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1973/02/28
Silva Porto
15-11-1972
Prestígio de classe: deu-se ontem o caso, numa aula da Técnica. Entregava os exercícios, após a correcção e, focando o meu cuidado, em ser justo nas notas, acrescentei, de remate: basta ser padre!
O que era para mim forte argumento não o era, igualmente, para os alunos presentes. Às minhas palavras houve logo reacção que veio sublinhada por largos sorrisos de inteligência, bastante suspeitos. A isto se juntaram atitudes várias, apoiando a reacção.
Decidi, a breve trecho, reagir vivamente. pois estava em jogo uma questão delicada. que não era posta, sem isenção, com nobres sentimentos e justo equilíbrio. Percebi logo haver o triste propósito de achincalhar alguém. pelo que intervim, pronto e decidido, cortando cerce.
Prestígio de classe: deu-se ontem o caso, numa aula da Técnica. Entregava os exercícios, após a correcção e, focando o meu cuidado, em ser justo nas notas, acrescentei, de remate: basta ser padre!
O que era para mim forte argumento não o era, igualmente, para os alunos presentes. Às minhas palavras houve logo reacção que veio sublinhada por largos sorrisos de inteligência, bastante suspeitos. A isto se juntaram atitudes várias, apoiando a reacção.
Decidi, a breve trecho, reagir vivamente. pois estava em jogo uma questão delicada. que não era posta, sem isenção, com nobres sentimentos e justo equilíbrio. Percebi logo haver o triste propósito de achincalhar alguém. pelo que intervim, pronto e decidido, cortando cerce.
Observei, prudentemente, que alguns desses casos, dado existirem, como excepções, não eram chamados para a aula de Inglês.
Elucidei, com ênfase, que não há o direito de malsinar os actos de alguém e que não deve fazer-se às outras pessoas o que não desejamos nos façam a nós. Também frisei em seguida que o
mau proceder de A ou B não deve estender-se a todos os membros de uma corporação.
Aquela saída, vincada e unânime , deixou-me espantado e quase em alvoroço. Então as crianças já vivem no ódio e na má vontade?!
É assim que se pagam os bens inumeráveis , prestados à sociedade?!
Qual é o espírito da presente geração?! O que mais lamentei foi, na verdade, a presença de pretos, pois que,bastante dóceis e bem inclinados, ficam desde logo intoxicados pelo cinismo de certos brancos.
Silva Porto
16-11-1972
Veio carta de Lisboa. Já não era sem tempo! Um dia, após outro, aguardava ansioso, sem indício nenhum, por mais leve que fosse !
Mas, se era impaciente, aguardando a resposta, pior ainda fiquei, havendo-a recebido, pois tudo se gorou. Há três meses neste fado, para tal desenlace! Nem carro nem malas nem coisa nenhuma! Que grande sarilho e reles actuar!
Para isto, afinal, esperei eu tanto?!Por que não mo diziam, enquanto era livre, por não ter aulas?! Teria aproveitado. indo a Lisboa, sem nenhum problema! Agora, pois, como vou resolver?! Quem é só e não tem valia!
Por que é que existirão infelizes assim?! Pois se a vida é um fardo, cada vez mais pesado, que razão temos nós, para aguentá-la, em contrariedade?!
Se não fosse, de facto, a imortalidade e as grandes verdades que aceito e creio e deveras amo, felizmente para mim,mandaria logo tudo à fava do costume, indo eu próprio acompanhar.
Com aulas na Técnica, absorvendo-me o tempo!…Sem a Capelania da Colónia Penal, que é muito agradável e não gera cuidados nem embaraço ou coisa que aborreça, vou desfalecer. Sim! Um ror de coisas, mas enervantes e fastidiosas. No fim de tudo, ir perder tempo. só para arrumar esta grande sarilhada!
Fazer tal coisa nas férias de Natal?Passar a consoada a meias com o diabo, à semelhança de outrora?!Ainda foi pequeno o hórrido inferno que já vivi?!
Caramba! Sem poder encontrar uma saída qualquer! Vou mandar alguém? Quem? Se eu não tenho ninguém! Cada vez adiro mais a esse facto, assim amargurante!
Bem eu sei que morrer é pior, mas afinal que posso resolver?!
Ir lá em Março? Se ao menos alguém me ajudasse agora a tomar um caminho!
Silva Porto
17-11-1072
Ontem, pelas 19, encaminhava-me à Técnica, para ministrar a última aula. Ladeando, a essa hora, o jardim fronteiriço, pelo passeio da banda Oeste, deparou-se-me ali horrendo espectáculo que me fez arrepiar.
Levava comigo a lanterna de pilhas, mas ia desligada, pois havia luar. Podia, se quisese, focar a cena, observando a rigor mas, não querendo, ali, passar por indiscreto, afastei-me prestes, oprimido, envergonhado!
Sobre a relva macia, cortada havia pouco, bem junto de um arbusto, realizava-se um facto, só próprio de alcova, longe, bem longe de vistas humanas. Desta vez, porém, sob as vistas de Deus, e do homem pecador, o acto efectuava-se em toda a nudez, como se, na verdade, fosse coisa banal e não erguesse protestos.
Ao que chegou, neste século, a falta de pudor e como desce fundo o mal moral, aqui entre nós. Este quadro atrevido pôs-me,desde logo, fundos estremeções no corpo e na alma. Veio-me ao de cima um cortejo longo de fúnebres ideias, lamentando, em angústia, que a mulher portuguesa houvesse ido tão baixo!
Ela que foi rainha... que o homem prezava, pela sua candura, aprumo e gentileza! Norma de honradez, atraía as atençõoes de nacionais e estrangeiros!
Como pôde ser?! O espírito nobre e a própria matéria nada mais tinham já, para oferecer àqueles dois cúmplices. Por isso exactamente,realizava-se um apêndice a que os macacos recorrem sempre.
Para onde caminhamos? Um filho, afinal, já não sabe donde veio nem conhece a origem?!
A mulher portuguesa não pode abandalhar-se! Honra e fundamento da própria família, como da sociedade, ofereça resistência e respeite a prole!
Silva Porto
18-11-1972
Aproximam-se as 10, enquanto aguardo, aqui no jardim, que chegue a pupila: um recado a transmitir e oferta de rebuçados retêm-me aqui.
Utilizo agora, para o efeito, um banco disponível e recosto-me ,à-vontade, a fazer assim tempo. Neste comenos, ouço protestos: era um bebé, às costas do pai, mostrando desacordo, em vozes sacudidas! Foi a primeira vez que tal sucedeu, quero dizer, via, meúdos às costas da mãe.
Desta feita, porém, era o pai, na verdade, que entrava em acção.
Falta da esposa? Desastre ou doença? Infelicidade…tenho por certo!
Ora, que tentava o pai? Ligar o petizito na chita ondeante, à maneira de mãe.
É um trabalho difícil: exige encurvamento e certa destreza. Só a prática diária pode habilitar.
O homenzinho tenteava, dando jeito ao corpo, mas o bebé retorcia-se todo, pendia de cabeça e, gritando forte, esbrecejava também.
Por que não agradaria a manobra do pai? A verdade é que os meúdos apreciam imenso andar assim! Efectivamente,vejo-os sorrindo, quando não a dormir, enquanto as mães se deslocam ou
ainda trabalham, no campo arado.Nem os próprios bamboleios incomodam as crianças!
Este, porém, não se conformava, tentando impedir as diligências paternas. Uma luta exasperante, que levou imenso tempo e exigiu ali manobras sem fim!
Após esforços porfiados e diligências goradas, consegue finalmente, enfaixar o menino: aperta ele, em primeiro lugar, por baixo dos bracinhos; logo em seguida,pelas costas do petiz, havendo enorme empenho em fazer cingi-lo, por baixo das pernitas.
Finalmente, cheio de paciência, foi-se dali aquele pai bondoso, levando na alma ( quem sabe lá !) o gemer cruciante de uma saudade!
Capolo
19-11-1972
Visita à Prisão da Colónia Penal.
Pelas 10 horas, chegava eu à Reclusão. Ia comigo o amável Secretário da Colónia Penal, João C. Alves. que estacionou o pesado Land Rower, em frente do portão. Este, impelido, num ai,
abriu-se de par em par, como por encanto! O vigia da torre conhece
bem o veículo, motivo pelo qual transmite desde logo ordem ao porteiro, afim de actuar
Penetrando no recinto, deparam-se logo os vários condenados pela sociedade, sob um telhado, feito de zinco, para abrigá-los da chuva. ou resguardá-los da ardência solar. Alguns deles estavam sentados, ao passo que outros se distraíam em grupos, ao longo do átrio, sob o olhar vigilante dos guardas prisionais
Após o bom dia, seguiu-se logo a minha apresentação. como assistente, inquirindo breve do Pintor Sequeira.Toda a gente sabe
que vive ali um Artista, outrora conhecido na Casa Pia, sita em Lisboa. Há vários quadros, na Capela e na Cantina, razão suficiente que o torna procurado.
Apresentou-se lépido um belo cavalheiro, de meia idade, com aspecto carregado e barba intonsa. O olhar penetrante e a palavra adequada, pronta e certeira dão-no logo como alguém. Tentaram já
reabilitá-lo, mas deu provas negativas. É solteiro ainda, ama a sua arte e lê muitíssimo.
Quis ver o quarto dele. Muito arrumado; limpinho e simétrico ; de cama ao centro: é melhor, bem entendido que a cela de um monge.
Tem água canalizada e bacia de lavar, com mesinha elegante, junto do leito. A toda a volta da estância, há diversas aguarelas, que apresentam, em seus traços, singuliares aspectos da Metrópole distante. Assim,por exemplo: uma ceifa alentejana; um bailarico no Minho;etc
Mas onde ele, na verdade, pôs a alma toda foi, realmente, na colecção primorosa, formada por selos que guarda com amor e
não vende jamais.
São quadros diversos, orlados de estampilhas, tendo ao centro, curiosa pintura de sua invençãp
Esta cadeia possui três pisos. e pode albergar um cento de reclusos .
Silva Porto (cont,)
20-11-1972
A Prisão do Capolo foi construída ainda há pouco tempo e dispõe globalmente de 48 celas, em que reina, sem dúvida, certo conforto. Juntando as camaratas, fica lugar para 100 pessoas.
À data presente, são apenas 18 os reclusos do Capolo. Segundo informação do amável Secretário, decresce no país o número de presos, juntando a sorrir que vão fechar as cadeias.
A propósito ainda, sublimhou ele: « A Penitenciária da nossa Lisboa, com 800 lugares, tem apenas metade, em uso permanente. ». Tenho bem vivas todas as quadras que visitei, sempre acompabhado por um guarda em serviço. o pintor Sequeira e o gentil Secretário. Empunhava o primeiro um um grande molho de chaves e seguia à frente.
Abria, num ai, medonhas portas de ferro e esperava então que passássemos todos, fechando-as sobre nós, Entretanto, surgiram ali motivos diferentes, enqunto o Sequeira, de olhar inquriidor, vasculhava tudo e mostrava erudição. É muito lido este recluso.
Conhece a fundo a História da Arte e célebres Pintores, Escolas famosas e assim por diante
É de firme oipinião que o homem não é livre, confirmando o dito com a Alemanha de Hitler, o caso do Vietnão e outros similares.
Para este pintor, verifica-se à letra o Ditado célebre: Homo lupus homini,( o homem é o lobo do homem).
Enquanto afirma, sustenta as ideias, apoiando-as sempre, com todo o rigor.
Entremeando conversa e subindo ou descendo, mostra a Biblioteca. É bastante jeitosa para tal fim.
Em frente das mesas para leitura, há uma paiavra de.todos conhecida: Silêncio! Recordo-me também da sala de jogo, onde há
ping-pong, damas e outros.
No interior, há uma espécie de claustro com mimoso jardim, onde vicejam aromáticas flores. Higiene também não falta ali.As refeições vão muito cuidadas e apetitosas
Há cerração, Carpintaria, Agricultura e não falta a Mecânica, podendo cada um valorizar-se mais e ganhar alguma coisa,
Silva Porto
21-11-1972
Ainda o Capolo. Secção de suínos.
Uma das visitas que eu, realmente, não posso esquecer é a das pocilgas. Que vida ali reina e que grande animação para quem aprecia!
No tocante a mim, confesso me deslumbra esse espectáculo. Seria interessante acompanhar, dia a dia, a sua evolução.
Há suínos variados, em idades e feitios. Focinho comprido? São desde logo condenados ao talho: não servem para casta, de serem inestéticos, Há-os pretos e brancos, e também mesclados.
!Que belos tipos de porcos e porcas.! Estas, agora, criam pequenas varas, sentindo-se ufanas, junto dos filhos. Dentre essas mães, algumas há de génio irascível, tendo já magoado os pequenos leitões.
Houve, que me lembre, um caso estranho, de fazer arrepiar: ferida nos mamilos, com dentes afiados, deu morte instantânea ao filho infeliz,
Neste passo delicado, elucidou o Secretário, é aconselhável partir os dentes aos pequenos leitões, para não ferirem as pobres mães. Objectei eu que não achava bem, porquanto, mais tarde, não podiam mastigar.
Ele, no momento, sorrindo ali à minha ignorância, acrescentou breve nenhum mal haver, pois crescem, mo futuro Naquela operação, utilizam, já se vê,um alicate especial.
Pois lá estavam eles, com tamanhos diversos, chupando em delícia o leitinho da mãe, Esta,então, era toda meiguice, aturando a ninhada, com bastante paciência.
Segundo foi dito, atingindo uma porca entre 110 e 120 quilos, é já capaz de procriação. não importando a sua idade.
No tocante ao alimento,há doses à venda,segundo as circunstâncias em que o animal pode encontrar-se: gravidez, aleitação, para casta ou engorda.
Após o nascimento, são logo vacinados, fazendo com frequência a
desparasitação. Uma porca normal faz duas criações, ao longo so ano.
Para efeito de engorda, convém pô-los â venda, assim que atinjam 100 ou 110 quilos, o que pode acontecer. ao fim de poucos meses — em média 6.
Silva Porto (cont.)
22-11-1972
Voltando ao Capolo..Atingida que seja a centena de quilos, o que tomam é gordura. A alimentação é já improfícua e rende muito pouco.
Com este peso e a carne, só febra, é deveras gostoso metê-la ao dente.
Cada uma das ninhadas tem pocilga própria, lavadinha e fresca, criando-se, deste modo, um ambiente agradável, salubre e propício.
O lastro é feito de cimento, a descer para os lado, afim de seguir tudo para a conduta comum. Esta, depois,leva as urinas e toda a imundície para a grande nitreira, contribuindo assim para a
limpeza e, simultaneamente, para a elaboração do excelente estrume.
Há pocilgas em círculo; outras ainda,longitudinais. Por toda a parte o asseio, o bem-estar e a vida!
As ninhadas porcinas compõem-se, geralmente, de número variado, havendo-as de 3,7 e 10 suínos. A mãe apresenta, em regra, um belo conjunto de glândilas mamárias, a que os filhos se agarram, com tenacidade. Cada um tem a sua, Não vá outro por ela, que então há barulho!
Se, por acaso, o número de filhos ulrapassa, alguma vez, o de glândulas mamárias,,então a coisa é séria, vindo a morrer o que for a mais. Isto,afinal, raramente se dá, mas quando sucede origina-se logo uma luta fratricida. Também às vezes, apesar de tais lutas, conseguem manter-se no seu conjunto
À nossa passagem, era curioso vê-los espreitando, cabecita no ar, à espera das mangas que alguém lhes atirasse! É o caso do Secretário, que os habituou, já de longa data. Leva sempre mangas para oferecer, provocando alerta sempre que ele passa.
. Uma porca vi eu subida no pio, apoiando nele as bases posteriores, enquanto as anteriores,se viam exactamente, na borda superior!
Um empregado, empunhando a mangueira, lavava cuidadoso o lastro de cimento e os próprios animais, que ficavam fresquinhos como alfaces da horta!
Silva Porto
23-11-1072
Convém, a todo o preço desleitar os suínos, pelos dois meses, proporcionando então rações adequadas, que os fazem medrar, a olhos vistos. Por essa altura, podem vender-se, orçando o vlaor em 200$00,ainda que sejam de alta qualidade e raça escolhida
Os que são para engorda levarão 5 ou ainda 6 meses, atingindo o rendimento 1500$00, uma vez que é vendido a 15$00
o quilo.
Não convém, de nenhum modo, que os animais se desloquem. à busca de alimento: isso, na verdade, enrija a carne e faz perder peso. A higiene, por sua vez, há-de ser connstante em cada pocilga, para banir as várias doenças e outras enfermidades.
Cada uma delas tem 2 compartimentos: um deles, coberto, para o
animal poder repousar ou abrigar-se, no tempo mau; outro ainda, para o lado da porta, o qual fica descoberto e é mais arejado. Neste
é que fica o pio, que deve ser lavado, com extrema diligência, para
evitar o mau cheiro, estrago de alimentos e falta de apetite. .
Caso uma porca fique ferida, é necessário cuidá-la, fazendo, nessa mira, tratamento adequado.
A criadeira pode aguentar-se, por 6 ou mais anos..Sobrevindo acaso achaque notável, convém actuar imediatamente, abatendo-a para o talho.
O processo económico de iniciar esta lida é comprar 2 casais de raça escolhida, vivendo junto a nós. É que as propriedades como os animais riem gostosos quando vêem os donos.
Se o caso se passa com gado bovino, é útil e económico adquirir primeiro reses comuns, melhorando depois a raça obtida, por meio de cruzamentos com um touro bom e seleccionado.
Quanto a doenças e outras mazelas, verificadas nos animais,
está bem poovado serem devidas, por modo geral, à falta de higiene. Atendendo a isto, importa sobremodo o tanque-banheiro ou a mangueira, para fazer a devida limpeza, todos os dias.
Desta maneira, o gado é saudável, atingimdo em cheio pleno desenvolvimento
Silva Porto
24-11-1972
Aula na Técnica: 21 horas e 25,
É só uma por semana, mas vale por muitas,a essa hora tardia!. Aqui na zona tórrida, a noite escura envolve a Terra, pelas 18 horas! Regressar apenas, às 22 e 30! Isso,porém,não é o pior! Em três semanas contínuas, sucedeu,por duas vezes, levantar-se
pronto furiosa tempestade, por altura do jantar.
Que fazer então?! Apará-la toda, sendo embora a cântaros! Basta uma pinga! Penetra logo a roupa e atinge os ossos! E se acresce ainda o fuzilar dos relâmpagos e o medonho estrondear do irado trovão?!
Que horror e que susto! Luminares aos centos aclaram os ares, em qualquer direcção, deixando-nos a i deia de que vinha o céu abaixo!
Da última vez, assim aconteceu. A canadiana defendia o tórax, mas as pernas… coitadas! O guarda-chuva foi algo inútil, pois
houve de fechá-lo. É que ele então fazia de pára-raios.
Com este receio, pu-lo de parte! Era preferível ficar em descanso. oferecendo o peito ao vento furioso.
Sentia humidade nos pés e nas pernas, visto que os sapatos não er am adequadosdequados a temporais. Não fazendo tenção de ficar em Angola, fiz-me acompanhar de pouca bagagem. O mesmo sucede, quanto ao chapéu.
Furado todo ele, não detém a chuva que deixa entrar, em grande profusão. Assim, fui metendo os pés húmidos em
poços e alagões, ao longo da picada, no meio do escuro, até que , por fim, penetrei na Escola,
Escusado é dizer que fundo me arrepiei, com tanto relâmpago e trovões à mistura!
!
Capolo
25-11-1972
Dezoito horas e 10 minutos.
Meditabundo e só, numa casa enorme, escrevo o Diário que recebe os queixumes e guarda os segredos.
Cheguei de Silva Porto, onde fiz diligências, com o fim de aproveitar a minha estada em Angola. Depositei já o meu primeiro ordenado, no conhecido Banco, Pinto e Souto Mayor; paguei ao sr.Nunes a prenda escolhida; entrei na Fazenda e no Banco de Angola, onde, por meu mal, fiquei desiludido; estive, além disso. nos Serviços Geográficos, e Cadastrais.
Ficaram-me os olhos, numa bela Fazenda, com 1600 hectares, o que perfaz, em jeiras, 13,333! Um rico achado! Fica junto à estrada que leva a Serpa Pinto, a 15 quilómetros da vila do Chitembo,
Segundo me informaram. não havendo concorrentes, subirá o montante a 45 contos. Uma bagatela!
É limitada pelo rio Cacuche e também pelo afluente,de nome igual, noutra direcção, Picadas e marcos não são por mimha conta, concedendo 5 anos, para realizar , em toda a calma, o plano apresentado,
Até 100 hectares não exige nunca plano de trabalho.
A área do Malengue ainda está livre: direcção norte-sul, a partir do Chitembo, Na zona da vila, até 5 quilómetros, só autorizam pequenas parcelas de 5 hectares. A oeste do Chitembo, para lá do Cuche, também está livre. Não assim, porém, rumo a Serpa Pinto, ao longo da via pública, tendo como base o rio Cacuche.
Há uma grande área, pertencente ao Estado, que vai entrar em hasta pública, a partir de Janeiro.
Conseguirei eu realizar os meus planos, cuja finalidade é
prestar auxílio?
Capolo
26-11-1972
Aqui, exactamente, é o reino da savana: estou em pleno mato, afastado do mundo, que se move e tripudia..Ouço apenas o gorjeio
das aves e o leve zumbir de vários insectos. Que paz se disfruta!
Que sossego de espírito! O coração, gozoso, dilata-se no peito, caindo sobre ele a calma total. Lembram somente os grandes ideais, crendo-nos assim mais perto do Céu.
A agricultura como a pecuária assentaram arraiais, nesta grande chapada. Prados verdejantes e pomares vistosos alegram os olhos do ser vivente. É, pois aqui o lugar ideal , para todo aquele que deseja iniciar-se, na carreira da vida.! Tenho em mira a vida material
Há-de começar por animais de talho: bois e vacas; ovelhas e porcos. Estas espécies não requerem, afinal, demasiada assistência, pois são mais resistentes.Por meio de cruzamentos,robustecem-se ainda.
Isto, no que toca ao gado vacum. Basta um touro de raça média-africânder ou então zebu, para conseguir-se o visado objectivo.
O tanque-banheiro elevar-se-á , por via de regra, a 35 contos.
Exige-se, por norma, um banho semanal.A água utilizada contém substâncias, já dissolvidas, para evitarem quaisquer malefícios, tanto do carrapato como de outros insectos. Está provado, à saciedade que 75, em cada 100 de quaisquer enfermidades que
afectam o gado, provêm exactamente da falta de cuidado,neste particular.
Há também rações, bem apropriadas , de sais minerais , que se compram no mercado.Contêm sulfatos, fósforo e outros, que remoçam o gado, dando-lhe apetite e boa disposição. O ideal, agora, é o parque sem pastor.
Cem cabeças de gado requerem um homem, Este, porém, é o maior inimigo dos animais a cuidado.
Uma vedação, com arame farpado, em 5 fiadas, serve à maravilha!
As duas inferiores devem ter bicos.
Capolo
27-11-1972
Retomando já o fio do parque sem pastor, deve ser dividido em 7 secções, com 3 fiadas apenas, de arame ferpado. Este processo, embora dispendioso, é mais lucrativo: aproveita-se melhor o pasto enquadrado e o gado engorda mais; furta-se ainda
à vontade arbtrária do pastor caprichoso; repousa, quando quer e vai para a sombra. quando isso lhe apraz.
Cada uma das secções necessita, desde logo, um macisso de árvores, para os animais ali se resguardarem da ardência solar.
Quando chegam, finalmente, à 7ª secção, já o pasto da 1ª está bom para tosar,
A proporção de cada uma das partes obedece ao seguinte critério: a cada rês cabem, por norma , 5 hectares.
Em vez de 7 partes, algumas vezes bastam 5, caso se encontrem, ao longo de rios.
Tratando-se da fazenda que eu tenho em vista,, a qual abrange uma área extensa, — 16oo hectares — organiza-se deste modo o cálculo final: 1600 hectares divididos por 5, dá nada menos que 320.
Atendendo,no entanto, a que a dita fazenda é ladeada por dois rios — o Cacuche e o afluente, nomeado Sigui, e tem a forma de rectângulo, poderá comportar 400 cabeças
Em caso de vedação, estou informado que ascende , provavelmente, a 3 contos e 500 o quilómetro de arame. O parque em mira, feito com paus leva um banho, na parte inferior, para torná-lo mais resistente. Sendo pau-ferro. aguenta-se muito mais.
Se o diâmetro da Fazenda é regular, podem colocar-se de 10 em 10 metros
Inconvenientes que vêm dos pastores: levam o gado para onde não quer; levantam-no, geralmente, querendo estar deitado ;
fazem-no andar excessivamente, perdendo assim peso e enrijando a carne; batem-lhe e cansam-no.
Silva Porto (cont,)
28-11-1972
Insistindo uma vez mais no assunto em questão, junto achegas que obtive mais tarde, Em campos de gado, convém sobremodo que haja floresta, seja ela embora em pequena área,
para o gado se proteger. dos raios solares.
Além do mais, há-de prover-se, com sério cuidado, à sementeira de campos de milho,
para que este, reduzido a farinha, sirva de ração ao gado vacum.,
Quanto aos porcos, a coisa é diferente, pois o comem, sem transformação.
Sendo um parque-dormitório, pode calcular-se da maneira se guinte: 3 metros quadrados chegam, à-vontade, para 3 reses, de tamanho grande ou 6 das pequenas. Nesta proporção, podemos trabalhar, com inteira segurança.
Um funcionário da Prisão Distrital informou do seguinte: emprestaram-lhe um dia 70 contos, para compra de gado. Não paga juros, sendo apenas exigida séria informação, quanto à honestidade, qualidade de trabalho e fundos disponíveis, sejam eles quais forem,, — casas, terras, depósitos,etc.
Estreou-se apenas com 5 vitelinhas e um pequeno garrote. Depois, melhorou o touro . O número de cabeças vai hoje a 100. Para ele, afinal, ovelhas não contam, preferindo porcos e gado vacum.(não de leite). Nunca vacinou, e o gado não morreu. Cuidado tem muito com os sais minerais e o banho semanal, para o que paga, mensalmente, a quantia exacta de 100$00, como funcionário da Colónia Penal
Vai,brevemente,fornecer mais dados. acerca do assunto, no próximo domingo. Primeiramente, legalizou 100 hectares. Mais tarde, legalizou outros 100.
Quanto a gado, abasteceu-se lá no Capolo.
Silva Porto
29-11-1972
Foi domingo passado, às 10 e 30. Estava eu no Capolo, a falar com os pretos, na sacristia da nossa Capela. Nisto, um bebé pretinho, vivo e curioso, observava-me atento no colo de sua mãe.
Olhou, olhou, mas quando lhe pareceu , achando a cena algo monótona e sem interesse, resolveu, desde logo, mudar o cenário,
aproveitando o tempo de maneira mais útil e agradável.
As crianças, em geral, gostam do movimento e amam o ruído.
É a vida incipiente, não lhe interessando a imobilidade ou então o silêncio
Atingidos os 50, quando não antes, dá-se já o invés: o que se ama e prefere é o sossego e a calma¸a solidão e o mesmo silêncio.
.Não se trata, é claro, de solidão absoluta e silêncio total.Apesar de
tudo é chocante.São extremos opostos! A vida que assoma e a vida que se esvai! Uma aurora radiosa que desabrocha a sorrir! Um poente saudoso que se dissipa em tristeza e funda saudade!
Pois eu, enternecido, mirava ali o rosto do bebé que não tirava de mim seu olhar intrigado, seguindo atento o mínimo aceno.
Engraçadinho, inocente e puro estava pendurado na mãe que o gerara e com tanto carinho trazia aconchegado.
Para o calar,deixara-lhe o peito junto à cabecita
Ele,depois, aborrecido já de olhar para mim, pega da glândula, puxando sôfrego o leitinho apetecido.
Era um peito magro, diminuído e engelhado, sinal evidente de magra nutrição!
Enterneceu-me a valer o quadro realista, natural e pitoresco. O meúdo em causa largou, a breve trecho, o seio apetecido, porque
nem gota dali auferia.
Silva Porto
30-11-1072
Como é angustiador e amesquinhante viver só, neste mundo,sem um terno coração, vibrando a uníssono, para sofrer em comum as agruras da vida e partilhar, de modo igual, as suas alegrias!
Existência falhada… mundo aborrecido… tempo que não passa!
Regresso do trabalho que tem os seus quês e não encontro, no termo, o sorriso de alguém nem sequer uma palavra que estimule e conforte! Encerro-me, por força, em paredes nuas que se carregam de silêncio e torturam mais ainda a minha alma oprimida.
Não posso com tal vida, protesto contra ela e também contra aqueles que ma insinuaram, enganando-me impiedosos.
Agora, para cúmulo, com tempo de chuva e escuro cerrado, sem ver os poços de água que se abrem na picada e sujeito ainda aos temíveis assaltos!...
Para acompanhar, faíscas e trovões que não despegam jamais. É insuportável esta vida espinhosa, bem pior que na Metrópole…Mil vezes pior! Verdadeiramente horrível e mais que medonha
Ao sair da Escola Técnica, a horas tardias, em que só os desgraçados vagabundam solitários, vejo alguém ansioso esperando por outrem,com grande solicitude.
Em frente da pessoa, um transporte confortável aguarda o professor, logo à saída, caso ele próprio o não tenha trazido, Só e mudo vem alguém, por noite feia, ao encontro da filha. Este arrimo forte vale mais que tudo!Nao fosse o pai!
Eu aqui vejo-me só. no mundo gelado, incompreedido, sem nemhum amparo e, por vezes. em revolta! Não bastariam as doenças que tenho?! Qual será o meu fim?! Não sei, claro está, mas prevejo desgraça! Perderei a cabeça, em face da vida?!
Se Deus não me acode, bem pode acontercer! Isto é denais! Supera as minhas forças.!
Oh! solidão, companheira e assassina, quando acabará teu domínio cruel?!
Silva Porto
1-12-1972
Foi ontem,pelas 15. Acabava então a penúltima aula, dirigindo-me a casa,para aguardar sereno as 19.30, hora exacta e já habtual da aula nocturna.
Sempre triste e sozinho, que a solidão constante, embora companheira, gera tristeza, fazia então caras ao pequeno jardim que alegra as testadas do Liceu e da Técnica.
Nisto, reparo e vejo ali o cão a seguir-me de perto. De outras vezes, fizera já o mesmo.
Desamava eu, por via de regra, tal companhia. ficando mal disposto.
Ao ver o animal, cheira aqui, faz além, desviava-me logo, para não topar com esse intruso . Imspirava-me o bicho enorme antipatia , receando até me fizesse alguma! Pois se não é ver: um bóxer!
Aquele focinho negro, mal delineado; aqueles dentes cediços, encravelhados e deveras temíveis; aquele olhar quase humano, sensível , imperial!... Santo Deus! Foge daqui, satanás de cão!
E eu prossaguia, sempre desconfiado, olhando a meio ângulo, não
viesse ele, disfarçadamente, palpar-me a fazenda! O caso repetiu-se, duas ou três vezes, senão mais mais ainda.
Ontem, porém, o olhar do animal depusera sem dúvida. o ar feroz,para volver-se em olhar quase terno.
Vendo-me só, fixou-me por um momento e, de repente, lançou-se na caminhada, seguindo firme pela mesma vereda.
A princípio, eu realmente não tinha (a) certeza,quanto a seu destino. Palpitou-me, finalmente, que seria na verdade um bom
companheiro, mas apesar de tudo, ele prosseguia. Eu nada lhe dera
Quando me inteirei de que era decerto um favor para mim,
quase falei alto, dizendo palavras de funda gratidão.
Quis bem àquele bicho que,por ver-me só , vinha sempre acompanhar-me.
Aquele bicho não me quis nada,para recompensa nem eu,por minha parte, lhe dera, antes, fosse o que fosse,
Vejo nisto um favor do Céu! Autêntico milagre que agradeço a
Deus.
Silva Porto
2-12-197
Recordar é viver como diz o rifão. Por isso, exactamente, recordo hoje os sentimentos de ontem e, bem assim, as ideias basilares, que dominam em cheio. Sexta , feriado; Sábado, sem aulas; Domingo, por igual.
Logo era de aproveitar este fim de semana, e matar saudades,
revendo o Chitembo. Os meses intermináveis que dali estive ausente pareciam já duas eternidades. E, no entano, eram só dois!
Aqui, na cidade, encontro-me só, inteirament isolado de tudo o que amo.
Os meus sobrinhos nunca me procuram. É exactamente como se eu. na verdade, fosse um estranho! Qunta-feira passada, 30
de Novembro, passei por eles, junto ao jardim, mas nenhum se abeirou, para vir saudar-me.Falta de à-vontade? Retraimento? São
crianças!
Pelo muito que lhes quero, as suas atitudes infundem-me tristeza, quando não revolta. Deixam-se talvez revirar, inteiramente,
O meio aqui domina-os por completo. É caso para cismar!
Presenciando estes factos. fico logo doente. Espero, no entanto, que eles mudem no futuro.
Silva Porto
3-12-1972
Reconforto-me um pouco, na vila do Chitembo,junto da mana e do cunhdo Martins, que são bons amigos.Trocámos impressões,acerca de várias coisas, tentando, por seu lado, erguer-me o espírito.
Quando lá cheguei, pelas 5 da manhã, alegrou-se vivamente o meu coração. Que funda sensação logo experimentei, ao divisar,à distância, o pinheiro do quintal e a casa amiga , que estava ainda entregue ao bom do Morfeu. Esperei cá fora, durante algum tempo: não quis levar dano ao repouso nocturno. Por volta das 6, toquei ao de leve na ampla vidraça.
Ouvi logo rumor e, passado breve tempo, soavam passos,algo diligentes. Range a porta ,de contínuo e dois braços amigos abrem-se logo, para cingir-me. Acompanha os movimentos um sorriso franco, a desprender-se breve dos lábios frementes, como pode suceder, entre irmãos que se querem.
Vendo logo pela aragem que eu andava magoado e em funda prostração mete ombros à empresa, com vista directa a ser prestável
Ouço-a enlevado e cheio de comoção. Os seus dizeres brotam da alma, espontaneamente,trazendo consigo doce perfume que logo refrigera.
Diz então ela: " Amor e amizade não se compram com dinheiro: o
tempo e a vida bem como a experiência tudo reporão no devido lugar.!
A modesta"casinha", à entrada da vila é belo refúgio.Gostava imenso de morar lá, para assim quebrar o vazio enervante e a amarga solidão que teimam e porfiam em sufocar-me.
Silva Porto
4-12-1972
Regressei do Chitembo, ontem pela tarde. Às 4 e 20, saía de Cachingues, rumo a Silva Porto. Viagem esplêndida! A estrada maravilhosa é autêntica pista! Sem curvas e contra- curvas, segundo vejo lá fora, ela estende-se a direito, fazendo os desníveis por subidas e descidas.
O processo antigo - desenrolar-se em meandros - não tem aqui lugar. Por esta razão, lançados no asfalto, é um regalo viajar. Para ser maravilhoso, faltava só uma bela companhia, uma pessoa de minha família.
Condenado, porém, à triste solidão, arrasto a existência, à maneira dum proscrito, como se eu, na verdade, renunciara à liberdade, para fazer somente o que a outros aprouve.
Como seria belo ver olhitos alongando-se…escutar ainda vozes suplicantes, para eu ultrapassar quando na estrada, deixando ali os outros em pouco! Mas tudo é sonho e vã fantasia, se a realidade vem, triste e carregada!
Sem rebentos naturais, a árvore consome-se, na própria haste,desperdiçando, no triste abandono, a centelha de vida que o Céu lhe confiara. Disse o bom Deus, vendo Adão sozinho: "Não é bom que o homem esteja só!" E eu sigo, apesar de tudo, horrivelmente só!
No tocante a vias de comunicação, nem tudo são rosas. Da Missão ao Capolo, um perfeito horror!Desníveis e poços, enxurro e boqueirões, tudo a montes se encontra, ao longo da picada.
Não sei nem concebo como podem os veículos deslocar-se ali. O fruto desse horror sinto-o no corpo, ao fim da via: moído como sal, não posso trabalhar. Da Missão a Cachingues, um pouco melhor,mas não satisfaz!
De Silva Porto ao lugar do Capolo… inúmeros trabalhos!
Silva Porto
5-12-1972
São 15,20 de uma tarde pesada, húmida, escura.
Vão decorrendo os Pontos de Frequência , enquanto vigio a turma F.F.
São 18 meninas, em geral sossegadas, havendo apenas uma que é bastante irrequieta. Ao passo que agora eu vou rabiscando,
em cima da secretária, fuzilam no espaço relâmpagos frequentes, a que seguem, depois,formidáveis trovões.
O céu é de chumbo e não avisto ninguém, pelas vias desertas. Enxergo apenas, além de frente, umas tantas meninas, encostadas ao Liceu. Com receio da chuva, abrigaram-se ali, esperando melhoria. Não será provável: há muita humidade e espessa negridão.
Desejam todas fazer figura e as férias do Natal avivam seu ardor. Presentes valiosos, carinhos, atenções dependem , ao certo, do êxito alcançado. Por esta razão, pretos e mulatos, assim como os brancos porfiam agora em ser os primeiros.
Conheço-os a todos mas, na verdade, ignoro os seus nomes ou melhor diria, sei apens alguns. Assim, por exemplo: a Cristina, persistente, mergulha o nariz no papel-questionário; a Elsa, a seguir, foi incorrecta, mas a pouca idade traz-lhe desconto;
a Maria Margarida, ladina e rábula, não pode expandir-se, que esta hora, afinal, é muito séria; a Deolinda também contempla,de modo especial, a folha do Ponto, enquanto a Eunice, ao fundo, à direita, escreve na calma as respostas encontradas. A Ana Paula, aqui à frente, não está bem segura, sinalizando, muito habilmente, para a colega, Maria Margarida.
Silva Porto
6-12-1972
A ferida não sarou, porquanto vai sangrando e, do mesmo passo, leva consigo pedaços da alma. Tentando reagir, ponho logo em risco a negação de mim mesmo: equivale a dizer, a minha destruição. Há quase 5 meses que venho lutando sem qualquer efeito.
As decepções multiplicaram-se e o mal em causa avolumou-se ainda. Não vejo,realmente, possibilidade nem encontro maneira de afazer-me pronto às novas circunstâncias.
Imaginara,sim, outra coisa diferente, ao sair de Portugal, Caso adivinhasse, teria ficado.Pudesse a minha vida singrar no Chitembo! Mas isso, por agora, não é exequível. que não há ocupação adaptada ao meu curso.
Ora, aqui em Silva Porto, segundo as coisas vão, não me sinto bem, ao menos para já. Ando nervoso, inquieto, insatisfeito.
Começar vida nova, após os 40, não é de aconselhar. Curioso achado! As dificuldades não vêm, realmente da profissão. São bem estranhas ao campo escolar. Refiro-me, bem entendido, aos problemas delicados .
Odeio e rejeito este apartamento! Como se eu, naverdade, fosse condenado a tal punição! Deixei a Metrópole, por causa disso.
Fugi à vida erma, horrorizado pela solidão. Esconjurei altamente um viver como o meu, em que eu, de facto, não via interesse nem sequer estímulo. Sempre retido, no meio de estranhos, sem presença amiga,que enchesse o coração e, ao mesmo tempo, deleitasse a alma.
A falta grave de sinceridade e a própria frieza de certas palavras escaldavam-me o peito.
Decidi afastar-me. Não via,de momento, qualquer outra saída. Agora, cá estou. A verdade, porém, é que tudo vai igual, ao menos aqui, na capital de Província.
Continua o corpo a intiritar-se: de modo igual a alma também. Só a Natureza aqui é diferente.
Na Serra da Estrela, neves perpétuas; aqui, porém, sendo zona tórrida, calor sufocante!
Silva oorto
7-12-1972
Desejo esquecer, mas o certo e sabido é não ver eficácia nos meios que emprego. Até parece, às vezes, que é mais persistente o desejo que não quero. Visita e persegue-me, assediando por todos os lados . Haverá, por ventura, algum esconderijo que tolha o inimigo?
Oh! quem dera libertar-me desta férrea pressão e viver desafogado, como a ave lá dos céus! Descansa ela, pela noitinha, após visita amiga do suspirado Morfeu
Mas que é que eu trago a cingir-me o peito que aperta e sufoca? Enquanto dormem outros mortais, descansados em seu leito, velo eu meditabundo, tentando assim enveredar logo, pelos, caminhos da felicidade que jamais encontrei!.
Bem louco eu fui. por deixar-me iludir, fazendo que o meu bem dependesse e brotasse de mera ilusão!
Pus a minha esperança em castelos de bugalhos que facilmente caem e se espalham pelo chão, ao passo veloz da fera ventania.! Desccansei fascinado, em ponto ideal, donde a luz me deslumbrava! Entretanto, ó Deus, como foi diferente o que veio depois!
!Por meu lado, rumo a esse alvo, mas que me cabe, em troca disso?! Incompreensão! Negra repulsa! Firme desamor!
Fugi,então de mim, engodos e sereias! Por que vindes ter comigo. a horas mortas?!
Capolo
8-12-1972
Visitei a Prisão, instado que fui pelos reclusos. Tinham eles algo, a demandar: muito lhes convinha! O Sadio, afinal, enconntra-se detido, na prisão celular, motivo razoável por que me enviaram a servir de emissário. Acedi prontamente, dizendo eu logo que podiam confiar..
Se não me engano, tenho para mim que foi o 12 o emissário de tal anseio o qual me procurou, ao sair da iigreja, por volta do meio dia. Nasceu-lhe ali breve uma alma nova, quando eu sorri, dizendo que sim. Todos eles,em geral, estimam o Sadio, nutrindo por ele verdadeira amizade..
Após a vida na tropa, não fez outra coisa senão dormir, em duras cadeias.! :.
Neste momento, algo de novo está ocorrendo.
Abrem-se, de pronto, os alentados portões, acima dos quais flutua ao vento a Bandeira Portuguesa. O vigia da torre divisara-nos ao longe e, por já conhecer a carrinha Land Rower, comunica ao porteiro que abra a entrada.
De outras torres de vigia, espreitavam também,para identificar os recém-chegados: Secretário do Capolo e o autor destas linhas.
Mal o carro estaciona, giram prestesmente os férreos portões , convidando-nos a entrar no amplo átrio.
A essa hora, encontravam-se os reclusos. já no recreio, vigiados por um guarda, espadaúdo e bem armado.
Primeirmente, avancei para um, que se encontrava sozinho, a ouvir telefonia. Pareceu-me, no entanto, que o espírito dele se tinha ausentado para outras regiões.
Que emissora e essa?, inquiri do prisioneiro.
Não sei, volve ele, como tendo acordado. Logo em seguida, vejo o Sequeira, dirigindo-se a mim,com outros camaradas de infortúnio e dor
Silva Porto
9-12-1972
O amigo Sequeira vem sorridente, desempenhando bem o papel que recebera. Frisa habilmente que, sendo então a quadra do Natal, em que a paz e a alegria vão descer aos corações, gostavam imenso de ver o Sadio em comunhão com eles. Fez maroteira: era digno de castigo, mas que fosse detido em data posterior.
Companheiro amigo, folgazão e prestável e muitíssimo capaz de pagar pelos outros,não podiam conformar-se.Já o fizera várias vezes! Uma criança, harto nervosa, com 11 anos apenas! Levar a
sério o que ele diz, quando está zangado, ninguém o faz,
Arrepende-se logo
As palavras do Sequeira, exímio pintor, eram secundadas pelos circunstantes, em breves monólogos e monossílabos ou ainda por gestos e atitudes do rosto, mostrando assim inteiro acordo.
O amigo Sequeira houve-se bem da grave incumbência.Prometi ajudar, no caso em foco.
Não podiam eles, efectivamente , prescindir do camarada..
O pobre do recluso encontra-se detido, confirna o Sequeira, numa cela isolada, no 3º andar! O leito no chão e, logo ao lado, a bacia de lavar, e o vaso de ignomínia!
Comovi-me também. Claro! O crime a frio bem como a desobediência merecem castigo, mas os homens, afinal, não podem ser tratados como puros animais.
Devemos, sem dúvida, ouvir seus queixumes, escutar seus ais e atender os infelizes que não têm família nem possivelmente amigos verdadeiros: encontram-se ali privados de liberdade,sem poderem respirar a fresca ragem dos campos.
Insinuaram também que visitasse o Sadio, o que eu levava, já bem assente.
Lá fui acima, acompamhado de um guarda, que seguia à minha frente, afim de abrir, aqui e além, os portões de ferro.
Capolo
10-12-1972
Visita breve à prisão celular.
O guarda prisional acompanhou-me depois ao interior, enfiando, sem demora, por extensa galeria, no extremo da qual se divisava uma porta, feita globalmente de varões de ferrol. Junto dela, via-se alertado outro guarda de serviço, que me levou, em seguida, ao 3ºandar, onde morava o Sadio.
Baixando-se,às vezes, abria, com perícia, os enormes cadeados, fazendo-se acompanhar de um montão de chaves, Dava-me passagem, fechando num ai a porta de serventia. Uma vez situados no 3º andar, cortámos à direita, pelo extenso corredor, do qual víamos as celas, de portas abertas: as camas frescas e o chão lavadinho!
Finalmente, virava-se à esquerda, para o mesmo guarda correr, então, dois sólidos ferrolhos: primeiro, o de cima; logo o de baixo. Em seguida, abriu o cadeado e uma porta de ferro, grossa e robusta, franqueou a passagem.
Um exíguo cubículo, debilmente iluminado e, logo à esquerda, outra porta ainda ,com iguais resistências: ferrolhos descomunais e, rente a eles , um cadeado potente.
Só depois se patenteou um forte gradeamento,volumoso e sólido, por onde se via todo o interior da cela correccional: um catre no chão e, a seu lado,uma bacia, com água canalizada.
Ao ouvir o ruído, levantou-se o recluso, de barba imtonsa, ,esfregando os olhos e fixando-me então, com ar curioso. Venho visitá-lo, digo eu logo, com ar acolhedor. e acento na voz. Então está doente?
Bastante, confirma ele. É um dente maldito que não me deixa dormir!
Mas então, por que está aqui?
Capolo
11-12-1972
Ainda a Prisão do Capolo,
Animada conversa, entre mim e o Sadio. Então, diga-me lá: por que é que se encontra neste lugar.
— Olhe, volve com presteza, ostentando nos olhos um brilho invulgar, estou aqui, mas injustamente. Na verdade, foi mal interpretada a minha intenção: um desentendimento, entre mim e o guarda,chamado Asdrúbal.
Eu é que sou o chefe da sapataria e, como não ganho, quando não trabalho, precisava cabedal, pelo que então me dirigi prestes ao fiel de armazém, o guarda Asdrúbal, lOra, este afinal, não mo queria dar.
Como eu insistisse, cresceu para mim, tendo eu na mão a faca de sapateiro. Julgou ele, erradamente, que eu iria agredi-lo, fazendo logo menção de me arrear, com uma borracha, ao seu dispor. As coisas agravaram-se: participou de mim.Fui então castigado com estes 10 dias de prisão correccional. Aqui me encontro, desanimado, cheiinho de dores e sem apetite!
Mas olhe lá, volvo eu pressuroso, esta já não tem remédio, porque águas psssadas não movem moinhos. Para a outra vez, ainda com razão , segure a língua e contenha-se, a tempo, Quem está por cima fica sempre melhor! Eles são superiores e os que estão por
baixo têm de curvar-se!
Quanto menos falar, melhor para si
Pois é, atalha concordando, mas uma pessoa deixar-se esmagar!
Deixe lá, homem, para ter liberdade, vale a pena fazer tudo! É ou não é?! Dez dias passam depressa.Não caia noutra! Valeu ou não?!
Ele acenou que sim, enquanto sorria, prometendo, em seguida, que iria emendar-se.
Silva Porto
12-12-1972
Há pressentimentos que nada têm a ver com a realidade; outros dão, infelizmente, a expressão da verdade.
A noite passada foi portadora dum mau pensamento: o cunhado Martins , vítima de cancro?! Pode ser outra coisa, bem entendido, mas foi isto, realmente, o que veio à superfície.
Nunca o facto me ocorrera, julgando âs vezer serem os dentes ou coisa no género. Mas não! Uma tragédia.na casa do Chitembo?!
Minha irmã, coitadinha nasceu para má sorte, Tanto desgosto, ao longo da vida e com os filhos ainda pequenos!Pobre irmã!
Tenho de prepará-la,desde muito longe, para um golpe cruel que a possa atingir. Oxalá que não. Era excelente que ele se curasse.
Um pai de fanília faz sempre muita falta. Está integrada
no negócio do casal, mas qualquer homem é sempre uma força, um
arrimo na vida! Impõe autorodade, e obriga tudo a ficar na ordem. É o fiel da balança, em dados casos.
Entretanto, vejo-o triste e algo abatido, a perder peso, constantemente, e de cor esquisita. Este caso amargo dá-me que pensar!
As laranjeiras da horta que ele tanto acarinhava, estão cheias de formiga que engelha as folhas. Será talvez amostra do que vai sucedendo, no campo anímico? Desinteresse por aquilo que amava!
Que tudo seja sonho ou até pesadelo, mas que a realidade apresente nova face e nos livre de perigo!
Se um dia acontecesse, o que Deus não permita, eu seria o braço forte para a mana viúva e sem alegria.
Silva Porto
13-12-1972
Ao chegar do Capolo, esperava carta da mana Agusta, com informações ,em pormenor, sobre a doença do cunhado Martins..
Como penso o pior, ando sempre inquieto e não posso dormir.
Gostava de saber o que o célebre Médico haverá dito, lá na Catota.
Diagnóstico seguro? Têlo-á posto ao corrente de uma triste realidade ou terá ocultado, para não assustat?!
Por minha parte, deveria sabê-lo, para agir depois, em conformidade. Esperei esta hora, com ansiedade, até com frenesim,mas de que valeu? Busquei e rebuaquei, entre muitos papéis e outras coisas ainda, na mira de encontrar a suspirada carta. Ao mesmo tempo. receava encontrá.-la, temendo informasse do que não desejava. Nada informando ali, fiquei bem triste e mais apreensivo,porquanto vem-me à ideia o que há de pior.
Vai fazer 8 dias que ele foi ao Médico. Não é tempo bastante?! . Ou não acreditam na minha ansiedade ou não ligam importância.Qualquer das coisas é bastante afrontosa, para um pobre mortal!
Não consigo entender o que vai sucedendo, cá entre nós! A saúde, já precária, sofre abalo forte. Que mais posso eu esperar
ainda? Restarão muitos lanços. na escada lngente, que leva ao desespero?.
Fosse tal a razão de não haverem escrito!
Declarando-se um cancro. seria fatalidade. No entanto, sei muito bem que Deus escreve direito, embora por linhas tortas,
Silva Porto
14-12-1972
O príncipe dos Poetas escreveu um soneto que se ocupa das mudanças. Fino observador da natureza humana,ele é, ao mesmo tempo, arguto pensador e subtil filósofo. Fruto de experiência, amarga, decepcionante? Vitima inocente de veleidades fortes e caprichos bizarros?
Também posso confirmar suas fundas razões. Muda o amor e bem assim a confiança. Diz-se amiúde que o amor de mãe é o único amor que fica inalterável. Todos o cremos. Entretanto, casos aí há que parecem desdizer,embora a culpa seja dos filhos.
É que a gente satura-se, à custa de reveses, sapatadas e desdém.
Uma vez e outra, acabamos até por endurecer. Ingratidão e mentira, desculpa falhada, incorrecção, desaprumo e grossaria, geram, naturalmente, clima de indiferença.
Ocorre, nestes dias, em muitos lares,mercê de influências, harto nefastas, originadas em más companhia, leituras e cinema,televisão e radio.
O mal, em regra, apresentado com arte, é mais sugestivo, pois se acomoda às nossas tendências. O caminho da virtude é estreito e subido.
Sucede,pois, que alguns dos pais, ante a ingratidão e os vários atropelos que verificam, em filhos desnaturados, perdem o amor e mudam também nos sentimentos.
Silva Porto
15-12-1972
Após a tempestade, ficam as ruínas, mudando por inteiro o rosto da natureza. Quem assiste e compara , lamenta e censura que as forças brutas hajam causado tamanha ruína. Algumas vezes, um lameiro verdejante, regalo dos olhos e orgulho da alma, converte-se, nun ai, em vala monstruosa , que horroriza e constrange.
Outras vezes ainda,seara bela de trigo ou várzea soberba de esplêndido batatal, são devastados pela tempestade que arranca galopante, das profundezas da terra, correndo velozmente o vento furioso!
Somente destroços e grande amargura! A alma constrange-se , o peito dói-se e as lágrimas irrompem , escaldantes, atrevidas.
Passou o tufão que tudo mudou, ficando somente desolação e morte!
Sobre a alma humana sopram também ventos fortíssimos que tudo impelem, na sua passagem.O próprio amor converte-se, a breve trecho em indiferença ou malevolência, a amizade submerge-se, nas águas turvas da grossaria; a delicadeza naufraga também no oceano imenso da estupidez! E que tremendas ruínas, acumuladas no peito!
Quen vai repará-las ou então conseguir-lhes mudança?!Virão risonhos dias, para que a vista se deleite e conforte, repousando mansamente onde fora o seu éden?
Ah! o primitivo éden. criado por Deus! Cono devia ser belo! Que grande prazer descansar ali de fadigas e tormentos, esquecendo mágoas!
Era bom,era, mas grave desobediência a um preceito do Senhor fez da mansão um inferno vivo; converteu a vida em morte horrorosa; da pura inocência fez-se pecado; a grande aventura redundou logo em desventura.
A minha alma foi também agitada e logo removida por medonho vendaval que veio de fora e agiu contra mim e contra o meu sonho. Tudo eu fiz, para o evitar, mas não consegui.
Violento em extremo, ao fim de algum tempo, sossobrei e caí. Volveu-se o paraíso em longo inferno. O que fizera a minha dita é agora uma ruína
Silva Porto
16-12-1972
«Missão cumprida»,
Os pioneiros do Leste regressam a casa. Quatro grandes camiões alinhavam, de manhã, numa rua da cidade.
Muito povo curioso,à sua volta! Rostos de crianças em enorme alvoroço! Braços lestos e prontos que logo se agitam e levam saudações!
Fora triste a chegada, mas veio a desforra! Entusiasmo esfuziante, olhos inquietos, braços frenéticos, em movimentos , deveras sacudidos! Vozes delirantes! Quem passa detém-se e contempla em surpresa.
Assim fiz também, deixando penetrar-me daquela euforia.
Junto destes seres, em alto delírio, até os mesmos velhos rejuvenescem breve! Acompanho agradado este júbilo sem par,mas a breve trecho, ,caem lágrimas dos olhos,
Quê?! Mas eu choro, em vez de rir?! Serei eu, naverdade, um ser diferente?! Quando todos cantam, ponho-me a chorar?!
Que nota destoante e por demais importuno, em momento grandioso e tão cheio de harmonia! Que houve então?! Que magnetizara o meu coração, para verter lágrimas , em grande abundância?
Um pensamento… Uma pergunta, mas sem resposta!
Onde estão os que faltam?! Foi esta, na verdade, a causa real. Outro destino…
Alvos de carinho, no lar amado que os adorava, deixaram a vida, nos areais e espinhos da selva adusta e, juntamente com ela, tantos sonhos lindos e doces ilusões!
Alguém,por certo, vai penar ao vivo, quando se inteirar da triste realidade! O pai e a mãe? O irmão e a irmã? A noiva adorada?Sim todos, todos, mas é tudo em vão, porque o toque da morte gelou para sempre o corpo de quem foi, mas já não voltou.
NOTA — este corpo não voltou, mas há-de erguer-se, do pó da terra, outro mais belo, impenetrável às balas e não sujeito à corrupção,
Capolo
17-12-1972
Ontem,às 10, encontro no jardim. Duas personagens aguardam solícitas, a chegada de alguém. São 4, ao todo: o Carlitos e eu; a Guida e a Manuela. Amiga inseparável da nossa Guida, vinha prazenteira dirigir-se a mim. A Guida, porém, queria falar-me, para aclarar um assunto importante.
Eu andava aborrecido, ao passo que ela se fazia de novas. Decidiu-se breve. ao apelo do irmão. Entretanto, soara o sinal, para acorrerem às aulas do 3ºtempo.
Disse-lhe eu então: não havendo que fazer, volta de novo. que preciso de falar-te. Assim aconteceu.
Desfizeram-se e quívocos e a luz brilhou, em pontos obscuros. Assentou-se logo numa plataforma. Tudo correu bem.
Uma coisa só me deixou consternado: levada a justificar-se, tocou num assunto que a fez chorar.Isto penalizou-me.
Interrogada, a rigor,sobre algumas atitudes, custou-lhe um pouco desabafar então, mas por fim, rematou diligente: — Ponha-se o padrinho no meu lugar!
Instada ainda para esclarecer, tenta desabafar, mas chora angustiada. No entanto, consegue dizer; — Dá-se a mesma coisa que no ano passado Atalho eu pressuroso: no ano passado, estava eu ausente.
— Mas foi o que então disseram, acerca de mim. lá no Chitembo.
Neste momento, foi chamada para as aulas do 4ºtempo, no Liceu Silva Cunha.
Inferi logo, de suas palavras, querer evitar que falem dela, motivo pelo qual sai pouco de casa; anda descontente e não sente coragem
Procurarei ajudá-la na pronta solução dos graves problemas.
Silva Porto
18-12-1972
Passaram já 20 longos anos. É grande esse período, mas não diluiu a funda saudade que me tem amargurado. Foi a morte que o levou, sem me advertir nem consultar.
Era belo esse homem, risonho e amável, o amigo mais sincero que jamais conheci: Isaías da Fonseca, natural de Prados e levado, em menino, para Vide.Entre, Vinhas O arguto Cupido prestes o guiou para a ventura, dando-lhe em sorte Margarida Inês. Um casal jeitosinho!.
Ele, janota, vestia a rigor, já então envergando o que havia de melhor, Ela,sentimental e a fundo romântica, cheia de sonhos e grandes esperanças, entregou-se-lhe ali.sem nenhuma reserva.
.Deus abençoou-os e logo sorriu. Não fora ela tão crente e piedosa.
Foi aquilo, na verdade, um sonho fascinante que se prolongou por 34 anos.
Ao fim desse tempo, em idade imatura, veio breve a «negra» bater-lhe à porta,sem o mínimo ruído. Para a não importunarmos, levou-o em tropel, para longe da vista.
Foi num dia como hoje, pelas 13 horas. Na rua da Portela, finava-se já o querido Pai! Que funda mágoa então me invadiu!
Acerbo espinho, doloroso, penetrante se cravou no meu peito!
Passaram anos e meses, semanas e dias… horas sem fim, mas a sua figura não logrou apagar-se. Com o tempo a rodar, mais e mais
se aviva, fazendo gemer a minha saudade. E eu olho-a desvairado,
louco de dor, enquanto ela sorri, abrindo os braços, para me envolver.
Era um homem como poucos, entre os filhos de mulher. Excluindo minha mãe, jamais encontrei quem tanto me quisesse!
Apagou-me esta luz o vendaval tremendo, que surgiu na Beira Alta, há 20 longos anos
Pai amado que partiste, não te esqueças do filho, pois clama por ti, deste vale de amargura.
Rezei por ti a Deus que manifeste o seu amor, levando-te breve para a eterna morada, onde as gentes são ditosas. Creio, a fundo, que te encontras lá. Eras bom e honrado e temente ao Senhor.
Silva Porto
19-12-1072
Às 8 menos 20, passava eu já, em frente do Liceu, rumando à Escola Técnica. Reuniões para notas exigiam a presença.
Enquanto deambulava, que não urgia o tempo, ia ruminando pensamentos dolorosos. Aqui perto do Chitembo e não poder lá ir!
Preso ao dever e à paiavra dada, ficarei dois dias, para rumar à velha Europa.
Férias queridas do belo Natal; sossego e paz do lar amigo, carinhos estremes que se desejam… tudo perdi. Repouso então já não sei o que é.
Regressando em breve, devo logo retomar a tarefa ingente que antes me propus levar a bom termo.
Oito grossas turmas vão agora esperar que eu surja depressa, para que o seu Inglès se avolume pronto e ganhe cor. Pensando nisto, ia sempre avançando , com os olhos melancólicos, sem me haver lembrado que cessara no jardim aquela vida pujante que fundo o animava.
Oh! que dor me invadiu , quando olhei e senti que o marasmo campeava, na bela Avenida, Reboxo Vaz e jardins circundantes! Que pasmaceira e dolente cenário, onde reina o silêncio! Até o marasmo já fez assento!
Olho e insisto, gemo e suspiro, dou ais e pergunto: quem levou para longe a vida e a cor e bem assim o movimento usual que animavam o lugar?!
Negra sorte! Fado triste e suspiroso que nada, nada ali já se encontra!
Borboletas doudejantes, que dáveis, por certo, cor ao jardim, quem ousou retirar-vos?! Sátiros inquietos, a avassalar corações, também vos acorrentaram?!
Carlitos bondoso, amigo tão querido! Guida tão amada, que sempre me beijavas, ao passar por mim!
Só ficou o cenário que, sorrindo embora, com lindas flores, é um corpo sem alma!
Silva Porto
20-12- 1972
Acabo de chegar, da última reunião. Em 28 anos, entregue ao Magistério, nunca assim me aconteceu! Passar dias de férias, em sessão de notas! Olha bem que é forte desgraça ,como lá soa no Júlio Dinis! Mas, enfim, que já deu quanto havia para dar!
Como não tenho avião disponível, a 21 do corrente, sairei a 22, para Luanda, e depois, no sábado, para Lisboa.
O bom Santo António vá sempre comigo! Isto de viajar, por meio de avião, nos tempos de agora,não é brincadeira!
Sinto grande moleza, devido ao cansaço . Um período lectivo deixa atrás de si uma carga enorme de esgotamento.
Entretanto, só Deus é eterno. As coisas criadas, sujeitas ao tempo e suas consequências, passam com ele e com ele se alteram.
Experimento agora uma sensação, em parte agradável, que dá certo conforto. Não ter aulas! Passar as noites em calma! Sem ruído à volta!
Que bom! Se tivesse um lar amigo em que sentisse, realmente, filial adoração, até seria feliz. Assim, porém, vou-me esfalfando para quê e para quem?!
Exceptuando a mana Agusta, quem se importa de mim?! Meu irmão está longe. Lá diz o rifão: longe da vista, longe do coração!
Vejo-me, pois bem só, tendo por companhia a desilusão e a amarga dor!
Confiar em mais alguém? Chegado o fim da vida, que lhes importa a pessoa?! Por quem e para quem vivo eu os meus dias?
Sei, há muito já que, pelo mundo além, há fome e há dor.
Poderá o meu suor aliviar,alguma vez, a dor de alguém? Pudessem as migalhas, fruto de insónias e vigílias extensas, alimentar um dia famintas bocas de criancinhas pobres!
Silva Porto
21-12-1972
Cerra-se, amanhã, a primeira semana. após a grande festa da nossa Escola. Integrado há pouco no Corpo Docente, ignoro tudo que respeita a costumes e fortes reacções, aguardando em alvoroço o que é novo para mim.
Manifestação deveras animada aos caloiros da Técnica, récitas e cantares, vindo no final a crítica satírica, feita pelos discentes a seus professores.
Quando na Metrópole, nunca aderi a tais diligências. Tenho para mim que ninguém aprecia, de modo nenhum, que outrem se ria das suas acções. ou ainda vergastem seus hábitos de longe.
Entretanto, a coisa não foi mal. à-parte um dito que alguém apresentou, sobre a aula de Moral.
Foi declarado, alto e bom som, que aulas tais não dão proveito. Isto, afinal, arrebitou-me a orelha, tomando as palavras no sentido óbvio que elas encerram. A surpresa, no entanto, avolumou-se mais, ao pôr-me em campo. Descobri logo que tal afirmação não viera dos alunos, rendendo-se culto apenas à matéria, que pesa e nos envolve! Era desprimoroso!
Será nobre o ideal? Em que nos distinguimos do burro e do porco?! Honram-se acaso da semelhança?! Então que lhes preste!
Durante a função, mantivemo-nos de pé, ficando ao lado, para se ver melhor. Notei, desde logo, pelas reacções, que todos os Colegas, ao menos interiormente , nada gostaram da "brincadeira."
Que proveito advirá de tais expansões, em que fervilha, habitualmente, ódio retido e má vontade, vingança e despeito?!
Luanda
22-12-1972
Partida para Luanda, em avião da D.T.A.
Acabo de chegar à linda capital do Estado Angolano. Nunca a vira, de dia. Em Agosto passado, cheguei aqui, pela meia noite. Alvoroçou-se, pois, o meu coração, arribando a terras do Portugal distante, com sua história deveras gloriosa!
A partida, no entanto, assim como a viagem, não foram sem estorvo, que suspiros e lágrimas iam alternando. Ficar sem Natal, ao jeito de vagabundo! Renascer a esperança . à volta de mim, e verificar, cheio de espanto, que ela morre e se dissipa!
Ficaram no Bié aqueles que eu amo! Como foi doloroso arrancar dali e fazer-me ao largo, com prontidão, sem nenhum disfarce no meu olhar! Mas a vida é isto: nascendo a chorar, prossegue o fado,
para acabar também, com lágrimas ardentes.
Às 9 e 30 do corrente dia, abria-se-me a boca, incessantemente. Diz o Padre Guerra que me acompanhou ao lugar de embarque: «Não esteja nervoso! Parece bem que nunca viajou!»
O pensamento, porém, bem como a saudade estavam muito longe. O cunhado Martins ficava doente! Minha irmã, quem sabia?,
viúva talvez, rodeada por 4 filhos, todos menores! Uma tragédia que põe desalinho em corpo e alma!
Um Natal doloroso, que é só mentira em meu coração.
Pois então que gera este peito, onde a esperança deixou de morar?! Amargura e tristeza é seu alimento! Desespero e tédio, o pão de cada dia!
Nova Lisboa! Fico estarrecido! Abraços largos, apertados, frementes! Risos francos e fundos,que desabrocham noutros! Centenas de olhares, doces e ternos! Carinhos, afectos; luz e calor!
Mas eu estou só, alheado e estranho, qual mísero sonâmbulo,
que tenta avançar, tacteando, à volta!
Exclamo então, algo desesperado: nem tanto ao mar nem tanto à terra!
Monstros, fantasmas, fugi para longe!
Nisto, hesito, perguntando, em seguida; não serei eu o fantasma em pessoa que a todos horroriza e mete compaixão?!
Luanda
23-12-1972
Uma vez chegado ao grande aeroporto,verifico, tristemente,
não haver ali ninguém, algo desejoso, que espere por mim, Causar surpresa?! Não andei sozinho a vida inteira?! Quem proporcionou esta vida que levo, sem dizer alguma vez o que ela seria? Haverá aí direito de velar o sombreado, patenteando somente as zonas luminosas? Odeio intromissões que lancem alguém num beco sem saída!
Orienta-se, pois, levianamente, o destino do homem, sem contemplação nem resguardo nenhum. Quem respeitou a minha
liberdade? Agora, vivo em revolta, porque me sinto frustrado e não
posso realizar as minhas aspirações, como ser humano, livre, independente.
Cá estou eu na linda capital, de nome Luanda, que me acolheu um tanto indiferente, habituada como está a ver desconhecidos. Não é pequena a cidade que vai de upa em upa,
nas asas do progresso. Olho curioso. ao perto a ao longe, e tudo me ignora.
Nem eu, propriamente, me conheço a mim, tão mudado estou já, daquilo que fui!
Chamo um taxe. Melhor direi: aproveito o veículo do Padre Queiroz, e eis-nos a caminho da outra parte que Luanda apresenta.
Ele detém-se logo, à Senhora de Fátima, com percurso apenas de 15$00, mas eu afinal tenho de prosseguir, em demanda do afilhado,
Pedro Ferreira.
Paróquia de Santo António! — esclareço o condutor. Para elucidar um pouco melhor, acrescentei ainda: ao pé de uma igreja que anda em construção. Ele, então,fez que sim!
O contador assinala 38. Uma boa conta! Andaria o motorista a fazer zigue-zagues? A cidade é grande. Atravessá-la, de lés a lés, é assunto de monta! O tráfego aqui, algo intenso! Por isso, leva tempo e mói a paciência. Agora é só esperar.
Aquele afilhado que procuro, de momento, trabalha diariamente no
Hospital Militar e só volta de tarde, pelas 18 horas.
Aguardo paciente e ei-lo que chega,sorridente e afável.
Sinto mais ânimo e deponho a tristeza que já vinha a meu lado.
Lisboa
24-12-1972
Faz agora 8 anos. Em dia como hoje, encontrava-me aqui, para celebrar a festa do Natal com a minha solidão. Lembro-me bem. Às 21 horas, entrei no quarto e chorei amargurado. Como é
triste e pesada a vida e a sorte! Não fui eu a escolhê-la!
Alguém o fez e assim me enganou! Sendo eu criança ou até adolescente, era
assaz ingénuo, inexperiente, influenciável, receptivo e crente. Qual cera branda, imprimiram-lhe a marca, tornando-a robusta.
Cá estou eu, pois, no mesmo quarto, por azar da sorte! Só uma coisa eu noto mudada: é a hora! Quanto ao mais, precisamente igual : este abandono em que me vejo; a falta de carinho; ausência permanente de rostos amigos; angústia e desamparo!
O nosso bom Deus é triplo em Pessoas e não quis Adão só; os próprios animais também são gregários. Por toda a parte, observo isso.
Eu, então, enfermiço e fraco, de sensibilidade algo requintada,
e coração harto pegajoso, acho-me sozinho, em dia de Natal!
Triste destino… escura sorte! Se ao menos agora estivesse no Chitembo! Desta maneira, tenho de levar as agruras da vida, sem presença amiga que ajude um pouco a derribar o "Gigante"!
Quem há-de estar aqui, até 6 de janeiro?! Já me sinto doente!
Preocupa-me tudo: o clima e as aulas; as vidas ceifadas… Acho tudo mudado.
Apenas eu permaneço fiel, triste e doente, assaz melancólico
e desconsolado!
Meu Santo Deus,que mal fiz eu aos homens, para me lançarem, nesta aflição?! Poderei eu amá-los? Odeio vivamente as suas
acções e maldigo também a minha pouca sorte.
Se for a minha cruz e Vós Senhor, achardes bem, então vinde prestes em meu socorro, porque eu detesto as ações, mas
amo as pessoas, segundo a frase de Santo Agostinho: «diligite homines; interficite errores».
Lisboa
25-12-1972
É Natal! São 10 e 8, em dia chuvoso,de céu nublado e com muita humidade. Além disso, pesado e algo incómodo, como usam de ser alguns dias do ano. .Apesar de tudo, sendo quadra festiva e
dia assinalado torna-se belo e até risonho, dentro dos lares, onde impera o júbilo e reina o amor.
Crianças a sorrir, deveras maravilhadas, com belos presentes que o Deus-Menino lhes trouxe agora. Pais amorosos que rejubilam, vendo seus filhos assim felizes!
Esperanças fagueiras que renascem pronto… maravilhosos sonhos que logo desabrocham…promessas diversas , quentes e prontas a saltar dos lábios! Numa palavra, esperança e vida; palpitar de corações; a confiança a florescer; o mundo a alindar-se!.
Em mim, porém, este dia é mortal.
Antídoto é ele e deveras cruel para o meu coração. Não traz a vida, que morto ando eu; nem tão pouco a esperança que há muito perdi.
Cá neste mundo nada tenho já: de tudo me privaram!
Levado a pontapés, na enxurrada da vida , mal abri os olhos, disseram-me logo que era livre. Entretanto, notei decepcionado e algo surpreendido que fora ludibriado!
tImpuseram-me o camimho, não me dando a escolher; trataram-me
assim como reles objecto, que se arruma a capricho! Que me importa a mim aquilo que outros querem e tudo o que eles amam?!
É bom para eles? Se é mau para mim! Serei eu, por ventura, escravo de alguém?!
Não me criou livre o nosso bom Deus, livre e expedito? Por que abusaram, escondendo-me as sombras? Por que é que mostraram
apenas auroras?! A quem jurei seguir? A Deus somente! Aos homens não!
Senhor, meu Deus,vinga-me de inimigos que não hesitaram em acorrentar-me, julgando talvez que Vos faziam serviço. Ajudai-me a romper estas férreas cadeias, restituindo-me assim a liberdade, a paz e a alegria dos filhos de Deus.
Vem, Senhor, ter já comigo e salva a minha alma dos homens e de mim.
Lisboa
26-12-1972
Afinal de contas, vou para Angola no Paquete Infante. É ele o melhor, dos barcos portugueses. Assim ouvi dizer. Falta-me apenas o baptismo de água, pois o do ar já foi no mês de Agosto, havendo muito amtes experimentado já uma pequena avioneta.
Por água, atravessara apenas o Estreito de Gibraltar, em 1960. Não incluo, já se vê, as travessias do Tejo, de Lisboa para Almada.
Agora, portanto, vou fazer, de facto, a primeiraa viagem, servindo-me, para isso, de barco a vapor. Serão 9 dias, para avistar Luanda, acrescendo outro, já de automóvel, entre Luanda e Silva Porto.,
Serei capaz de galgar, à volta de mil quilómetros, em um dia apenas? Parece carga a mais! Mas, ao atraso que levo, como reagirá o nosso Director?!
Comecei atrasado, embora sem culpa. Os alunos estão fracos: tudo isto me apoquenta!
Por outro lado, em casa de minha irmã vai grande tristeza, mercê da enfermidade que atingiu o marido.Por estas razões, a viagem foi má, continuando atribulada. Mas, afinal, que posso fazer contra?!
É forçoso curvar-me e ter paciência!
Se a vida, realmente, fosse o que nós queremos! Em tudo nos diz ela que é de esperar o contrário. Queremos abundância e vem a penúria; preferimos verde e sai-nos amarelo!
Lisboa
27-12-1972
Uma cena comovente. Se bem me lembro, foi há 4 anos. Estava em acção um tremor de terra, que pôs medo e horror, nos corações, causndo enorme espanto em quantos o sentiram.
A par de factos, algo humorísticos, em que foram parte alguns petizes, houve cenas ao vivo, que fundo impressionaram. O caso em mira foi narrado no Capolo, Colónia Penal, sita no Bié, pelo casal protagonista.
O Secretário da Colónia Penal. João Correia Alves e sua esposa, Maria Augusta Martins, viviam, ao tempo, na capital do Império.
Como tirar-se de grandes apuros, em casos tremendos?!
Era a negra morte que já se aproximava, inexoravelmente, batendo à porta, com aspecto feroz, Neste momento, levantam-se da cama, procuram as duas filhas, estudantes de Direito e unem-se os 4, num
abraço final.
Comovi-me aré às lágrimas, figurando ali o grupo amigo, que assim aguardava a hora derradeira.
Que cena magistral. esmagadora e bela, para ser reproduzida por mão de um Artista! Que pena tenho eu de não poder exprimi-la ,com fortes pinceladas! Ser o vate Camões ou então Miguel Ângelo, para arrancar das tintas ou até da pedra, a maravilha suprema de beieza eterna!l.
Pais e duas filhas, unidos pelo amor, num gesto supremo de alta resignação e entrega generosa, preparavam assim a longa viagem para o Além. Não quis o bom Deus que fosse então, pois tamanha beleza não podia apagar-se
Que laço tão forte, eficiente e poderoso! Grande compreensão da vida e da morte! Aquela posição, na hora suprema, em que tudo vai findar, aqui na Terra, fala-nos de entrega, aceitação e conformidade, oferta generosa do que tem de mais belo o coração humano!
Unidos em Deus, subiriam ao Céu, para ali continuarem, num abraço eterno, a feliz união que os prendera na Terra,
Lisboa
28-12-1972
Acordei muito cedo, infringindo o costume, porquanto, às duas, já estava desperto.Viagens destas ,ao longo das férias, há-de de ser tarde que as volte a fazer.
Efectivamente, não são repousantes nem contribuem, de modo nenhum, para recuperar. Melhor diria, acabam de esgotar, pois na verdade são cheias de afazeres. Foi esta a razão por que sucedeu madrugasse tanto.
À hora exacta em que outros, afinal, gozam a existência, para se deitarem, logo em seguida,acordo eu preocupado, mercê de coisas várias que estão a meu cargo.
Levantar, com presteza, o bilhete de passagem, para embarcar, a 30 do corrente; despachar a bagagem com o velho Taunus; dar cumprimento a mil pequenas coisas que me foram pedidas ou ainda fazem parte da minha equipagem, é tarefa dura!
Restam dois dias para ultimar o que preciso agora, razão pela qual estou hoje em brasas, com receio enorme de que o tempo falte.
Tentei adormecer, mas tudo foi vão.
A verdade total é que esta manhã roda tão lenta! Não chegam as 7, para iniciar a minha faina. Tenho de manifestar o dinheiro emprestado, não haja encrencas, na parte final;
mudar os endereços; ultimar, além disso, a preparação da bagagem volumosa, colocando nela impressos adequados; visitar a família de pessoas amigas, na Rua Visconda de Valmor; comprar agenda e papel de carta;
colecções várias de Inglês ( 1º ano de Ensino Técnico¸dois Compêndios de História de Fins do Lago - 3º e 4º ano)
Terei, a rigor, tempo que baste?
Lisboa
29-12-1972
Véspera da abalada
Estou ansioso por largar daqui, já que a minha vida tomou novo rumo. Onde está o pão, aí a presença! Por outro lado, encontram-se perto aqueles que eu amo, o que é também razão bem forte, para decidir
Os filhos de meu irmão já os ajudei naquilo que pude: se não foram mais além, a culpa foi deles, Fizeram apenas o 2º ano, mas a verdade é que perderam anos e, ao mesmo tempo,esbanjaram dinheiro que devia servi-los, As habilitações não são por aí além, no entanto, é já uma luz, para singrarem um pouco melhor,
À sobrinha Glória paguei 4 anos, em regime de Internato, o que é dispendioso, Em Celorico da Beira, havia, já antes, pago dois anos, em regime familiar. Foram, pois, 6 anos! Nem falo já na série enorme de leccionações que foi preciso dar-lhe.
O sobrinho Carlos gastou imenso tempo, em Celorico da Beira, sem nada fazer, o que me levou, por fim, a transferi-lo, para a vila de Manteigas, onde viveu,em regime de Internato, pelo espaço de um ano
Aos sobrinhos de África ainda nada ajudei, Vou tentá-lo agora, pois é tempo de sobejo, tanto mais que as doenças abundam por lá.
A mana Agusta, avelhada e triste, pelo modo inesperado e até descomcertante como certas coisas se têm processado, é a mais atingida e necessitada.
Se não houvesse Deus nem Providência, era de crer ou então pensar. que as malévolas bruxas ( caso elas existissem ) nos tomavam o caminho, levantando barreiras, ao tentarmos a sorte, por meios legítimos
Mas enfim, Deus seja por nós. Afinal de contas, queremos ser bons e cumprir o dever!,
Lisboa
30-12-1972
Abalada
Volvida que foi uma longa semana, embora incompleta, na capital do Império, vai soar em breve a hora da partida. O termo da viagem ´é, pois, Angola,
Não foi agradável a estada em Lisboa: encheu-me de problemas e gerou dificuldades que tive de resolver, sem auxílio de ninguém. Além disso, por ser Inverno, andei sempre com frio, não havendo roupa que obstasse ao facto.
É, pois, muito grato deixar a capital, não obstante se tratar de uma linda cidade. Que ele o Inverno tudo afeia e muito carrega, mas não importa!
Qual será, na verdade, a causa do alvoroço que já experimento, na hora de partir? É que, agora me lembro, ao chegar a Lisboa, ninguém me esperava, ansioso e feliz, pela minha vinda.
Coisa bem diferente vai dar-se em Angola, Ali vivem corações que eu julgo sinceros e sentem alvoroço, quando pensam em mim.
Trabalharemos unidos, havendo o mesmo alvo. A companhia deles também me é grata.Por isso, a procuro, desejando,quanto antes, avistá-los a todos. Sinto já saudades!
Gosto imenso dos meúdos, dando-me prazer acompanhá-los de perto e contribuir para a sua formação. Se Deus nos ajudar, levaremos por diante um grande plano. Trabalharei ao máximo por que seja alcançado, transformando o sonho em grata realidade.
Mar e Céu
31-12-1972
Como tudo é falso ou mera aparência, no mundo em que vivo! A própria Natureza engana, por vezes, os nossos olhos, dando errada impressão e levando-nos breve para o mundo irreal! Neste momento, a 23 horas que levo de viagem, olho à minha volta, pelas vigias do belo Paquete.
Que é que se apresenta à vista indagadora? Mera circunferência, pequena e redonda, qual mancha anegrada, a que brônzea calote, de forma esférica, serve de cobertura
Do lado nascente, apresenta, em alvorada, reflexos de prata, por incidência dos raios solares.
E que mais é o que se oferece agora a meus olhos curiosos?
No centro da zona, o Barco em acção, qual ponto de magia: desliza suavemente inclinando à direita e logo à esquerda. Que maravilha de técnica! Como é possível e bem real que um volume assinm se mantanha direito, no vasto Oceano?!
Nele já passei a primeira noite que, por mal de meus pecados, não foi bem dormida. Este balançar, constante e ritmado, afirma alguém que faz dormir… Pois não foi assim! Talvez, julgo eu, por falta de hábito..
Durante a noite, a preocupação de todo momento, era equilibrar-me, ao centro da cama, puxando a toda a hora em sentido contrário à marcha do navio.
Ao entrar nele, certa empregada, já muito batida, vendo-ne a hesitar, por não saber o meu camarote que era, afinal o 17,em primeira classe, irrompeu desaforada: « Não estará enganado?!»
Por pouco não virei a resposta seguinte: enganado estive eu a vida inteira!
Não sei muito bem por qual razão disse ela aquilo.
Gostaria, talvez, de ver-me ali com luxo nas vestes e agilidade, sempre estudada, nas maneiras a tomar … Mais falso polimento?!
Já em posse cabal do meu camarote, batem à porta, surgindo então uma servente que elucida prestes: « O senhor vai, pois,aqui, em primeira mas come em segunda!»
Olho para ela, algo aparvalhado e até moído… Nisto, afasta-se um pouco, enquanto monologa: «Vou perguntar»
Instantes depois, surge ela de novo, dizendo com brandura: « O senhor é padre?»
Confirmando eu, acescenta logo: «Vem comer em primeira!»
Vale alguma coisa ser ministro de Deus!
Mar e Céu
1-1-1973
Dezoito e dez, no primeiro dia, fruído já, em 1973. Deus permita, lá do Alto Céu, que seja boa estreia e, por meio d`Ele, nos venha a paz e a felicidade. É dia santo, no mundo português.Apesar de tudo, bem pouca gente veio associar-se ao louvor e homenagem prestados ao Senhor.
É de tomar em conta o número de passageiros: 270.
Além de nós, figura a tripulação, constituída ao que ouço , por 200
pessoas
Não obstante haver tanta gente, no Paquete Pátria, apenas três homens, duas crianças e uma senhora vieram à Capela honrar o nosso Deus
Absurdo?.Se não é, bem parece! Existe Deus ou não existe?
Divertimo-nos com Ele ou agimos seriamente?!
O nosso Paquete, de nome Pátria, voga suavemente, quase sem balanço,entre a nossa Lisboa e a formosa Madeira. Ao terceiro dia, começo a ter calor, após haver sentido 8 dias de Inverno, que Lisboa me ofertou.
Como é bom e qentinho o meu camarote, em primeira classe, gentilmente oferecido pelo Comandante! Paguei segunda classe e navego em primeira! Quando fosse mal, ao menos assim! Faço de Capelão, uma vez que o não há.
 segunda refeição que tomei na viagem, ocupei o lugar de honra, â mesa do Comandante. Senti-me feliz, com tal distinção, pois fo,i na verdade, o sacerdócio de Cristo,que em mim se honrou.
Âs 19 de ontem,chegava o Pátria à Ilha da Madeira. Que grande alvoroço, ao fixarmos , já antes, a Ilha de Porto Santo!
Evoquei,nessa hora, a data de Quinhentos, fazendo o paralelo entre o conforto de que noje gozamos e o daquele tempo.
Veio depois a Madeira de João Gonçalves Zarco. Lânguida e formosa, a estirar os braços, olha ufana para a bela enseada, em que se arrumam garbosos navios
Também o nosso Pátria ali estacionou, afim de saudar o Ano Incipiente, com a voz altifalante da poderosa Sereia. Nessa hora sem par, o belo Funchal era mágico presépio,deslumbrante de
luzes a várias cores.
A meia- noite ficou, pois, gravada, para todo o sempre, na minha retentiva.
Mar e Céu
2-1-1973
Dia horroroso, em frente das Canárias! Aquilo que para uns é fonte de prazer, redunda logo noutros em dor e aflição.O dinheiro tentador, elemento de bem-estar, leva o detentor a passeios magníficos e vistas deleitosas, sem falar, já se vê,de opíparos jantares e bebidas capitosas.
Aqueles,porém,que Mamona enjeitou, quedam-se tristes, no gemer de cada dia. Contemplam, embasbacados, a aura invejada que os ricos apresentam.
Foi o caso assim: atracando, por força, aqui nos detivemos, durante largas horas, para deixar um doente e, ao mesmo tempo, ,esperar novo Médico, a vir de Lisboa.Para muitos foi sorte: visitaram as Ilhas e fizeram boas compras.
No tocante a mim, só tive desagrado A mala principal ficaria em Lisboa ou lá não sei onde, por culpa do bagageiro.
Tornarei a vê-la? É mesmo azar e pouca sorte! Seis fatos novos e, juntamente, um casaco de viagem!. Tudo por estrear!
Se houvesse bruxas, diria para logo ser coisa de malefício! Mas não! Aquilo é, no entanto, difícil de explicar. Se ela entrou carregada e passou na Alfândega, como é que então podia ficar?!.
Não irá por aí, algures no barco, em segunda classe? Dissociada embora, apresenta o rótulo, para ser devolvida ao legítimo dono! Duvido, no entanto, que me volte às mãos! Não posso imaginar como foi este caso!
O certo, porém, é que levo, há muito, um percurso aborrecido, com débil apetite e nulo desejo de entrar em convívio.
Se não fosse este caso, ia tudo correndo em boa forma.
Assim,porém, não me livro de mal-estar!
Mar e Céu
3-1-1973
Às 10 em ponto, ouviam-se os apitos: chamada para os ensaios, antes anunciados. A coisa, afnal, não era para chorar, embora as criamças revelassem pavor
Cada um de nós envergava prontamente um colete de salvação, encaminando-se logo para junto da baleeira. A minha tem o número 5 e encontra-se a estibordo. Por esta razão, dirigi-me ao tombadilho e lugar do passeio, aguardando ali ,juntamente com outros, instruções e avisos.
Cheios de alvoroço os que nunca tinham visto puseram-se à escuta de um jovem marinheiro que, de voz entoada, para todos ouvirem,
inicia os trabalhos, começando por dizer: « O que vamos fazer não é tomado a sério. Trata-se apenas de leve brincadeira.
Portanto, nada a recear! Não são provas práticas nem será preciso efecctuá-las alguém, durante a viagem, pois que o nosso barco, embora velhinho, dará boa conta da sua missão.
Por este motivo, as baleeiras não descem. Encontram-se, como vêem, além, no tejadilho e,sendo necessário, baixam prestesmente, sobre cabos de aço, até atingirem o nível da amurada.». , ., ..
«Uma vez aqui, tendo já envergado o colete de salvação, observa-se a ordem que passo a indicar, para efeito da entrada na dita baleeira: pessoas de idade; crianças e mulheres e, por fim, os homens. Escusado será dizer que se deve ali obediência rigorosa ao chefe de baleeira, para que tudo saia a contento.»
«Havendo bom tempo, com mar bonançoso,as coisas são fáceis..Com tempo mau, irão agir,como passo a dizer: fixar muito bem o colete de salvação, agarrando-o com as mãos, sem jamais o largar, para que ele não suba; juntar as pernas e, em seguida, formar o salto, rumo à água. Ninguém deve ter medo, pois fica à tona de água, até conseguir meter-se na baleeira.
Entrementes,vem socorro, pedido instantemente pelo S. O. S, e tudo se normalliza
Mar e Céu
4-1-1973
Viajar de barco não é de encantar. Século de pressas é este em que vivo. Ora, o Pátria desloca-se apenas a 17,12 nós ,o que perfaz somente um total horário de 32 quilómetros, Parece um absurdo para os nossos tempos! Por esta razão, o processo antigo de viajar de barco tem os dias contados!.
Embora tão lento, gasta o velho Pátria, diariamente, 92,000
quilos de combustível. Disse o Comandante que, para o navio não
dar prejuízo, seria preciso elevar os preços 2,8 ou seja, passar de 10 a 28 contos.
Evidentemente, quer isto dizer "morte ", uma vez que a aviação, cómoda também e muito mais rápida, fica mais acessível à bolsa de todos.
Segundo consta já, ficam só 4 barcos, destinados a passageiros. Os outros vão ser vendidos para a sucata, à Ilha Formosa. Quem tal diria, recuando nós 20 a 30 anos! E assim! Tudo se altera, nas duras passagens da vida presente.
Continua, pois, desinteressada esta longa viagem , debaixo de céu estreito e horizonte reduzido. Só água, à minha volta e, porque passei à zona tórrida, calor sem medida!
O extravio da malita rala e conturba a minha paciência. Onde ficaria? Quem foi o culpado? Voltas e reviravoltas que já dei cá dentro! Os momentos que eu vivo em grande amargura!
Tudo me acabrunha, vem calcar e abater!
Trazer coisas de outrem não vai repetir-se,durante a minha vida! Se eu, realment ,nem as que são minhas posso controlar!
Para mais, três volumes estranhos, havendo-me falado apenas em dois! Não foi isso, talvez, que originou o meu descontrolo?!
Palavras meigas nada resolvem. Dizer redondamente: leve-as você!
Falar claro e pouco! Eis o ideal! Fazer favores, para ter em resposta um prejuízo assim?!
Mais ainda: podia o caso originar prisão! Se eu não vi, realmente, o que llá estava dentro! Suponhamos até que eram axplosivos!
Numa palavra, viajar de futuro, levando só bagagem que um braço aguente: nada mais! É que eu, infelizmente, viajo sozinho!
Mar e céu
5- 1 - 1973
Fui hoje alertado pelos companheiros , durante a viagem. Ao saberem eles, por confidência minha, que me fazia acompanhar de volumes alheios, de conteúdo ignorado, impeliram-me desde logo a
participar ao nosso Comandante ou pelo menos à D,G,S.
Ainda o não fiz. A princípio, enchi-me de receio, pensando, a valer, no efeito horroroso duma explosão.dentro do barco.
Analisando melhor o caso em foco,tranquilizei-me: vai fazer 8 dias que me encontro a bordo e nada ocorreu, pelo que deduzo não haver perigo. No entanto, vai ficar-me decerto para escarmenta.
Nunca mais trarei nada, a não ser que se trate de pessoas amigas ou então conhecidas, em cujas acções ninguém ponha suspeita.
Efectivamente, sendo gente honesta, não vai comprometer,
Foi da minha parte um erro imperdoável. Não conhecia a pessoa em causa nem sabia a rigor, o que havia nos volumes. tratando-se de alguém, com grande má fé, podia efectivamente sujeitar o navio a tremenda explosão, indo pelos ares quanto nele houvesse.
Morriam os inocentes, ficando o criminoso a gozar de um bem a que não tinha direito.
Uma bomba armadilhada ou coisa no género era suficiente ,para causar a desgraça de 500 pessoas, aproximadamente. Sirva isto, ao menos,de lição proveitosa, em ordem ao futuro
É, realmente, verdade que eu recusei,uma e muitas vezes. mas urge,em tais casos,ser mais incisivo,dizendo redondamente: nem posso nem quero! Castigado já estou, de maneira irreparável!
Por ainda julgar que está dentro do barco o volume em causa, alimento a esperança- Já entreguei ao nosso Comandante um rótulo igual ao que vinha na mala. Se foi roubada, nada aproveito; em caso diferente, é muito natural que a recupere ainda.
Mar e Céu
6-1-1973
Dia de Reis. Evocações de toda a natureza emergem da alma, graciosamente, impelidas em breve, pela memória. E que grande contraste, chocante, depressivo, entre o passadado e o presente que vivo!.
Aqui, sozinho, estranho, impotente, no meio de populaça, talvez intriguista, mexeriqueira, que ignora a fundo a minha existência e à qual não interesso; lá, um céu encantador,havendo por inquilinos o pai e a mãe, um irmão e uma irmã.
Era o lar aconchegado,brando e sorridente, que me esperava sempre, carinhoso e amigo. Ia pedir os Reis - figos secos e maçãs, castanhas e nozes - regressando, em seguida, ao lar carinhoso onde me esperavam doces carinhos, sorrisos e graças, que perfumavam a vida inteira.
Antes de sair, ouvia respeitoso o preceito materno: «Vais só à Quinta, à ti Ana Rosa; ao tio e à tia, Ouviste?
Confirmada por mim a pergunta final, logo partia, afim de realizar aquele sonho lindo, com prazer no coração e alegria esfuziante, estampada no rosto!
Como era feliz, nesse tempo distante!
Quem mo levou, para sítios remotos, que até parece tratar-se de um sonho?!
Ó Reis da minha infância, descuidada e feliz, festa querida e tão saudosa que enchias de júbilo o meu peito de criança!
Pudesses voltar a meus braços trementes e verter generoso,no peito ressequido, os eflúvios de teu bálsamo! Mas tudo perdi, ficando somente o direito lamentoso de agonizar… fenecer e partiir!
Hoje, estranho entre muitos, rodeado apenas de água verde-escura,, com chapada cinzenta de céu estreito, a cobri-la, de longe,aqui vou no Pátria, a caminho de Angola.
Que vou lá fazer? Procuro a felicidade, junto dos que amo e em cuja sinceridade ainda creio a valer.
Neste mundo cruel, poucas amizades me restam já. Se algum dia as perder, ficarei, a breve techo, descrente e deserdado
e, para sempre, entregue ao desalento.
Para quê, afinal, tanta desilusão?! Para que serve,,cá nesta vida tanto desengano?! A que vem tanto logro?! Que rosário negro, símbolo vivo de traições e desalento!
E há-de passar-se, com bastante frequência, haja ou não vontade Sucede tantas vezes desfiá-lo chorando, com visos exrternos de alegria interior!
Mar e Céu
7-1-1973
Devemos passar hoje a linha do Equador, pois que ontem nos situávamos a 6,47, latitude Norte. Este navio percorreu ontem 403 milhas.
Ora,tendo a milha 1852 metros, dá o seguinte resultado:
746,356. Arredondando o produto para 750, em quilómetros diários, temos então: 6 graus multiplicados por 111 quilómetros é igual a 666. O que falta para 6,47 equivale a 86 quilómetros
.Deste modo, passaremos o Equador e, como só faltavam 1700 milhas ou pouco mais, para findar a viagem, sabemos já que nos restam apenas 4 dias de barco: domingo e segunda, terça e quarta.
Em 10, à noite, pelo bom Deus, estaremos em Luanda. Já não é ´sem tempo! Custa imenso o rolar do tempo, aqui no interior. Se tivesse família ou bons companheiros, podendo expandir-me! Mas tudo me falta: Amigos verdadeiros, boa disposição, ambiente e dinheiro.
Viajo em primeira, mas pedira segunda. Isto obriga, por força, a logo tomar parte, solidariamente, em coisas dispendiosas,de que eu me abstenho, fazendo má figura! Quem viaja em primeira são os da massa!
Cheguei à Madeira e não saí do navio. Vi,cá de longe o fogo de artifício e tanto bastou! Eu sei,realmente, que vieram turistas de remotas paragens,afim de assistir ao grandioso cenário, sempre incomparável,que a Madeira oferece, nesta ocasião. Mas quê?
Só anda a contento quem tem boas pernas. Os que delas carecem ficam parados, limitando-se apenas ao cheiro inútil,emitido pelas coisas, a longa distância!
Chegado às Canárias, onde é tudo acessível, por não haver Alfândega, que fiz eu ali? Má figura como sempre. Desloquei-me
apenas a 6 metros de distância, fazendo sempre cálculos, não faltasse o necessário!
Como é triste ser pobre! Por sua vez, o roubo perpetrado, levou-me desde logo a boa disposição. nada metia graça! A alegria dos outros parecia-me escárnio, julgando sempre que riam de mim, por me verem deprimido, triste e mesquinho
Mar e Céu
8-1-1973
Música no salão. Trocando impressões com o Engenheiro, de nome Fonseca, natural de Cabo Verde e, à data, Presidente, assaz conceituado da Associação de Inventores, fiquei ciente do motivo que tornou conhecido, internanacionalmente, o nosso Gago Coutinho,
Pensa-se, geralmente, ser por causa do Sextante, mas a verdade, esclareceu ele, é que o tal Sextante já existia,antes de Coutinho
O seu invento foi outro, associado ao primeiro — o Horisonte Artificial. Este, sim, é dele: vem a ser um "dispositivo", associado ao Sextante.
Com este invento, é possível navegar cientificamente nas camadas atmosféricas. Por outras palavras: o cientista português ensinou o mumdo a determinar as coordenadas geográficas,nas camadas atmosféricas..
Arnstromg, ao voltar da Lua,referiu-se ao caso. Em todas as viagens interplanetárias, vai ser lembrado o nome de Portugal, como sucede, ao atravessar o Estreito de Magalhães ou avistar o Cabo Tormentório.
Sobre Gago Coutinho várias coisas mais vieram ao de cima:
na pedra tumular — Gago Coutiinho, Geógrafo — ; embora fosse Almirante, recusou as honras militares.
Da sua assinatura, constavam apenas os "três pontinhos "
Foi sempre do revira, não aceitando o regime do tempo.
Atingiu longa idade e ganhou com justiça fama internacional. A viagem aéria ,Portucal-Brasil, em 1922, confirmou a eficácia do seu belo invento o — Horizonte Artificial.
Mar e Céu
9-1-1973
Música no Salão.
Convidado a tomar parte pelo Comandante, aceitei prestesmente, embora fosse meu hábito vir para o camarote, após o jantar.
Durante a audição, fui interpelado pelo Imediato, um rapazimho deveras gentil, que se tornou benquisto. As moças adoram-no, o que muito o desvanece. Connosco,à data, viajava também Ana Fonseca, aluna do 7º, em Liceu de Luanda. Insinuante e alegre infunde calor humano.
Orgulho de seus pais, cabo-verdianos, por ser boa aluna,diligente e submissa, cativa, desde logo aqueles que a cercam.
Ficando, por acaso, junto deles ambos, o jovem- Capitão,vendo-me pensativo, buscou interessar-me em conversa familiar. Falámos da mala, ventilando, em seguida,vários assuntos,entre os quais o estudo e o próprio amor.
Fiz então a pergunta: será possível estudar com proveito, namorando, ao mesmo tempo?
Ana Maria respondeu que sim, jogando ali com os dados pessoais, Disse ela então: Eu namoro um rapaz , com licença de meus pais, sendo este facto que me dá incentivo, para estudar, com grande afinco.
Capricho em extremo por manter as notas, pois foi esta a condição, imposta por meu pai. Logo, é para mim enorme incentivo, tanto mais que não desejo, por modo nenhum, cair em desagrado.
O jovem Imediato, ostentando garboso seus três galões, como pessoa já experiente, confirmou também, juntando em seguida: Não se leve a mocidade, por meios violentos. sim, por medidas harto suasórias, em que entre, por igual, inteligência e coração.
,
De facto, o namoro, levado a sério, é motivo forte para estudar, com grande empenho. Se uma pequena gosta dum rapaz, a quem adora, tudo fará para não desagradar-lhe.
Por outro lado, sabendo muito bem que ele não gostará de uma jovem ignorante, esmerar-se-á, pois, tentando ser alguém. aos olhos de quem ama.
Vejo-o claramente,acentuou ele, em belas moças das minhas relações, a quem já aconselhei esforço maior. Como por encanto,enveredam logo por caminho diferente
Mar e Céu
10-1-1973
Foi ontem julgado quem atravessou o Equador, pela primeira vez.
Realizou-se a função, ali junto à piscina, revestindo a cerimónia
grande aparato. Organizado o cortejo, no salão de festas, leva à sua frente os membros do Triunal, a rainha Nereida, o rei Pagerso e assim também os submissos oficiais de diligências.
Agora, é o momento, em que vão subindo todos para o andar de cima e entoando a marcha.
Um polícia arguto marca presença, à frente do cortejo, Chegados ao termo, dirigem-se aos lugares, encontrando-se à volta numerosas pessoas: tripulação e passageiros.
Todos aguardam. com enorme alvoroço, o primeiro dos réus a ser julgado: um inglês corpulento.
As crianças, em geral, é quem mais delira com tudo o que vêem.
A bela Aninha cativa os olhares , por seus ricos trajos e colares de ouro.
São advogados: Engenheiro Fonseca, advogado de defesa; o jornalista Fernando. advogado de acusação. Os castigos a aplicar são diversíssimos.
Por bom sinal. houve 6 réus que ficaram imundos. Entretanto. sendo junto à piscina, tornou-se fácil prover à higiene.
A um deles partiram alguns ovos na própria cabeça, ficando a gema logo a escorrer, pelos cabelos abaixo. Outros houve ainda condenados ali a comer um bolo, junto com píri-píri, sendo acompanhada a mastigação, com enorme copo de água,muitíssimo salgada.
Eu sei lá!...Uma cena cómica e harto hilariante!
Como os réus eram muitos, não fiquei até ao fim, auentando-me dali, para tomar notas no meu camarote.
Hoje, por Deus, será , julgo eu, o último dia, nesta longa viagem
Respiro mais fundo e sinto no peito o alívio de alguém que subiu alta encosta, chegando finalmente ao cume da montanha.
Uma vez aqui, fixa deslumbrado o vasto horizonte, esquecendo, num momento, quantos espinhos torturaram seu peito.
Não tenho ainda horizontes diferentes: a mancha anterior, negro-
esverdeada, permanece constante, mas sinto já que o peito dooente se desoprime e novo alento se entorna em minha alma, deveras contristada
Que virá, seguidamente?
Luanda
11-1-1973 .
Até que enfim avisto alvoroçado a costa portuguesa do Estado de Angola!.
Havia já 13 dias que meus olhos tristes andavam aguados, por não verem terra firme. Por isso, foi grande o abalo sentido, quando surgiu a Ilha de Luanda que afinal desconhecia.
Após as Canárias, só um pequeno círculo, no meio do qual eu me encontrava!. Isto que digo…horas e horas … dias e dias! Sempre a mesma coisa!
Passara já duas vezes, mas sempre de avião e a hora tardia,
razão pela qual não tinha observado a linda cidade.
Às 6 horas em ponto,começava o Paquete as manobras de abordagem! É morosa tal operação, muito mais de estranhar para quem, anteriormente viajou de avião!
Cerca de duas horas em longos preparativos, assaz intensos, para arribar.
A minha impaciência é que não se conformava com tais delongas. Aquilo afigurou-se qual eternidade. Apesar de tudo,ele avançava, firme e constante, rumo ao cais.
Agora,aparecem diligentes os rebocadores, para findar a grande manobra, permitindo a acostagem. Enfim, chegámos!.
Descem então a escada de contacto, reinando ali grande entusiasmo. Os que fazem a viagem pela primeira vez sentem embaraço. Isto precisamente é o que me acontece.
Os da 3ª empunham as malas e põem-nas à frente. Serão eles, na verdade os primeiros a descer? Ninguém ali sabe com toda a certeza!
Enquanto isto passa, lanço os olhos chorosos, ao longo do cais, para fixar dolemtes adeuses e observar alguns sinais. São amigos e parentes que se avistam, de longe, e mandam cumprimentos, através do ar.
Também eu de facto ali teria alguém?Neste momento, o
Padre Pedro que é primo e afilhado, acena pressuroso, do varandim.
Luanda
12-1-1973
Cumpridas ontem as formalidades, que não foram morosas, por grata influência do meu afilhado, lá vou todo lesto à paróquia amiga de Santo António, onde trabalham e residem também 4 jovens sacerdotes que honram os Capuchinhos: Pedro , Alípio, Rito e Caetano.
Fazem ali boa camaradagem e recebem a todos com gentileza. Dá ganas de lá voltar, para ter oportunidades que raramente surgem, na vida quotidiana
Quando chegámos, por volta dio meio-dia, era um sol abrasador! Por esta razão, atacou-nos uma sede que afogámos em uisque.
Bom almoço e, logo em seguida,um giro pela cidade. O melhor de
tudo foi depois à noite.: o passeio à Ilha. Verdadeiro assombro! Não tem igual!! Aquilo, sim, vale a pena visitar-se É deslumbrante, inesquecível, incomparável!
Quatro quilómetros de bela estrada,em! óptimas condições, sempre com o Mar a rondar-nos de perto! Um jogo de luzes, prodígio vivo, e uma paisagem, toda humanizada, que deleita ,a fundo, o nosso olhar!.
Há centenas de carros, postados à beira, esperando resignados que seus donos apareçam. Chegados ao termo, repousámos ali, sobre fofa areia, tomando o fresco da hora.
O farol vigilante ficava à recta-guarda. Com seus movimentos, intermitentes, anuncia aos mareantes que devem precaver-se e tomar aquele rumo
Mas tudo o que é bom acaba depressa ou é proibido! Agora
para a cama! É grato dormir esquecendo pesares e vilezas da vida!
Chitembo
13-1 1973
A viagem mais longa que já fiz em vida, servindo o automóvel,
realizou-se ontem. Às 5 da manhã, na estrada de Catete!
Atravessara de noite, o bairro dos Musseques, perigoso e infamado, ao menos pelo escuro. A noite, por seu turno, havia sido longa e bastante penosa. O calor e os mosquitos fizeram seu papel, assaz destruidor.
Conciliar o sono, em tais circunstâncias, é coisa impossível. Voltas e mais voltas, sem que tenham fim!. Entretanto, aguardava-me um percurso de mil e tal quilómetros. Vencê-los em dois dias ou então descansar, a meio do caminho, seguindo pela noite?
Não! Seria contínuo o longo percurso, em 12 horas de grande martírio, lento,doloroso!
Todo o corpo me doía. Inclinava-me para um lado, virando-me, em seguida para o lado contrário. Rectas, ante mim, surgiam aos centos,
A partir de Luanda. Aldeias risonhas, cercadas por montes, inundadas de luz Depois, é a solidão quem reina ali.
Montes sem fim, alguns de cume agudo; outros ainda, colossais, majestosos! A vegetação, agora abundante, dá sinais de triunfo.
O homem, agora, sente-se pequeno, impotente e vão, fugindo, a toda a hora ao possível esmagamento, que receia a fundo.
Aves de rapina,com tamanho inusitado, aparecem na estrada, espreitando a presa, enquanto na berma, já desamparado, infeliz e mesquinho. dorme o sono terno, um preto, meu irmão!
Tremo, de lembrá-lo! Que pena me fez o pobre infeliz! Nem a sepultura, ao menos por caridade!
Quantos ali passaram, em louca velocidade, sem terem, ao menos, um olhar de compaixão!
Chitembo
14-1-1973
Nesta viagem, assaz dolorosa, procurava ansioso a vila do Chttembo, no distrito do Bié. Havia um mês. pela certa, que não fora ali vísitar a familia,
A dois quilómetros só , perdiam-se os olhos no espaçp azul, em demanda persistente do grácil pinheiro, no quintai da moradia, à entrada da vila.
Junto dele, irei descansar, refazendo energias, perdidas, na viagem.
Ao avistá-lo, saudei-o comovido e nele descansou meu olhar aguado, enquanto no peito exultava de alegria o coração impaciente.
Que meiga doçura entornava em minha alma , acenando de longe, com visos de ternura!
É como farol, paciente,benfazejo, que não cessa jamais de trabalhar, em prol dos navegantes! Luz amiga e carinhosa cujos raios são carícias! Deus te dê longa vida, para servires, com tua brandura, nos dias maus da existência terrena.
Depois, aproximando-me um pouco, avisto ao lado a térrea casinha
que é , sem dúvida, um remanso ideal. Tudo ali esquece, dissipando-se em breve: a ruindade humana,contrariedades, mágoas e pesares, desilusão e maldades.
Um sono reparador vai descer sobre mim, com vista a refazer-me de perdas e danos. Agora, já posso descansar.
A mana Agusta é a primeira a chegar. Louca de alegria, dá-me um forte abraço. Em seguida, avançam os pequenos e, finalmente, o cunhado Martins que logo se apresenta muito bem disposto, não obstante os males de que vai enfermando.
Anda um pouco melhor,o que fundo me alegrou! Não é ,por certo, ,aquilo que eu pensava — um cancro!
Ainda virão, ó Pai do Céu,tempos agradáveis, para alegrar-nos ?!
.Silva Porto
15-1-1973
Começa agora a faina tremenda, Após três semanas de férias alongadas, pela ida à Metrópole, urge trabalhar, sem descanso nem pausa. Lá estão os alunos,contentes e felizes, por não terem Inglês! Mas a vida é luta para eles e para mim. O repouso é um meio: jamais um fim. Forçoso se torna recomeçar a faina , sem jamais pactuar com a preguiça mortal. Incentivo e nobre ideal é que os jovens precisam!
Já dei 4 aulas, na parte da manhã. Decorreram todas sem novidade. mas faltam ainda bastantes livros. Agrupei os estudantes, mas ainda assim, não chego jamais aonde eu quero.
O progresso nas aulas iria triplicar, havendo para cada aluno o livro desejado.Aguentarei mais um ano e, depois, não sei bem.
Aprecio o Magistério e preciso dinheiro, afim de ajudar quem está carente.
É isto, na verdade, incentivo para mim, pois confere à vida um rumo diferente, nimbado de beleza.. Fazer bem a outrem, dando-lhe a mão, e proporcionando um pouco mais de luz, coisa é que me encanta.
Tudo o mais já morreu, de quanto aprendi e tentaram ensinar-me Em Deus creio firme : quanto aos homens, não escuto já sua voz de mentira.
Silva Porto
16-1-1973
Primeira aula deste novo período, na Escola Técnica Jão de
Almeida à Turma irrequieta de Electro- Mecânica. É o meu calvário. .
Turma numerosa e assaz inquietante, vem-me dando, há muito, água pela barba. Elementos procedentes do Ciclo Preparatório e na idade mais crítica formam grupo diabólico e deveras intragável.
que mói a paciência e devora as energias.
O Ribas impossível já desertou, pois o número de faltas assim
determinava.
Quanto ao Ponces, um fedelho de 13 ou talvez 14 anos, vivo,inquieto, de língua insaciável e em constante movimento, é um perfeito diabrete, que faz enervar e pôr-nos em brasas.
Avisado uma vez, faz que não percebe ou finge esquecimento, provocando hilaridade ou revolta aberta , nos seus condiscípulos.
Ontem já, foi o dia primeiro.Entretanto, pensava eu,tomariam as coisas rumo diferente.Pedi, roguei, quase implorei.
Em seguida, por nada conseguir, ameacei-o com pancada,
aproximando-me bastante, na mira de o punir.
Recuei, no entanto, afim de evitar o jeito de violência,que faz a aula pesada,inutilizando o papel de educador.
Nesta ordem de ideias, apelei caloroso para o seu carácter e nobreza de sentimentos.
Antes,dera-lhe a escolher: saída imediata, com falta marcada ou um soco razoável.
Optaria,como disse, pela saída com falta.
um soco razoável. Optaria, como disse, pela falta marcada. Mas eu
não quero, de modo nenhum, prejudicar o meúdo. Até me inspira alguma simpatia.
Levei-o por bem, chegando ele a prometer que jamais falaria,
durante as aulas. Fizera-lhe ver que não temos o direito de prejudicar os outros colegas, embora sintamos desinteresse por um assunto qualquer. Concordou logo e prometeu.
Tenho para mim que vai emendar-se.
Silva Porto
17-1-1973
Aproxima-se a hora da aula fatal. Hoje,porém, estou mais confiado, uma vez que o aluno deu palavra de honra. Por esta razão, vou mais tranquílo e olho o futuro com maior serenidade.
Viremos o disco.
Com a mudança do Ponces, ressentiu-se o próprio tempo que virou chuvoso e trovejado. Já ontem foi o mesmo.
Será um protesto,quanto ao passado ou antes ameaça, para entrar na linha? Veremos,depois.
Entrementes fui ao Liceu buscar a Guida, para não se molhar.
O que faz ser tio e padrinho também! Mostrou-se risonha e bastante
à-vontade, o que ajudou igualmente a levantar-me o espírito. Fiquei satisfeito. A minha disposição depende. em grande parte , das suas atitudes.
Creio firmemente que se vai modificando. Estuda mais um pouco, sorri francamente e atende à solicitude que vê desenvolver-se,em relação a ela.
Além disso,preocupa-se e faz, em geral, por ser agradável. O facto gostoso de aplicar-se mais ,é basilar, uma vez que, perdeno o ano.será irradiada.
Nem eu já falo, bem entendido, no dinheiro gasto, irritação dos pais e na tristeza de todos.Ficando apenas com o 2º ano, que podia aproveitar-lhe?. Alguma coissa, sim,, mas de modo nenhum quanto proporciona o 5º aano do Liceu.
Confio,pois,que ela se emende,ao jeito do Ponces.
Silva Porto
18-1-1973
A minha confiança volveu-se prestes em desilusão. O Ponces faltou, mas surgiram outros, piores ainda que,segundo julgo,incitavam o pequeno a fazer travessuras.
Foi uma aula, assaz execranda a que ontem decorreu.
Exaltei-me bastante, dizendo, a propósito, coisas amargas e fazendo insinuações que amachucam e ferem
Saturado em extremo, não podia transigir. A medida humana,logo que está cheia,não leva mais e, ao trnsbordar, o líquido expelido arrasta consigo quanto se lhe oponha.
Acumulei, durante o período, tudo suportando, com muita paciência. Agora, já não podia: era forçoso dar-se o embate! e nada havia que pudesse evitá-lo.
Ameaças fortes, intimidação… um cortejo de horrores!. Tudo ouviram, com alta surpresa. e até algum pasmo.. Esperariam, talvez, que não reagisse.
Alguns deles ainda riram um pouco, mas quando lhes disse, já irritado, que levava ao Director uma queixa, por escrito, envolvendo a turma, foi o tiro certeiro, por atingir o alvo, com toda a exactidão,
Desculpas em barda, saídas manhosas, tudo surgiu naquele momento. No entanto, houve ali alguém que propôs um alvitre: dar-lhes ainda outra oportunidade, para eler demomonstrarem ser capazer ou não de manter-se compostos.
Se eles faltassem, agiria então.
Uso nas aulas todos os meios que tenho por bons, ressalvando cuidadoso o papel de professor que também educa.É árduo e penoso,em épocas assim. No entanto, urge dominar-me e não prejudicar.
Silva Porto
19-1-1973
O que faz ser p!obre!
Foi uma colega a pessoa a contá-lo. Durante o vendaval que atingiu esta zona, uma pobre criança, nascida em Angola, guiada pela irmã, abrigou-se ontem, por baixo dum camião,
Ali permaneceram, julgando-se felizes, de estarem protegidas contra a borrasca. Mas o Mafarrico de pronto as tece.
Quando elas viam com olhos satisfeitos , cair água à roda, era enorme o prazer que as tomava por inteiro. Uma espécie de delírio na posse de um bem que nada custa alcançar e muito se aprecia.
A desgraça,porém. estava aguardando uma das petizes.
O motorista chega earranca pronto. Nisto, ouve um grito, deveras arrepiante, e detém-se prestes, Acorre em seguida e. cheio de horror, vê o braço da inocente debaixo da roda!
Estremeço também, nesta hora amarga,ao recordar o trágico incidente. O meu peito comprime-se e entra em aflição, pelo ser estropiado e sua negra sorte!
Que fará, no futuro, esta pobre criança? Como vai obviar a tantas necessidades que a vid apresenta?Fora ela rica ou, pelo menos, tivesse o bastante, para viver com dignidade, haveria um carro a trnsportá-la… criada ao lado a protegê-la… bons agasalhos, para sua defesa!
Mas assim! Pobre inocente! Como eu te lamento! Desejaria beijar a tua face inocente, alagada em pranto e deformada pela desgraça.
Que posso eu fazer, em teu favor, no incerto porvir?
Silva Porto
20-1-1973
São 9 e 16. O céu está nublado e sopra agora um vento brandinho que mal se faz sentir, no rosto e nas pernas.Por isso, volteia levemente a copa das árvores, acolhendo-se as aves a seus rústicos abrigos. Sinal de chuva? Prenúncio claro de
tempestade? Nem isto admira! No ano corrente, raro é o dia que tal não suceda!
Sempre muita chuva, acompanhada a vento; medonhas trovoadas; um monte de empecilhos,vias encharcadas; caminhos e sendas enlameados, enflm, um monte de empecilhos, esperados já no tempo que é.
Entretanto, nos ultimos dias não choveu uma amostra do que está ocorrendo. Com um tempo destes, sou obrigado a enclausurar-me, o que vem contribuir para maior solidão.
Pouco sociável e nada expansivo, de modo especial com as pessoas que mal conheço ou me são antipáticas, refugio-me no quarto, onde fala a saudade sobre o que não fui.. Ouço então ali as vozes do passado, esse tempo que foi e não voltou, fazendo-me descrer dos homens vis .
Propalavam insanos o que não sentiam; impunham também o que reprovavam, desempenhando um papel que deveras os condena. Há muito já que eu os condeno. em seu agir. Sinto fundo asco da sua actuação, imenso nojo da sua presença, fúria incontida ,pela grande insensatez.
Perdi até o gosto de pensar neles, embora sinta no peito que, pelo menos alguns , eram, na verdade, ingénuos em extremo.
Autênticos bonecos, não tinham assim vontade própria, subordinando-se a tudo ao que outros mandavam, fosse justo ou não. Detesto, pois, as suas obras.
Obediência estúpida… inconsciência lamentável!
Nesse vai-vem de factos e ideias,ocultavam aos jovens a face real da existência humana, mostrando apenas a que hoje deploro e repudio, com todo o vigor.
Para contra-vapor, está o nosso Carlitos que, à data presente, vive comigo. A sua bondade e estreme gentileza é sempre uma aurora que brilha intensamente, no meu horizonte.
Que Deus o ajude, proporcionando-lhe, com abundância, aquilo que deseja.
Este pequeno é,realmente, uma jóia de criança!
Não agindo o diabo ou as más companhias, temos ali uma esperança fagueira que muito anima e reconforta.
Colónia Penal — Capolo
21-1-1973
Manifestação de perene confiança ao Presidente do Conselho
de Ministros.
"Angola é nossa e não dos Brancos"
Ocorreu ontem, às 9 horas em ponto, no Largo fronteiriço ao Govermo Civil. Muita gente aglomerada; Brancos e Pretos, juntamente com Mestiços. Discursos exaltados, gritos delirantes,vivas frementes! Momento único e de grande frenesim, em que tanta gente procurava expandir-se, a bel-prazer!
Realmente, o discurso inflamado, que há dias pronunciou Marcelo Caetano merecia ovação.
Entretanto, surgem, às vezes, desmancha-prazeres. No meio daquilo, aparecem logo vozes discordantes que, segundo foi dito, eram todas elas de seminaristas: «Angola é nossa e não dos Brancos!»
Que mal sonantes estas paiavras!
Angola é de todos os que nela trabalham e sentem amor ao solo angolano, sejam eles Pretos ou de outra cor! Os que mourejam aqui, sofrendo e amando, já no campo, já na Escola, é que são, na verdade, os donos de Angola, pois a estão construindo, vivendo para ela!
Alguns nativos fiam-se, ingénuos, em palavras enganosas trazidas a lume por ventos de longe!
Quem ergueu e adornou estas lindas cidades que são, na verdade, promessas em flor? Quem está rasgando os matos seculares, para exorná-los, com plantas, de espécies variadas?
Quem delineou e logo abriu as excelentes estradas que se estendem já, de Cabinda ao Cunene! Quem é que lançou esses belos edifícios que são Escolas e também Liceus bem como Universidades? Não faltam igrejas, hospitais e asilos, Ercolas de Magistério, Cinemas e Teatros!
Não é tudo isso fruto maravilhoso do esforço português?!
Colaboração é realmente o que nós queremos e não más vontades ou desunião!
Na Escola Técnica, onde eu ensino, vejo alunos e alunas de todas as cores, sem qualquer reparo ou diferenciação.
Escandalizam-me, pois, tais vozes dissonantes que tresandam a cegueira e má compreensão.
Silva Porto — Capolo
22-1-1973
O canário da Prisão ( Capolo )
Ocorreu ontem, na parte da tarde. Em visita aos presos, fui por eles convidado a entrar no refeitório, pois iam jantar. Aceitei, já se vê, para ser-lhes agradável e ajudá-los também a distrair um pouco.
No entanto, longe estava eu de esperar a cena que passo a descrever. Uma vez ali, estendo o olhar pelas diversas mesas, onde a sopa fumega, enquanto eles devoram gostosas costeletas que exalam bom odor.
Neste comenos, enxergo uma avezinha, encanto de todos. Satisfeita e feliz, poisa amiúde, no indicador que lhe vão aproximando e tenta beber água ou então debicar saborosa guloseima.
Salta para os ombros, sobe pelo braço e, uma vez outra, abre largamente o biquito nervoso, a repelir tropelias e até condenar alguns atrevimentos. Amigo de todos, são todos seus amigos. Prisioneiros eles e ele também, o mundo da ave é entre os amiguinhos.
Querem-lhe bem, razão evidente por que ele os acompanha, indo para as celas dormir e repousar.
Não o tragam para fora, que não gosta do ar livre. Apenas sente prazer entre grades e muros.
Foi isto que me feriu e deveras contristou.Enquanto os prisioneiros amam a liberdade pela qual suspiram a todo momento, o canário do Capolo ama sobretudo a meia luz e o cárcere.
Impressionado, meditei longamente. Aquilo que vi deu-me voltas ao miolo! Recusar assim o que há de mais belo!
Trazido para fora, imediatamente avança rumo a seu lar!
É que ali viveu, desde pequenino, recebendo migalhas, afagos e carícias de quantos,o cercam.
É este, de facto, o mundo querido, porque ali há ternura , carinho, amor!
Silva Porto
23-1-1973
O Chico do Capolo
Embora estranho, não se trata de pessoa. E para mais não ficamos por aqui, já que entram na llista personagens como estas: Miquelina e Baltasar.Parece uma familia com ramos dilatados e harto frondosos.
Pois é o caso: os reclusos do Capolo entretêm-se, gostosos, brincando amiúde com os animais. Já falei do canário, a simpática ave. que, durante a refeição, percorre as mesas todas e visita sem falta cada um dos comensais
Não é isto divertido, pitoresco, invulgar?! Aqui bebe, além come. Ora, o que sucede com o canário, dá-se também com os gatos da Prisão, de cujo número faz parte o velho Chico.
É o famoso gatarrão do Centro Prisional. Já velhote, sem dúvida mas não deixa supô-lo. Ele dá saltos que o fazem mais novo!
Dócil e afável, ouvindo o seu nome, sobe desde logo para quem o pronuncia. Ninguém lhe fale em sair ou tente arrastá-lo cá para fora!
O mundo preferido, em que acha prazer é o recinto da Prisão. Ali vive e prospera. Vozes o chamam com insistência ; carinhos e afagos o esperam, decerto, a toda a hora. Guloseimas e petiscos jamais lhe faltaram!
Enquanto a Miquelina espreita, desconfiada, não haja intrusos no interior, ele o velhote avança bonacheirão, para divertir os seus amiguinhos. Nem é preciso eles ordenarem, utilizando a voz!
Um gesto apenas é suficiente: pôr os braços em arco, em frente do bichinho. Uma vez assim, ei-lo pronto e lépido , formando para logo saltos de mestre, afim de colher vivos aplausos, recebendo incitamentos.
Goste embora de todos, sempre liga mais a certos reclusos. Naturalmente, os que melhor o tratam e, por outro lado, mais estima lhe votam! Entre todos, é o Sequeira o preferido. Não que ele o Chico tem carradas de razão! Esclareceu o Sequeira: ao nascer, o bichano esteve balançando entre a vida e a morte. Primeiro de sua mãe? Nâo sei nem importa!
Em tais quenturas, valeu-lhe o Sequeira.! Com seu jeito especial, tocado no coração pela ideia feliz de bem fazer, vai dispor tudo, para que o animal venha ao mundo sem perigo, Aqui desata, além afasta: o Chico felizardo, cada vez mais livre; a mãe agonizante, já mais aliviada.Nunca havia de esquecê-lo.É por isso que o Chico guarda em segredo aquela pontinha de constante gratidão que apenas a morte fará esquecer.
Silva Porto
24-1-1973
A nossa Guida faltou à Matemática e esteve a fumar com a amiga habitual, Alguém me informou, acerca do caso, pois nada ocorre que eu não saiba logo, no próprio dia. É minha impressão que a outra colega a desencaminha, pois é mais velha e batida no agir.
Como a nota é só 8 e lhe pago lições, o facto aborrece-me e tenho de actuar com senso e prontidão.
Prometeu há dias não voltar a indispor-ne. Eu acreditei. Ignoro, de facto, se ela vai cumprir.
Julgo ainda que é sincera.
Silva Porto
25-1-973
Um rir diferente… ar desigual.«Tem aulas de tarde*?inquiria o Director, Dr. Manuel Buco. Dizendo eu "sim", ele ripostou: — Então, pode ir embora
Enquanto avançava, rumo ao Colégio, para almoçar, alguns colegas meus dirigiam-se ainda à Secretaria da Escola Técnica. Suspeitei logo que se tratava da "folha". Urge assiná-la, para receber o luzido vencimento, no próximo dia.
A vida transformou-se como por encanto! Não imagino donde brota a energia que surge no organismo! Torna-se mais lépido e menos pesado. Aquilo é, de facto, uma força estranha. que leva a rir, de forma diferente e ganhar, desde logo, atitudes importantes. Nem se julgue acaso ser isso exclusiivo de A ou B.
Este mágico fluido percorre o organismo de todos os mortais a quem faz espevitar.
Cada um de nós se julga, num ai, mais valoroso, deixando transparecer no seu exterior, a alegria enorme que lhe invade a alma.
Fogem, num átomo, ideias mesquinhas; arredam por encanto, pensamentos obsessivos; desanuvia-se breve o horizonte da vida. É tudo luz, em nosso redor.
Mas então porquê? Por causa de 9 contos 450 que vão receber-se. Há,na verdade, quem receba mais. o que agora não importa! Entretanto, os que desejam apenas 22 tempos, ao longo da semana, auferem, por isso mesmo a dita importância.
Além desta soma, pode haver acréscimo, pois o meu ordenado são 12 contos e 50 escudos. por dar 6 tempos , além dos 22.
O corpo docente vive, â data, um momento de euforia, pois vai ter à mão o que é imprescindível na existência terrena.
Silva Porto
26-1-1974 -Recebi o vencimento, descontando-me apenas 19$00. Pouco tempo o guardei. Receava,afinal, que viessem roubar-mo ou pudesse extraviar-se.Por este motivo, fui logo ao Banco. Totaliza agora 23 contos, o que é, na verdade, bastante pouco .
Começara em Setembro, para a vida ser outra! Iniciando os trabalhos apenas em Novambro, que podia esperar-se?! Falta ainda receber o das horas extra: 2600$00, por cada mês..
Tentarei acumular uma pequena reserva — 5o a 100 contos — para casos de emergência., ocorridos em família. Muitíssimas vezes torna-se urgente o recurso imediato ao pé de meia. Em tais circunstâncias, gosto de ser útil, ajudando assim quem precisa socorro.
Não se trata de egoísmo a pilotar a minha vida! Tal sentimento gera estagnação e produz a morte. Eu, porém, amo a vida,a luz e o calor. o amor e a amizade. Dar a mão a carentes é suprema alegria que doura a existência.
Esta,pois a razão, em virtude da qual me dou a sacrifícios, renunciando, tantas vezes, ao que posso usufruir e a que tinha direito
Silva Porto
27-1-1973
Manhã quentinha, deveras bonançosa, para compensar-nos de chuvas abundantes e sonoros estampidos que amiúde retumbavam pelos ares circundantes, amedrontando assim o coração dos mortais.
É fim de semana, espaço de tempo que alivia o espírito, infundindo calma no seio oprimido: recuperam-se energias, desanuviando a mente.
A semana inglesa de 5 dias, nos tempos de agora, é esfalfante e assaz morosa, pesada e temível , mercê das liberdades que a época tolera. Não é como outrora, pois quem manda, em nossos dias, são os discentes, tendo nós de curvar-nos a seus caprichos e veleidades.
No meu tempo de estudante o corpo discente era sacrificado, indo todos para as aulas, sob grande tensão. Hoje são os Mestres que vivem assim, tomando os alunos plena liberdade, para tudo fazerem.
É insuportável este denso ambiente e não vejo ideal que possa bastar, para conseguir fazer-se obedecer, por alguns elementos. Devo expressar que nem todos os alunos são do mesmo quilate, mas é facílimo deixarem-se arrastar pelos maus companheiros que vêem nos outros bastante docilidade e compreensão
Algumas vezes é o respeito humano; outras ainda, para os não vexarem, não querendo ficar em pouco, são levados a tudo
Reconheço hoje: havendo depuramnto em 3 ou 4, (às vezes, 1 ou 2 ), por cada turma, iriam as coisas muito melhor
Para que são, afinal, as Casas de Correcção, Hospitais Psiquiátricos, Manicómios e Prisões?! Com algum fim tiveram início
Atrasados mentais; deficientes vários e incapazes; insuficientes ; elementos perversos e indesejáveis, por serem inquietos ou amimados que vão aproveitar e como levá-los a um trabalho sério?!
Que meios empregar no Ensino Oficial? Insuficientes senão idiotas, tarados e alcoóllicos; drogados também ou agitadores será realmente a Escola Técnica o lugar ideal, para eles estudarem?!
A repressão moderada é sempre necessária, para bem dos que ficam e desejam ser alguém, na futura sociedade.
No tocante a mim, se não fosse, de facto, a mana Agusta, já tinha abandonado o cargo de professor. Não é grato o Magistério, com todos os elementos , fazendo, afinal, o que lhes apraz
Capolo
28-1-1973
Ontem por tarde chuvosa, rumava eu à Colónia Penal. Descrever tal viagenm, não cabe em palavras, pois vim no camião, estando a picada em mísero estado. Só com boa vontade e movido ainda por nobre causa se pode arrostar com tais balanços, acompanhados, por vezes, de sobressaltos enormes.
A carrinha avariara e houve o percurso de fazer-se em camião.
Duas horas gastámos, vencendo apenas 65 quilómetros. Graças a Deus que já estão reparando a mísera picada! Aparenta ela ficar bem boa, pois é alargada, melhorando o pior, e fazendo valetas.
Pelo mísero estado em que agora a vemos, devido às chuvadas mais figura, decerto, pequenos lagos, em que porcos chafurdassem.
O veículo oscilava, encostando, ora à direita, ora à esquerda tambem e fazendo-o por tal modo, que eu julgava provável revirar-se o tejadilho.
De vez em quando, lá vinha um alívio que pouco durava — um troço melhorzito. Entretanto, quando mal não pensava, caía logo em cheio numa cova enorme, provocando nos assentos mal-estar incrível. Todo o ser estremecia, ficando a impressão de que o meu esqueleto se estava desconjuntando.
De momento, refeito deste abalo, era intentado novo equilíbrio, afim de não cairmos em sulcos fundos, com danos maiores.
O motorista Gonçalves, que já conhece a via como os próprios dedos, tenteava as rodas, fazendo ali acrobacias frequentes. Depois, vinha um sulco transversal, muito fundo e largo, onde as rodas se engolfavam. Acto contínuo, a água esparrinhava, manchando o guarda-vento e envolvendo a meio o corpulento veículo.
Por fim, um triângulo vermellho e, logo em frente um camião -,gigante, centrado na picada!...Partira acaso o diferencial…
Fizemos então alguns cortes de arbustos, passando a medo pelo matagal.
Silva Porto
29-1-1973
Morreu o Bernardino
O círculo estreito vai-se apertando e, à medida que olho, vejo-o sempre mais perto de mim. Três companheiros da infância longínqua: António Prazeres, Manuel Prazeres e Bernardino Martins. O primeiro dos três, do mesmo ano que eu; os outros dois ainda mais novos! Já todos partiram: eu ainda fiquei.
Como sinto a morte rondando inquieta, na mira de tragar-me!.O Bernardino caiu, sem passado nem presente! Diria até, sem qualquer futuro! Filhos não deixou, ao menos de matrimónio. Quem terá chorado o seu passamento? Só a preta Florinda que vivia com ele.
Infeliz Bernardino! A este nome, quantas lembranças dos meus tempos de criança! Quase dos mais novos, entre os seus irmãos, pois só o Manuel tem menos idade, foi ele de caminho para a eterna morada! Quem tal diria, nos tempos que lá vão!
Deixar as ossadas aqui em Angola, no exíguo cemitério da vila do Chitembo! Ninguém me disse nada! Gostaria imenso de assistir ao funeral.
Há tempos já, logo que ele soube da minha chegada, foi visitar-me à vila referida. Gostei muito de o ver presente. Como andava arranjadinho, vivendo embora no quimbo de Mingomba! Até parecia outro!
Acabou de vez o afamado caçador, que tanta carne vendera ao velho Sussa (Barros)!
Poucos dias antes, fomos todos visitá-lo ao quimbo de Mingomba..Mostrou-se risonho e veio acompnhar-nos até à estrada.
A própria Florimda foi táo amável!
Abasteceram-nos logo de mimosa carne, indo ela prestesmente em busca de cana, para os meúdos sugarem!
Como é triste a vida e quão breve ela foge! «Qual sombra que passa ou folha que cai!» — João de Deus.
Primo Bernardino. que o nosso bom Pai se compadeça de ti e te leve para o Céu.
Silva Porto
30-1-1973
Episódios vários preencheram o meu dia. Em primeiro lugar, as aulas normais, havendo a registar a turma F, F, e também a M, E. .
A derradeira constitui o meu calvário, pois além de ser grande, possui alguns elementos, insuficientes . Expurgando-a um tanto, ficaria suportável. Vai isto ocorrer, no ano imediato: os mais indiscplinados são precisamente aqueles que menos sabem.
Por este andar, preparam, desde já, a sua reprovação, o que os obriga, sem dúvida. a ficar para trás. Têm-me dado, sem dúvida, tratos de polé à pobre cabeça. Mas,enfim.por minha irmã e restante família, aguento o martírio.
À data presente, já domino melhor a turma indesejável.,o que não impede que me ralem a paciência.
A Formação Feminina tem, decerto, elementos bondosos, muito compreensivos e harto dóceis que me encantam deveras, pela simplicidade e gentileza. de modos.
Entre todas, porém, há na verdade quem não seja correcta, pondo timbre e capricho em ser indelicada. Foi, por isso mesmo, que tive hoje uma arrelia, chegando a proferir dadas palavras, um tanto duras.
Começou d originar-se um zum-zum na aula , que já não tinha fim.
Eram vozes tonitroantes que ignoravam, nessa hora, a presença do professor, fazendo então de conta que não estava ali.
Aquilo enervou-me. Havia também, lealmente o confesso, um tanto ou quanto de vaidade ferida, mas a rigor uma profunda revolta, pela insensatez de que alguns discentes dão provas, uma vez por outra.
Aproveitarão elas a minha reprimenda?
Silva Porto
31-1-1973
Ainda ante-ontem, na Formação Feminina, ao princípio da aula.
Avisara,de véspera, que não queria a porta aberta. Algumas, contudo, por espírito raro de contradição, teimaram em abri-la,
não obstante haver eu dado uma dupla razão: a minha grave e recente pleurisia; a distracção da classe..
Gerou-se,pois, manifesta discordância, na qual uma das partes havia de submeter-se e ficar vencida.
No meu tempo de estudante, não era assim! Obedecíamos logo. Não se discutia.
Hoje, ao invés, habituou-se a juventude a impor sua vontade, sem atender a quaisquer razões ou conveniências. Contestar somente o que outrem diz e olhar para si! Demolir com afã, não cuidando em erguer! Achincalhar os outros, pura e simplesmente, sem dar razão àqueles que a têm!
Isto, assim, não é lealdade: muito menos sensatez.. Chamemos-lhe então pelo nome adequado: anarquia e derrotismo. Verdadeira canalhice! Que sociedade temos nós em germe, para o dia de amanhã?!
Dissera-lhes eu que, se fosse preciso, abriam as janelas.
Havendo bom senso e nobreza de sentimentos, bastaria uma vez, para chegar-se a um consenso. Mas isto, afinal, foi o que não houve. No dia 30, repetiu-se a mesma cena, Assim, o meu pedido foi como letra morta.
Enervei-me bastante como é de supor.
Desprezo lastimoso? Muito mais do que isso! Insubordinação, com laivos de ataque! Enfim, uma coisa horrível que não posso entender nem admitir!
No fim, pedi desculpa às meninas gentis, que as há na turma.
Segue-se um episódio que passo a mencionar, pela sua beleza e revelação de nobres sentimentos. No silêncio pesado que então reinava, alguém se levanta e vai fechar a porta.
Com pena minha não fixei a pessoa, o que me levou a fazer a pergunta: quem teve a gentileza? Silêncio, pasmo e surpresa encheram a sala. Uma negra de alma branca se levantara: chama-se Alzira
Como recompensa de tão nobre acção e do belo exemplo que deu a todas, aqui deixo o seu nome, para grata memória.
Pois é verdade! Aquela pequena, embora negra de pele, tem alma lavada, branca, generosa, de maneira tal, que chega a envergonhar algumas brancas.
Foi por isso exactamente que deixei registado aquele incidente que denota bem claro não ser a cor, mas antes a alma que se impõs e domina
Ao mesmo tempo, compreendi melhor o soneto de Camões à célebre Dinamene que era amarela..
Silva Porto
1-2-1973
Iniciamos hoje, em solo africano, este exíguo mês que é Fevereiro.
Em compensação, foi prolongado o mês anterior, pois dava sinais de não acabar.
Ainda eu, por ter ido à Metrópole, comecei a trabalhar, só no dia 15. Apesar disso, aquela parte final parecia não findar.
Agora, cá estamos, pois. no mês em que nasci e que, por isso mesmo, chama a atenção, de modo especial.
Quantas vezes, presumo eu, ainda antes de nascer, minha mãe pensara nele, contando já os dias, amorosa e inquieta, para regalar-se no fruto de seu ventre!
Até meu pai desejara ardentemente que Fevereiro chegasse, para ter em breve um filho varão, visto ser menina a irmãzinha Carmo.
Também eu quero a este breve mês, pois nele vi a luz, pela primeira vez e fixei,do mesmo passo, os olhos mais lindos que jamais, em vida, me foi dado contemplar.
Em Fevereiro, recebi,decerto, os primeiros beijos, apaixonados e longos, sinal incontestável, de um amor sem medida.
Fui então objecto de anseios e sonhos que povoavam largamente o coração de meus pais.
Ó entes adorados que a morte me roubou, há tanto já! Quem me dera enxergar-vos e retribuir, do modo possível, os carinhos santos que de vós recebi!
O vosso olhar permanece ainda, iluminando sempre a minha existência: não pôde a morte levá-lo com ela. A vossa dedicação anda sempre comigo.
O culto acendrado, que vos rendo em meu peito, é firme e sincero: tem visos claros de eternidade.
Aparecei-me, entes amados, queridos e belos, trazendo à minha alma o bálsamo da paz e o refrigério do santo amor.
Silva Porto
2-2-1973
Surpresa agradável que se torna, a breve trecho, em caso absorvente e deveras inquietante.Aparece minha irmã, envolvida em luto. Aquela mancha negra, com sorriso bem franco e passos nervosos, na mira de alcamçar-me, deixou em minha alma funda impressão.
Sem quaisquer preâmbulos, dispensáveis então, esclarece a que vem, o que me chocou, de maneira profunda.
— É por causa da Guida, atalha a mana Agusta. com uma sombra de funda melancolia,estampada no rosto.
— Que se passa então?
— Nem queiras saber! O que disse o Carlos Barros é de espantar! Não quer seguir as tradições da família!
Já não pude ouvir mais! Secou-se-me a boca e senti no peito opressão de tal ordem, que estive a sufocar! Alterou-se o respirar, e os próprios movimentos do coração ficaram em desordem.
Ver a mana apoquentada e o cunhado em fúria; a pequena que adoro objecto imediato de prováveis sevícias, tudo isso me afectou, em grau elevado.
Procurei logo um tanto de sossego, embora aparente, para não contristar a pobre de minha irmã!
Desencantei processos, arranjei desculpas, facultando. em seguida, a minha intervenção, para ser prestável e moderador.
—Que tencionais fazer, em tal conjuntura?
—Levá-la já para o Chitembo: assim o pai determina. Já não tem esperança: apenas um castigo, bastante severo poderá curá-la.
Aqui, fiz eu uma pausa longa, enquanto fui dizendo: a pequena vai já para os 18. Ficar somente com o segundo ano… traumatizada para todo o sempre e cheia de complexos,!...
Resolvo eu o caso. Deixai-a comigo.
Assim aconteceu.
Silva Porto
3-2-1973
Dormi no Chitembo e vi os meus. Não foi uma visita em sentido rigoroso: vinda forçosa, para trazer minha irmã Agusta que precisava ingressar, no mesmo dia.
Foi logo motivo de grande regozijo, pois quando sucede alvoroço-me todo, nadando em gozo.
O rodar do Taunus, pela estrada nova, em direcção à vilória, faz-se por modo leve , jovial e prazenteiro. Nenhuma via de Angola me parece mais bela; nenhuma outra encerra para mim tanta graça e encanto
Aquilo, na verdade, é pura sedução! Caminho para onde? Por que estremeço e um mumdo novo se concentra em mim, sentindo, uma vez mais, que a vida continua? Pois se eu caminho para junto dos meus!
Se voo célere para quem me compreende! Se ali há sangue do mesmo padrão!
Não fui eu gerado no mesmo ventre? Objecto constante de iguais carinhos! Centro e alvo de imensa ternura, em que foram pródigos os os pais extremosos!
Ao largo ainda. tento enxergar o pinheiro do quintal, sentinela viva que acena de longe e alegra prestes o meu coração. Ali bem pertinho, à sombra protectora deste velho amigo. sob os ramos extensos e acolhedores, vivem pimpolhos que dão vida e cor à vivenda do Chitembo
Pinheiro bondoso, companheiro fiel dos entes que estremeço, nesta Angola imensa, em que tantos mourejam, não me faltes jamais, enquanto viver e fala-me sempre, com desvelo e carinho daqueles que eu amo!
Vela por eles, defende-os pronto de vendavais temerosos e anuncia risonho a quem passa junto que debaixo de teus ramos e à sombra amiga vive gente honrada que te acarinha,embala e protege. l
Silva Porto
4-2-1973
São 8 e 20, na clara manhã que todo me inunda de luz e amor! Como eu te adoro, ó luz tropical do céu imaculado, feito de prata! Luz e calor! Estas realidades, assim maravilhosas, alertam corações, destilando no peito o suave bálsamo, que logo inebria.
Escrevo a Nascente, em mangas de camisa, cheio de euforia, com projectos de sonho! À secretária, rabisca seus traços o Carlitos Fonseca que não é águia em matéria de Desenho.
Muito aplicado, vence as dificuldades, conseguindo em breve o 3º ano, aos 13 de idade.
A Guida, com mais 4, vai só no 4º, sem esperanças fundadas, para vencê-lo.
Eu então escrevo o meu Diário, após noite mal dormida, em que a pequena foi realmente objecto de mil cuidados e grandes canseiras.
A vida na cidade e as más companhias que agora a cercam; os fracos resultados e a doença do pai: o futuro incerto e os males que a afectam, foi tudo isso causa bastante, para sangrar e a cabeça me doer.
Gostaria, na verdade, que fosse mais prudente na escolha das colegas. Nem todas elas são recomendáveis, para convívio.
Informações, ontem recebidas, deixaram-me em brasas. A colega que a segue é leve da cabeça, descontrolada e harto mundana, só pensando em gozar. Por causa disso, recusam hospedá-la. Até uma vez fugiu pela janela, indo passar a noite a lugares suspeitos
Quando os pais da nossa forem sabedores de quanto se passa, qual será logo a sua reacção?! Nem ouso, desde já, pensar em tal coisa!
Hoje, é Domingo. Faz 8 dias que houve dissabores. Um tal gaiato de Nova Lisboa…
Silva Porto
5-2-1973.
"Ler a Cartilha " seja a quem for é papel ingrato que a ninguém seduz. E eu tenho que fazè-lo, a respeito da Guida, e actuar o mais breve possível. Entretanto para surtir o efeito desejado e ganhar a confiança, quanta serenidade e fino tacto não vou precisar?1
Serei eu capaz de falar e agir, em tais condições? Lograrei, de facto, o meu objectivo — corrigi-la eficazmente, afastando.-a em breve do que ama e preza, sobre todas as coisas?!
A companhia da colega Xanata, a que anda atrelada, os passeios e desvios com gente suspeita não me agradam!...Que dose
imensa de arestas eu tenho de limar, sem que provoque exaltação com o meu agir!
Que reacção irei encontrar?!
Por outro lado, o pai da meúda é que não se conforma. Tomei eu agora a responsabilidade, mas ele não sossega. Se algo aborrecido
vier a suceder,há-de então virar-se contra mim próprio. Que vou responder-lhe?!
Encontrarei palavras que desoprimam, de maneira cabal,o peito do pai?!Haverá lenitivo, para tanta amargura?! Um pai caprichoso que se orgulha da filha e recebe depois, em compensação, punhaladas que matam?!
Como está carregado o horizonte da meúda! Quanto a estremeço e como vivo a fundo um possível drama! Que amargos instantes, ao julgar do seu porvir! Quanto receio experimento agora e que horas tão más para a alma atribulada!
Que vai reservar-lhe o incerto futuro?!
Pobre criança! Se ela reflectisse! Pudesse avaliar quanto nós sofremos, pelas suas atitudes!
Silva Porto
6-2-1973
Abraçados na morte, esqueceram a dor que os havia prostrado. Aquela pequena era, de facto, orgulho e esperança do
.pai adorado .Retrato perfeito de entes queridos, ficara na Terra a lembrar o passado, constituindo elo a reatar dois mundos: o dos vivos e o dos mortos.
O lar para ela, o mesmo era, na verdade, que embrenhar-se a fundo, numa época longínqua de gratas recordações. Por outro lado, a meiguice da menina, a afeição arreigada ao autor de seus dias, haviam feito dela o móbil supremo da actividade paterna.
Aquela meúda polarizava. a sua vida: quanto fazia era por amor dela e do seu futuro, amado e risonho.
Canseiras e projectos, economias e lucros, sacrificios e renúncias… tudo achava pouco esse pai extremoso, relacionando---se directamente com a filha adorada.
A vida, assim, deslizava suave , com a brisa do amor a impelir a corrente.
Mas o dia tremendo chegou, por fim,e não demorou a fazer sentir-se. Sonhos de grandeza, cálculos sem fim, um mundo rosado, belo e sugestivo que arquitectara seu pai… tudo logo ruiu estrondosamente.
Foi, creio eu, em Sá da Bandeira. Alguém houve ali, mal intencionado, que resolveu, em hora má, quebrar o encanto.
O malandro, afinal, conseguiu o objectivo, levando a pequena à desonra que avilta. Volvido algum tempo, não pôde ocultá-lo ao pai idolatrado e, debulhada em pranto, desabafa a sua angústia: Querido paizinho, ofendi-o gravemente e afrontei o seu nome.
— Filha adorada, não posso resistir! Vibraste já, por tuas próprias mãos o golpe mortal!
A estas palavras, ajunta pressurosa: — Também eu não! Acabemos, pois!
Abraçados os dois ( afinal, eram três! )caíram decididos no silêncio da morte, para o mundo terreno.
Silva Porto
7-2-1973
Em casa, mais um, de pai descomhecido.
Quem visse a pequena censurava-lhe as maneiras. Livre em excesso, desenvolta e leviana, acompanhava, sem rebuço, fosse com quem fosse.
De noite ou de dia, com rapazes sem norte admitia liberdades, que não honram ninguém. " Não há mal nenhum ",— atalhava logo ela, se alguém a avisava.
Que interessa que eu fale, ria ou graceje. Virá daí mal para o mundo em que vivo?!
Este e outros ditos, com grande insensatez, eram sempre habituais, se lhe faziam reparos. " Olha àgora! "
Falar, a capricho, com os colegas! Ir para aqui ou então para além!
Que vai ao mundo.por causa disso?! Eu não tenho cabeça?! Já sei o que pretendo e aquilo que não convém!
Por outro lado. conheço os rapazes. Eles não sáo maus! Amigos de
gracejar… às vezes brejeiros, mas não passam daí!
Demais, eu também sei como devo orientar-me, que a idade já conta,
Abusos?! E para que servem os braços musculosos?!
A família, coitada, sofria em silêncio, vendo sem fruto seus grandes esforços
Previa dissabores, recusando-se, no entanto, a admitir o pior. Mas eis que isto chega, por fim.
Sinais de gravidez eram já bem claros, vindo a mãe a suspeitá-lo,
primeiro que ninguém.
Por esta razão, abeirou-se da filha, com ar magoado e um tanto severo, dizendo entre lágrimas: — Filha minha, já sei tudo o que vai ocorrendo!O mal está feito e já não tem remédio. Tudo está consumado!
Impõe-se agora que digas quem foi, para se apurarem as responsabilidades
Isso queria eu, mas a verdade.é que não sei quem foi! Drogaram-me, primeiro! Não tenho ideia que seja clara. Nem mesmo sei quantos houve no caso!
Silva Porto
8-2-1973
Tendo chegado há momentos, entrei na Técnica,aguardando ali as 7 e 30, para ministrar a aula nocturna ao 4º R A.
Hoje, senti-me feliz, podendo afirmar que há muito já,não tive um dia comparável a este. Mas " não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature,"como diz o rifão.
Ora, para não haver excepção alguma, tinha de rematar com dor e amargura. Fui ao número 25 da conhecida Rua Salvador C.de Sá levar a nossa Guida que se mostrava ditosa.
Como é já costume velho, acabava de beijar-me,para depois sair do automóvel. Sustentando o gravador, abriu assim a porta do carro, estendendo as pernas, para se ausentar. Nisto, julgando talvez que o piso era plano, ficou entalada entre o veículo e o passeio lateral,caindo ajoelhada e fazendo escoriações.
Aturdido e pesaroso, fiquei sozinho, em frente da Escola , sem área pera nada!
Se fosse válida e bem escorreita, não me impressionava. Entretanto, saber a fundo a história triste da sua vida e ver-lhe a perna esquerda um pouco atrofiada; descortinar-lhe no rosto um ar de melancolia,.., isso é, realmente, o que me aflige, em extremo grau.
Decorrera tão suave o final deste dia! Ela prazenteira, sorrindo à vida,,, e eu satisfeito, de a ver feliz!
Hermética e firme, hoje foi diferente ! Deu-me a ler, sem reserva, os seus papéis íntimos… Conquistei-lhe a confiança!
Falou-me do Capitão, dos belos passeios … mostrou-me poemas de sua autoria e desenhos belos que ela já fez e guarda secretos.
Retrato perfeito de minha mãe, enleva-me o sorriso e peneliza-me seu choro amargo.
Silva Porto Manhã
9-2-1973
O aperitivo de almoço foi hoje muito fraco: ministrar uma aula, como é habitual, à turma irrequieta.
O que está em foco é o Comércio A,1º ano de Inglês. Vinte e sete meninas que não direi revolucionárias ou menos ainda, mal educadas.
No entanto,com o sangue a ferver - dizem elas ser fadiga - constituem para mim fonte de paciência e auto-domínio.
Lá fui aguentando, com fraca reacção, pois é fim de semana e tenho os nervos algo desafinados.
Mais a implorar do que a exigir, bem pouco lucrei.
No fundo, pouca delicadeza, egoísmo acentuado!
Só uma explosão, violenta e sacudida faria emudecer tais bocas sem freio.
Será cansaço de uma parte e doutra? É natural, mas perdi o a petite e dói-me a cabeça.
A Vanda Maria, a Manuela Ferreira e outras que tais não podem calar-se. Assim, em grupos, não são capazes.Que fazer, pois, nesta conjuntura?
Pôr uma fora e marcar-lhe falta , é remédio santo, mas custa-me fazê-lo.
Persistindo no acto, que outro caminho terei a seguir?!
Estando ao quadro,encho-me de giz,fornecendo exemplos e mostrando também processos diversos.
Aproveitarão elas? Ao menos,cumpro o meu dever!
Em jeito de graça, disse eu à turma: apenas uma coisa me correu hoje bem.
Muito admiradas, quiseram saber de que é que se tratava.
Sempre lho disse: a plica dum " i " que não tive de fazer, pois havia una covinha , branca e redonda que fez as suas vezes.
Silva Porto-arde
9-2-1973
Julgado e punido por tribunal militar. Dez anos cumpridos, restando só dois. A jovem do cabaré.
Foi no dia 4, em tarde calmosa do mês corrente que falei com ele, na Prisão do Capolo.
É um rapaz equilibrado, polido e gentil que procura no diálogo efeitos benéficos.
Esta foi, na verdade, a impressão que me ficou. Não sei o nome ainda, no entanto, se o vir, seja entre muitos, distingo-o logo.
É claro na exposição, raciocina habilmente, sustentando a conversa, a que dá um certo brilho. Por esta razão, deambulámos ambos, tagarelando, por largos minutos, na cerca da Prisão.
Logo pertinho, cintilava constante o olho atento do Vigilante . .
Após algum tempo, relatou a sua história.
Quantas vezes já, terá feito o mesmo?!
É chapa gasta que não desperta qualquer agrado nem há-de suscitá.lo! Apenas ele é que vive o passado, achando interesse em recordá-lo
O Tribunal Militar! Locução pesada e geradora de enormes sustos! Já lá vão 10 anos!
Como soldado, aproveitara o ensejo, para ir ao cabaré. As mulheres não faltam, nestes sítios infamados. Levado pelo ciúma, puxa de uma faca e agride o parceiro
Este é logo internado, para curativo. ficando são e escorreito, ao fim de algum tempo.
Ocorre então o julgamento. Ela, por sua vez, visita-os a ambos e suplica vivamente que a não metam no processo.
Silva Porto-Capolo
10-2-1973
Um dia cheio! Alvoroço! Inquietação!
A Xanata, colega da Guida, é jovem suspeita e, para cúmulo, inútil e drogada! Pretenderá ela encaminhar as colegas no mesmo sentido?! " Cabra gafada quer gafar as mais! "Assim diz o prolóquio.
O grande problrma é lograr separá-las!
Evidente se torna que, a ferro e fogo, tinha logo de ser feito, mas eu não quero assim. Prefiro. já se vê, como é natural, que tudo se faça em bom entendimento, franqueza e lealdade. Prefiro obter a confiança de alguém, a levar tudo à força e de escantilhão.
O certo, porém,é que eu não suporto a dita jovem com pessoas amigas ou de família.
A próxima reunião a fazer no Liceu, vai já decidir o futuro de alguém, num sentido negativo. É bastante provável. Ora, de maneira nenhuma, admito esta ideia, lembrando-me, a propósito,ser
causa disso a referida colega.
Grande alívio seria a mudança de lugar. Com a separação acabava-se o veneno!
A droga! Que nome horrendo e que medo eu tenho que alguém de família seja atingido!
Olhando para a Xanata,vêem-se no rorto os vestígios lamentáveis de uma acção deprimente! O seu fosco olhar, esgaseado e vago, não deixa incerteza: a sua cor pálida e funda abulia; falta de sono; deficiente acuidade; tendência para o sonho; desobediência, mentira e o mais…
Receio não me falta. em ordem à Guida, por causa do ambiente.
As meninas drogadas são veneno mortífero e escória da sociedade. Fugir desta gente é fugir do diabo!
Os Tribunais devem ser rigorosos, em casos relacionados com a terrível droga!
Silva Porto
11-2-1973
Ouvir e escutar sem repreender.É esta a grande norma, sugerida por amigos e que eu punha em prática,desde há muito já.
De facto, censurando alguém, à medida que se abre, consegue-se apenas um efeito negativo.
À maneira da rosa que se fecha hermética, ao declinar do Sol,
de igual modo a juventude, vendo o sol da confiança a declinar ante si, nada mais traz à luz.
Regra de ouro fino e alta sabedoria a que fica exarada!
Depois de ouvir, com toda a serenidade, para desvendar o que há de mais íntimo, é a vez de orientar, com muita sensatez, não causando apreensões nem abrindo feridas.
O sol da alegria, a luz da confiança, e o mel do afecto hão-de então derramar-se, em nosso redor, para que assim aumente o doce bem-estar e a boa harmonia.
A nossa Guida começou já de abrir-se, revelando, afinal, espírito novo.
Deixou de ser hermética,, ao menos em parte. Entretanto, o ambiente que a cerca é-lhe desfavorável. O que vê à sua volta são maneiras livres, pessoas descompostas e atitudes impudentes.
Libertinagem autêntica!
Posso eu ficar parado, em frente disto?
À força, porém, nada quero intentar
Meios suasórios. afecto, dedicação, não esquecendo. já se deixa ver, a compreensão. É este o caminho.
Violência irritante, incompreensão, severidade em excesso, castigos físicos, maneiras arrebatadas ou então ríspidas, corte de relações… tudo isso condeno, por inaceitável, deprimente e vão.
Silva Porto
12-2-1973
Conversa longa, há-de ser talvez, a que vai realizar-se logo de tarde. A nossa Guida foi à Bela Vista, para se integrar no chamado "encontro."
Rapazes e meninas, procedentes uns e outros de várias regiões, lá se encontraram, para rezar em comum e apresentarem também problemas pessoais.
"Encontristas" é o seu nome.
Movimento eclesial tem a aprovação do Bispo diocesano e destina-se, ao que sei, a duplo fim: religioso e humano.Ouvem-se uns aos outros, fornecendo achegas,para ajudar-se mutuamente: experi- ência de todos, ao serviço de cada um.
Preciso é, no entanto, que haja sinceridade na exposiçao, não faltando franqueza, mútuo respeito e camaradagem.
Se gostar do Encontro, permito-lhe logo integrar-se no Movimento
Pode ser novo rumo nos camimhos da existência.
Quanto seja promoção é digno de apreço. Censurar por sistema o que não se conhece, pelo mero facto de ouvir alguém falar desfavorável, é prova bem clara de grande insensatez.
Vejamos primeiro, com os nossos olhos e ouçamos também com os nossos ouvidos. Depois, em juízo sereno, equilibrado e sensato, já podemos, com certeza, emitir opinião.
A chapa gasta " dizem "é pouco ou nada para coisas sérias.
Meçanmos, primeiro, a responsabilidade e deixemos correr o que vai pela rua, sem ligar importância.
Será então este o caminho exacto da libertação?
A avozinha, lá do Céu.não irá insinuando o novo caminho, para una vida, muito mais bela?
Com certeza aprova e logo abençoa, pedindo fervorosa ao Senhor das Mercês que venha fertilizá-lo, com a sua graça.
Silva Porto
13-2-1973
A rola curiosa que sai da Prisão, voltando a ela, passados alguns dias.
Foi o Sequeira, plntor recluso da Colónia Penal, quem me informou, sobre este caso.
Bela ave graciosa fora domesticad , acompanhando os reclusos, à maneira do canário.
Andava de mesa em mesa, no grande refeitório; vinha com eles para a cerca exterior, onde saltitava, no meio da relva; finalmente, ao recolher, seguia também para o interior.
De vez em quando saía, desaparecendo, o que entristecia os seus amiguinhos que a lembravam sempre com muita saudade.
— Quando é que voltará a querida amiguinha?! Prefere o ar livre e os campos verdejantes, onde os ramos ensombram, tornando assim fresco o novo ambiente?
Quererá ela antes a companhia grata de outras avezinhas que parece constituírem o seu meio natural?
Estas perguntas e outras ainda faziam desgostosos, deixando nos espíritos um vazio tremendo que nada preenchia.
Resposta para elas coisa era, decerto, que não encontravam.
Alguns dias, porém, eram já volvidos, quando cheios de alegria, viram chegar a hóspeda amada.
Como explicar este facto surpreendente?!
Que responda quem souber! Eu, por mim, não encontro, de monento, justificação.
Que é que balançará a cara liberdade que os outros passarinhos tanto apreciam?!
De ramo em ramo, por cima de nós,ágeis e ligeiros seguem a capricho, sem que nada os perturbe. Chilreiam contentes a fazer o seu lar. onde a vida se desdobra em filhos que estremecem.
Haverá, aí no mundo, algo que os iguale? Por que é que voltou a rolinha solitária? Apreciava.por certo, os carinhos dos presos.
Instinto admirável que às vezea sobreleva ao dos seres humanos, deixando-o na sombra.
Silva Porto
14-2-1973
O recluso evadido qe morre de joelhos.
Dialogando no capolo, relatam os prisioneiros, a cores muito vivas, o que foi realmente a sua existência.
Escuto paciente, mostrando surpresa, sem o que nada valia a minha pessoa e bens alcançados.
O que gera simpatia é querer e amar, vivendo em cheio os problemas dos outros. Sentir bem fundo sua imensa dor; partilhá-la tanmbém; imergir a valer na alegria que os afecta… eis o segredo para abrir corações.
Então é gostoso ouvi-los desenrolar essa fita animada, em que surgem ao vivo histórias reais.
Por causa dum filme, discordou-se na Prisão, visto ser desbobinado ante os Capolenses, recusando-se a mostrá-lo aos pobres detidos.
Não era, diziam eles, um acto de revolta e muito menos, uma atitude subversiva. Queriam somente ficar iguais , assistindo ao filme que gerara a questão,
Discordância daqui, argumento dalém, o caso agravou-se até que dois deles tentaram evadir-se, colocando mal o guarda de serviço.
Este. por má sorte, apercebendo-se do facto já tardiamente, acorreu logo em busca dos presos que levavam um carro.
Por grande infelicidade, o veículo despistou-se morrendo logo um, no choque violento, contra um obstáculo. O restante caiu de joelhos, implorando compaixão.
Nesta postura, foi morto a tiro, lamentando os reclusos o acto selvagem, prepotente e bárbaro.
Sincero confesso, deveras emocionado que mal pude então reprimir as lágrimas
Casos desta ordem são de lamentar, por serem factos de lesa-humanidade.
Silva Porto
15-2-1973
Foi Domingo passado.
Em conversa amena, obtive de alguém diversas noções que passo a contar. Tratando-se afinal de gado suíno,não vou agradar a todos os leitores, por causa do mau cheiro, mas é perdoável, atendendo ao lucro que deles provém
Vejamos então em breve resumo o que pude guardar.
Assisti pessoalmente.à compra de três fêmeas, ainda bastante novas, e também à de um macho da mesma idade, pagos ao quilo.
Com intento na reprodução,venderam ali a 18$00, elucidando que era costume ser pago a 20. Para engorda ou talho, somente a 15.
O macho referido, com dois meses e meio, já pesava na altura
43 quilos. É normal vendê-los mais caros.
Para reprodução, deve ter o macho à volta de um ano; a fêmea correspondente, 7 a 8 mese, com um peso regular que orça pelos 100 ou 120 quilos.
Durante o período que abrange um ano, cria a fêmea normal, a espaços regulares de dois meses e meio, sendo a ninhada entre 7 e 10 filhos.
Dizem os peritos que, sendo eles mais de 9 ou 10, algum fica enfezado.Vi no Capolo ninhadas com 9, em óptimas condições.
Para erguer uma pocilga, convém desde logo adoptar este esquema: corredor ao centro e, de cada lado, uma boa pocilga. O lastro de cimento inclinar-se-á para o lado exterior, dando escoamento à água da lavagem, feita diariamente.
A higiene constante vai formar a base do rendimento porcino. É conveniente usar a mangueira.
Silva Porto
16-2-1973
"Burro morto, cevada ao rabo"
Vem isto a pêlo, no mês de Abril, por causa do interesse que a turma E M está revelando pelos assuntos de tipo escolar.
Chamei o Jorge e pelo que mostrou. deduzi claro que nada fez, nos meses que passaram. Há dias já , notava-lhe realmente desusada atenção, oferecendo-se, às vezes, para ir ao quadro.
Evidentemente, revelou a ignorância, mas noto progresso nos últimoa assuntos. Por isso mesmo é que eu lhe disse: estás vendo, Jorge? Se tivesses andado por modo igual, desde o mês de Novembro, serias agora um aluno seguro.
Sorriu o jovem, às minhas palavras, em ar de aprovação e concordância. O mal de muitos é este precisamente. Deixam correr
insensatamente, julgando lá na sua que voltam a recuperar o tempo esbanjado, Uma vez perdido, não voltamos a reavê-lo!
Vamos ainda a tempo? Nunca é tarde para começar, voltando à carga. Ninguém o contesta! Aquilo que se perdeu já não é recuperável. Agora, olhar somente para o futuro e fazê-lo render.
De que vale, na verdade, alimentar o burrinho depois de morrer?! Nada lhe aproveita!
Enquanto a esperança for a nossa alavanca, há um feixe de luz, aclarando a via por onde seguimos. Basta querer e pôr mãos à obra.
Vem a propósito uma frase da Escritura:" Àquele que ama a Deus tudo concorre para seu bem ".
Silva Porto
17-2-1973
Nove e cinco.
Sentado agora à minha secretária, volvo o olhar a longa distância e diviso, no extremo, um céu pardacento. Desabou sobre a terra uma chuvada abundante, razão pela qual o chão é lamacento e os próprios caminhos ficaram intransitáveis.
Ninguém se avista, ao longo da rua.
Os mesmos animais, pressentindo logo o medonho vendaval, recolhem aos abrigos, onde permanecem imobilizados. Aguardam
ali, de olho espevitado, que o céu aclare, para saírem.
Entretanto, a negridão circundante envolve agora tudo. Infunde tristeza e gera depressão esta espécie de tempo!.
Durante a noite, horrendo temporal,acompanhado a relâmpagos, com trovões em resposta!. A chuva habitual fez também aparição e pelas três horas da madrugada, parecia um dilúvio!
O Seminário, onde agora resido, oscilava pela base, dando a nítida impressão de ficar sepultado, nas ruínas trágicas do enorme temporal.
Ruídos alarmantes, pelo céu além, durante o sono frouxo, que
fica só a meio. Como repousar, reavendo energias?! Impossível!
Abatido,pois,e desconsolado, vejo-me só, neste exíguo quarto , prosseguindo forçado, na mesma solidão que me tem envolvido.
Para quê tudo isto?! Para aniquilar-me, a pouco e pouco, vendo a existência fugir de mim, enquanto invejo, nos outros mortais,
o bem que não tenho nem tive jamais.
Se tivesse escolhido! Mas não! Circunstâncias daninhas agiram sobre mim, razão pela qual detesto, a valer, os caminhos da vida.
Silva Porto
18-2-1973
Preparação imediata: os Pontos de Frequência
Tempo de frenesim este que passa! A 20 do corrente, iniciamos as Provas, relativas à Páscoa, embora o Domingo esteja um pouco longe.
É curiosa a nossa juventude! Vê passar os meses, dissiparem-se os dias, sem nada ligar ao preparo das aulas mas, quando se aproxima a hora de contas, andam já todos como borreguinhos, dando vontade …
Por que não trabalham, dia após dia?! Não! Brincar e namorar
… viver descuidados, pensando apenas em gozar a existência!
Os pais que trabalhem! Eles que mourejem! Importa lá que se esfalfem e matem ou deitem pela boca os pulmões inteiros?!
Passear amiúde, encontrar A ou B, ter dinheiro à farta e não sei que mais!
Chegada esta quadra, em que vão dar provas, sobre o lucro real do suor e lágrimas de seus progenitores, mostram-se então deveras perturbados, ansiando vivamente por tirar boas notas,sem as terem preparado!
Não é isto insensatez?! Não é impudor?! Não será, direi até, sintoma claro de fraqueza mental?!
Que valerá esta gente, no dia de amanhã?! Para que servem, afinal,
cidadãos preguiçosos, que vivem e vegetam,sem ambições?!
Deixar crescer o pêlo… revirá-lo no pescoço!...
É bem pouco tal coisa! Subir a saia ou ainda o vestido, revelando um impudor que nem as pretas de agora são capazes de expressar! Tudo isto é vergonhoso e não sei a que leva!
Melhor: sei muito bem que é este, decerto, o caminho íngreme
que traz a desonra; via aberta e larga, para vergonha e degradação.
Ainda há, no entanto, quem lhe teça elogios e diga levianamente que não há crise de juventude! Quererão entrujar-me?! Não podem consegui-lo! Os factos de agora são eloquentes
Deitarem poeira no meu rosto precavido?!
Andai cá, meus amigos: esta juventude, tal qual eu a vejo, com os próprios olhos, não vale,realmnte a ponta dum cigarro!,Só demolir e
nada erguer! É muito fácil viver assim!
Juventude, estadeias pêlo e nada mais!
Que ofereces e dás àqueles que te seguem? Ruínas somente!
Nem tudo é assim! Pudera! Valha-nos isso!
Silva Porto
19-2-1973
Em 19 do mês corrente, lá por terras da Guarda, em Vide-Entre-Vinhas, nascia um petiz a quem a sorte ingrata não ia fadar.
Amado em extremo por seus progenitores, foi logo objecto de solicitude que o tempo não barrou.A mãe, então, essa era doida pelo seu menino a quem iria consagrar afeição especial, até ao fim da vida,.
Acompanhá-lo-ia a todos os lugares, e longe dele, não teria descanso.
O filho mimoso compreendeu este afecto e soube compensá-la, Nunca lhe daria o mais leve desgosto,sujeitando-se a ela, de modo cabal. Adeus, liberdade, vida e ventura!
Merecerá tanto a mãe que nos cria?
Sei bem quanto vale quem nos dá o ser, o leite e a alegria, mas que não tem jus a tão grande sacrifício. Estou agora sem dúvida, plenamente convencido
É pura verdade que ainda hoje não dou a renúncia por mal empregada. Apesar de tudo, sinceramente confesso que foi superior às minhas próprias forças.
Enveredei por "certo caminho" só por causa dela e por ele vou ainda, pela mesma razão.
Renunciei, pois, à personalidade, repeli a vocação, engenhei para logo uma fonte perpétua de funda amargura. e desalento.
Falta de apreço por aquilo que sou? Não é isso, afinal!
Respeito, sim, admiro e bendigo os que foram chamados por Deus e pelos homens
Não sendo como digo, é um fardo a vida! Enorme e dura tal contrariedade! Que tremendas decepções! Que danos incalculáveis!
O desespero amargo da solidão!
O meu feitio, carinhoso e sensível! Necessidades de toda a natureza, a que nada jamais pude reponder! Valerá bem a pena viver deste modo?! Quererá Deus um ser constrangido, Ele que deu à criatura vida e liberdade!
Que amarga sensação experimento eu de agonia e desconforto! Faz hoje precisamente 55 anos. Que lucrei de viver?!
Sem Deus nem Céu,valeria muito mais pôr termo à vida.
Falhada totalmente, na esperança terrena, sob as férreas cadeias do tal celibato, incompreensível, desumano e sombrio ( quando não abraçado voluntariamente), que pode resultar senão desespero?
Valerá inda a pena a vida insatisfeita que vou arrastando, ingloriamente?!
Para este mundo foi ela em vão, mas resta ainda a esperança fagueira da vida eterna. Se ganhar o Céu, vale a pena viver, em tormento que seja!
É o que me resta, afina!l de contas! Cinquenta e cinco anos de nulidade absoluta! E o melhor da existência já passou e não volta!
Haverá razão, para comemorar a data aniversária?!
Só a Guida e o Carlitos vivem na cidade.
Se eles ao menos fossem amorosos!
Silva Porto
2o-2-1973
Rescaldo perene de uma fogueira.
Mais um ano se evolou, nesta fuga veloz, assaz precepitada - a vida temporal. Nem eu, realmente,sei como foi! A verdade, porém, é que dei mais um passo, abeirando-me do fim. Camimho sem descanso, já de noite, já de dia, quer eu assinta quer não, seja grato ou não seja.
Muitos já partiram: alguns dentre eles mais novos do que eu. Isto é que faz despertar-me do longo sono, em que estive mergulhado. Cinquenta e cinco anos - tal a folha da existência, em que as letras brancas são, a rigor, de número escasso.
" Rescaldo de uma fogueira!"
A que aludo, nesta hora? À fogueira da vida em que vivi mergulhado, para não me libertar e ceder, por fim.
Destrocei o meu cérebro a estudar brutalmente, sem pedagogia, por ninguém me ensinar. Por que não tive amnésia nem eu sei explicar!
Obrigavam nesciamente a decorar grandes listas, já de significados, já de inúmeros afixos, para esquecer em breve.
Como não houve prisão para tais assassinos?!
Para encontrar somente uma palavra latina, folheava o dicionário, durante uma hora ( isto , nos princípios ), causando-me tédio até ao enjoo.
Que me ofereceu a vida terrena, ao fazer tal frete? Por que não corri fora, até ao ar livre, para desenjoar?! Como e para onde?
Quem não tem asas não pode voar!
Queimei a liberdade, o amor, a felicidade, sacrificando tudo a conceitos humanos, tantas vezes errados! Abandonar a liça era traição, como diziam néscios.
Não era isto um abuso infame, um erro crasso e abominável?!
Pregando tal doutrina, as crianças ingénuas que em tudo viam beleza e julgavam sagrado quanto lhes era dito, sobre a vida e a morte, qual seria o resultado?
Atraiçoar a Deus… ir para o inferno e ficar desgraçado, para todo o sempre! Era de espantar, se fosse Deus a exprimi-lo!
Mas eram os homens que tanto se enganam! Com isto,pois. foi-se o amor e logo a ventura que não podem existir em peitos amachucados.
Escolher livremente o caminho a seguir, sem qualquer insinuação é via direita e bem aceitável que se percorre de gosto.
A minha vida, portanto, arrastou-se em grilhetas que me feriram o corpo sem poupar a allma..
,Agora é tarde, já muito ao destempo., mas ergo o meu protesto e clamo aos vindouros que respeitem sempre a liberdade alheia, para não criarem seres revoltados nem fazerem infelizes os seres mortais.
3Silva Porto
21-2-1973
Oito menos 1o.
Aguardo aqui, na sala de professores, que me sejam entregues os Pontos de Frequência.´É o ajuste de contas que, na realidade, são pouco temidos pela gente de agora.
.Outrora, me lembro, era tudo isto bem diferente! Estudava-se a fundo, sem perder tempo nem sequer paciência, vencendo obstáculos e logo transpondo sérias dificuldades.
Hoje, afinal, nada se teme e nada se faz.
Em nossos dias, quem tem receio são or professores. Quanto aos alunos nada eles temem… nada receiam. Que lhes corra mal não apoquenta! Preparar-se ou não interessa bem pouco à gente da
época.
Entretanto, faz-me pena que a nossa juventude pense erradamente, porquanto, mais tarde, ela há-de colher o que tiver semeado
Nesta inconsciência do dever a cumprir; neste menosprezo de responsabilidades, é uma confusão que muito preocupa um espírito
recto qual é o meu.
Neste momento, vigio as frequências da Formação Feminina. É um grupo numeroso, formado por brancas, pretas e mulatas.
Estão concentradas, na mira de interpretar um belo soneto de João de Deus. Olho para elas e nenhuma se apercebe.
A Ana Paula fica de fronte e vai mastigando não sei o quê, à medida que escreve. Parece-me até que os seus movimentos estão
sincronizados.
A menina Alzira nem parece deste mundo; a jovem Antónia sorri para a folha; à infeliz Elsa dói-lhe a injecção; a Maria Amélia olha espavorida para as linhas do soneto; a pacata Eunice fica indiferente, não se lhe dando que a maré vá crescente ou então minguante.
Silva Porto
22-2-1973
O celibato e eu.
Há celibatários que o são por necessidade. Terão eles vantagem,na
triste solidão em que vivem mergulhados? Nenhuma, decerto, como é fácil de ver. Quereriam casar, presumivelmente,
Entretanto, faltando oportunidade, ficaram-se pasmados, ao longo dos caminhos, olhando com inveja para os felizardos que a sorte bafejou.
São deveras inditosos , pois foram repelidos!
Celibatários forçados, arrastando mesquinhos o fardo existencial e soltando ais fundos que jamais acharam eco fosse em quem fosse, a ninguém interessam.
Algumas vezes são industriosos: votam-se a uma causa de tipo religioso, valorizando a vida que parecia insípida. Estes,afinal, não perdem tudo. É que, realmente, se falhou o jogo, cá pela Terra, ganham certamente a segunda cartada que é mais valiosa - o Céu da ventura.
Ao lado destes, há os celibatários por imposição.
Estes é que na verdade são de lamentar, por mais infelizes.
As circunstâncias do meio ambiente ; os valiosos dados socio-
-económicos e as dificuldades sempre crescentes obrigam-nos logo a seguir um caminho que não era indicado.
— Que desejas ser, meu rico filho? - inquiria ansiosa a devota
mãe.
—Professor, minha mãe.
Fixando então,com amor e enlevo ,o fruto do seu ventre, diz em seguida, num tom magoado, arrastando a voz: — Para isso não temos!! Faltam os recursos! Se fosses um dia para o Seminário!...
A ideia fica anichada e vai tomando vulto.
Chega, não raro, a tornar-se obsidiante. É a única saída! Há-de aproveitar-se! Quanto aparece vai ser conducente ao mesmo fim.
O pequeno ingressa, rodeando-o sempre a famíla solícita, de mil e um cuidados, não perca a "vocação: "vigia-lhe as companhias;
isola-o do mundo; fala-lhe até de alegrias sem par…
Depois o Seminário continua porfioso o grande sonho da mãe.
Silva Porto
23-2-1973
(cont,)
O rapazinho ingénuo, bem inclinado e harto submisso, devido ao regime, deveras angelico a que fora submetido, logo em criança, aceita o que lhe dizem.
O Seminário actua longamente… profundamente. Acredita nos homens como sendo infalíveis, não se lembrando então de que, muitas vezes, são até levados e induzidos por credulidade. manejo de fora ou simplicidade.
Bom é só Deus. Ele, por certo, é digno de confiança, por ser a fonte primária de toda a bondade, justiça e lealdade.
Escuta sermões e devotas homilias, conferências e práticas, tudo aos montes, sem peso nem medida. faz leituras frequentes de
espiritualidade; medita e reflecte demoradamente; sem nada modificar-se.
Não obstante o esforço e a boa vontade, continua sempre à margem de influências, permanecendo terreno sáfaro, para realidades que não são, afinal, de escolha própria
Regulamentos de vida,retiros em barda, conselhos indiscretos, sem base pedagógica, tudo fica nulo, nos meandros contorcidos do seu viver.
Entretanto, alegando embora que não tem vocação, dizem-lhe que avance, pois sendo infiel, não pode salvar-se, arriscando-se por tanto, a ir para o inferno.
Generoso e crédulo por temperamento, e um tanto medroso,por educação, lá vai para diante, envolvendo-se em trevas que jamais o largarão. Irrealizado sempre e iludido, assim caminha, arrastando-se mal, com ódio no peito e revolta na alma.
É que o rapaz não era um ser livre: dispuseram dele como dum escravo ou talvez pior — objecto banal que não deve nunca tomar-se em conta. Obedecer apenas!
O que dava realmente cor e relevo ao sonho "impingido" era na verdade, o ideal materno e a sua habilidade em fazer-se crer,aceitar, obedecer.
À volta do sonho , gravitavam imagens de um mundo estranho que não era o seu, sem a mãe aperceber-se de que ele era deste mundo, onde queria viver , com índole afectiva, chama no peito e sede insaciável de amor total.
Capolo
24-2-1973
Em dia de sábado, é costume já, ir para o Capolo, donde regresso apenas segunda- feira, pela manhã. Sacrifício para mim? Evidentemente, pois é quase heroísmo balançar-se a gente, de maneira infernal, durante duas horas, como se fosse, em mar encapelado.
Julgo fundadamente, que este paralelo claudica bastante, pois um barco na água, por mais que se agite, anda sempre bem leve, enquanto a carrinha sofre estremeções que partem os ossos a quem vai no interior.
Os sulcos fundos; os poços frequentes e de vários feitios; a água estagnada e a lama escorregadia fazem da picada genuíno inferno! Ao chegar aqui, apetece grandemente ir para a cama e não sair de lá.
Moído o corpo, desaparece a energia.
E os pobres rins? Às vezes, aguentam un pouco e outras muitíssimas, bastante mal! Sessenta e cinco quilómetros! Tal é a distância, entre o Capolo e Silva Porto!
Está sendo melhorada a incrível maçadora: fazem-lhe valetas; aplanam e alargam. Os primeiros 10 quilómetros vão estando prontos.
É já um regalo passar por ali!
Tenho feito o sacrifício, para bem espiritual dos capolenses.
O Ministério que administra a Justiça é que remunera e tudo orienta neste complexo.
Silva Porto
25-2-1973
É doningo. Contra os meus hábitos, ainda estou na cidade. Partirei para o Capolo. no prazo de duas horas.
A manhã está boa, porquanto não choveu e a estrada será hoje um pouquito melhor.
Vai a Guida comigo, o que é para ela um grande transtorno. Passar o fim de semana, em terra sem jovens! Ir para o "deserto", onde não encontra , bem entendido, a camaradagem que era habitual! Deixar encontros e certos lugares, amores e convénio!...
Compreendo, em parte, a sua relutância, mas tenho de rebater o espírito firme de insubordinação que a jovem Xanata lhe foi insuflando. Irrita-me, de grande, o que faz e aprova… o que diz ou sugere.
Tive ontem a prova, num pedido encomendado que a dita colega veio fazer-me, embora sem efeito. Que grande seca!
Aquilo só visto! Drogada já, leviana e suspeita,oferece condições para companheira da nossa Guida?!
Não terá o Liceu outras jovens mais, para escolher?
Porquê, digo eu, esta cega prisão que só talvez à pancada, logre destruir?
Apenas o vício é agora constante, na gente da época?! Que fazer então?
Os meios suasórios revelam-se incapazes. Brandura,por sistema, compreensão e transigência nada conseguem.
Por outro lado, atitudes reprováveis!
Braços pendidos? Calar-me sempre ou ficar indiferente? Não! Repugna-me fundo e revoolta o meu espírito. É preciso actuar!
Agora é mais fácil, pois conheço bem o feitio da pequena. Além disso, estou já senhor do ambiente que a cerca e tenta dominá-la.
Silva Porto
26-2-1973
Comecei a apresentar os meus Pontos de Frequência.
Contra o velho hábito, a chegada às aulas decorre em silêncio. Não se ouve aqui o mais leve ruído,dando até a impressão de que o órgão do peito deixou de pulsar.
Nem sequer levanto os olhos,com receio bastante de quebrar o encanto. Para mim, é curioso este ambiente, numa ocasião em que não é vulgar deparar-se-nos tal coisa! Agrada-me a situação , porque amo o silêncio e, além do mais , por ser compensação.
O receio e a angústia creio se estampam no rosto de cada um.Lá sabem porquê. Fruto de desleixo, inconsideração, insensatez e muita preguiça. É.lhes bem feito!
Não que me alegre com o mal de alguém: simplesmente aproveito a oportunidade, para lhes dar uma boa lição!
Mocidade ociosa! Mocidade leviana! Mocidade aéria, em que o valor é igual a zero!.
Refiro-me em especial aos alunos brancos, os grandes idiotas
das nossas Escolas, no Estado de Angola. Os elementos de cor são
trabalhadores e nutrem aspirações.
Quando a nossa Angola se tornar independente, hão-de ser eles, os meninos da Europa ou dela procedentes que vão servir as gentes de cor.
Estes indígenas ostentarão mais tarde seus belos diplomas,
enquanto os outros, nada havendo feito , hão-de sujeitar-se a todos os caprichos e veleidades! É-lhes bem feita, para não serem asnos!
Por isso é que eu gostaria que aproveitassem a boa lição.
O sofrimento redime, quando não se esbanja.
Ser prudente e reflectido é caminho recto de sabedoria que livra de muitos males e poupa dissabores.
Silva Portp
27-2-1973
Escrevo agora, na Escola Técnica, debaixo do telheiro que abriga os automóveis. Logo à beirinha, faz muito calor, mas aqui à sombra, aspirando a brisa que vem de longe, é tolerável, se não deleitoso.
Vim esperar a Cuida, no recreio maior, que a obriguei a separar-se da suspeita Xanata, o grande veneno que a segue a toda a parte.
Por esta razão, ando bem inquieto e assaz desgostoso, a fazer de ama seca. Tenho de vigiar e acompanhá-la sempre, afim de evitar maiores dissabores.
Ontem precisamente fui chamado ao Liceu, para avistar-me lá com a Directora do Segundo Ciclo. Fez ela então insinuações harto amargurantes, como sejam, por exemplo:
12 faltas às aulas, coincidindo, em geral.com as do "veneno"; aproveitamento débil; encontros vários; ameaça iminente de uma falta disciplinar, com perigo de expulsão; ar emproado como quem não precisa.
Agora é que eu cismo!
Maiores dificuldades, aumento de perigos! Se ela mudasse!
O que podem fazer as más companhias!
Silva Porto
28-2-1973
Enjoo da vida! Hoje é dia "não"!
Olho deprimido, através da janela e vejo lá diante o céu carregado, plúmbeo, minaz. Foi-se a luz e o calor e, juntamente com eles, o gosto de viver.
Houvesse luz no meu peito e calor suficiente, nada importariam elementos exteriores que,por meu mal, impressionam tanto!
É que o negrume que vem de fora agrava o meu estado e o faz em breve algo exasperante e acabrunhador. Nada aí vejo que possa atrair-me: quanto enxergo é indiferente!. Nem um ponto que seduza?! Muito menos ainda, pois no meu peito há náusea de viver, amargo desengano e desejo do não ser.
Até os meus desaparecem, nesta vaga imensa, em que agora mergulho, profundamente. Se me procurassem, vindo ao meu encontro e formando barreira! Mas não! Vejo-me só, no mar encapelado, em que ando à toa!
Sem esperança nem visos de conforto, sem um braço amigo que pronto me sustente, na grande procela, à mercê de tantos ventos, contrários e hostis, já sem alento que me leve a reagir, que posso eu fazer?!
Deixo arrastar-me por caudal impetuoso que redobra de vigor, ao rugir da tempestade.
Nesta inconsciência vai o meu batel em grandes solavancos, sem temer já os enormes perigos nem deles se aperceber!
Para que servirá olhar à minha volta, se a tudo voto asco e de tudo sinto náusea?! Que importa desviar-me de perigos mortais, se é melhor para mim a não existência?!
Que me alenta,nesta hora, em que sinto enormemente o fardo pesar-me e os ombros curvar-se?! Já não vejo o céu que há muito se ocultou e temo por meu mal, fixar a terra que num dia trágico me envolverá?!
Se ao menos luzisse débil chamazinha, ao longe que fosse! Se ela então alumiasse o caminho e também o aquecesse! Mas onde ver um clarão, pequenino que seja?!
Ecuridão e nada mais! Assim dizia Antero, numa hora angustiante.
Tremo no meu ser e agonizo já, harto desconfortado, rastejando qual náufrago, pela praia deserta!
Vim da terra fria e caminho para ela , sendo,pois,o final do meu ser! Se nada houvesse, para além da morte, haveria posto fim ao espinho agudo que fundo me atormenta!
Entretanto, eu creio firmemente e não ouso duvidar. Noite horrorosa e tão prolongada, que vai então começar e jamais terá fim! Isto é assim para quem não tem fé, Eu nunca a perdi, graças a Deus!
Quem me dera,Senhor, acabar num sorriso, já perto de vós!
Mas eu quero e não posso, que este corpo mortal me arrasta forçoso aonde há perigo de forte naufrágio Esqueceria o que importa falhando na vida.
Concupiscência, ambição ilimitada, soberna da vida, em coisas efémeras… é tudo o que eu sinto!Ao menos, já senti
Nesta hora dolorosa,Senhor de Paciência, vinde ter comigo, que preciso de falar-Vos. Tenho grande medo em tal esfalfamento, que não sinta coragem, para erguer-me de novo
Amadora,2oo6-2-13
Pedro Inês da Fonseca