inexperientes, incultos e manejáveis; a crise de autoridade, o referver das paixões e o conceito falseado, acerca da liberdade;

os ódios recalcados e o desejo de vingança; a falta de barreiras de qualquer natireza; a convicção dos nativos de que ficarão logo ricos, se os Brancos largarem, tudo isto faz montanha que não é fácil transpor,.
Os Brancos interrogam-se, esperando, ansiosos, resposta que não há!
Como vai ser o dia de amanhã? Se a ira referve, no peito dos indígenas! Jamais, penso eu, relações amistosas, como sempre houvera! Jamais entendimento, apreço e estima! Morreu para sempre o sorriso de outrora, volvendo-se em despeito e ceno carregado!
O lema odioso. que foi impingido pelo mesmo Diabo, grita a seus ouvidos:"O branco de Angola é vosso inimigo! Ele explora-vos: o que ele tem pertece aos negros.Correi-os breve para longe de vós!"
Eles acreditaram, viveram dessa fé e bateram-se por ela! Nem sequer fizeram distinção! Nesta conjuntura, todo branco é mau! A cor o denota e isso lhes basta! Inocentes não há! Todos são ladrões... bandidos... exploradores!
Quem semeia ventos ou deixa semeá-los colhe tempestades

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Silva Porto
24-12-1974
Véspera de consoada!

Como lembra aqui a ceia de outrora, realizada em família! Aquelas soupas de couve, alagadas em tempero, nadando longo tempo, em grandes panelões, recheados de carne! Fazia, de facto, a honra das panelas o velho suíno do ano anterior.

De raro em raro, servia também o do próprio ano.
Ossos inteirinhos, lançados na fervura, levando cingidos belos nacos de carne! Que saboroso aquilo não era! Vinha depois o amigo bacalhau, com azeite português e batata farinhenta.

Que apetitoso e belo manjar, para gente humilde! Havia pão de centeio, moído, a rigor, na pedra alveira e, quando o Céu queria,
para honra e glória do Menino-Deus, era pão de trigo, branquinho de neve.
Que maravilha, em casa de aldeia! Os olhitos inquietos dos felizes pimpolhos, passeavam gulosos, sobre os pratos fumegantes! A língua dos petizs volteava na boca, onde já crescia, a olhos vista, a saliva benéfica. Não faltava também a velha garrafa do carrascão, alimentada no pipo, aberto já, pelo S. Martinho ou então na taberna que servia o povo.

Por fim. a travessa das filhõs! Empilhadas em rimas, faziam negaças, ostentando açúcar no amarelo dos ovos. Que belo acepipe , devorado em união, pela noite silenciosa, nesse 24 de frio Dezembro!
Agora é outro mundo! Nova terra e novos ares! Outras faces, outros hábitos, mas nunca olvidarei a velha ceia de Natal,
no aconchego do lar!
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Silva Porto
25-12-1974
Ao sair, pela manhã, encontrei o gato preto, aguardando paciente que a porta se abrisse, para assim entrar logo,´ na casa amiga. É que o seu patrão reside agora, no Samalenso. Não sei porquê já fugiu duas vezes, procurando insistente o lugar do nascimento.

Da primeira vez, aguentou-se lá, uns dias mais, por não saber a direcção. No entanto, após várias diligências, acertou com o rumo.
Terá ele seguido os vários traseuntes, ao longo do caminho ou então, vindo à sorte, achou-se por fim, no lugar mimoso dos seus encantos! Comoveu-nos a valer o demónio do bichano! Fazia o animal tais demonstrações, ante móveis e pessoas, que não pudemos corrê-lo, nos primeiros contactos.

Julgo até que a Gina, apiedada, lhe deu comida! O Felismino, então, vendo-se acarinhado, esqueceu as agruras e feros tormentos sofridos no caminho, em busca do lar. Recordando ali guloseimas de outrora e antevendo já novas possibilidades, viveu deste jeito
momentos ditosos que breve cessariam.
Rendera 5 $00, o que impunha o dever de não recebê-lo! O seu patrão era já outro... Questão de mesa? Negócio de companhias e até de abrigo? Resolvesse os casos, que já tinha bom corpo!
Que podia acontecer-lhe? O que menos desejava: metido num saco, ei-lo de de novo a caminho do quimbo, pequeno aldeamento, a 2 quilómetros, do Chitembo.
Íamos já esquecendo o saudoso bichano, eis que surge de novo, contente e dengoso, mostrando no olhar imensa alegria.

Desta vez, porém, foi corrido à pedra, o que havia de ofendê-lo.
Ao chegar do exílio, voltando de novo, assim que me avista,lança brevemente um olhar inquiridor, para sondar as minhas intenções.
Disse-lhe eu então, com voz moderada: rua, seu tratante!
Foi quanto bastou! Cauda entre as pernas, ei-lo que se apressa, rumo ao pomar, onde havia passado as horas mais doces
da existència animal.
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Silva Porto
26-12-1974
Lá se foi já o dia de Natal! Que saudades infindas eu tenho dele! Não deste Natal que agora passou, mas o que era meu,
aquele que me encantava, em tempos de menino, quando lá em casa recebia dois tostões, para ofertar, na igreja paroquial, ao Menino do Presépio.Como então era belo!
À volta do Pimpolho, casinhas e palácios e, lá ao fundo, um lindo castelo!
Era de pasmar! Na manjedoura, o Deus feito Homem, rosadinho e bem disposto, sem olhar ao gelo de tantos corações!
Os pastores derreados, com o peso das oferendas; ovelhinhas a pastar, em calma e sossego; nun jeito de arrepiar, uma mulher sem temor,. equilibrada e firme, nas rodas do biciclo, em marcha descontrolada!
Tudo isto, na verdade, me punha a cabecita em grande alvoroço! Agitava-se fundo a imaginação e sonhos lindos se erguiam logo. do meu peito virginal!
Vinha então o Sr. Padre, ostentando o Deus-Menino, para dá-lo a beijar. Grandes e pequenos, velhos e novos, todos se abeiravam, com amor e c,arinho.
Tudo aquilo, então, me fazia cismar, longa, longamente, nada havendo ali que pudesse furtar-me ao encanto do presépio.
Por essa altura, fazia-se também a matança do porco.
Cerimónia brutal, violenta, carregada, oferecia, contudo, espectáculo animado, para todas as crianças.
Tudo aquilo, assim,era o meu Natal! Poético e belo! Ansiado já! Inesquecível!
O fato novo, as prendas variadas... surpresas de toda a ordem! Mas tudo voou célere, como a própria vida que logo se alterou!
O formoso Natal, que era muito meu, jamais eu pude reencontrá-lo.
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Silva Porto
27-12-1974
Fazia-me espécie aquele galinheiro! Nada por aí além... mas o telhado, coberto e resguardado, a chapas de zinco, não conquistava a minha aprovação: houvera pequeno erro, ao dispor os sulcos, operados na chapa. Em vez de ficarem, de alto-abaixo, achavam-se ao invés, o que facultava, como é evidente, a
penetração da água no interior.

Por várias vezes me chamara a atenção o telhado estrambótico! Porquê assim?! Teria vantagens que eu desconhecesse? Concluí negando: infiltrando-se a água, há enorme prejuízo, seja no que for. Demais, havia ali pombas, na secção imediata, ao abrigo do telhado.

Caprichei uma vez em fornecer-lhes abrigo, pois estavam no choco dois casais columbinos. Arranjou-se aquilo e tenho para mim que não foi obra vã.

O trabalho duro e mais indesejável foi na verdade arredar as pedras e tijolos velhos, que davam solidez à cobertura. Por causa do vento que, às vezes, é forte, requeria-se peso, assaz considerável, uma vez que as chapas não estavam pregadas.

Desimpedidas que foram, lavámos os sulcos, ao longo dos vincos, retirando os obstáculos à passagem da água. Em seguida,
colocaram-se as chapas, em sentido inverso ao que tinham primeiro, do que resultou um efeito elegante e ajeitadinho. Diz-me agora o palpite que chove lá muito menos e há mais conforto, no seio do galinheiro
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Chitembo
28-12-1974
Hoje... um dia em cheio! É preciso, na verdade, ocupar o tempo, lendo coisas úteis, mas se o não forem, até assim faz jeito, pois alguém desocupado torna-se danoso. De facto, não tem paz nem permite a outrem que goze dela.

Nada ha, realmente , como preencher o tempo, nem que seja, diria, com bagatelas, à falta de melhor! A título de exemplo, refiro o seguinte: mudar objectos, dum lugar para outro e repô-los em seguida, no mesmo sítio. É vão o trabalho? À primeira vista, parece que o seja, mas livra de enjoo, não havendo mais nada que possa fazer-se, em dado momento.

Eu, porém, não fiz assim. Levado, habitualmente, pela face prática, entreguei-me a faina dura: fazer um galinheiro, em lugar diferente.Com chapas zincadas, arranjou-se o telhado; com paus a pique, ergueram-se logo as duas faces que faltavam ainda, uma vez que as outras duas, a partir do muro que circunda o pomar, já.
estão feitas.
A história dos paus tornou-se famosa, pois eu e o Carlitos é que fomos à floresta , para desencantá-los e os pôr no destino.
Tinha chovido, o que tornava a faina bastante incómoda.
Apesar disso, não hesitámos. Javite na mão, avançámos de espaço, ao longo da mata, derribando então, aqui e além, os caules
direitos, acomodados ao fim.

Luta sem descanso, em que as tréguas foram nulas! Uma vez apeados, o Carlitos e eu devíamos transportá-los, o que não era fácil, por estarem verdes.
De uma vez, ganhei eu o grado, pois trouxe 9!
Confesso, no entanto, que moí o corpinho, ficando-me a doer, por vários dias!
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Chitembo
29-12-1974
Quem hoje recolheu as nossas galinhas bem como as pombas, fui eu sozinho e mais ninguém. Gosto de pôr tudo, no devido lugar. Não é, realmente, verdade incontestada que, sem Deus Omnipotente, nada se opera, na existência do homem?!

Não é Ele, afinal, a origem do ser e a fonte do movimento?
Voltando, pois, ao mesmo assunto, cabe-me dizer que actuei habilmente e com certa leveza.
Os galinácios andam excitados, por haver-lhes arranjado nova residência. Embora não seja grande, chega que baste.
Custou-lhes ainda, por ser apenas a segunda vez.Amanhã, decerto, já será mais fácil. Requerem as aves uns paus adequados, para se ajeitarem, durante a noite.

O mais fanfarrão, desobediente e arrenegado era o galo-mandão.Senhor absoluto de muitos destinos e ufano do cargo, entre as galimhas, assume,desde logo, ares de importância, que se traduzem, harto claramente no ar emproado, resmungão e basófia.

Assentando-lhe, porém, farta casca de árvore no dorso folgado, resolve mudar logo a sua atitude. Encafua-se prestes, já
resignado e ... pronto!
Quanto às pombas, a coisa é mais séria. Efectivamente, de asas cortadas, não é fácil a ascensão para o novo pombal. Resolvi então abrir-lhes a porta. Elas perceberam e lá foram entrando, uma após outra, afim de se lançarem nos braços de Morfeu.

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Chitembo
30-12-1974
No jornal " O Apostolado" vem um poema de Agostinho Neto, intitulado " Quitandeira"
Enquadro este escrito, como outros do género, na Literatura de tipo carregado e revolucionário, de carácter social.

Traduz, efectivamente, uma grande realidade, em linguagem
escaldante. Há vida e cor, na mulher-tipo, que vende laranjas e se
vende a si mesma. Ela, afinal, jamais se possuiu: desde menina, tudo alijou, em proveito de outrem; seu corpo e alma, saúde e vida, promessas e sonhos!...

Não viveu para si, mas para estranhos, que se aproveitaram,
indevidamente, de quanto era seu, para fazerem apenas a ventura pessoal. Há realismo ao vivo, neste poemeto, e a sua linguagem é,
por assim dizer, a do panfletário, inflamado em ira.

Quanto à face ideológica, nada a objectar, uma vez que a poesia é um resumo eloquente de penas e mágoas, que têm afligido a infeliz raça negra, ao longo dos séculos.

No aspecto formal, deixa certamente algo a desejar, pois lhe
falta o equilíbrio que o ritmo imprime às composições desta natureza. Bem sei eu que a poesia modernista vai trilhando, às vezes, tão árduos caminhos, mas a verdade é que o ritmo, aliado ao sentimento é, sem dúvida alguma, a alma da poesia,

Lá que não haja rima, passa facilmente, mas privá-la da medida, a que tudo obedec, na imensa natureza, criada por Deus, é pecado sem perdão.
Parece-me também uma alma que sente, pois vive a fundo os problemas graves de seus irmãos. Só´falta o ritmo e é pobre d e forma. Tudo o mais é belo!
Para Agostinho Neto, a vida começa agora e urge prepará-la
convenientemente.
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Silva Porto
31-12- 1974
Que trouxe, no passado, a Europa brilhante à África em trevas?
A campanha insidiosa persiste em afirmar que somente ruínas vierram da Europa. e que é preciso banir quanto seja devido a tal procedência, usando para isso não importa que meios.

Ardem inimigos em desejo de vingança ,nesta zona remota. Tudo acreditam como sendo crianças! Ódio e vingança é só o que
impera, tornando-se logo ideia obsidiante. Quanto eu lamento que se haja formado errónio sentir!

Claro nós vemos, que se vislumbra fácil, para além do furacão, a origem estrangeira, que se desunha, a valer, pelas grandes riquezas deste subsolo. A frase incisiva do grande Salazar " Saí vós, para entrarmos nós," é de uma intuição, profunda e realista!

Quem soprou raivoso em solo africano foram decerto as super- potências que, negando persistentes a velhos senhores o
direito de gozar o que haviam realizado, se conjuraram ardilosas, para arruinar o que tantos sacrifícios e tamanha dedicação, haviam construído.
O eixo poderoso, Bulganine - Eisenhower, mostra-o claro, pela intervenção no Canal de Suez, quando a França e a Inglaterra
foram coagidas a sair dali.

Em nossos dias, está o mundo a sentir as consequências funestas da imperiosa atitude. Inveja e ambição das super-potências! Desilusão, logro e contratempos, ocasionados, assim, às velhas Metrópoles.
!A eterna fábula do Lobo e o Cordeiro! O direito do mais forte! A força das armas! Estão apenas em jogo interesses alheios de grandes colossos! Tudo o mais se subordina e se torna secundário!
Mas os povos de África trazem, com certeza, os olhos vendados!
Fiam-se breve, na sereia astuta! É lindo o seu canto?! Será, será ,mas perigoso!
Povos ingénuos da África ardente, o que importa, afinal, não é a vossa causa nem os vossos problemas! Continuareis na miséria, acentuada mais e mais! Até isso interessa, para ficardes pedintes submissos e gratos, por vos terem explorado

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Nyangana
1-8-1976
Começa, partir de hoje, o 8º mès. Se remonto ao passado, fartas causas enxergo de alegria e tristeza. As mais impressionantes respeitam decerto aos dias 4 e 15; 24 e 28.
Em 4 de Agosto, a primeira Eucaristia, na terra natal --
Vide-Entre-Vinhas.
Mil nove centos, quarenta e três! Já lá vão assim 43 anos
Como o tempo se esvai!

Um dia de triunfo para os meus pais que viam realizado o sonho antigo e coroados de êxito seus trabalhos e canseiras!
Quanto a mim, seria belo passo, fazendo livre escolha, pois o sacerdócio excede em beleza qualquer outro tdeal.

Em 15 de Agosto, comemoro, sem dúvida, um facto lastimoso: o desastre de automóvel, ocorrido em França. em 1965, no Distrito
de Dax. Pelo bom Deus, nem mortos nem deridos, mas quase por milagre! O embatate de outro carro que veio contra o meu, operou
o prodígio, fazendo amortecer a mesma velocidade.

Em 24 de Agosto, é que o peito se diilatava, meditando longamente, nos dias felizes que o tempo levara! S. Bartolomeu!Feira de Trancoso! Aquilo era certo!

Meu pai não faltava. Houvesse o que houvesse! Eu, então,
esperava ansioso o seu regresso, já noite fora, pois com ele vinham sempre guloseimas e brinquedos: uvas e trigo,um lindo vitelo, uma potra dengosa... uma bengala ou ainda uma espingarda, com gatilho à vista! Uma guitarra! Uma carteira

A imaginação fervia e refervia!
E os meus olhos de criança fixavam amorosos aquele mundo encantado! Outro rumo, outras cores... Novos incentivos, para
a vida infantil
A 28 de Agosto, é a festa do meu santo, o imortal hiponense,
o meu querido patrono, o maior génio da Humanidade: Santo Agostinho!

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Nyangana (Namíbia)
2-8-1976
Perguntou-me um colega aonde ia passar as minhas férias. Encolhi os ombros, acrescentando logo que era ainda cedo, para deliberar. Entretanto, cedo ou tarde, é sempre o mesmo!

Onde será deleitoso fixar-se alguém, para repouso e distracção? Naturalmente, junto de quem ama e lhe retribui! Eu, porém, refugiado no Cavango, onde tenho a família?! A milhares de quilómetros, para além dos mares! Nem família nem casa nem dinheiro bastante, para gastar! E havê-lo granjeado, à custa de mil esforços, privações e poupança!

Não tenho eu na Torre Alta, boas dezenas de contos?! E tão meus que eles são! Não foram herdados! Representam suor e longas
vigílias! Apesar de tudo, na hora mais amarga, que a vida me criou, ao pedir o que era meu, foi-me respondido: "Agora, nem saídas nem entradas!"

Além disso, que não vencia juros... Que fazer, então?!
Se a minha existência dependesse tão só daquela importância, bem tinha de morrer! É triste! Quando nada temos que sirva de recurso... ainda vá lá! Mas assim!

Alegaram razões que me parecem fundadas, mas eu também as tenho... maiores ainda!
Acho que, em tais casos, deviam atender, porque realmente eu era
refugiado e, nessa altura, nada ganhava, querendo no entanto livrar-me da miséria! Onde passar férias? Nem casa nem família nem sequer dinheiro! É forte desgraça! Valia mais a morte, se não fosse tão negra e não houvesse, de facto, eternidade.
Apesar de tudo, espero ainda que a Torre Alta me devolva
aquilo que não é seu.
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Liceu
3-8-1976
É hoje o primeiro dia que habito a "minha" casa! É força de expressão, porque, a rigor, só disponho dela, exercendo o
magistério. Vou dormir aqui, pela primeira vez.

O pó acumulado vê-se já aos montes, sobre os objectos. Se me chego, acaso, a um deles, fico branco, branco, à semelhança dum moleiro! Forte desgraça! Tivesse aqui à mão farta serrapilheira, que logo lhe dizia! Quando voltar, hei-de vir prevenido.
A fazer de cortinado, pus agora o duplo tecto que faz parte do conjunto, respeitante ao campismo.

Que revira-voltas o mundo não dá! Quem diria, em Portugal, onde comprei tais objectos, que o Sudoeste Africano lhes serviria de
túmulo!?!
Mas, enfim, isto é a vida!
Há 33 anos, pensaria também encontrar-me hoje aqui, sozinho, abandonado?! O almoço de hoje foi só pão com uma laranja! E fiquei bem! Pelo menos, foi melhor do que nada. Arre bolas! Isto é demais!
Pois se o bom Deus, ao ver Adão sozinho, não achou aquilo bem! O que era mal, nesse tempo, igualmente o é agora.!Se tivesse, ao menos, um sobrinho! Mas nada!Adoecendo, cá morro isolado!
Que Deus me leve em conta este grande abandono, esta horrorosa e negra solidão, perdoando-me as faltas e acolhendo no Céu as almas saudosas dos entes finados!

Levarei a minha cruz, com firmeza e paciência, porque Deus, Pai do Céu , há-de vr em meu auxílio! Não que eu mereça, mas
por compaixão e grande misericórdia.
Também é forte razão lembrar-me, na dor, que o meu sofrimento será útil para alguém.

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Nyangana
4-8-1976
Já dormi na moradia, que põe à disposição a Ãfrica do Sul. Por esta razão, foi um dia atarefado, não fazendo embora quanto era preciso. Assim, por exemplo: não lavei o chão, coberto de pó. Faltava ali a serrapilheira. Amanhã, sim, já posso fazê-lo. Reservei um pano grande, para tal ocupação.

Estando molhado, percorro os aposentos e as outras dependências,
arrastando o objecto, pelo compartimento. No tocante aos móveis,
são desafrontados, com um pano humedecido: ver-me-ei livre do pó, agora em montões

A banheira grande também já funciona.
É que os ratinhos haviam obstruído o tubo de saída, com sementes
diversas, ali depositadas.

Ora, lavei a banheira, a bacia de rosto, logo a sanita, a louça que me acompanha e o vaso de ignomínia!
A propósito. foi ele, afinal, o que deu mais trabalho.Com sabão e água quente, levei a minha por diamte. O material não se impõe, que é feito de plástco, mas a sua utilidade não deixa de ser real.

No que respeita à louça, tenho ao dispor dois pequenos tachos, um termo de litro, talher completo, caneca de metal, um copo
plástico e um pequeno prato..
O Liceu oferece casa, água quente e fria, energia eléctrica ,
fogão e mesa, duas cadeiras, leito e armário. O que toca à roupa
é de minha conta, bem como o gás.

Dormi sem lençóis, tendo só um cobrtor. Por cima do colchão, pus a tenda de campismo e lá me arranjei.
Serão três anos, em tal desconforto? Será mais ainda? Ou menos, talvez? Deus é que sabe!
Se tivesse saúde! Amanhã, lá fico outra vez, para vir na quinta-feira. Hoje, é quarta.
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Liceu
5-8-1976
Dezanove horas, pela África do Sul. Vou já passar a segunda noite, aqui na moradia. Espero dormir bem, pois este dia
foi atarefado: ministrei 6 aulas e arrumei a casa, de lado a lado. Agora, até parece outra! Dá gosto habitá-la! O que faz grande pena é achar-me sozinho!
Como se fora algum criminoso, condenado ao silêncio ou sujeito indesejável que a sociedade houvesse repelido!
O que me vale é preencher em pleno as horas disponíveis! A correcção dos Diários absorve-me todo! Ainda bem que asim é!

A vizinhança aqui mais chegada é o rto Cubango, que passa ali em frente, onde recebe também as águas do Cuito.
Daqui, a solidão; dalém, Angola!! Por aqui se dispersa o meu coração, que deixou raízes fundas, no solo tão querido! As
saudades não findam! Pelos entes queridos que lá encontrei e pela história linda do passado lusíada, fiz daquela terra a pátria adoptiva.
Se agora me convidassem, fazendo a paz,, iria de bom grado, preferindo entre tudo a amada Silva Porto, Sombras de
finados pairam por ali, e eu sinto-me bem, envolvido por elas.
Mas Deus é quem destina. Por esta razão, outra coisa não desejo, fora do que Ele quer.
Ainda seria possível dar aulas em Angola, recordando amoroso , os anos decorridos, entre 1972 e 1975?
Afigura-se um sonho! Mas, se a guerra não acaba!...

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Nyangana
6-8-1976
Hoje, estou maçado! Dormi que chegasse. embora a intervalos. O sistema urinário começa a ter falhas e há que sofrer as consequências.
A ver se aguento mais alguns meses, até chegar Janeiro do próximo ano. Aproveitarei um belo ensejo, para consultar um Médico hábil, na capital. Será Windhoek, naturalmente!
Nessa altura, já disponho, ao certo, de algum dinheiro, o que permite fazer despesas.
"é de esperanças vive o homem, até que morre". É frase coçada, mas tem fundamento. Só a negra morte lhe corta, para sempre, a
luz da esperança. Grande alavanca é ela, por certo!
Se o homem tem vida e aquela se extingue, põe termo à existência ou, se o não faz, vive apagado e sem interesse por coisa nenhuma.
Agora,tenho em vista alindar a moradia. Comecei a apegar-me e desejo, na verdade, possuir mais coisas, para torná-la uma estância agradável.
Duas cadeiras e uma pequena mesa, já eu tenho de posse.
Seria meu desejo pôr duas floreiras, na estufa de Nascente. Depois de lavada, pareceum brinquinho! Dá gosto viver lá, embora sozinho! Afeito à solidão, converso com ela, decorrendo assim as horas da vida.
Hábitos de longe criaram este afecto, que lançou raízes,
Como isto foi assim, continuaremos os dois , que a mundana, às vezes, é de si perigosa.
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Nyangana
7-8-1976
Fiquei satisfeito, por encontrar o "Século ", em cima da mesa. Estavam dois números: 26-7 e 2-8 de 1976. É um jornal curioso de Língua Portuguesa, que é editado, em Joanesburgo, todas as semanas. Agora, afinal, já posso informar-me, com algum pormenor, acerca da Pátria e do mundo português.

O primeiro deles trazia impresso: "Postage paid".
É que eu, na verdade, pedira ao Redactor que me enviasse o jornal, acrescentando em seguida que só em Janeiro podia pagar. Apresentei razões que, pelos vistos, foram atendidas.
Juntamente com eles, havia uma carta de minha irmã, contando suas mágoas e fazendo, ao mesmo tempo, algumas sugestões.
Hoje, sábado, expus ao Padre Hermes a minha situação, em ordem ao Liceu, e a dificuldade em vir de noite. Aprovou o que eu disse e pôs-se em campo, afim de ajudar-me. Ficou, pois, decidido que venho somente, às quartas e sextas, ficando na moradia, que o Liceu concede, para todos os dias.
Posto assim o problema, acarreta exigências a que tenho de
atender: os precisos, para orar; roupa de cama e alimentação.
Estou mais descansado: em lugar de 5 vezes, quantas ia e vinha,
todas as semanas, são apenas duas, acontecendo, às vezes, reduzi-las a uma, em fim de semana.

Saiu-me dos ombros um peso brutal, que assaz me afligia!.
Aquela picada, o escuro da noite, chuva e lamaçais, terrorismo e solidão.... trazem-me oprimido e fora de controlo.
Quando surgirá, para minha desgraça, a "mina" fatal, que
estilhaça o carro e me lança prestes no abismo da morte?!

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Nyangana
8-8-1976
Li, há pouco tempo, no jornal " O Século", de
Joanesburgo, que o Governo Português desvaloriza o escudo em 30%. É uma baixa estrondosa, logo de uma vez!
Para grandes males, grandes remédios! A finalidades é assaz clara: chamar, para já, as divisas estrangeiras e assim aumentar as
exportações
O objectivo é bom e estou convencido de que vai surtir efeito.Torna-se urgente e até clamoroso erguer o País do caos vergonhoso. em que foi lançado pela ama insensata do 25 de Abril.
Alimento a esperança de que a vida económica se normalize. Ao fim de dois anos, estarão as coisas em boa ordem, funcionando a rigor. Oxalá que o Socialismo deixe bem marcada a sua passagem pelo Governo! Isso lhe assegura a confiança de nós todos, aumentando as adesões, em próximos escrutínios.
É da minha simpatia o Governo actual, assistindo-me apenas algumas dúvidas, acerca do efeito, em solo português.
O génio político dos homens de Estado, a boa vontade dos nossos governantes e o trabalho árduo de colaboração de todos os
Portugueses obrarão o milagre! Que assim seja, de facto!

Caso contrário, ir-se-á para o Centro que também não é mau..As Direitas antigas são muito apertadas mas, ainda assim, bastante preferíveis ao que temos visto!
Ao menos, havia pão, ordem, trabalho e respeito, sem faltar
a disciplina.
Entretanto, confio no Governo, apesar, já se vê, do que tenho lido, na Imprensa de fora.

Liceu
9-8-1976
Vou ficar ainda a terceira noite, aqui na moradia.
Às 6 e 20, chegava, de Nyangana, trazendo comigo apetrechos diversos: roupa de cama, precisos para orar, alfaias e alimento.

Hoje, é segunda; regresso na quarta. Dá isto em resultado
ir só duas vezes, em lugar de 5. Traduzido em meúdos: gasto 5
litros, em vez de 12,5. A gasolina é cara, obrigando, pois, a tomar em conta o que vem, decerto, pela economia.

Entretanto, o que mais aprecio é não vir de noite.
Já fiz a cama, dispus os trastes e preparo-me agora para ver os testes. São 12o: tenho já trabalho para vários dias.
Aqui, afinal, vai tudo à censura: elaboração de provas, pontos atribuídos, emenda de testes e contagem de médias.
Mas, enfim, lá diz o povinho: " Quem quer bons ofícios aprende-os antes".
Por minha irmã que ficou sem nada, eu sofro tudo. O mesmo
faria, pelo outro irmão, se o visse na miséria. Três anos de martírio? Deus é quem sabe!

Comecei hoje a lançar a rede, para ir a Durban, Joanesbuurgo e Pretória, sem nada pagar.De outra maneira, também não posso! Aproveitarei no Rundu, um avião do Exército e, no termo do voo, a bela hospedagem das nossas Missões.

É que, juntamente, eu preciso de Médico!
Verei, brevemente, se posso realizar este grande anseio. O avião do Exército é facultado, gratuitamente, a todos os funcionários que trabalham aqui, para o Governo da África do Sul.

Dado o caso feliz de haver Oblatos, nos lugares que visito.,
fica assegurada a minha subsistência, não tendo cuidados, mercê da escassez.
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Liceu
10-8-1976
Cá estou no cenóbio, onde escrevo estas notas.
Hoje, é terça-feira, que passa, diz o povo, como dia de bruxas.
Costumam, realmente, ser de mau agouro, segundo corre entre néscios, as terças e sextas.

Eu não creio nessas coisas e, se falo no assunto, é só para rir! Efectivamente, foi um dia bom: dormi bastante bem e tive menos dores. Embora ontem, de facto, me custasse, a valer, dar 5 aulas,
hoje dei 7 e fiquei bem disposto. A prova está nisto: após o almoço que foi bastante frugal, ( uma banana, duas laranjas, um
ovo e uma bolacha), já corrigi um bom milhar e duzentas respostas do teste de Inglês, atinente a Agosto.

Além disso, revi 4 Diários, faltando apenas seis, para atingir a média. Vou ver, em seguida, se tenho coragem
Elementos do Exército perguntaram-me, há pouco, se eu tenho comida, Já ontem, afinal, quiseram oferecer-ma. So queria voltar à Missão de Nyangana, sexta-feira próxima,à hora do almoço.

Quanto aos testes referidos, acharam-nos difíceis e a grande
maioria nem sequer entendeu o texto escolhido que tinha 20 Pontos, num total de 100.
Em Dezembro próximo, virá um teste de Pretória. Estou com receio! A classe porfia, mas faltam as bases.

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Liceu
11-8-1976
Já se aproximam as 20 de hoje. Escrevo. no cenóbio e vou escutando o programa habitual " Voz da África livre"
Foi um dia novo e de grande expectativa, pois que outros horizontes se vão delineando.
Acabou o terror que a estrada me criara: bois, vacas e burros; cavalos, bodes e cabras; porcos. galos e galinhas, a qualquer hora do dia e da noite!

A tal respeito. há isto de agravante:o gado em causa familiarizou-se de tal maneira, que não foge das viaturas. Aqui reside o enorme perigo. Por outro lado, é uma zona de medos, uma vez que, sendo terras do Sudoeste,em qualquer altura, surgem terroristas, que aproveitam as trevas, afim de actuar.

As minas, então, eis o inferno!. Hoje, é quarta-feira. Tencionava, de facto, ir à Missão, em busca de alimento. Os meus
amigos, porém, quero eu dizer, os colegas professores, que pertencem ao Exército, já me haviam perguntado se eu tinha comida, oferecendo seus préstimos.

Ao meio dia, nada tinha para comer!Se me não lembrassem. nunca eu pediria, mas eles são prestáveis e gostam de ajudar-me!
O amigo Morais viu-me ali sentado, à porta de casa e logo perguntou: Tem um prato? Traga já e sirva-se à-vontade"
E lá fui eu, de pratinho na mão!
Estes rapazes são admiráveis! Nada esperam de mim, porque não precisam nem estou em condições de ser-lhes prestável.

Fazem as coisas sem interesse! Apenas camaradagem, solidariedade e espírito pronto de bem servir!
Não os esquecerei e ser-me-á custoso vê-los partir, no fim
do ano.
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Liceu
12-8-1976
Rogaram ainda os Colegas docentes que, em sua companhia, não tivesse acanhamento: tudo o que precisasse estaria à ordem. Fiquei radiante, como era de prever!

A casa, onde moro, fica situada, no meio de outras, o que dá confiança e cria facilidades. Por isso é que ontem foi na verdade, um dia especial, na minha vida aqui. Desta maneira, já está resolvido o grave problema. Serve, ao que julgo, de compensação
para o magro ordenado.

Fomos agora aumentados em 10%. Vencimentos chorudos ressentem-se em pleno. Os escalões inferiores bem pouco avultam, mas sempre é bom!
O meu vencimento eleva-se em randes, a duas centenas, acrescidas ainda em 52, livres de encargos: imposto profissional, assistência médica, etc.

Se eu, em Porugal, tivesse frequentado um Instituto civil, ganhava a dobrar. Entretanto, com esta ajuda e casa à ordem, lá se
vai indo! Em seguida, um pacote de bolachas, e meio quilo de boa manteiga., Vim delirante!

O café instantâneo apareceu, num momento e vai de cear!.
Levanto-me,às 5, pois às 6 e três quartos, iniciamos os trabalhos.
Antes de ir para o Liceu, preparo aqui tudo: faço a cama, limpo e arrumo. encomendo-me a Deus e como ao de leve

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Nyangana
13-8-1976.
Em viagem ao Rundu, capital do Estado.

Desde a seguna aula, tomei prestesmente o carro do Liceu e pus-me a a caminho. Não faltava companhia, que membros do Exército, em número de 10, me faztam guarda de honra.

É que eles vão à base, uma vez por mês e houve coincidência. Ia também o Reitor do Liceu, a distinta esposa de Mr. Snyman e um preto de Angola que trabalha, no Cavango.
Não sei porquê,sempre que é urgente,deslocar-me ao Rundu,
fico mal disposto! Só poeira, em toda a parte, via lastimável...
estômago vazio!
Eu dou-lhe razão, pois que o não faria, em circunstâncias iguais?! Aguentar-me apenas com 2 laranjas, desde as 6 da manhã, até às 18, não é brincadeira!
Lá chegámos ao Rundu, encaminhando-nos pronto, aos vastos escritórios, afim de tratar do meu assunto: era necessário
informar Pretória, verter em Inglês ou Africânder, a certidão do meu nascimento.

Uma vez em presença de Mr Jacob, Alto Comissário, eu punha em Inglès, vertendo ele em Africânder. Foi uma limpeza!
Em seguida, apanhar mais pó, fazendo ali tempo bastante, para
visitar o amigo André Bicho, que reside perto. Vêm do Cuangar as nossas relações, e falar com demora, acerca de vários temas.

Todos os problemas saltam na convers!
Combinámos também ir a Grootfontein despachar encomendas se
houver facilidades. Esta abertura é o que me alivia, quando vou ao Rundu. De outra maneira, ignoro o que seria. Faz-me bem contactar, expor dificuldades, trocar impressões e falar do meu viver, nesta zona remota,
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Nyangana
14-8-1976
Todo o santo dia corrigindo Pontos! Bom fim de semana, para a gente repousar! Esclarecendo agora que já lhes pegara três dias seguidos, embora com aulas, dá, não haja dúvida,
um rol significativo! O pior não é isso! Amanhã, é Domingo: comece eu embora, antes das 8, não consigo tê-los prontos, à hora de jantar!

O s testes não são muitos: apenas 12o! No entanto, a assunto é variado e ordena-se ele de tal maneira, que leva imenso tempo!
Além do mais, contém, 1oo alíneas

Se não fosse lembrar-me de que este grande esforço aproveitará, decerto, a mais alguém, não metia ombros a empresa tão árdua! Assim, até o faço com gosto! O que me põe contrafeito é precisar de mais tempo e não consegui-lo.!
De facto, escreveria também a minha irmã, cuja carta já descansa, vai para 8 dias, juto de outros papéis! Contudo, é-me impossivel! Só para a semana! São mais 8 dias, esperando resposta.
Também devo carta ao Colega, Padre Abel, que reside em Joanesburgo. Foi meu companheiro, em tempos de aflição, quando nós ambos éramlos refugiados. É certo e sabido que não cheguei a vê-lo, no campo do Catuitui, mas veio de facto, na
mesma coluna de que eu fazia parte.
Paroquiava ele a boa freguesia de S,João, em Nova Lisboa.
Até pode suceder que, um dia mais tarde, eu vá também para Joanesburgo.
Simples conjectura, mas às vezes!...

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Liceu
15-8-1976
Cá tão longe da Europa e afastado do mundo, relembro, com saudade, as pessoas amigas a quem sinceramente desejaria escrever. entretanto, mercê de várias causas, não tomo resolução.Talvez no próximo ano, estando por aqui.

Seriam montes de cartas, a fazer o que desejo, mas tempo que chegue e boa disposição?! Se não fossem os Diários! Tem de ser agora, necessariamente! Em breve tempo, acabo já o ano 70: provavelmente, ainda antes do mês de Setembro! Os de 76 já levam com eles a primeira revisão.

Se não fora, pois, este imenso labor, iniiciaria já a tal correspondência, com pessoas diversas: os Padres - Duarte e Gomes Neves; Dr. Salvador e Silva Ferreira; Cabral e Arnaldo;
não falando agora em outros mais.

Além deles, bateria a outras portas, que tantas vezes se abriram, para receber-me, como os lembrados senhores: Garcias de Lagares; casal Isabel e casal Cardoso; Almeida Santos e Antero,Avelãs Nunes e Amílcar. e tantos outros e outras,cujos nomes, de momento, não ocorrem.

Verei, futuramente, se poderei realizar o que agora é
impossível. Gostaria imenso de contactar, por meio igual, com
vários alunos e alunas também dos quais guardo no peito as
melhores recordações.Seria até maneira bem própria de atenuar a minha solidão que agora mais que nunca é sempre companheira.
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Liceu
16-8-1976
Educação e Liberdade.

De maneira geral, por liberdade entende-se isto: faculdade espontânea de cada um agir como bem lhe apraz.
É indiscutívelque há-de ter em conta a liberdade alheia, caso
contrário, as outras pessoas não seriam livres. Disto se infere, necessariamente, que não há no mundo, libertdade absoluta. Só em Deus é possivel encontrá-la.

Infeizmente, porém, acontece que, por várias razões, o homem, neste mundo, não age livremente, quer dizer, nem sequer dispõe da liberdade relativa.

Vou agora citar algumas das causas que se op firmes ao uso legítimo de tal prerrogativa: lastimosas condições sócio-económicas; rabulice e manha do educador; ambiente familiar;
docilidade excessiva, por parte do educando; ingenuidade e ambição; tendência geral; apreço dum estado.

São já bastantes as que deixo expressas, havendo outras mais que poderia juntar. Como traves mestras, surgem, evidentemente as sócio-económicas , o ambiente familiar e influência maléfica do educador. Considero-as eu de tal importância ,que, a meu ver, são
motivo bastante, para tolher a rica liberdade.

Qual camisa de forças, enlia a tal ponto, que o pobre ser humano é obrigado a prosseguir contra sua vontade.

Liceu
17-8-1976
Ressaibos do passado.
Estando em convivio, sinto-me às vezes inferiorizado, em relação
aos demais presentes. É evidente , por certo, que agora lido somente com povos germânicos: alemães, holandeses e também ingleses.Isto, no entanto, pouco interessa,, pois o caso é igual para quaisquer habitantes de outra nação.

Há praxes determinadas que estabelecem contactos e fazem boa parte do trato humano: fumar e beber e assim, por vezes, comer também.Ora, quando isso acontece, eu, por minha parte. faço má figura.
Oferem-me tabaco... deparam logo com uma nega; acemam-me ainda com uma bebida, sucede a mesma coisa; se tentam de outra forma, prender-me no momento, reproduz-se igual cena.

Sinceramente confesso que me sinto humilhado... grandemente deprimido! Quanto eu lamento esses velhos hábitos, adquiridos, há muito, no tempo do Internato!

Que faço então eu, quando os outros se divertem, convivendo alegres? Ruborizo e envergonho-me; censuro os meus hábitos e

verbero os pedagogos que tive, no passado.
Preparam-me, sim, para outra sociedade, talvez angelical.
num convívio de encolhidos, simples e ingénuos! Seria?!

Como é triste e lamentável dar como eu dei, em mãos de gente míope, subserviente e harto miudinha!
Às vezes, fanatismo... intransigência, estreiteza de vistas!
Quando sou chamado para tais convívios - o que sucede frequentemente, no sector civil e eclesiástico, pareço um mono que se instalou em presença, para incomodar e sofrer também.
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Liceu
18-8-1976
Cá estou eu já, para ficar! Levou imenso tempo!
Havia, de facto, problemas, ante mim. Por Deus e Senhor, correu tudo bem.
Agora, sim, fico descansado! Viajar de noite, acabou de vez, o que dá, por certo, enorme prazer! A velha picada, mesmo durante o dia, é cheia de perigos, Cheguei, pois, à solução, nos termos seguintes: à sexta-feira, após aúltima aula, que finaliza, precisamente, às 12 e 45, parto do Liceu, fazendo logo caras à Missão Católtca.
Sendo 16 quilómetros, levo um quarto de hora. Às 13, almoço lá, ficando essa tarde, sábado seguinte e Domimgo ainda, até às 18, hora a que arranco, em direcção ao Liceu., onde há casa própria, individual. Já tenho ali quanto é necessário.
Ontem, os bons amigos deram-me pão, ovos, fruta. leite instantâneo e algumas latas.
Por outrto lado, como temos aqui uma guarnição, formada por 1o jovens, pertencentes ao Exército, a maioria dos quais presta auxílio nas aulas, recorro a eles em todas as faltas, pois que
amavelmente puseram suas coisas à minha disposição.
Tenho autorização, para entrar e servir-me do que eu preferir.
Ao meio-dia, vou lá sempre abastecer-me trazendo um belo prato de 4 iguarias.
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Liceu
19-8-1976
Liberdade.
No capitalismo, as pessoas humildes, que são em maioria, não têm liberdade, na escolha dos meios, a utilizar.

Se a riqueza se acumula, faltará, por certo, noutros sectores. Ora, sendo assim, como há-de optar-se, não dispondo de meios?!
Gostaria aquele de cursar Engenharia mas, como faltam os meios, ficará pastor de gado, contra sua vontade!

Não sente gosto nisso, mas segue fatalmente o destino amesquinhante que a sociedade lhe impõe! Nem é feliz nem o deixa ser aos que lidam com ele. Rende bem pouco e torna-se pesado!
Outro elemento gostaria de ser Médico, mas dinheiro para isso?! Fica alfaiate, porque alguém, amigo de seu pai, o leva em seguida, para aprendiz. É mister que não preza, mas tem que o seguir, par não sossobrar!
É isto liberdade?!

Uma vez lançados em tal direcção, gostem ou não gostem, hão-de prosseguir, já que falta alternativa.
Resultado: maus elementos, no campo da técnica; péssimos companheiros; infortúnio e revolta; sociedade arruinada!
O que deixo escrito aplica-se, afinal, a qualquer estado, em todo ambiente.

No meu entender, apenas um sistema poderá obviar a males ,tão grandes - o Socialista, não radical e cumpridor, sem escorregar, para a direita ou para a esquerda. As Encíclicas papais dos últimos tempos, a partir de Leão XIII, servem de modelo, quanto à distribuição dos bens materiais.
Só deste modo pode haver escolha , determinação, liberdade e ventura.
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Liceu
20-6-1976
Educar,
Defifnição dificil? Assim o afrmam. Entretanto, há dados gerais, que todos aceitam. Ninguém contesta, julgo eu, esta afrmação:
educar, afinal, não é destruir nem substituir; não é ímpor-se nem vingar-se.
Se algum destes factores entrar em acção, obteremos, desde logo, efeito contrário - deseducar!
Em tais casos, o educador é um criminoso, criando para futuro, figadal inimigo, em cada uma das pobres vítimas.

O seu nome, por fim, será maldito; a sua acção, reprovada e
repelida; a fama de suas obras cairá no olvido. Qual fogo de vista, dissipar-se-á num só momento, logo que o educando se aperceba do logro.
Ao encontrar problemas. ao sentir-se infeliz, sem meios para vencer, execrará firme, todos os que o fadaram para um destino cruel! As consequências graves, na vida prática, são tão lastimosas, que hemos de encará-las bastante a sério, para escolher o educador. caso falte idoneidade, seja logo rechaçado, que está fora da órbita!

Não basta ser bom, embora de facto seja recomendável: é
necessário argúcia... acuidade de espírito, aliando a isto uma grande prudência, para acertar melhor no drsempenho da bela missão.
A simpatia humana é factor apreciável que leva a criança a usar de franqueza, mas será condimentada, pois o educando, levado talvez pelo sentimento, inclinar-se-á, provavelmente, em
direcção errada.
Ao educador, cabe pois, descobrir o caminho certo: mister delicado em que prestará, sem dúvida alguma, inestimáveis serviços a jovens inexperientes e sentimentais. É tarefa delicada!
Abstrair alguém do gosto pessoal e enquadrar-se habilmente no campo alheio!.
Entretanto, a consegui-lo, prestará, sem dúvida excelentes serviços.
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Liceu
21-8-1976
Liberdade na escolha.

O educador arguto exerce, por certo, papel de relevo, na escolha exacta da vocação, contribuindo assim, para a ventura alheia ou
também para a desgraça. Daqui se infere quanto seja delicada tão nobre missão. Se nao for pessoa idónia, em todos os aspectos, fará
cavar em breve a sepultura de muitos.

A sua finalidade terá por objectivo formar elementos, não tendo em vista destruir, alguma vez, a personalidade, substituí-la ou ainda atenuá-la. Reputo isso um crime sem perdão.

Ocultar aspectos sérios ou então diminuir a sua importância; fugir habitualmente à responsabilidade, alegando, a propósito, que isto ou aquilo é insignificante; dourar o que é ingrato; interpretar, de modo parcial, determinados factos da nossa História;

conquistar a simpatia, para melhor actuar, sucedendo, por vezes, que o pobre educando ingere por afecto e não por convicção.
Tudo isto são brechas que vão dar, no futuro, enormes aberturas. O educando é, sem dúvida, um boneco em suas mãos,
quando falta idoneidade.
Tenho para mim que, antes de abalançar-se, deve o educador pensar três vezes, lembrando-se então de que, mais tarde, o seu educando poderá tornar-se o maior inimigo da sua pessoa, Basta-lhe advertir que fora enganado, para criar-lhe, em breve, um ódio de morte!
Não será isto um facto lamentável?!
Para quê substituir-se?! Para quê sonegar aspectos delicados, deixando-os no escuro?! De que serve também dourar o que é baço, de sua natureza?!
A verdade, acima de tudo! Educar é missão muito nobre que
não se presta a vigarices ou jogos de preferência, por parte de alguém!
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Nyangana
22-8-1976
Sexta-feira passada, quer dizer, ante-ontem, presidia a uma aula, quando alguém bata à porta. Acorro prestesmente, na mira de abrir e avisto, com surpresa, uma força do Exército, de
patentes diversas. Vinham todos armados e com ar determinado.

O que mais surpreendeu foi, na verdade, aquilo que segue: se nós temos aqui um guarnição, como vêm outros fazer inquirições?!
Interrogo-me breve, mas sem resposta. Entretanto, julgo adivinhar.
Os que vivem connosco ascendem a 10, havendo 7 que são professores. Ora bem. Após haverem entrado, fazem perguntas, em Língua inglesa, a que eu respondo, sem papas na língua.
-- All in good order?
--Yes, it is.
-- Any problems?
-- No, there aren't
-- What subject do you teach?
-- English, Sir!
Após isto saíram, fazendo a mesma coisa em salas vizinhas.
À entrada do Liceu, aguardava-os um carro, em que tinham ficado
elementos congéneres.
Pensando no caso, veio-me à ideia o que está sucedendo lá
no Soweto e outras cidades da África do Sul. Creio não me engano, fazendo a ligação. Usam agora de extrema vigilância, pre venindo outros casos.
Chegando à conclusão, lembrei-me de Angola, após 74.
Então, era eu professor, na cidade, Silva Porto, em cuja Escola Técnica ministrava Inglês.
Algum dia, por ventura, o exército se abeirou, a prestar-nos auxílio?
Esta gente é prática e muito realista!
Como o povo judaico, lutarão até à morte!

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Liceu
23-8-1976
Envio de objectos, gratuitamente, para terra portuguesa. Afiguravam-se más, se não insuperáveis, as dificuldades. Desde ontem, porém, tornaram-se mais claros os meus horizontes. Pensei, remexi, dei voltas à cabeça; falei no assunto aos meus amigos. Segundo creio, não haverá qualquer
obstáculo!
Convém agir breve. Minha irmã Agusta anda ansiosa, pois
agora em Portugal é tudo muito caro. Só os três objectos de que ela falou e lhe fazem mais falta. representam por ventura mais de 2o contos! Fogão e frigorífico e bem assim a máquina de costura,
não falando em outras coisas que se encontram no Tondoro: algumas roupas e objectos diversos.

Tenho de pôr a máquina em bom funcionamento, aproveitando talvez um fim de semana que seja maior - 6 de Setembro.
O que póe dificuldade é colocar as caixas envolventes, pois nada recebem que não vá protegido.

O amigo André, que vive no Rundu, estará disposto a ir ao Tondoro e fazer o jeito? Em seguida, trazer tudo para o Rundu, levando os fardos para Grootfontein, que fica a pouco menos de 3oo quilómetros. Do Rundu ao Tondoro são 118.

É árduo, complicado, mas tudo farei, pelo destino que tem.
Minha irmã é sempre digao do meu sacrifício
Jamais posso esquecer a sua delicadeza e a grande solicitude
com que me tratou, ao longo da existência.

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Liceu
24-8-1976
Está decorrendo a aula de Inglès. Nisto, batem à porta, em jeito nervoso e mostras de pressa. Levanto-me prestes e vejo um colega, natural de Durban, acenar-me com a mão, em atitude aflitiva.
Corro logo à porta e pergunto, de chofre: what is the matter?
-- Come fast! A portuguese soldier is wounded and I don`t
understand him!
Voo para a Ford, deparando-se logo um pobre rapaz, ferido numa perna. Estava abatido, mais morto que vivo e algo revoltado. Pedi-lhe os motivos, perguntando, a curto prazo, que pretendia de nós. Então desabafou:

-- Éramos 19. Restam agora só três ou 4! Vínhamos do Caprivi, no Sudoeste Africano, seguindo o nosso rumo, pela margem do rio, em terra angolana.
Para quê?
--" Destruir a ponte do rio Cubango, junto ao Dirico. Foi aqui perto, muito pertinho , a 8oo metros do rio mencionado.

Antes de chegarmos, rebentam duas minas, que logo desfazem o Unimogue. Projectados, num ápice, a grande altura, uns morreram logo; outros aguentaram-se, mas sem assistência médica, esvaíram-se em sangue. Apanharam-nos as armas, capturando um de nós.
Eram cubanos e alguns suapos, todos à mistura.. Dois dos nossos ainda estão vivos: um branco e outro preto. Ajudem-nos a salvá-los, caso cheguemos ainda a tempo!"

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Liceu
25-8-1976
Ante-ontem, bateram à porta da minha vivenda.
Acorro, num átomo e fico surpreendido, ao ver o Reitor. Seguia-o de perto Jesus dos Santos, conhecido electricista, português de
origem, que vive no Rundu. È o responsável pela áreada do Cavango.
Conhecera-o pouco antes, na semana passada.
Assim qie os avistei, de modo nenhum me ocorreu o motivo da sua presença. Entretanto, o Reitor Mr, Potgieter em breve o expôs. Tratava-se, em resumo, de pedir-me ali que aceitasse, na vivenda esse meu patício.
Interiormente em revolta, foi todo o meu ser fundamente sacudido! Aceitar um estranho! E haver um só quarto! Não saber ainda que espécie de homem estava,afinal, para albergar!...

Sabia apenas que vivera em Angola. Isso, porém, bem pouco era! Seria um gatuno? Um malfeitor? Até um santo! Quem
podia sabê-lo?! Apenas Deus! A mim cabia , pois, dizer logo que não. Cozinhar e dormir; fazer vida em comum, durante uma semana!
Que grande espiga! Poderia ceder a um irmão de sangue! Talvez a mais ninguém! Habituado `a solidão, aterra-me a companhia, em circunstâncias destas! Para mais, sujar-me tudo,
havendo eu de limpar! Pois se eu não tenho quem me ajude aqui!

E haver de celebrar?! E fumar ele, aqui dentro, quando eu não suporto o cheiro do tabaco! Arre bolas! Tive que dizer sim!Não vi outra saída. Creio,no entanto, que não repetirei!
Como é que o Reitor me pede coisas destas?!
Não tem ele, com efeito, melhores condições, para atender estranhos?! Não dispõe, a talante, de uma casa enorme e chorudo
ordenado?!
Compreender estas coisas não é para mim!

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Liceu
26-8-1976
Em conversa de serão com Jesus Santos, patrício português, que do Rundo aqui vem, para reparações, concernentes ao mister, falámos de muita coisa, não faltando Savimbi,

Segundo afirmou, o Chefe prestigioso não tinha, afinal, colaboradores.. Em 25 de Abril de 1974, havia apenas três que viviam a fundo o Movimento, acrescentando a estes uns 100 guerrilheiros.
Aqueles eram Savimbi, Nzau Puna e Sabino. Entretanto, as massas aderiram, cheias de euforia, à causa da UNITA, mas sem preparação. Ora bem. Foram tais elementos que desacreditaram a causa do Movimento, cometendo, não raro, acções incorrectas e desprestigiantes.
Assim, por exemplo: espancamentos e roubos; assaltos vários, etc.
O chefe carismático ignora tais coisas e decerto não as aprova.
Sublinhou ainda que as palavras de Savimbi foram desvirtuadas, afastando-as assim do seu justo objectivo.
Deu até alguns exemplos, que me convenceram.

A princípio, delirava, com a UNITA de Savimbi, mas posteriormente, devido a certos actos, levados a efeito por alguns dos seus membros, contra a raça branca, em ódio manifesto, injusto e flagrante, decaí levemente.

Entretanto, cá no meu peito, uma voz murmurava que, o
Chefe idolatrado ainda não teria bons colaboradres. Desta maneira, a causa da UNITA ia ficando assaz comprometida. Que
será de Angola, no dia de amanhã?!
As eleições dos Estados Unidos serão em Novembro. .
Veremos, após isso, o que vai acontecer!

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Liceu
27-8-1976
Grande alvoroço e forte emoção! Os guerrilheiros cubanos tomaram o Cuangar, Calai e Dirico, fugindo as populções, juntamente com a tropa.

Ao Hospital do Tondoro, no Sudoeste Africano, chegaram os feridos e aqui no Internato, encontram-se tropas que viviam , no Dirico. Chegou, pois a ocasião, em que tenho por vizinhos cubanos e russos. É provável também que haja combatentes do MPLA. Se eles quiserem, podem atingir-me, visto que entre nós
se encontra apenas o rio Cubango.

Dois dias antes, ao sair de casa, para dar um girito, diz-me um Oficial:" Não se afaste! É imprudente fazê-lo!"
Vim logo para casa! O nosso tempo, em que se enche a boca de liberdade e democracia, é mais avesso a elas que outro qualquer! Ficar encerrado... andar a tremer!! Não haver um momento, em que o peito se dilate, na paz de Deus!

Desgraçados tempos! Ainda há pouco, avistei um helicóptero, aqui mesmo em frente! Será dos cubanos? É provável que sim!
Ia sobre o rio... talvez na esteira de soldados fugitivos!
UNITA e MPLA fogem que se matam, a frente dos cubanos! Trazem aviões Mig, bons helicópteros e carros de assalto. A vila do Cuangar foi logo invadida por 400 homens!

Deste lado, anda tudo em confusão e grande alvoroço!
Ignora-se inteiramente o que vai acontecer, mas tenho a impressão de que as tropas de lá continuam avançando, até à
Zâmbia.
Estou agora em frente da grande fogueira! Sairei ileso? Culpas não tenho! Intento apenas sobreviver!

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Nyangana
28-8-1976
O educador tem nas suas mãos o futuro da criança. Fará, pois dela quanto desejar, já que, nessa idade, é muito receptiva, procurando imitar quanto vê fazer. Tudo o que lhe dizem aceita, por inteiro, mormente se vem do larou de pessoas sagradas.
Influi também, num grau elevado, a dose de simpatia que alguém lhe inspira. Sendo isto assim, verifica-se logo a responsabilidade que impende sobre ele. A felicidade e o destino do homem são por isso talhados pelo aducador!

Desta maneira, será bendito e harto louvado aquele que for prudente, sensato e arguto; o que puser acima de tudo a voz da consciência, não exagerando nem tentando impingir o que é fruto apenas do seu mesmo espírito, sem tomar em conta a pessoa do educando;
aquele, afinal, que não visa destruir nem substituir-se, no espírito de alguém, mas olha e perscruta, orientando nobremente as tendências próprias do seu educando.

Matá-las... impossível! Adormecerão, durante algum tempo,
voltando em seguida, com dobrado furor!

Ingénuos e simples, ao serviço de outrem, não pode ser!
Por demais é sabido: ninguém dá o que não tem!

O mesmo se aplica a egoístas e soberbos, apunhalando sempre tão nobre ideal: tudo fazem convergir para a sua pessoa. O esforço
deles volta-se para dentro, em vez de seguir o rumo inverso.

Super-homens e fascistas, ilunminados e fantasistas são também de rejeitar, pois tudo avolumam.São desumanos e têm-se em geral, como insubstituíveis.

Nyangana
29-8-1976
No próximo Domingo, 5 de Setembro, celebro no Liceu, em vez do Padre Hermes, Capelão-missionário, de origem
alemã..
Dificuldades no caso? Bastantes, decerto! Celebrando em
Latim ou mesmo em Português, eles não entendem, pois só em duas línguas é que se exprimem: Inglês e Africânder. Não aludo agora aos idiomas nativos.

O Alemão só em zonas comerciais.As primeiras duas,já referidas, são oficiais, mas 60% da população dá preferência ao
Africânder ( descendentes de Holandeses), enquanto 40% (descendentes de Ingleses) optam pelo Inglês

Quem saiba Alemão aprende o Africânder com facilidade,O
Inglês também ajuda um pouco.
Particularidades, algo curiosas, da Língua Africânder.

O maior problema, na aprendizagem de qualquer idioma,
reside nos verbos, principalmente, sendo irregulares.
Dá-se o invés, no Africânder, que tem pouco mais de meia dúzia,
e esses poucos aprendem-se logo em 1o minutos.

Será de crer? Eu falo à-vontade, por experiência própria!
Sabendo o infinitivo e os pronomes para sujeito...
No tocante à pronúncia, é dificil para nós o som gutural, onde
entrar o "g"
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Liceu
30-8-976
Fora do nosso meio, não somos ninguém.
Foi ontem o caso, após o almoço. Vinha para o liceu, um tano mais cedo, pois tinha que fazer, no resto do dia.

A 15oo metros, aproximadamente, cometi um erro. Avistando um carro que vinha descendo, em sentido oposto, afrouxei bastante, ficando logo a 5, mas nessa altura, ia um pouco distraído, o que levou o carro para a faixa proibida.
Influência talvez de Portugal, onde seguimos pela direita?
Quando vejo o outro carro hesitando na estrada, apercebo-me do erro, passando veloz, para o devido lugar..

Nada houve entre nós, pois estávamos distantes e, para mais, a minha velocidade era quase nula.
Ora bem. Isto que digo, ocorre frequentemente, com vários motoristas, umas vezes com vinho, outras com sono, outrar ainda, por distracção.Os montões de areia provocam isso também.

Quando assim é, o outro veículo costuma businar. Este nada fez. Como era meu dever, saí da viatura e pedi-lhe desculpa, expondo o que sentia e dando-lhe razão.

Que sucedeu? O homem foi grosseiro, persistente e atrevido! Se não havia dano e estávamos ainda a 60 metros, que era de esperar?! Não cheguei a saber o que ele pretendia! Falava...
falava... tornava a falar!
Quereria provocar-me?! Pretendia o sujeito que lhe pagasse
o medo que teve, nessa hora , e até o prejuízo que, de facto não teve?!
Palavra de honra, que não percebi! É bem certo: quanto mais nos baixamos, mais...

Liceu
31-8-1976
São 2o hoas. Acabei, há pouco, a magra refeição que eu mesmo preparei.Enquanto ouço radio, escrevo meu Diário, que
revela, em pormenor, a minha vida no exílio
Fui expulso de Angola. que sempre tive como Pátria, motivo
pelo qual me julgo refugiado, no exílio do Cavango.

Há certos exilados que vivem no seu mundo, pois têm consigo aquilo que mais amam. Eu, porém, de nada me acerco, visto que o
meu Norte há muito se perdeu!
Nem família nem amigos! Um vácuo grande, quase infinito,
de longa extensão,prolongando-se até pelo Atlântico fora, rumo a
Portugal!
Ali, sim. é tudo mais belo! O mesmo céu tem outra cor; a terra é já familiar; Tudo me encanta ali!
Aqui, porém, embora na zona tórrida, é tudo gelado e nada me encanta! A luz é a jorros e não falta calor,mas se olho para as gentes, não distingo o seu rosto, pois é tão escuro, que se afura ser noite!
O calor, ao chegar, tudo escalda e requeima, avolumando assim o negrume da alma!... Negridão no peito... escuridão em redor... tudo negro... tudo baço!

Não haverá, realmente, outras cores mais alegres?!
Ó Patria querida, sorri-me daí! Aclara a minha alma , com raios de luz! Este clima e estas gentes, o ar e a poeira,, a inveja e o ódio
vão cavando a ruína de quem vegeta somente, por estar assim, tão longe de ti!
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Nyangana
1-9-1976
Faz agora um ano, já levava uma semana, que andava fugido à guerra de Angola.
Vivia, à data, lá no Catuitui, campo de refugiados, só a três quilómetros da fronteira terrestre com a Namíbia. Tanta gente reunida, sem ter o mínimo, por indispensável!
Panorama tristonho, assaz confrangedor! Só a primeira leva com 10000 pessoas! Depois, vieram mais!

A vista desoladora, que oferecia o campo, gravou-se na retina, para nunca se apagar! Só miséria e gemidos... só dor e aflição!

Este drama real, intenso e vivo, jamais se esquecerá,
enquanto a vida se mantiver desperta! De tudo o que via doía-se o
peito...mas velhinhos e crianças era, na verdade, o que mais angustiava!
O velho Barros, com 75, se é que não mais, operado há pouco e com diarreia,!...
Passávamos todos o que só Deus sabe, desde a fome ao calor! Que o Céu nos leve em conta este grande sofrimento!

Amarga recordação! Triste memória!
Hoje, encontro-me aqui, junto ao mesmo rio, que então nos servia -- o prestável Cubango! Há mais de um ano, que lhe faço companhia! Estarei, por ventura, melhor do que então?

À primeira vista, parece que sim; objectivamente, assiste-me
dúvida. É que então, embora na miséria, tinha boa companhia: éramos todos bons portugueses, unidos na amargura!
Agora, porém, encontro-me só, com a minha solidão!

Liceu
2-9-1976
Deu-me agora na bolha para estudar a Língua Afrcânder, mas a valer! De vez em quando, aparece um amigo,
Oficial do Exército, que me ensina a pronúncia. No tocante a isso, já vou indo memos mal.

Embora faça um desconto, o certo é que já leio, pausadamente! O que tem de pior, no campo da pronúncia, é o som gutural, a que obriga o "g". Quando há sílabas contíguas, em que entra duas vezes, o caso manda peso! É som que não existe, na Língua portuguesa!
Se eu gostasse, realmente, de tal idioma, podia já sabê-lo, mas embirro com ele, por ser arrepiante!

Pensava eu antes que uma Língua qualquer, falada por uma jovem, era sempre encantadora! Pois enganava-me!
O Africânder, em lábios de mulher, tem o triste condão de paracer mais feio! Inacreditável? No entanto, é certo!

Em razão disto, pegava-lhe a meias.
Com o tempo a rodar, via precisão de apanhar o sentido. Em qualquer ajuntamento, o que se ouve é Africânder. Sendo isto assim, permaneço como asno, em qualquer reunião. É muito
enjoativo! Mais afastado... fico sozinho! Grande seca, não é?!

Eu a fugir-lhe, e ela , a companheira, a seguir-me apaixonada! Vá eu contrariar seus negros intentos!
É mnais que namoro ou cega paixão!...É um aferro cego que não consigo jamais eliminar de vez!
Quanto mais lhe fujo mais perto a vejo!Amarga solidão!

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Liceu
3-9-1976
Amanhã, com rigor, já começa o encontro: Voster e Kisinger ( África do Sul e Estados Unidos) reúnem-se em Zurich
para troca de inpressões.

O mundo, em geral, aguarda ansioso o fruto deste encontro, Os distúrbios continuam, repetindo-se amiúde, e engrossando até, em várias cidades. Isto, na União. À volta dela, há o caso da Rodésia e também o doSudoeste Africano, onde trabalho.

Qua vai ser, realmente, o dia de amanhã?
A verdade pura é que vivo num braseiro e, se Deua me não guarda, jamais sobrevivo.
Centenas de nações, protestando em grita, contra o apartheid! Além disso, intimam, com fúria, um governo diferente,
que seja de maioria, favorecendo os negros.
O que está em jogo, nesta grande comédia, é o mercado americano.
A morte dos negros pouco lhes interessa. Acena-lhes,sim,
petróleo e ouro, diamantes e urânio, cobre e cobalto, e outras riquezas.É isso que os encanta e bem assim o grande mercado, para venderem os seus produtos.

Quanto ao governo de maioria negra, é tradição dos brancos deste continente, pois o que interessa não são as maiorias, sim as competências! Mas isto já não cessa.! Os pretos, em geral, odeiam-se uns aos outros, segundo as tribos, e todos eles odeiam
os brancos!
Por outro lado, muitos chefes negros são deficientes em probidade moral e não têm capacidade, para enfrentar os graves problemas da governação, Excepções admitem-se.
As decantadas teorias não passam de disfarces.
Ditaduras férreas, em que a própria vida e a liberdade, para nada contam?!
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Liceu
4-9-1976
Hoje, sábado, fim de semana, atrazou-se-me o labor.
São 18 horas e nem sequer vejo amostras do que é habitual: corrigir, sem falta, ao menos 10 Diários.Agora, é 1969, que está
na berlinda.
Leventei-me tarde, contra os meus hábitos! De facto, foi a
primeira noite que dormi o bastante, há já muito tempo: mais de
dois anos!
O 25 de Abril e sua repercussão, em terras do ultramar , tornara-me agitado! Apenas três horas ou às vezes 4 era o que eu dormia. Esta noite, porém, já fiz excepção! Prenúncio, talvez, do 25 de Abril que foi distorcido, mas agora se endireita?

Pois hoje,realmente, foi um dia especial! Depois de levantar-me e comer alguma coisa, alindei, com amor, as cercanias da casa, que
habito agora: arrancar arbustos e tirar da testada ervas espinhosas.

Aqui na região, é tudo espinhoso e de índole agressiva.
Após as diligências, peguei num ancinho e toca de juntar. Faltava ainda a rega, para deter o pó! Grande problema! Às duas por ttrês,
a casa está suja! Não sei por onde entra nem valem cautelas! Como tenho de lavar, uso de cuidado:

Além do exposto, convidaram-me também para assistir ao nosso futebol. Veio até nós o Liceu de Kandjime, em competição.Tive de lá ir, porque o treinador é Oficial do Exército e o meu melhor amigo. Asssim foi o dia.
Amanhã, Domingo, substituo aqui o Rev. Padre Hermes, no
serviço religioso
Estou algo receoso de usar o Africânder, mas Latim ou Portjuuguês eles não entendem!. Por isso, vou arriscar-me.Inglês
estudam, mas não captam o sentido

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Nyangana
5-9-1976
" This night, there is a party. Don`t forget it".
Assim disse o Reitor, ontem de tarde.
Lá fui, pois, tomar parte na festa, como era de esperar. As visitas de Okarara também estavam presentes: eram professores, selecção de futebol e grupo de netbol.

Durante o dia, houve grande animação, ganhando Okarara a
partidade brilhante de netbol, e Linus Shashipapo a de futebol. Pela noite dentro, serão-tertúlia, para nós todos, e filme no salão, para os alunos.
Foi, pois, um longo convívio, que entrou pela noite e constou de jantar, muito bem conversado e não menos bebido.
Só à meia noite pudemos dormir.
O processo usado é já conhecido: bebidas variadas, carne e salsichas. São as duas últimas preparadas ao ar livre, em enorme
fogueira.
Cadeiras à volta, quando não enxergões, com violas e cantares, assim passou o festim. Quem tenha bom estômago fica delirante! Para mim é que não serve! Entretanto, assisto, para não melindrar, tomando em boa conta a fina delicadeza, que os leva a considerar-me!
Por que fui ao futebol, no meio de pó e grande estorreira?
Por motivo igual. Durante a noite, reguei bem o estômago: três
laranjadas e um belo refresco! Outras bebidas não me assentam bem, no estômago doente!
Havia também wisky e cerveja, em muita abundância!
Achei tal cena algo pitoresca, a dois passos apenas do mortal inimigo, que nos podia alvejar, se lhe desse na gana, depondo o receio.
Não fica o rio aqui mesmo ao lado?! A 100 metros escassos
do rio Cubango! Dalém, Angola: daqui, a Namíbia, onde me encontro.
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Nyangana
6-9-1976
Começámos a semana com um rico feriado, o que realmente não é desagradável.Por este motivo, resido na Missão,
a partir de ontem, devendo regressar, após o almoço. Não sei o que é, mas gozo, afinal, de melhor saúde, na casa do Liceu. Logo que venho, pioro, sem delongas, das vias urinárias.

Gostaria de saber qual é a razão. Água? Tempero da comida? Ovos fritos, com sal a mais? Uma destas coisas há-de ser, talvez,
caso não me engane.
O chá das 5 rosas? Quem dera saber! Ando algo intrigado. com esta brincadeira! Terei de ir, tavez, a Joanesburgo, antes de
Dezembro?
As próximas férias vão exactamente, de Setembro, 23 , a 5 de Outubro. Disto se infere que o último período tem apenas dois meses. O fim do ano aproxima-se.Aguentarei mais dois anos?


A independência vai efectuar-se a 31 de Dezembro de 1978.
É o que dizem por aí. Segundo os meus cálculos, será então que regresso a Portugal, para juntar-me à família.

Veremos também o que a política externa vai ocasionar.
Se admitem a Suapo, melhor dito ainda, se quiser integrar-se numa coligação, deixando o terrorismo!... Mas ela não quer, por julgar, erradamente, ser a representante dos povos da Namíbia!
Uma grande encruzilhada e um forte nó cego!

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Liceu
7-9-1976
Após um feriado que não soube mal. recomeçam as aulas, para cessarem logo. a 23 do corrente. Haverá então uma pausa maior, durante 11 dias, Terminadas estas férias, principiamos já o 4º período, que é o derradeiro.

Quem me dera em Dezembro, para dispor, a talante!
Consultar, pois, um Médico hábil! A saúde é basilar. pois que sem ela, nem trabalho nem ventura!
O tempo vai monótono e quase sem interesse. O que vale, realmente, é que eu levo as minhas horas, de maneira que iludam!
Elas escondem-se: nem disso me apercebo. No entanto, aparecem furos que me enchem de tédio, ao longo da noite, quando o sono, a meias, é devido a incómodos!

Durante o dia, o caso é diferente, sobretudo aqui: há sempre que fazer. Arranjar a casa; preparar a refeição; irrigar o relvado; ouvir noticiários para informação; corrigir os meus Diários; em resumo breve, uma série de coisas que me absorvem e prendem.

Se não fora isso, ignoro o que seria! Estranho a tudo e a todos indifeente, nada vejo que me atraia.
A própria vegetação é molesta e agressiva. Bem rego o meu
relvado que desejaria ver sempre bem fofinho! É em vão tudo isso!
Pica, pica, arranha e fere, deixando sangue!
Estranha região! Quando me lembram aqui os relvados de Lisboa,
todos feitos de setim, que saudade imensa invade a minha alma!

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Liceu
8-9-1976
Como é despreocupada a existência dos ciganos e a destes pretos! Para onde vão levam tudo consigo: mobília, apetrechos, trem de cozinha e assim por diante! Nada falta do que é essencial!
Não é isto invejável?! Comem , bebem, folgam e divertem-se a capricho! Chego a ter emulação! Para habitação, leve abrigo lhes serve! Para cozinha, o ar livre e o campo; como sanita, o mato discreto; como bancos e cadeiras, pedras casuais ou troncos de plantas; para sala de visitas, a rua imensa, que é franca e acessível,
Aspirações não há. Ganham muito, gastam muito; ganham pouco,limitam a despesa.

Não será isto, afinal, o rumo à felicidade?! Estou em crê-lo,
porque é sabido e aceito já: o que torna o homem deveras infeliz é
pôr sua mira em pontos inacessíveis; aspirar a subir, na escala social e não lograr seus grandes intentos; cobiçar a riqueza e não poder alcançá-la! Ter desejos altos, que jamais satisfará!

Daí a sua tristeza, fonte de amargura!
Aqueles, porém, furtam-se à regra, porque limitam suas aspirações.Estão satisfeitos. haja o que houver, tenham o que tiverem,à sua disposição. Comer e beber, até emborrachar-se! O mais não conta nem interessa!

Dizia a Paulina, insigne lavadeira de minha irmã, em terras de Angola: " Sinhora num ralhe, por eu emborrachar! Amanhã morro! A buber esqueço minha disgrácia!"

Linguagem pagã,mas bem realista!
Não havendo eternidade, ajuste de contase sendo nós como recos, seguia a Paulina o melhor caminho.

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Liceu
9-9-1976
Numa aula de Inglês que ontem decorreu, levantou.se uma aluna e foi directamente ao cesto dos papéis. Fez-me aquilo espécie.Havia-me esquecido: já fizera o mesmo, noutra ocasião-
Indagou, mexeu e depois remexeu, dividindo em partes...

E eu à espera, que fazia ruído e, ao mesmo tempo, distraía os outros. Chegado o momento, encaminha-se de novo para o seu lugar, ajeita bem o corpo, preparando-se logo para grande investida.
Que havia de ser? Apenas assoar-se! Lenço não usam! Não o julgam preciso. Para quê então gastar inutilmente o precioso metal?!
Alguns, dentre eles, ainda pedem licena e vão lá fora. Se lhes dá preguiça, aprovetam a janela e eis facilitado um trabalho longo! Enviam assim, através da aberturra o que acham a mais. Não é pitoresco?! Para mim não tem graça, mas há sempre quem goste!
Pois a dita jovem que na aula está muda, comprime fortemente as fossas nasais, para lograr o que intenta. Por isso, dá quanto pode.
A classe inteira não olha para o livro! Os olhos de todos fixam-se nela, ficando estarrecidos, ante o forte ruído!
Ela, por sua vez, é que não se incomoda! Olha satisfeita para a vitória alcançada e guarda o efeito como sendo um troféu!
Agora é mais lépida em seus movimentos e põe-se à-vontade, Antes, não!
Receava, talvez, perder boa parte do muco guardado!

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Liceu
10-9-1976
Em tempos remotos, havia alvoroço, no meu coração, pois se abeirava o dia 16, Santa Eufêmia, em Celorico da Beira.
Hoje, porém, desterrado no Sudoeste, havendo por companhia o meu próprio desconsolo, nada me sustenta, olhando com amargura quanto me sucede,

Mergulho, noite e dia em profunda tristeza, nada havendo aqui , para erguer o espírito. Quando estava em Angola, após 72,
ainda tinha incentivo: as férias do Chitembo; a extremosa família, com suas atenções; as caçadas no mato; as graças dos pretos, ao fazerem seus negócios; o vencimento habitual, no fim de cada mês; e tantas outras coisas!

Nem falo do Natal! Agora, tudo morreu!
Só Deus me ficou, para amar e servir! Quanto a este mundo, nada se depara, a servir-me de apoio. No entanto, sinto necessidade!
Entendo que a vida, em tal ambiente, é já incolor! Monotonia insípida, à margem do iinteresse, que me promete ela?!
A vida eterna? É muito isso e conto, firmemente, que Deus me ajudará. Entretanto, podia ganhá-la, orientando as coisas, por
maneira diferente. Custa imensamente viver na solidão. E a minha é total! Nada me fala; nada me sorri; nada me prende! Será possível, acaso, uma existência como esta?!
Parace desconchavo!
Nem os cheques de Pretória, recebidos sempre, no fim do mês, levantam o meu espírito!
Sinal evidente de que nada já me prende à vida que resta!

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Liceu
11-9-1976
Fim de semana, bastante agitado! Ontem, sexta-feira, deitei-me,às 23, contra a regra geral, que me tira de cuidados, logo às 22. É muitíssimo raro infringir os meus hábitos, mas de vez em quando, sempre acontece! Começando às 18, não
olhei para trás.
Em primeiro lugar, atender o relvado que surge mimoso. Fica atrás da vivenda e apresenta-se verdinho! Em seguida, como agora não chove, reguei as plantas, já sequiosas, que inspiravam
piedade. São 26, a Nascente e Ocaso.

Não são árvores de fruto, mas fornecem boa sombra, purificam o ar e suavizam o clima.
Ora bem. Uma coisa puxa a outra. Funcionando a mangueira, claro se torna que deve prosseguir! Lavei a casa toda.
Deu isto como efeito acabar a tarefa, às 11 da noite.

É muito certo que a vivenda é pequena, mas ainda assim, leva muito tempo! É preciso repetir, vezes sem conto, pois de outro modo. nada consigo. Feita de ladrilhos, tão depressa a lavo como sujo também.
Em primeiro lugar, atirei-me ao átrio que fica nas traseiras
Suja-se muito, pois a todaa extensão, dispõe de uma rede, para vedar os mosquitos. O pó, deste modo, penetra quanto quer, impelido pelo vento
Após o átrio, vem logo a sala. Cabe depois a vez ao quarto particular, cozinha e retrete.
Volvidos que sejam três ou quatro dias, já se encontra igual
Grandede maçada!Não tenho vagar nem sequer paciência!

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Nyangana
12-9-1976
É Domingo. Os sinos da Missão repicam festivos, anunciando aos fiéis o dever dominical. A este apelo, acorrem prontamente, a render ao Sonhor a homenagem devida.
Mostram-se alegres, confiados e senhores.
Enquanto isto ocorre, vejo os brancos apreensivos, tristonhos, indecisos.
Que será, na verdade, o dia de amanhã?! Incógnita horrível ante nós se apresenta!
Seria conveniente ficar mais dois anos, aqui no Sudoeste, a
exercer o magistério: 77e 78. Em Dezembro próximo de 78,retirar para Sul, abeirando-me dum porto ou então, não podendo fazê-lo, tomar um avião e seguir para Lisboa. Mais tempo cá não acho provável nem mesmo seguro

A política de fora exercerá também influência notável: Estados Unidos, França, Inglaterra e a própria Alemanha.
Um segundo Vietname, na África do Sul? Seria horrível e pior que no Oriente.

Quem arranca dali os Brancos resistentes?! Será uma luta de morte como fazem os Judeus! É evidente que, não tendo protecção, a derrota é certa, ao fim de alguns anos.

Seja como for, é mau ambiente, para ali se viver.
Quanto ao Sudoeste, se não puserem minas, ao longo das vias, ir-se-a´suportando, durante dois anos, debandando os Brancos, antes
que seja tarde!
Valha-nos Deus, nesta grave conjuntura!

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Liceu
13-9-1976
No dia 17 do mês em curso, vai afastar-se um membro do Exército, que esteve entre nós, afim de substituir um dos professores. Na verdade, Mr. Snyman fracturara uma perna, ao longo duma caçada, o que o levou prestes à imobilidade, por mais de 3o dias.
Ora bem. Casos destes sucedem, mas não é precisamente o que agora me ocupa. Chamou-me a atenção o facto seguinte: aquele Oficial anda muito contente. No meio dos outros faz logo notar-se, pela sua bonomia e sociável espírito. Fiquei intrigado, pois sendo mais velho que todos os outros, devia ser, a rigor, o menos expansivo.

Então a idade não traz experiência e mais calmia?!
Além disso, ajeita os bebés, de modo especial, como experimentado, fazendo momices e alguns trejeitos que os outros não usam!
Meto conversa, durante um serão e aclaro tudo. Ele é casado e vive no Transval, para onde seguirá, no dia 17. Estava decifrado aquilo que parecia um grande enigma! Eis, pois, a razão que o faz ser outro, no meio da sociedade.

Parece mais homem, sendo mais confiado e tem mais vincada a personalidade. Eu arrisco até que, no meio dos outros,
tem mais actividade, assumindo talvez, como nenhum, a responsabilidade, de seus próprios actos.
Há, pois, um lugar e um ponto do Universo, que o faz delirar , dando cor e relevo a todos os seus actos.

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Liceu
14-9-1976
Terça-feira! Um dia como tantos... cheio de enjoo.
Que esta vida, aqui, não pode tolerar-se, durante longo tempo!
Quem tenha família sentir-se-á bem: admito o facto e já foi garantido. Há tempos, fiz eu a pergunta à esposa do Reitor: não se
aborrece, aqui no Katere,?
-- Não! Tenho cá tudo -- marido e filhos!
Está bem assim! Julgo até que será um bom princípio.
Efectivamente, com as várias garantias que o Governo de Pretória
põe à disposição, é de aproveitar! Se não, é ver:1000 randes, por mês, caso tenha frequentado a Universidade Pública.!
Tomando em conta, além disso, que há uma casa gratuita, com luz e água, fogão e camas... que não representa, na vida de alguém?!

Por outro lado, a Assistência Médica e o aumento de ordenado, por ano que passa e diuturnidades, havemos de concordar que é,
de facto, uma pechincha!
Entretanto, para quem é só, representa um calvário! Zona semi- desértica, despovoada, seca e pobre, que poderá, na verdade, prender-me aqui?! Necessidade apenas!
Sou qual cenobita, condenado, há muito, ao isolamento que
sempre detestei!
Há 7 moradias, na área dos Brancos. Três são grandes e têm garagem; as outras são pequenas. A minha casa pertence a este número.
É ajeitadinha, mas nada me sorri.

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Liceu
15-9-1976
A Voz da Alemanha, às 22 e 30, ocupou-se de Angola.
Entre os assuntos que trouxe a pêlo, encontram-se as pontes, os seus camiões e a frouxa economia.
Em questão de pontes, 12o unidades foram destruídas, com a guerra civil; no tocante a camiões, dos 28000, (tantos eram os que havia) restam 6000.
Acrescentando, ao que fica, note-se ainda: o impossível do trânsito , a falta de mão de obra, a escassez de divisas e a sucessão da guerrilha.
Afigura-se tudo um grande labirinto, que não tem saída!

A falta de técnicos é outro problema. Os portugueses não vêm, por não haver relações com o nosso Portugal. Porquê tudo isto?!
Porquê , diremos nós, o êxodo em massa de todos os Brancos?!
Para os Negros terem fome, nessa Angola imensa, que dantes era farta?! O que faz a ambição e a ronhenta inveja... a credulidade!
Executam danças, ao ritmo de estranhos que não conhecem Angola nem podem amá-la!

Guerra de tribos, luta renhida pelo poder, ambição desesenfreada, confiança nas garras que hão-de estrangulá-la!
Angola infeliz, inspiras compaixão! Estou convencido de que os únicos a amar-te são os Portugueses: mais que os nativos!
Não se odeiam estes, aniquilando-se agora como feras do mato?! É isto amar?! É tal construir?!

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Liceu
16-9-1976
Pontos de Vista
Pretendem agora os Estadod Unidos evitar, nesta área, aquilo que chamam "confrontação armada?!

Segundo Ford, há 50% de possibilidades, Os chefes supremos da linha frontal, a saber: Neto, Kaunda, Machel; Nyerery e Kama são de opinião que só por milagre e apresentam as vias, para a solução: governo de maioria, tanto na Rodésia como no Sudoeste; retirada completa de tropas militantes, na velha Namíbia.

Ora, dizem eles que nem a Rodésia nem a África do Sul vão
aceitar as condições referidas.
Sou da mesma opinião, a saber: que nenhuma das partes jamais se resolve a satisfazer os tais quesitos.
Dizem então os chefes graduados da linha frontal: " Em tais
circunstâncias, apenas pela guerra!"

É trágica a situação! Os Brancos, em geral, estão convencidos de que o mundo negro os odeia, a valer, e intenta expulsá-los do Continemte Africano. Ora, sendo assim, lutarão até à morte.
Um segundo Vietname?
As potências brancas desta região, aguentariam o forte embate,
mas era preciso não virem os Russos. Em caso afirmativo, pode
haver confrontação, entre as grandes potências, sendo a África do Sul o campo de batalha..
Em tal caso, restaria apenas " terra queimada" Quem tem razão?
Todos a têm: Brancos e Negros
Deviam ser razoáveis e ceder mutuamente. Entretanto, não o querem fazer!
Se tudo caminhar nesta direcção, serão apenas ditosos os que, de longa data, houverem renunciado ao berço de origem., pondo a vida a salvo, embora com danos.

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Liceu
17-9-1976
Alguém, entre nós, inquiriu de mim, onde ia passar as
próximas férias. De facto, a próxima quinta-feira, é o último dia, com aulas no Liceu. Resta somente o 4º período que termina em Dezembro, entre 5 e 8.
A pergunta justifica-se; a resposta, porém, é que não surgiu!
Um encolher de ombros, um silêncio aflitivo e, para dizer alguma coisa, a propóito: se estivesse em Portugal, saberia responder-lhe, mas aqui, não!
Pois, se eu estou por favor, na Missão de Nyangana! Ignoram, por ventura, que sou refugiado?! Que possui um infeliz a quem tudo roubaram, inclusivamemte, uma pessoa querida e mais algums coisa!
Casa de habitação? Esta, em que resido, aqui junto ao Liceu, pertence, afinal, ao Governo da República! Habitação, portanto,
não sei onde fica. Amigos? Não os vejo, à data nem eles tão pouco, me vêem a mim!
Por agora, há desculpa: ignoram, de facto, o paradeiro
Dinheiro? Que rebusquem Angola e as mãos dos ladrões ( não residem la, provavelmente) e hão-de encontrar o fruto bem amargo do meu trabalho, concretização de muitas privações eestritas poupanças.
Família? Alguma tenho, sem dúvida, mas devido à distância, que representa para mim?! Solidão? Enjoo de viver? Tédio e náusea? Incompreensão dos homens? Desinteresse e menosprezo?
Insatisfação? Aborrecimento?
Disso tenho eu que farte e sinto-o fundo, no cerne da alma!

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liceu
18-9-1976
O meu pão.
A tudo se chega, quando a nossa vida muito se prolonga.
Quantas arrelias minha mãe não teve, por causa dele! Eu não gostava ou talvez melhor,não tinha apetite! Ela, coitadinha, toda se esmerava , para eu comer.Mercê de afecções, o meu organismo era deficiente
Se o meu nascimento foi já no final da 1ª Grande Guerra, quando tanta gente deixou este mundo, mercê da pneumónica!
Naturalmente, ficariam afectadas as que sobreviveram!

Comparando, pois, o tempo de agora com o de então, registo
com surpresa, um facto curioso: ainda que duro seja o pão, jamais o estrago!
Aqui, da Missão, parto, ao Domingo, após o almoço, levando um pão para toda a semana. Se o fecho, está mole, sobrevindo o que não quero.. bolor a rodos, ao fim do 3º dia; se o ponho ao ar, fica tão rijo como o granito! Que fazer? Optar pela dureza.
E os meus dentes?! Ontem, por sinal, já não consegui! Tentei uma vez... repeti a diligência, mas tudo em vão!

Para não desperdiçá-lo, meti-o pressuroso, em água quente.
Foi remédio santo, mas ficou desenxabido.
Quem me dera, pois, o pãozinho de outrora, sempre branquinho, mole e desejável!
Agora, quero e não tenho, ficando sen dentes, com as minhas investidas. Um já partiu!
Quando os paisinhos amimam as crianças ou então as punem,, mal imaginam, em seu coração, o que pode aguardá-las.
num futuro distante!
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Liceu
19-9-1976
Regressei de Nyangana, pela hora do calor! Devia ser mais tarde, pelas 4 ou 5, mas prefiro, já se vê, o menor dos males.
É certo e sabido que. pela tardinha, o gado bovino estaciona ou atravessa, enquanto pelas 13, se detém, geralmente, à sombra das árvores.
Por outro lado, cada preto da via pede carro de graça, Ora, como não tenho seguro de passageiros, não posso levá-los, Bem ou mal já cheguei, escrevendo estas notas na frescura da varanda.
Pensava achar cartas, pelo menos duas, mas fiquei desiludido.

O amigo Padre Abel, de Joanesburgo e minha irmã, de Portugal, estão demorando. Nada encontrei, ficando, pois,desolado e em maior solidão! Na vida que eu levo, uma carta amiga é enorme refrigério!
Acho esquisito, mas é possível que venha ainda. Entretanto, pode ser tarde. Não sei! Apareceu uma hérnia, que ontem reconheci. Havia coisa de um mês que andava intrigado! Aparência de inchaço, mas ainda sem dor! Optei, pois, e creio acertar. Esa noite pensei longamente!

Uma operação, na África do Sul? Em Pretória ou Joanesburgo? Em Dezembro próximo ou imediatamente?
Vários são os problemas a que tenho de atender, o que me leva a hesitar, quanto à decisão e tempo a escolher.
Em 23, começam as férias. Caso seja operado, farão mais que uma abertura: hérnia, bexiga e rins...

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Liceu
20-9-1976
Ando agora a rever os pobresDiários de 1969. Fazem-me transpirar, visto que muitos deles, são refundidos. Mudando as circunstâncias que reputo essenciais, necessário se tornava refundir tais notas. Antes da máquina, precisa ainda outra revisão.

É um caso sério, pois já têm duas. Parecerá esquisito que, tendo já uma, precisem outras, mas tenho a impressão de que, vistos mil vezes, outras tantas ainda sofreriam mudanças.
Ulteriores emendas respeitam sobretudo ao ritmo da frase.
Basta um monossílabo a mais ou a menos, para logo invalidar o trabalho já feito.

Não se trata de poesia nem eu conto as sílabas, entretanto o ouvido acusa logo, e eu tenho de atendê-lo. Não quero, por modo algum, que a minha prosa seja assimétrica. Prefiro, às vezes, imolar a pontuação ou mesmo os sinónimos, a deixar no caso um ritmo imperfeito!
Pois se eu vejo, afinal, que neste mundo, obedece tudo ao
mágico ritmo!
Não é isto curioso, denotando. ao mesmo tempo, um supremo Ordenador?! É ver, por exemplo, o ciclo da água, o ciclo
do oxigénio, o do hidrogénio bem como o do carbono!

E admirar também o ciclo da vida, nos animais e no homem!
Tudo obedece a leis imutáveis, ditadas pelo Eterno!

E se agora nos voltamos para os astros do céu! Tão perfeito ele é, que as gentes deste mundo, asseguram,.a rigor, a hora exacta e a passagem, sem falta, pelas vias do espaço!
Tudo gira, afinal, com ritmo perfeito e, fora dele, só a
desordem,.. o caos... o inferno!

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Liceu
21-9-1976
O que representa mergulhar no seu meio! O Rodolfo, ao que vejo, não teme o calor nem a hora do dia! Em qualquer
momento, seja embora às 12 ou ainda às 14, lá o vejo no campo, agarrado ao tractor. É tropa graduado da África do Sul,
em serviço, no Cavango.

Fez antes seus estudos, pré-universitários. O ideal, ao presente, é poder frequentar uma Escola Agrícola. Horas de lazer ou mesmo de repouso é vê-lo ocupado em assuntos do campo! É a
semeadura, são as alfaias, plantação e motores!... E eu olho para ele, curioso e satisfeito, porque vejo alguém, a quem a vida sorri.
Que são para ele azares e perdas? Se o tempo não conta, como há-de aperceber-se de que o mal o rodeia?!

É um sonho a vida... passatempo absorvente, brinco deleitoso que enleva e dignifica! Realiza-se em pleno aquele jovem-Oficial! Ao longo dos sulcos, olha à recta-guarda e,naquele olhar, vai-lhe alma e vida, gozo e paz! Ali se concentra... vive no seu mundo!O mais não importa!

Guerras e dissídios, paixões e mesquinhez, luta e ninharias não existem para ele! Iria ter ocasião, para disso ocupar-se?!
Assim, dá gosto viver!

Descobriu-se a tempo... decidiu... escolheu!
Não lhe foi imposto o destino a seguir nem mesmo sugerido! É algo de si mesmo, fruto de sua alma, ideia predilecta que o peito adora e cultiva amoroso!

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Liceu
22-9-1976
Amanhã, exactamente, começa a Primavera, no hemisfério Sul. Habituado, na Europa, a costumes diferentes.
causa-me estranheza aquilo que observo!
Hoje, é um dia especial, por várias razões, que a própria Natureza também assiná-la: véspera de férias; véspera de estação e primeiras chuvas.

Há quase duas horas que o trovão ecoou, pela primeira vez.Causou-me surpresa, pois havia meses que deixara de ouvi-lo! Até me parece que o último ano foi deveras parco em tempestades, mas tenho bem presentes as trovoadas de Angola!

Algo de horrível que nos faz arrepiar, de modo especial, quando vimos da Europa,
Ecoava, pois, o trovão lá muito ao longe.

Três horas da tarde, Havia-me deitado, para fazer repouso, uma
vez que, de noite. pouco dormira. Desarranjo intestinal e dor de
cabeça dão causa para tanto! O terrível mosquito! Os dois comprimidos que tomara esta manhã, contra a malária, fizeram-me bem, apesar de os vestígios ainda se manterem!

Estirado na cama, ouvia estrondear, sem grande apreensão, mas quando a trovoada se abeirou do Liceu, pus-me logo a pino!

Era cada berro o desses trovões, algo endemoninhado!
Tínhamos o aviso: a chuva começava. Durante 10 minutos, foi
grande refrigério para a terra abrasada!

Já desde Abril que não chovia, aqui, no Cavango!
Alívio, sem dúvida, para homens e gados! As próprias árvores
manifestam regozijo, ante a frescura que a chuva lhes traz.

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Liceu
23-9-1976
Nove horas em ponto! Estou em férias. Às 7 e 35, findavam, com efeito as actividades, havendo então chá, para
culminar! Recomeçaremos, em 5 de Outubro, dispondo assim de tempo breve, consagrado ao repouso; 12 dias apenas!

Pela razão indicada, vejo desabelhar alunos e alunas. Cada um deles se dirige a seu lar, empunhando leve fardo ou maleta com
roupa. Uns vão a pé; outros, porém, aguardam na estrada que alguém os transporte. Nenhum aqui há que não tenha destino.

Será uma cubata a sua habitação? Humilde choupana ou casebre lurado? Campo ou cidade?Bom ou mau lugar? Isso nada importa! Quem me dera a mim tivesse uma igual!

Cubata ?! Sim, por que não?! Lá dentro, há sossego, amor e paz! Que é o que faz a ventura e dá cor à vida?
É haver corações que palpitem a uníssono; olhos amigos que
nos envolvam, carinhosamente; lábios frementes que espanquem breve a nossa frieza; braços disponíveis que nos ajudem na lida; em remate: é preciso amor.

Perguntam-me agora aonde é que eu vou...
Que posso eu dizer?! Se não tenho ninguém! Se estou sozinho,
como abandonado e já proscrito! Se esta casa, onde vivo nem sequer me pertence! Se estes idiomas nada me dizem!

Tudo aqui é estranho para o meu coração! Para onde vou?!
Para a minha solidão, que agora é maior!

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Nyangana
24-9-1976
Sarau, no Liceu, para concluir o 3º paríodo.
Como fui convidado, lá estive também. Não faria sentido que
primasse pela ausência!
Estava presente o Inspector do Ensino, o corpo docente, o nosso Reitor, alunos e alunas, pessoal de serviço e o Rei da tribo: Hompa Shashipapo.

De tudo houve um pouco. bailados e canções, enormes discursos; nomeação de prefeitos; comédias e paródias; imitação dos docentes, no acto das aulas.
Como é natural e já costumeiro, prolongaram-se ali as
variedades, pela noite fora. Eram 23 horas, quando terminaram..
Embora variegado é algo fatigante! Reside, afinal, o verdadeiro motivo no facto de os pretos serem barulhentos ,
repetindo mil vezes a primeira toada.
Aconteceu que, para mal dos meus pecados, me doía a cabeça, o que veio criar-me sérias dificuldades.

Valeu-me, no entanto, o remédio que tomei: comprimidos
vários, em número de 5. Os primeiros dois eram brancos, brancos e só actuaram parcialmente. Foi o Piet que mos deu.

De tarde, porém, o amigo Jan foi levar-me três, que eram brancos, de um lado, e rosados,do outro. Estes, sim, que limparam de vez os resquícios da moléstia.

É terrível o mosquito, aqui na região. Uma simples ferroada põe-nos logo arrumados!
A malária temível desarranja os intestinos, amolece o corpo e faz doer a cabeça.
Tudo isto e o mais é devido, inteiramente, à visita dos nosquitos.
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Nyangana
25-9-1976
Proporcionaram-me um carro e fui ao Sâmbiu.
O que ali me conduzia era o Padre Roosmalen, mas infelizmente, não pude avistá-lo. Só passados três dias, estava de regresso. Fiquei desolado, pois é um bom amigo e dá-me prazer a sua companhia. Acontecera a mesma coisa ja de outras vezes..
Where is Father Roosmalen? -- In the bush
Tinha ido para o mato! Assentei comigo voltar,de outra vez, sem saber quando! Espalhadas pelo mato, há diversas capelinhas, aliás muito chiques, onde os Missionários instruem os indígenas.

Como estão encarregados de áreas enormes, residem na Missão, deslocando-se amiúde às out-stations, onde passam alguns dias, em contacto íntimo com os nativos.

Tenha embora ficado algo descontente, não deixei de apreciar a mudança de cenário .
Havia reunião de todos os Missionários, no Est ado do Cavango. Faltavam só dois: Hermes e Manfred, que foram a Cape town.
Entre eles, estava um de fora, com o qual entretive demorada conversa! Apresentei, de chofre, pontos diversos e delicados, dando ele, em geral, aceitáveis respostas.

É contrário, ao que vi, à pena de morte, bem como à guerra,
ainda justa Este segundo ponto foi novo para mim. Disse ele, a propósito:"A guerra, ainda justa, faz-se, por via de regra, à custa .de inocentes Se o meio é mau, igualmente o fimI

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Nyangana
26-9-1976
Terceiro dia em gozo de férias! Aulas não tenho, mas
ocupo-me igualmemte, passando o tempo a ler, estudar e escrever. A rigor, não são férias: o ambiente é o mesmo ou
ainda pior.
Para que haja férias é preciso mudar tudo: lugar e ocupações; alimantação, água e ares; rostos e paisagem,
Tempo desocupado não é de aconselhar, porque aborrece e cria logo tédio, para quem gosta de viver ocupado.

Cá fico em Nyangana, passando o dia inteiro, encerrado no quarto. Preferia ter aulas: é mais arejado e absorve inteiramente
Se não fosse a leitura que amo deveras; o estudo porfiado das Línguas germânicas ( Alemão, Inglês e Africânder) e a revisão inadiável dos meus escritos, que seria de mim?!

Tudo aqui é estranho. Até o chilreio dos mesmos passarinhos! Não me quadra!

Quando em Portugal, começava a Primavera, remoçando breve todo o meu ser. vida nova surgia, dentro de mim, criando
euforia e prazer sem igual! Aqui, passam quase 8 dias e tudo é
o mesmo!
Sempre monotonia; alta insegurança; funda preocupação; enorme ansiedade!

A gente do povo só fala Dirico. Se me interessasse, aprendia o Idioma! Entretanto, como nada me diz!...
Quanto aos brancos, uns falam Alemão; outros, Africânder.
Os estudantes também falam esta, Português é que não!
Sucede, pois, que tenho de enclausurar-me e viver, afinal como Deus não quer! " Não é conveniente que o homem esteja só"
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Liceu
27-9-1976
Dois meses são passados, que a últia carta veio de Portugal. Aguardo sempre, como é natural, mas perco as
esperanças! Há tanto já! Que terá sucedido?! Contratempos
vários e inesperados?! Tudo é possível, neste vale de lágrimas

Entretanto, isolado como estou, sinto pesar mais o fardo que levo. Agora, em férias, é pior ainda. Embora sem aulas, jamais
os contras se esgotam: espreitam de todo lado, juntando-se prestes a outros incómodos e fazendo com eles um coro infernal!

Sinto-me vergar, sob o peso da vida! Falta-me coragem, para arrostar, devidamente, com tamanha adversidade! Tudo nebuloso, em volta de mim! Melhor diria, talvez, dentro de mim.
Para mais agravar, começaram as chuvas, interpondo-se as nuvens que tolhem, desde logo, a doce claridade.
Se Deus não acode, ignoro o triste fim de tão longo cativeiro!
Em 1972, vinha cheio de euforia, para terra africana;agora,
gemo e sofro, de ver-me tão só, a braços de ferro, com o maior infortúnio.
Tenho eu de fazer tudo, seja embora imprudente e contra-indicado! Houvera saúde! Mas não acontece!
Até quando. Senhor, viverei no degredo, permanecendo assim, como refugiado?!
Pois não é degredo viver deste modo?!

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Nyangana
28-9-197
Afrase corrente, natural e espntânea, em momentos de desânimo, é logo a que segue:"Ninguém me compreende!"
Estarei no mesmo caso?! Se a frase é exacta, mais razão tenho eu do que outro qualquer! Basta olhar à minha situação!

Estrangeiro e foragido... tolerado. por piedade... sem família de sangue! Entretanto, há certos reparos, que me ocorrem agora
" Ninguém me compreende!" Terão os outros, realmente,
obrigação de o fazer?! Quem será capaz de realizar, por sinal, esse objectivo?! Haverá, com efeito, alguém que o faça?!

Três perguntas breves a que vou responder:
Quando a frase se escapa, damos logo a perceber que os outros não cumprem, sem advertir jamais que fazemos o mesmo. Há, pois, desequilíbrio em tal concepção e, ao mesmo tempo, algo de injustiça.

Na verdade, exigimos dos outros o que não praticamos.
Por outro lado, não é certo nem corrente que alguém seja obrigado a exercer tal acção. Na verdade, seria amar os outros mais que a nós mesmos.
Ora, a medida proposta pelo Santo Evangelho, não vai tão longe! "Amar o próximo como a nós mesmos!"Está mais que provado o seguinte facto: muitas das vezes (coisa desconcertante!) nem a nós próprios chegamos a entender-nos!

Queremos, de tarde, aquilo que repovámos, durante a manhã!
Mas, inda que fôssemos hábeis, para desempenhar a tarefa aludida ou, nalguns casos, o pudéssemos tentar, não havia disposição, para levá-la ao cabo.Não o fazendo a nós, também
evidentemente fugimos de realizá-lo, em ordem aos outros!

É certo, pois, que às outras pessoas não assiste obrigação
de nos compreenderem! A citada frase denota egoísmo, orgulho rematado, insensatez e injustiça!

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Nyangana
29-9-1976 (cont,)
Quem será capaz de realizar, talvez, esse obectivo?
Plenamente, ninguém! De facto, seriam necessários, importantes quesitos: conhecer profundamente a natureza humana e a abstrusa psicologia; amar sem interesse.

Postos os pricípios, com a máxima clareza, assiste-me desde já direito de concluir, necessariamente: só Deus, afinal, é que satisfaz estas condições. Realmente sabendo tudo, conhece-nos a fundo; por outro lado, criaturas que somos de sua própria mão, foi Ele que gizou o nosso mundo interior.

Se fôssemos nós a tentar essa meta, esbarrávamos, por derto, com mil dificuldades, pois nos falta para isso, acuidade
intelectual. Além disto, é preciso amar e fazê-lo , desde logo,
com sinceridade.

Só Deus ama assim e não exige, de facto, nenhuma compensação. Pois se Ele até morreu por aqueles que O insultam! Nem precisa de nós, seja para o que for, em ordem a Si próprio!
Essencial e Infinito, Omnipotente e Perfeito, que é o que lhe falta, proveniente de nós?! Em razão de tudo isto, o seu amor à criatura é desinteressado. Só tem interesse quem precisa dos outros, isto é: quem se não basta! O mesmo que dizer: quem é imperfeito e assaz incompleto.

De facto, se existe em alguém qualquer interesse, é porque algo lhe falta. Por isso, realmente, nos batemos na vida seja ainda à custa de altos sacrifícios.
Compreender os outros, sem exigir, para logo, que eles façam o mesmo, é pois inconcebível! E nós sabemos por expeiência, que, ao sair-nos a frase, nem sequer pensamos em fazer aos outros o que deles exigimos.
Portanto, vem a conclusão: plenamente, ninguém!
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Nyangana
30-9-1976 (cont,)
Haverá, efectivmente, alguém que o faça?
Parcialmente, admito: os pais à frente, de modo especial as nossas mães; Reiligiosos autênticos e Religiosas,com vocação.
Aqueles referidos, por amor natural; já estes, pelo sobrenatral.

Ninguém duvida, por certo, que as nossas máes, principalmente, nos primeiros anos se dedicam em pleno a preparar os filhos para a vida que os aguarda.

Este lidar generoso.absorvente e completo dá-lhes margem total, para exercerem, de modo cabal, o papel que se propõem .
Elas descem fulminantes ao mais íntimo dos filhos, tentando sondar as entranhas de alma.

Estudam as reacções, pesam as palavras, observam as atitudes,
perdoam sempre, realizando assim prodigios de amor.
Nao existe aí no mundo quem vá tão longe na compeensão da alma humana!

Impossível encontrar, fora desta órbita, quem devasse, noite e dia, com paciência infinita, os mais íntimos recessos dum peito humano! Que prodígio de bondade! Que maravilha de afecto! Que oceano de de ternura! Que mundo belo de alto sacrifício e nobre imolação!

Mais que ninguém estão elas, de facto, em circunstâncias raras, que favorecem muito a compreensão. Por outro lado, não exigem nada

Quantas vezes, ó Deus, são elas retribuídas com negro desamor! Se vêem gratidão, seja ainda bem pouca, rejubila, desde logo, seu bom coração!
Quanto aos Religiosos que a chama do ideal aquece e alumia, também fazem prodígios, neste campo de acção!

É ver, por exemplo. o Padre Damião, entre os leprosos...
João de Deus, entre os pobres órfãos e os abandonados! S:Vicente de Paulo, entre os condenados à tortura das galés!

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