terça-feira, 8 de setembro de 2009

Memórias 14

Nyangana
1-1o-1976
As missões em África

Entre os sinais, que os tempos revelam, avulta. decerto, a promoçãó dos Pretos.. Ora, esta meta vai sendo alcançada
e levanta, desde logo, as suas trincheiras, em todos os campos,
incluindo o religioso.Sendo isto assim, Clero e Religiosos aspiram a lugares que sejam de cúpula, não se conformando a ficar subordinados. É o caso dos próprios Bispos.

Além disso, há mais a considerar. O sistema clássico, adoptado pelos Brancos, é também rejeitado. Afirmam os Negros que é sistema capitalista. Querem as Missões e desejam, por igual, a Religião, mas em moldes diferentes.

O modelo antigo e tradicional apontam-no a dedo como sendo suspeito do tal capitalismo. De facto, as Misssões do Sudoeste e
algumas de Angola, semelhavam. no passado, ou semelham ainda,verdadeiros potentados, onde nada falta, embora sem luxo.
. Talvez aos Pretos assista razão

A Igreja floresceu, quando realmente o espírito de pobreza era pura realidade.Os períodos mais baços, que ela atravessou, foram
precisamente os de maior grandeza

******
Nyangana
2-10-1976

Começou ontem o mês do Rosário, pelo que assentei em ter isso presente. A que propósito? Nem se pergunta! Veio-me à lembrança a Mensagem de Fátima; "Penitência e Oração!"

Não foi isso, exactamente o que a Virgem pediu, em 1917. aos
humildes pastorinhos, na Cova da Iria? Portanto, rezar e fazer penitência é nossa obrigação! Mas nem era preciso que o pedido se fizesse! Rezar no silêncio é falar com alguém que amamos ternamente, Numa palavra: comunicar, de maneira gostosa , com o Pai do Céu!

Umas vezes, faz-se directamente; outras ainda, por meio dos Santos ou de Nossa Senhora. É, pois, no fundo inefável prazer. Por outro lado, sinto imenso gosto em alegrar a Virgem Senhora. que é Mãe de Jesus e nossa também!

Sobre penitência, escuso de gastar-me a sondar o processo: aceitar resignado, com os olhos em Deus, os contras da existência, é já penitenciar-se. Cumprir o meu dever, tolerar os outros e aceitar os males é caminho de penitência. Eu não concebo, de modo nenhum, que alguém creia em Deus e não sinta gosto em lidar com Ele.

Morreu por nós!Bastaria o facto, para torná-lO imensamente querido! A Virgem é Mãe. Alegrar o Filho consola a Mãe; alegrar Mãe consola o Filho!

Andará bem presente a devoção Rosário, de modo especial, no mes de Outubro! Se eu, em pessoa, não tomar a peito as coisas do Céu, ninguém o fará por mim! É assunto pessoal e da máxima importância.
Tudo perderei, mas não quero perder a graça do Senhor, pois me dará jus a entrar no Céu
******
Nyangana
3-10-1976

. Revejo agora os Diários escritos em 1968. Já lá vão 8 anos, motivo pelo qual expurgo certas coisas ou tento suavizar as que foram lançadas, com aspereza. O rumo do pensamento é de igual teor, pois estou comvencido de que me assiste razão.

Se fora caso unico, pouco interessaria mas, infelizmente, estende-se a milhares que, ao longo dos séculos, atingiram,sem dúvida, números astronómicos. É, assim, um problema, deveras angustiante que respeita à Humanidade.

" A quem não pede não ouve Deus!"-- assim diz o rifão, À semelhança, posso afirmar: quem se não queixa, quem não protesta não melhora a situação. É o caso dos "retiros", que eu fazia, em tempos. Refiro-me agora, bem entendido, ao sistema fechado, que reputo enervante e sem algo proveitoso.

Alguém já surgiu, fazendo acaso ouvir a sua voz?! Não me consta o facto! Por isso mesmo, tudo segue como dantes! Por que estão ali à espera que termine a função? Nada a mudar, para não ser odiado aquilo que é útil?!

Demais sabemos nósque, em tudo o que é humano, se torna urgente, de tempos a tempos, fazer alterações. Só Deus e seus mistérios é que são imutáveis!

Sistema educativo, por modo geral: procura e formação do jovem
candidato ao sacerdócio católico, à maneira do meu tempo -- celibato imposto e votos perpétuos -- não cabem, de modo nenhum, na mentalidade que se vive, em nosso tempo!

******
Nyangana
4-10-1976

Perguntou-me um holandês, em jeito de mofa: " Portugal, agora, ainda é grande?! Feriu-me a saída que figurou, nessa hora, uma
seta ervada, cravando-se no peito que se tornou chaga viva.

Nunca, em vida minha, fiquei silencioso, ante a injustiça ou perante o insulto- Também, por Deus, não me falta acuidade, para
criar o silêncio naqueles que me enxovalham. Tanto mais que, neste caso, é um povo inteiro a ser atingido: não só a minha pessoa!
Razão funda lhe atirei e, se mais não fiz, reteve-me a situação, em que agora me encontro: refugiado de Angola! Caso contrário, viria também a pêlo o que os Holandeses fizeram em tempos, melhor dizendo, queriam fazer do grande império luso.

Aludiria, por certo, às derrotas humilhantes que eles sofreram, no Brasil e Angola, por quererem servir-se do que não lhes pertencia.

Ainda assim, respondi, com altivez: Portugal, agora, é grande como foi: tem a mesma estatura. Onde falam Português , aí vive Portugal; onde lançámos o Santo Evangelho, implantando também a civilização, aí reina Portugal!

Onde reina e floresce o espírito luso, aí canta Portugal! Onde vemos pegadas de ousados aventureiros, misturadas com suor, lágrimas e sangue, aí ficou Portugal. Numa palavra, onde se encontra viva a alma lusíada, lá sonha e canta o velho Portugal!

O que interessa, pois, não é a matéria: sim o espírito;
o caldeamento de civilizações; a faculdade imensa e assimilante
de que só Portugal mantém o segredo

Perante a reacção que foi pronta e sacudida, quente e inflamada,
emudeceu, num momento, aquela voz diabólica.

memórias 14 (cont,)

NOVO DOCUMENTO DO MICROSOFT WORD

Nyangana
5-10-1976
Passado algum tempo, veio uma estranheza, originada também na mesma fonte: " Por que é que um país, assim tão pequeno, havia de possuir colónias tão grandes?!
Nem foi pergunta nem tinha em vista que eu fizesse comentários. Apesar de tudo, ainda fiz um e bastante apodítico, Disse eu, em resumo: " Você, sabe muito bem que há normas e princípios que todos aceitamos e ninguém
jamais se atreve a pôr em dúvida.Dá-se isto na Moral e também no Direito.

Essas normas e principios são, por assim dizer, garantia de paz, harmonia e bem-estar. Ao longo dos séculos, todos acharam bem, curvando a fronte, sempre reverentes, ante aquilo que chamamos base segura da ordem, penhor vigoroso de tranquilidade.Um desses princípios vem da antiga Roma e encontra-se inscrito no Direito Romano.

Tão justo ele é e bem equilibrado, que a Moral o adoptou: " Res est primi capientis"
Veio mesmo a propósito! Não havia melhor, sendo ao
mesmo tempo uma lição de História e, de igual passo, um encómio empolado a Portugal.

A coisa achda é do primeiro que dela toma posse; o
objecto encontrado pertence ao primeiro que dele se apercebeu.
Se outros fossem os primeiros a chegar àquelas terras, que Portugal descobriu, primeiro que ninguém, de modo nenhum lhes chamaríamos nossas nem tão pouco isso era permitido. Alguém diria logo:"Fomos nós os primeiros a chegar ao local!"
Ser o primeiro, em mares desconhecidos, implicava sacrifício, renúncia, ousadia e, por vezes, grande tragédia.
******
Nyangana
6-10-1976
Com surpresa minha, veio o cheque de Setembro, um pouco aumentado. Pensei, de início, tratar-se, realmente, de ordenados acrescidos mas, por não ser
anunciado, mantive-me perplexo. Noventa e sete randes, achei grosso demais, para aumento mensal!

De que se trata, afinal de contas? Um bónus de férias que nos é dado, em Setembro, para o ano lectivo! Não está mal! No entanto, havia de ser maior! Outra coisa ainda que eu desaprovo, a partir do bónus: é fazerem desconto!
Talvez uns 10 %.

Seja como for, é de ter-se em conta! De ano para ano, concede o Governo um aumento razoável -- 210 randes. No próximo ano, já o receberei. Esta importância, junta com o bónus vai a mais de 300. É algo equivalente a 13
contos, em terras de Angola, no antigo regime.

Outra coisa ainda que bastante aprecio é a percentagem, no caso de doença: 80%.Certo é, realmente, que há um desconto mensal de 3,5 randes mas, ainda assim, representa bastante, em caso de operações.

Tendo alguém comigo, não me importaria de estar aqui, durante algum tempo. Assim, porém, o caso é diferente. Quase absurdo, iria dizer!
******
Nyangana
7-10-1976
Nos Diários escritos de 68, que ando a rever, depara~se a cada passo uma nota dominante: dobrar os
5o é ficar diminuído. Hoje, porém, baseando-me nos factos, já penso diferente.É verdade também que não me enganei, pois escrevia aquilo que observava.

Porquê, então este modo oposto, que se apresenta logo, com ar contraditório?! Tal conclusão é só aparente!
Nessa altura, a saúde era pouca, devido, sem dúvida ao regime alimentar! Recordo-me bem de que trazia comigo um cesto de remédios, acompanhando-me os ditos para toda a parte.
As noites passavam, por má ventura, estorcendo-me com dores ou passando amiúde, ao longo dos corredores.

É bem certo e já comprovado: a boa saúde encontra-se nas mãos da nossa cozinheira! Nunca mais eu tive males, após a vinda para terra angolana.

Em 73-74, tinha por semana, 46 aulas: 23 na Escola Técnica e número igual, no Seminário-Colégio. Por fora, tinha eu ainda lições particulares. Nunca me lembrei de que passara os 50!

Em 74-75, além das aulas, na Técnica, em número de 28, leccionava matérias do 6º e 7º, a Francès e Português;
Inglès, Português e Ciências da Natureza, em anos anteriores.
Aqui, no Sudoeste, iniciei também o ano crrente de 76, com 35, ao longo da semana, aos 55 anos. Se fosse preciso, mais dava ainda!
******
Nyangana Liceu
8-10-1976
Perguntou-me o Reitor se já tinha as notas das
chamadas orais ( oral marks).
Como tudo é novo, no mundo em que vivo, fico às aranhas
em casos destes!Não entendo, é claro! Pedindo informações, o assunto aclara-se . Foi o que sucedeu!

Afinal de contas, durante 15 dias, farei apenas chamadas, para inteirar-me , devidamente, do estado em que se encontram os alunos de Inglês, devendo tomar nota e dar
classificação.
Devia tê-lo feito, ao longo do ano mas, como não recebi nenhuma indicação, em tal sentido nem me deram a pauta, segundo o uso, em Portugal, não tomava nota!
O máximo que há para as chamadas é 5o Pontos!
Para que servem, então, estas notas da chanada? Para juntar, finalmente, ao resultado da Escrita, ( Prova de Exame que vem de Pretória).

O máximo da oral vai a 5o, e o total da Escrita, a 250, o que perfaz 3oo Pontos Quem vê as Escritas é o professor da Cadeira. Após elas, os alunos debandam, indo cada um para a sua terra natal.

Acho bom o processo. Para os alunos, é bem melhor que o seguido em Portugal.
Aqueles júris da minha Pátria, que amedrontam as crianças deviam ter fim. Quem está ao corrente do saber do aluno é o professor que chegou a conclusões, ao longo do ano, sem ser, evidentemente, por chamadas para notas.

É processo condenável,injusto, errado. Aqui vai tudo à, censura, tratando-se realmente de Mestres auxiliares, como é o meu caso
******
Nyangana
9-10-1976
Sendo o último período, neste ano lectivo, que termina em
Psicologia dos nossos alunos, aqui no Sudoeste. Dezembro, vai dando, por isso, margem mais larga, para boa noção do ambiente que me cerca.

A princípio, não acertava e sofri um tanto, por falta de experiência. Surgiram, por força, alguns problemas, embora não iguais aos que tive em Angola. Para o Corpo
Docente, é melhor aqui

Em Angola, tive a pouca sorte de apanhar o embate, após a Revolução, que depôs M. Caetano. Foi um pavor e
não quero recordá-lo! Nos primeiros meses que leccionei, no Cavango, havia uma turma que, de vez em quando, fazia pirraças.
Entretanto, não eram coisas graves que agora atribuo à minha inexperiência. Descobrt finalmente, sendo agora muito fácil tratar os problemas com os alunos.

Afinal, a turma D, Form I, Standard 6, é cómica em extremo e leva-se melhor que outra qualquer. É mista em geral e formada por alunos, já um tanto crescidos. Riem que se desunham, quando há motivo. Aconteceu o facto, na última aula.
Fiz imitações que geraram tanto riso, como nunca tinha visto, em gentes africanas! Alguns até choravam! Ora portanto, que é que fazia enervar-me, nos primeiros tempos? Exigir, a rigor, o fiel cumprimento do seu dever e
exaltar-me às vezes,falando mais alto.

Para os povos negros é um belo pratinho ver assim o professor! Riem, riem tanto, que nada os contém! Quanto mais se berra mais eles se riem!
Agora, descoberta a causa, mudei o processo, Uma beleza!
******
Nyangana
10-1o-1976
Oito horas! omo prometera, havia de ir a caminho, para a Eucaristia, no campo de refugiados, perto
do Rundu. Às 9, em ponto, devia ter passado a capital do Cavango, pela estrada batida , que leva a Grootfontein.

Afinal, é bem certo: " O homem põe e Deus dispõe!"
Estou no meu quarto, aguardando ansioso a chegada do Médico. Piorei bastante, no espaço breve de uma semana.
Vou expor o problema e ouvir a opinião, acerca do caso.
Operado de urgência?! Dentro dum mès? Nas férias de Dezembro? O Galeno dirá. Aproveitarei tão bela ocasião, para falar também de outros males sérios, alguns dos quais já são antigos: assim a pleurisia, em 69; hemorragias, no olho esquerdo, em 44; úlcera, no estômago e pedra no fígado, em 62; pré-diabetes ainda e
inflamação das vias urinárias, em 76.

Tudo isto nebuloso, tenho de seguir o ponderado critério do Cirurgião. Operação agora e outra em Dezembro? Optrei por Vinduque, no Hospital Católico. É mais um espinho ou vários serão, a cravar,se no peito!

País desconhecido, pessoas que não entendo, Línguas germânicas, hábitos diferentes... estramhos conceitos!
Por outro lado, ninguém ao pé de mim!
Se eu já estranhava o peso da cruz, vivendo a custo, na
minha solidão, muito mais agora que mal posso mexer-me!
Lembra, nesta hora, o grito sufocado, em D, João de Portugal, no Frei Luís de Sousa: Romeiro, quem és tu?!
-- "Ninguém!"

******
Nyangana
11-10-1976- Manhã
Há, na minha vida, tais coincidências, que fico pasmado, olhando para elas! Faz hoje, precisamente, 43 anos, que entrei no Internato. Na parte da manhã, esperava
ansioso que chegasse o comboio a Celorico da Beira, cuja estação é próxima da vila Apenas 4 quilómetros!

Bom tempo era esse: meu pai estava ali!
Às 9 horas, em ponto, embarcava eu para o distante Fundão, minado de saudades, mas esperançado num futuro risonho. Eram os 15 anos!
Hoje, vou partir, para uma viagem, bastante mais longa -- 800 quilómetros -- afim de ser operado.
Coincidências? Entretanto, há grandes contrastes.

Nem quero, de meu gosto, fazer comparação! Ficaria mais triste do que já estou! Mil ideias se atropelam, antes da partida,e o meu pensamento vai correndo veloz, rumo a Portugal: meu irmão e minha irmã enchem-me todo.

De modo especial, a pobre irmã, cuja sorte, neste mundo, foi um sonho vão, após os tristes sucessos, ocorridos em Angola.
Gostaria de viver, para ajudá-la um pouco.
Enfim, Deus-Providência e Pai dos infelizes, vele por nós e a todos nos dê a sua bênção.
Vou entrar no silêncio que figura a eternidade" Se for
melhor, Deus permita o regresso!

******
Nyangana
11-10-1976 - Tarde
Cheguei à cidade. Após breve diálogo, com um Médico amigo, ficou logo assente que não iria a Vinduque, como havia planeado. Diz ele, no seu Francês,
aprendido no Congo: " Il ne faut pas aller à !Windhoek, parce que nous faisons ça!"

Mudei, pois, de opinião e fiquei no Hospital. Serei
operado, aqui no Rundu. Entrementes, convidou-me a segui-lo, pois nos encontrávamos na Sede das Irmãs.
Preecheu a ficha e pediu informações, acerca de moléstias que, em tempos idos, me houvessem afectado.

Expus tudo claramente, registando ele os dados colhidos. Veio tudo a pêlo: pleurisia e úlcera, descolamento que tive na retina, inflamação das vias, etc.
Por fim, disse-me então nada mais ser preciso.
Informaria breve o operador, acerca de mim.
Indicou-me um quarto, mas não fiquei lá. Uma Irmã, ao passar, disse-me em Inglês: " This room is very dark
for you!"
Achou o quarto escuro e levou-me para outro!
Fiquei, portanto, virado para a cidade, e com luz maravilhosa! No outro quarto, apenas jantei.
A refeição foi leve, mas bastante apurada: carne moída com macarrão, saladas diferentes, pão assaz branquinho, manteiga e doce, e café com leite. Estava
arrumado!
Depois, veio a sede. Precisava informaçõea, mas ningu+em avistei.Apareceu então o soldado-vigia que
ficava ali, durante a noite: " This water is good to drink"
disse ele então, apontando-me o local.

Assim teve início a estreia do Hospital aqui na cidade
capital do Cavango, sem ninguém conhecido.
Fizera ao bom Deus uma prece fervorosa, rogando o seu auxílio no caso melindroso que tanto me apavorava.
Era a primeira vez a ser operado e tinha receio de não voltar à vida.
******
Rundu-- Hospital
12-10-1976 -- Manhã
Esta noite, dormir ou sossegar, não foi comigo!
Toda ela gasta, em combates e sonhos, harto apreensivos!

Nada mais, nada menos que 6 vítimas feias, em luta
desigual! Os mosquitos agressivos deste Hospital chuparam-me o sangue, deixando-me às enxutas!.O último deles a esborrachar parecia uma dorna. Por esta razão, assentou arraiais, junto à cabeceira.
Ao vê-lo bem perto, estremeci, de horror,, pois tinha no seu odre o que não lhe pertencia!: sangue do meu sangue! Lancei-me a ele, numa fúria incontida,! Ao primeiro assalto, logrou escapar-se, mas ao segundo, isso já não!
Aí ficam os destroços! -- mururei, desafogando!
Fiquem para memória do facto horrendo!
Terminava assim a primeira noite, passada
no Hospital!
A meio da manhã, veio a Irmã Rita, de agulha
apontada, no extremo da seringa, Logo vi o que era:
amostra de sangue, para estudo prévio, com vista à
operação.
Limpam-me o sangue! Irmãs e mosquitos... Eu que
ature!
Em seguida, alguém bate à porta e saúda em Português. A
esse tempo, haviam-me já tirado uma radiografia.

Bom! A visita inesperada quem havia de ser! O Sr,
João Pedro! Já o vira em Silva Porto, mas não foi possível
.reconhecê-lo então. Muito em baixo, do coração... não
parecia o mesmo! Infelizes portugueses! Perda de bens e
abalo de saúde!
Falámos, falámos de mil assuntos diversos.
Interessou-me a conversa, bastante mais que outra
qualquer, pois trouxe pormenores sobre a morte da Guida.

Afinal de contas, segundo informou, quem deu ordem
para o tiro à pobre inocente, foi um elemento do MPLA --
o comandante Tigre! Assenta-lhe bem o noma ferino.

******
Rundu
12-10-1976 Tarde
Acabaram já os preparativos, em ordem ao caso
que me trouxe aqui. Após a radiografia, tirada ao tórax, e a
amostra de sangue, que é destinada ao Laboratório, vieram
de tarde pela temperatura.
Finalmente, surgiu o operador, homem, bastante
jovem, de boa presença e trato lhano, sem o ar
empertigado, que eu vira em Coimbra.

Primeira pergunta: "Verstaan Afrikaans?
Respondi que preferia Inglês.

Observou, em seguida, o lugar da hérnia, indagando
cuidadoso, acerca do tempo em que eu a tinha provocado
e se havia dores. Achou a abertur grande em excesso e deu
pormenores, acerca da operação.

Amanhã, disse ele, é o teste do açúcar. Se não houver
problemas, pode ser operado, no mesmo dia. Caso
contrário, só depois de amanhã., que é quinta-feira.
Acrescentou ainda que não devia comer, além das 22.
Portanto, o dia de hoje passou em estudo e de modo
igual passará o que vem.
São longos estes dias, em país estrangeiro!

O que me valeu foram duas visitas, a primeira das
quais foi bastante demorada. Era, na verdade, o patrício
João Pedro! Pouco antes das 21, veio o casal André.
Espaireci um bocado, mergulhando, logo após no doce
Morfeu!
O que mais custa passar é, desde o pôr do Sol até à
hora de cama. Poderia ler, mas os mosquitos?! Viriam
logo fazer-me companhia, durante a noite.
Mas dispenso tal honra e conservo-me às escuras!Por esta
razão, sobrevém o tédio.
******
Hospital Manhã
13-10-1976
Ando um pouco agitado. Hoje, por sinal,
levantei-me cedo, indo logo tomar banho. pois é
provável efectuar-se a operação.
A Irmã Rita, do laboratório, já veio por mais sangue,
para o teste do açúcar. Sempre bem disposta, surgiu
risonha, perguntando logo se eu já sabia quando era
operado.
Aproveitei a oporunidade, para colher alguma informação.
Neste grande Hospital, que pertence ao Estado, há 7
Enfermeiras: duas que são pretas e 5 brancas.

Cinco são católicas, e as restantes, calvinistas, da igreja
reformada, sita na Holanda. Fazendo o paralelo, entre
umas e outras, ficou-me a impressão de serem as católicas
bastante mais alegres e expansivas.
Haverá engano? As calvinistas, embora diligentes e assaz
prestimosas, mantêm, geralmente, certo ar de reserva, que
se torna, a breve trecho, objecto de atenção.

Que razão haverá, para este contraste? Por ventura,
mais que uma? As calvinistas podem casar. Mais
problemas também, em umas que outras? Pesará este facto
de tal maneira que as torne diferentes?!

As calvinistas servem afinal o mesmo Deus e adoram
Jesus Cristo, mas lidando com as nossas não erguerá seu
espírito uma sombra de dúvida?!

Elas não possuem a verdade total!Só uma parte!
A igreja reformada, à margem do chefe, é quase um
absurdo, se me baseio agora na Escritura Sagrada.

"Apascenta, pois, as minhas ovelhas!"
"Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus! Sobre ti mesmo
edificarei a minha igreja.... E as portas do inferno não
prevalecerão contra ela!"
******
Hospital
13-10-1976 Tarde
Decorreu solitária, muito apreensiva e deveras
monótona. O que valeu ainda foram as visitas Uma dentre
elas durou bem pouco, mas enfim, o dia passou, que são
agora 22 horas!
Finda a última visita, emborquei sem pausa dois
copos de água, terminando assim o dia 13. Sempre ouvi
dizer que, tendo sido operado, não se deve beber! Seria
causa de morte! Lá por isso, haja o que houver, hei-de
aguentar!
Pois hoje de tarde, houve pouca actividade:
verificação da temperatura e presença breve do operador.
Auscultou-me nas costas e também de lado, fazendo em
seguida, certas perguntas: "Já foi operado antes? Tem
tosse? Acaso é alérgico a certas drogas? Amanhã, é
operado, logo pela manhã!"
Depois, saiu ele e eu fiquei só, como estava antes. Há, no Hospital, 170 doentes, sendo brancos apenas dois. Os Médicos em serviço chegam a 6, e as Enfermeiras
a 7.
Isto, aqui no Rundu, é muito solitário! Não se avista
ninguém! Passa a enfermeira uma vez por dia e pergunta
ao enfermo: "How do you feel?"
Sente-se bem? Desanda, em seguida, e nunca mais se vê.
Os pretos serventes falam nos corredores, como se, realmente, estivessem nas cubatas. Andam cheios de euforia e não cabem na pele!
Pois o outro branco não é sociável. Lá está no quarto,
saindo apenas, para evacuar

******
Rundu Hospital
14-10-1976
Operado às 8? Este Diário vai um pouco atrasado, pois surge em 17.Em 14 e 15 bem como em l6,
não pude escrever, fazendo-o só hoje,com certa dificuldade. Escrevo na cama, apoiando a folha no joelho
direito.
Vou então reconstituir o que julgo importante, ocorrido em 14. Às 6 e 3o, aparece no querto o enfermeiro-tropa, ostentando na mão a gilete preparada e
convidando-me prestes a utilizá-la. "Shave this part"!

Enquanto falava, ia apontando , no próprio corpo, a
zona da limpeza. Entretanto, aplica-me desde logo duas fortes injecções, antes de eu me rapar.

Executei o mandato, com dificuldade, pois a minha cabeça já estava pesada. Tinha a impressão de que havia bebido ou me timham drogado. Por iso, exactamente, deitei-me na cama, até às 7 e 3o. Neste momento,surge
de improviso, a carrinha-maca, para transportar-me à sala de operações.
Conhecia as pessoas, mas ia atordoado. Julgo haver mudado, umas três vezes, durante o percurso. À terceira delas, encontrava-me já, ante a sala operatória.
Avistei ali apenas dois brancos e outros tantos pretos.
envergando trajos que achei algo cómicos.

Claro! Nunca tinha visto! Barrete e máscara e bem assi os próprios sapatos... branquinhos de neve! Calçavam luvas, mas não me lembro qual era era a cor!

Ajeitaram a carrinha debaixo dum lustre que tem nove lâmpadas e ligaram-me então, pelo braço direito, a um saco pendente. Neste momemto, perdi os sentidos.

******
Hospital
15-10-1876
Às 10 e 1o de ontem, achei-me na cama, tendo na boca duro objecto, que não deixava fechá-la.Junto do leito, o Cirurgião e a pronta Enfermeira! Perguntei as horas e senti, distintamente que, do lado esquerdo, havia qualquer coisa, a molestar bastante. Notei um ar de alívio, nas pessoas de vigia.
Passados momentos, disse eu, informal: I want to urinate!
Sem quaisquer delongas, a prestável ajudante meteu
delicadamente um cantarinho metálico, de bojo aplanado, na parte inferior.
Não houve maneira! Transpirei, de aflito, com dores na bexiga! Teimei... insisti, mas de nada valeu! Começava o meu tormento e doloroso calvário! E havia de prolongar-se, não sabia até quando!

Em seguida, I am thirsty! Deixaram-me então lavar a boca, esclarecendo, a propósito: " Drinking only tomorrow". Conformei-me! Entretanto, sempre tive a sorte de meio copo gelado! Que bem me soube então! A sede, nesta hora, não era insuportável, mas custava um bocado!

Tudo ia normal, excepto as urinas Como estava aflito e deveras perturbado, às 18 horas, vem o Doutor e extrai-me as urinas, Operação dolorosa! De luvas calçadas, tirou duma caixinha, um objecto elástico ( ventosa), enfiando-o logo no membro viril, Várias diligências, mas tudo em vão!
Já desanimado, levanta-se e diz: " A bigger one!"
Foi por outro maior e, após esforços, repetidos, sem demora, começou a correr.
Fiquei aliviado, embora com dores! Em seguida, tiraram-me os adesivos e mandaram-me então para a cadeira.
Como ia mexer-me?! Tinha dentes de ferro cravados em mim!
******
Hospital
16-10-1976
O tormento da urina persiste ainda, flagelando sem piedade. Julgo até que, durante a noite, fui mais de 30
vezes à casa de banho. Por cada uma, era um suadoiro! Que martírio! Ofereci-o a Deus, em desconto dos pecados!
Lembrei também as almas do Purgatório e a conversão dos pobres pecadores!
Aih! Mas é tão duro!
O Cirurgião passa duas vezes, inquirindo sempre do meu estado. Fornece-me então alguns dados importantes, no tocante à operação, tendo a intenção de fazer um teste, no dia 18, acerca da urina,

Traz com prazer o seu herdeiro de 1 ano, muito rechonchudo e assaz risonho. Este lindo bebé foi operado ao estônago, que se tinha virado. Além disso, dorme com umas botas, que não pode arrastar. Tem qualquer deficiência que lhe impede o andar, mas dizem ser curável.
Voltando ao meu caso, em 15 e 16, autorizaram já quanta água quisesse. No entanto, encontro-me sozinho,
havendo embora, aqui, 170 doentes!

Os outros pacientes são todos pretos e não vejo nenhum! Que tristeza imensa e que desolação! Operado há pouco, num Hospital estrangeiro, sem pessoa de família que me preste auxílio! Como é triste e doloroso o celibato dos padres, na pessoa que o não ama!

Os serventes são pretos, a quem falta iniciativa! A enfermeira do dia, passa uma vez e é tudo já! Ninguém mais a viu!
É certo e sabido haver eu encontrado um doente branco, mas saiu logo, passados dois dias.
Eu e Deus, o amigo silêncio. com a negra solidão é só quem mora, neste quarto de Hospital!

******
Hospital
17-10-1976
É Domingo. Após a noite de insónia, que não findava jamais, surgiu novo dia que não me trouxe conforto! Aturo a bexiga que me está flagelando e tentei pòr em dia , embora a muito custo, os Diários que faltam.: 14, 15 e 16. Este é já o 4º que levo a bom termo.

Saem desluzidos, que falta disposição, mas revelam ao menos o que sente a minha alma. Pelas 2o horas, visitam-me a preceito, duas famílias.. É uma hora que distraio, uma hora de al«ivio, em que, a rigor. não há hospital!

Fazem parte deste grupo: a família André, que eu vira no Cuangar ( Angola) e o bondoso casal, Fernando- Licília, chegados de Serpa Pinto. O Senhor ajude a todos, pelo bem que me fazem. Também o Vasco aí veio. A primeira
visita foi, no entanto, a de João Pedro, combatente de Angola e membro da UNITA.

Era este o mais assíduo, antes de operado. Da última vez, foi logo chamado e não voltou mais. Declarou ele que havia problema! Que não seja nada grave! Mas já suspeito muito! Ele anda de todo! Deus o ampare, que é boa pessoa.
Pois o meu Clínico fez hoje confidêndias, a respeito de mim. Fiquei embasbacado! Afinal, operou-me a duas hérnias, ambas do mesmo lado. A mais funda apavorou-o.
Fez até um círculo, com o médio e o polegar, deixando uma abertura de 5 centímetros! Um pavor! Uma hora em cheio mais 20 minutos!

Revelou ainda que, do outro lado, tenho mais outra.
Vai apurá-lo, quando estiver bom.

******
Hospital
18-10-1976
Escrevo o meu Diário, com dificuldade, mas não quero postergar o que assime importância, nas minhas Memórias.Saio duma crise que julguei fatal e me teve por um triz, às portas da morte. Aconteceu ontem, pelas 17.

Antes disso, viera a enfermeira inquirir do meu estado,
acerca das urinas. Respondi abertamente que estava sofrendo, mas aguentaria mais algum tempo. Era Domingo e não queria, de modo nenhum, tornar-me pesado.

Às 5 e 30, voltou ela de novo, obtendo a resposta: não posso mais! Vou morrer, em breve! Ela, então. pôs-se em busca do Médico. Até às 6 e 3o foi a grande prostração. ag

Mais não podia! Impossível a existência! A bexiga retesada, já desde quinta-feira! A barriga a inchar!... Ora, é de ver que a incisão recente fica ao lado da bexiga! As dores... horríveis, ao máximo! Gemia,sem pausa! Queria
rezar e não aguentava!
Seguia atento os ponteiros do relógio, escutando ansioso o ruído frequente dos automóveis. Dali viria, por certo, a libertação! Apenas às 7 o Médico chegou.

Assim que me viu, ficou desorientado! Banhado em
suor frio, com dores insuportáveis, gemendo constantemente e de olhos fechados! Em 5 minutos, a enfermeira não chegou! Foi ele buscar tudo, quanto era
preciso, no mínimo de tempo.
Relanceando o olhar pelo seu rosto jovem, todo
contracções, fico horrorizado. O suor escorria abundante.
Entretanto, ao fim de algum tempo, vi-me salvo da morte!
Extraíra-me a urina, por meio duma argália (cateter)

******
Hospital
19-10-1976
Carta de minha irmã, esperada havia muito. Foi uma luz que brilhou fulgurante, nas trevas da vida!.

Notícias diversas: boas algumas; outras, já não!
O grande problema, sem falar doutros que são relevantes, é o frio intenso, em Trás-os-Montes! Eu calculo!

Os três meúdos, nascidos em Angola, vivendo agora, em Pedras Salgadas!...Momentoso problema! Estivesse eu, lá em Portugal, deitava logo o barro à parede! Assim, de longe!...Vou escrever para a nossa capital ao Padre Saraiva. Ele. se puder, é capaz de ajudar!

Que pena estar aqui preso, no Hospital do Rundu!
Após duas aberturas, com outra em perspectiva,! Enfim,
Deus seja louvado!
O Isaías, coitadinho, anda esmorecido! Pobres crianças! Começarem a vida, em circunstâncias destas!
Mas Deus é grande e pode ajudá-los!

No que toca a mim, vou já no 6º dia, Hoje, sinto-me bem. As minhas urinas seguem directamente para um saco plástico, pendurado junto. Este é o grande problema!

Daqui a três dias, vou já para Nyangana, se Deus quiser! A terceira operação, talvez para o ano!
O Médico segredou-me que tinha dois contras, a respeito
do assunto o pulmão esquerdo e a fraqueza dos tecidos..

Esta,segundo ele, é consequência da falta de ginástica. Se o Oftalmologista me proibiu de correr, dar-me à ginástica, andar aos saltos e coisas semelhantes, que vou eu fazer?!
O receio da cegueira a tudo me levou!

******
Hospital
20-10-1976
Neste dia da graça, perfazem-se já 6 longas jornadas, após a minha operação. À hora em que escrevo, entro na 7ª. Se fosse normal a operação às minhas hérnias,
era hoje mesmo que partia já para Nyangana.
Assim, talvez somente depois de amanhã. São 10 dias!
Este finalizar dos 6 primeiros dias foi cheio de emoções: tiraram-me os pontos, retiraram o cateter e vi gotas de sangue, no lugar, em que estava.

Quanto aos primeiros, embora apreensivo, nada custou, pois a Enfermeira é de extremos cuidados e suma
delicadeza; o cateter que três noites e dois dias recebeu as urinas, sem deter-se, na bexiga, impressionou-me um pouco, mas foi um momento; as gotas de samgue fizeram-me suar, somente de as ver!

Pensei mil coisas, qual delas a pior!
Pontos infectados? Veia rompida? Descontrolo dos rins? Premi a campainha e veio, num tiro, a enfermeira do dia: uma pequena simpática, de 22 anos, oriunda do Cabo.

Expus-lhe o meu caso que a deixou pensativa, dando
prontamente uma vista de olhos à zona inflamada.
Saiu, a toda a pressa, esclarecendo antes que o cirurgião
ia ficar ciente
Surge em btreve o meu operador. Observa, diligente, a zona operada e partes anexas. Pergunta donde vem o sangue do soalho. Calca na incisão e sai imediatamente, para receitar.
O problema continua, a respeito da urina.
Serei capaz de a expelir?! Assistem-me dúvidas! Mas,enfim, confio nestes Médicos!

******
Hospital
21-10-1976
O dia-a-dia traz-me surpresas. Ontem. pela
tardinha, mais uma surgiu, que me deixou apreensivo.
O caso das urinas dá-me água pela barba, levando o
Clínico a cismar com demora, Prometeu ele que, hoje
sem falta, ia ver mais de perto o assunto em questão.

Forneceu indicações, acerca da maneira como havia de urinar, vindo bater certo com o processo por mim utilizado. Por esta razão, lhe encontrei muita graça, levando-me a pensar que o Dr. Olivier já possui o segredo:
a próstata.
É bem acertado o provérbio latino:"Abyssus abyissum invocat"! Um mal nunca vem só!
Esclareceu, bondosamente, que veria o caso, mas não podia operar-me: só em Vinduque por um especialista!

Ora bem: sobre as urinas, ponderou ainda: Quando chegar ao destino, é inútil puxar.Conserve-se ali, esperando sempre, alheio ao caso. Aguarde paciente que a urina chegue, espontaneamente. Em seguida, faça a mesma coisa, quantas vezes precisar! Como é bem pouco, de cada vez, tem de ser repetido!

Era, exactamente, o que havia descoberto, numa luta inglória de 5 dias amargos. Aqui está, pois, como a gente, às vezes, por uma operação, arranja logo mais três! E não
falo no estômago nem aludo ao fígado!

O organismo humano é todo maravilha e, por isso mesmo, delicado em extremo, e sujeito, amiúde, a perturbações!
Neste momento, recordo um encontro de há 32 anos,
mo lugar de Balocas, freguesia da Vide ( Seia).
Mesmo junto à capela, vivia um velhote de 1oo anos cumpridos. Lhanamente declarou nunca haver sofrido, Todos os seus órgãos funcionavam bem.

******
Hospital
22-10-1976
É já o nono dia, após a intervenção. Bem disse o
Médico, logo quase no princípio: " Enquanto os outros pacientes necessitavam 7 dias apenas, eu levaria 10. Com
mais 2 ainda, na preparaçã, vai já fazendo um rol bonitinho!
À medida que melhoro, mais longos e tediosos me parecem os dias! Sem fazer nada, como a gente se aborrece! As poucas visitas ainda me auxiliam a preencher este vácuo.
O Dr. Olivier não achou conveniente que saísse já hoje, como tinha prometido. Calhava tão bem!
É que ele, realmente, desloca-sea Andara, passando por
Nyangana, onde tenho a residência! Mas, enfim, mais vale resignação que andar preocupado!

A minha ocupação é fazer o Diário, ler passos da Bíblia, que uma enfermeira, de origem finlandesa, me ofereceu, em língua portuguesa. Além disso, rezar o Rosário, por ser o mês a ele consagrado.

No meio da angústia e de tanta aridez, sinto claramente que Deus me conforta. Se não fora Ele e a Santíssima Virgem, que seria de mim?! Devo, pois confiar, aguardando paciente o dia final, que me levará, definitivamente, à Missão de Nyangana.e ao trabalho do Liceu.
Olho pela janela e noto, com alvoroço, que a Primavera sorri no espaço, mas apresenta um jeito especial que não fala ao coração! O verde e o vermelho, em diversos
canbiantes é que imperam, no Cavango.
Oh! quem dera ver de novo, a formosa Primavera, no meu Portugal! Que imenso regozijo então não seria, por
curar o meu mal!
******
Hospital
23-10-1976
Décimo dia! Ontem. já tarde, visitou-me o Clínico, Examinando bem a minha infecção, notou logo melhoria, o que muito o satisfez. Entretanto, foi dizendo que apenas em 25 poderia ausentar-me. Fiquei um pouco
triste, mas, pensando melhor, cheguei à conclusão de que
é preferível.
Debelada a infecção, nada mais surgirá, para criar
problrmas.
O açúcar em excesso facilita, para logo, ambiente favorável ao surgir de bactérias. Segundo me parece, não devia, pois, tomar açúcar, após a operação.. Entretant, fiz
ao contrário, por ele me haver dito que tinha muito pouco.

Exactamente como há sete anos.
O sangue velho e já purulento, detido sob a pele, sai por
duas incisões, que ele me fez ontem.

Quanto às urinas, estou já melhorando, pois não tenho dores, no acto de expelir. Agora, sim! Que bom!
Poder trabalhar e ser útil a outrem! Sem nada fazer, era peso molesto! Voltarei aos livros e às tarefas escolares em
terras do Sudoeste!
Muito brevemente, já lá vão 15 dias que parecem muito mais! Ser operado, afinal, é coisa muito simples!
Com sul-africanos, dá gosto ser tratado! Nada a recear!
É uma firmeza! Uma segurança! Um segredo prático,
deveras eficiente! Que maravilha!

O paciente, por via de regra, mal se apercebe de que algo lhe dói! Deus ajude e favoreça esta grande nação cujas altas energias muito vão realizar.
As dores que tive provieram de outros males que tinham longa existência e foram denunciados por esta operação
******
Hospital
24-10-1976
Amanhã, precisamente, já faz 15 dias, que entrei
no Hospital. As contas eram outras, mas a infecção, ao longo do corte, alterou-me os planos.
É preciso paciência! O Cirurgião chegou há pouco e,
observando, com grande minúcia, a zona afectada, ficou satisfeito. Disse, com ênfase: " Nice"!

Limpou... limpou, enfaixando a incisão, com todo o esmero. Nas duas extremidades que o corte apresenta, fizera ele a abertura, afim de sair, por modo total, o sangue
pisado.
É já o terceiro dia atratar do mesmo assunto! Estou
ainda ligado pela cintura e perna esquerda.. Molesta um pouco, se intento movimentos. Encarregou-me também de humedecer as faixas, de hora a hora.

Finalizado que esteja este novo Diário, vou já executar o que ele prescreveu.
Ontem, afinal, não houve visitas, por isso o meu dia foi interminável. Não voltei a ver o patrício, João Pedro. Que terá acontecido?! Ele andava tão doente! Sinto imensa pena, porque além de português, tenho para mim que é homem de bem.
O doente solitário, internado em hospitais, por artes adivinha se a visita é amiga e, quando o descobre, todo ele se alvoroça, criando para logo, uma nona exigência.

Às vezes, olhando pela janela ou pelos corredores, iludo-me um tanto, crendo ingenuamente ser minha irmã que vem trazer-me alívio. Por isso exactamente, quando a triste realidade se apresenta nua, nasce o luto na minha alma, que logo se confrange , entrando em agonia,

Deus aceite a minha dor e a converta , por bondade, em moeda salvadora.
******
Hospital Segunda-feira
25-10-1976
Faz hoje 15 dias. Após o almoço, na Missão do Sâmbiu, vim logo para aqui, afim de ser informado, sobre o meu plano. Dizem-me que não saia, porquanto Vinduque é muitíssimo longe e obtenho aqui o mesmo resultado.

Resolvo então e dou logo baixa. Cá estou, pois e dou logo baixa, esperando ansioso o dia da liberdade. Será hoje talvez? O Cirurgião assim o havia dito. Já amtes apontara o dia 23
A infecºão, porém, fê-lo mudar. vai ocorrer a mesma coisa no dia que passa?! Oxalá que não! Já estou saturado!

,e dias tão longos, sem companhia, a sós com meu mal! Quem dera, Senhor, que o martírio acabasse!

É que, se eu fosse embora, já tinha ocupações, que levavam o tempo, distraindo-me afinal. Aulas de Inglês, testes a rever, exercícios vários a corrigir, folhas a preencher... Diários meus a ultimar! Tudo isto me aborrece, deixando-me a impressão de que o tempo não passa!
Além disso, notícias e comentários , em certos idiomas, também me distraem, fazendo esquecer a amarga solidão. Quando verei, de novo, o céu de Portugal?! Aquele céu azul, doce e macio, qual outro não há?!
O céu que vi primeiro, após outro mais belo -- os olhos de minha mãe!

guturais, que me irritam o ouvido;; sol abrasador que me escalda a pele; plantas agressivas que arranham, sem piedade; cantares metálicos de aves tropicais que figuram zombarias; ares carregados de enormes poeiras!

******
Hospital
26-10-197
Afinal de contas, goraram-se os projectos! O Doutor veio, observou a incisão e as pequenas saídas, que
abrira nos extremos., respondendo assim ao meu ar inquiridor:: " Much better! Tomorrow, I!ll close this and you will go home!"

Prometeu para hoje.Será?! Esteve aqui o amigo,João Pedro que relatou muitas coisas, acerca de Angola e sobre a morte da Guida Só tarde apareceu, por motivo de doença.
Achei-o melhor. Quer, a todo o custo, oferecer-me a Bíblia, em língua inglesa,o que aceito gostoso. Ainda está em promessa, pois, segundo ele, a pessoa a quem pede, encontra.se ausente.

É um um bom amigo Como ele disse, a UNITA, em Angola, domina o Leste, Centro e Sul e controla cidades como Nova Lisboa,Silva Porto e outras ainda. É um doente, pelo Movimento, em cujas fileiras já militou.

Os Cubanos foram "embolsados", encontrando-se agora, entre o Ovambo e a fronteira de Angola. Desta maneira, vão ser aniquilados. Alguns dentre eles entregam-se voluntários, dizendo para logo, haver sido enganados, na Ilha de Cuba. O mesmo em Angola, confirmam eles! Nem casa nem dinheiro nem comida sequer,segundo fora prometido!

À noitinha, recebi uma visita da Missão de Nyangana: Maria Schneider e uma Irmã nativa. Ofereceram-me laranjas e uma garrafa de vinho! A coisa não vai mal. Irei hoje embora? Já não acredito!
A minha enfermeira acaba de chegar!

******
Hospital
27-10-1976
Um dia mais, contra a minha expectativa! Prometeu o Médico, ontem pela manhã, que, após o meio dia,me dava remate ao caso da infecção, fechando as incisões e resolvendo a minha saída. Afinal de contas, esperei a toda a hora, mas tal não se deu!

De duas, uma: ou falta de tempo ou o meu caso não vai como penso! Podia ser, talvez, esquecimento dele, mas é pouco aceitável! O certo, porém, é que eu permaneço, esgotando, a custo, os dias intermináveis de um enorme hospital! Que horas extensas e que dias sem fim!

Quanto a visitas, foi dia morto, se não conto, de facto, a presença amiga do patrício João Pedro, que me trouxe agora o Novo Testamento, em língua inglesa.
Já li um pouco, mas o tipo de letra é assaz miudinho!

Poderia ler bastante, que há tempo em barda, mas falta o melhor: a disposição! Sou qual avezinha, encerrada na gaiola, onde tem o sustento, mas não a ventura! O ar livre, o céu azul; a verdura dos prados e a doce companhia!

Mergulhar nas margens de frescos regatos, faria para logo a sua ventura! Ir de planta em planta, ascender aos outeiros ou banhar-se ainda nas águas tranquílas do rio Cubango!
Mas não! Tudo lhe roubaram! O seu mundo querido, liberdade e ventura... quanto ela amava! Que lhe importam afagos de alguém que não entende?! Que lhe dizem carinhos de mão ossuda e pesada?! Falta-lhe a leveza que as penas encerram!

Aqui estou eu, aguardando sempre, em longa ansiedade, mas o tempo não passa! Tão ligeiro se esvai, nos momentos de gozo!
******
Hospital
28-10-1976
Será hoje, realmente, o dia festivo, que me traz a liberdade?! Ontem, já tarde, veio prazenteiro o meu Cirurgião, tentando justificar a demora havida, Quis ver ainda o seguimento das coisas, ficando satisfeito, pelo modo como vão. Prometeu, em seguida, vir às 7 e 30, para
fechar-me as aberturas e dar alta, por fim, do meu Hospital.
Assim julgo que há-de ser!
Demais, foi o único dia em que, às 6 da mamhã, não tomei comprimidos. Ultimamente, eram logo 5 , de 6 em 6 horas.

Para tirar os pontos, não preciso de vir cá. Podem fazer-mo, no Hospital de Nyangana. Vou, pois, em breve, entrar na liça.. Durante um mês, recomenda cuidado, evitando sobretudo pesos maiores. Só objectos leves é que devo transportar!
Na hora que passa, vivo problemas, que bastante me oprimem. Até o pagamento, neste hospital. Como vou resolvê-los ?! Ouvirei, a propósito, o que diz o M´rdico.
Fora da pàtria. é tudo penoso: não tenho ninguém que me pertança, de samgue! Entretanto, espero solução!

Ao nosso Liceu irei apenas, segunda-feira, retomar os trabalhos. Terei, por ventura, de corrigir os testes, o que traz, em verdade, bastante fadiga!
E as chamadas orais, para efeito de exames?! Isto e o mais dão imensa canseira!
Terei força bastante, para levar a cabo a parte final?!
Dus me ajude!
******
Nyangana
29-10-1976
Finalmente, por Deus, estou no meu quarto! Tantas horas e momentos de enorme ansiedade! Ontem de
tarde, foram 4 horas, só para fechar as duas aberturas que a infecção originara. Tudo correu bem, na parte final. Havia duas "serras" que se afiguravam harto difíceis ao subir e transpor: a chegada a Nyangana e a conta do hospital.

O Cirurgião, incansável e bondoso, resolveu, num ápice:
aproveito, na ida, o carro do Médico, fazendo ele então a visita de rotina aos hospitais da área. Quanto a pagamento,
perguntou ele se trabalho na Missão. Respondi prontamente que sou refugiado e que a Missão me protege,
dando alimento e cedendo combustível.
Ele, então rematou: " There !s no pay"

Fiquei satisfeito, não cabendo em mim, de contentamento, pois, deste modo, posso ajudar outros refugiados!
Sinto-me fraco e algo pesado, tendo algumas dores que me inibem, agora, de trabalhar. Queria escrever, ao menos três cartas: a minha irmã, ao Padre Abel,em Joaesburgo e a meu irmão.
Passadas que sejam as primeiras 6 semanas, voltarei ao Rundu, após 10 de Outubro, para ser estudado o caso da próstata
Deus seja comigo, em tanta operação!

******

Nyangana
30-10- 1976
Estou um pouco melhor, todavia não tanto, como era meu desejo! A perna está presa e só lentamente consigo mexê-la!. Entretanto, recomendam que ande e faça movimentos. Mas, afinal, como posso fazê-los, se tenho pontos recentes e uma enorme cobertura, aderente à pele?!
Dá-me a impressão de que há dentes afiados a cravar-se no corpo! Será isto, acaso, durante uma semana?!
Hoje, é sábado, No próximo futuro, já tiram os pontos! Fazem isso aqui, razão pela qual eu trouxe do Rundu uma carta do Médico. Apraz-me julgar que o pior já passou!
De momento, só este incómodo que, apesar de tudo, chega e sobeja! Desejava tanto escrever à mana e não vejo maneira! Vou tentar hoje, a ver se consigo! Seriam 4 cartas, mas escrevê-las?!

São já 10 horas, cantadas, na horta, por centenas de aves. É Primavera, fontenário de vida e imensa alegria, para todo ser vivo. Só o triste refugiado não sente, no peito, a chama da vida! Tudo lhe tiraram: bens e família; saúde e alegria!

É um morto-vivo que passa, arrastando-se, enquanto à sua roda chovem enxovalhos que arranham e ferem! O que vale e me alenta é a fé no Senhor que jamais desampara quem n!Ele confia.
******

Nyangana
31-10-1976
Convalescente de duas operações, sou agora recebido pela Missão Católica, sita em Nyangana, que, nesta data, me está protegendo.
O dreno aplicado e bem assim a cobertura da zona, sujeita a cuidados, tornam doloroso qualquer movimento.

Arrepanham-se as carnes ou melhor, a pele, que já não suporto! Quase três semanas, a substituir, várias vezes ao dia, as faixas de envolver! Isto, afinal, ruborizou-me a zona envolvida, que me vai molestando.

Hoje, tira-me o dreno a Irmã , Maria Schneider, a quem mostrei a carta do Médico. Quanto aos pontos, ignoro ainda quando será.. Não sinto energia, para trabalhar. Irei ao Liceu, a meio da semana, para aclarar a situação.
Como tenho direito a um mês completo, em caso de emergência, nada vou perder, no tocante ao vencimento..
Aproveitarei, pois, utilizando em pleno, as 4 semanas.

Ontem, de tarde, a muito custo embora, lá fui , então, conseguindo escrever apenas uma carta. Deviam ser mais, entretanto, não pude!
Na s próximas férias, seria meu desejo visitar Joanesburgo e, logo depois, a cidade, Pretória, sede capital da Administração. Nada conheço, na África do Sul e estou ansioso por férias ali.

É isto um desejo e, se bem calha, não passa de tanto! Pena tenho eu! Estar aqui perto e não ter ensejo! Vamos ver, no futuro! Quem me dera ver o Cabo! Dizem ser este o mais belo do mundo!
Lembra-me, a propósito, o Canto V da Epopeia Nacional, onde aparece a figura monstruosa do Gigante Adamastor, incutindo receio aos Nautas Portugueses. Ora,
foi ali que o poeta situou esse vulto horrendo!

******
Nyangana
1-11-1976
No dia 11, perfaz-se um mês, que deixei o Liceu, interrompendo assim a vida escolar. Julgava, erradamente, que, ao fim de 15 dias, retomava o labor ou que, ao menos, hoje, estaria a trabalhar. Nem era possível, já que ando travado, em razão de alguns pontos que, só depois de amanhã, vão ser retirados.

Será, pois, no dia 8, que volto ao Liceu, caso o Céu me favoreça. Calculo, judicioso, que este mês se faz sentir, de modo especial, pois é destinado ao treino imediato, para os testes finais. Enfim, o que não tem remédio, fica para trás! Haja saúde e que Deus me não falte! Coração ao largo!

Não vá de afligir! Virá tempo bastante, para o que for necessário e, de igual modo, para estar doente! Se as aulas acabarem, no princípio de Dezembro, resta apenas um mês ou cerca disso. Embora quisesse agir, não podia fazê-lo, visto que há debilidade, em todo o meu ser.

O mais do tempo gasto-o deitado. Falta-me energia! Não posso esforçar-me! Verei melhor o caso, na semana que vem
Se não fossem as Missões e a África do Sul, era desta feita que deixava o planeta!

******
Nyangana
2-11- 1976
Enfermeiras ou enfermeiros?
Em Angola, só vi enfermeiros! Enxameavam, por todas as ruas; montavam consultórios e tinham, no geral, o seu carro de luxo, assumindo ares de famosos Catedráticos! Sentia-me pequeno, ante um qualquer!

Interiormente, chacoteava, por vezes, mas no foro externo!
Um dia, em caso de aperto, recorri a um deles, para extrair-me um dente em crise. É que eles faziam tudo! No fim, perguntei quanto era, sendo esta a resposta:" Não é nada! Leve estes comprimidos, por causa da infecção e largue 227$00!
Caí de muito alto, ficando estatelado, perante a manobra! Ronha, astúcia, vigarice! Qualquer dos nomes aproveita já, para designar aquela baixeza! Pois se os tais comprimidos nada haviam custado àquele senhor, por serem amostras, como podia dizer que não era nada?!

Velhas histórias, em que a guerra cuspiu! Ora bem! Que vejo eu, em contraste, aqui no Sudoeste?! Enfermeiras apenas! Nem a sombra dum homem, no campo da enfermagem! Ares doutorais é coisa inexistente! Muito
prestáveis, de suma gentileza, pontuais e competentes, um
primor de encantar!
Nunca receitam! Executam apenas o que os Médicos ordenam. Pensei longamente por que há só mulheres, a fazer enfermagem e cheguei à conclusão de que, na verdade, é bastante melhor. Se falo de competência, basta o seguinte:
enfermeiras diplomadas pela África do Sul frequentam ali a Universidade, ao longo de 4 anos ( em 1976!), com teoria e prática, durante esse tempo! Apesar de tudo, nada resolvem, sem que o Médico ordene!

Belo exemplo, afinal, para a enfermagem de Angola! Sim, exemplo e,. ao mesmo tempo, lição proveitosa! Claro!

******
Nyangana
3-11-1976 (cont.)
Só enfermeiras!
Querendo achar a razão do facto, agora em causa, reportei-me ao Génesis, no momento solene da criação. Adão saíra já das mãos do Criador. Que belo moço não era ,aquele portento! Feito por Deus! Sem vícios nem taras! O nosso primeiro pai era já o remate da acção criadora.

Todos os seres da extensa Natureza o haviam precedido. Deus criara tudo, mas era um mundo sem alma! Faltava ali um ser inteligente, sensível e grato, capaz de amar e até sorrir ao seu Criador. Cá o temos já: é o formoso Adão!

Rei e Senhor da obra criada é, por assim dizer, uma ponte viva, entre o Céu e a Terra. Tudo é seu: animais e frutos. Mas o nosso bom Deus sente, desde logo que o jovem Adão, apesar de rico, inteligente e belo não é feliz, resolvendo em seguida, arranjar-lhe companheira. para o fazer ditoso.
" Não é bom que o homem esteja só!"Vou oferecer-lhe uma auxiliar"
Surge então Eva que as mãos do Criador trouxeram à existência. Que linda não seria!

Eu, agora, interrogo-me: por que não criou Deus outro homem igual, para o distrair? Ouço maliciosos responder a capricho: por causa do amor...por causa do sexo... da reprodução!

"Não é bom que o homem esteja só!"
Não foi somente por aquelas razões, de modo exclusivo, até porque Deus, se tanto lhe aprouvesse, podia criar, directamente, cada um de nós! Foi, acima de tudo, para alegrar e dar vida à própria Natureza, tornando o homem feliz.
Toda (a) mulher que o é em pleno, alivia o sofrimento e deixa atrás de si um rasto de luz.

******
Nyangana
4-11- 1976
Como celibatário e algo furtado ao convívio feminino,era mais difícil emitir opinião, acerca do assunto que ventila as enfermeiras. Agora, porém, que vivi o problema, podendo anaisá-lo em toda a extensão, já pois me é dado argumentar.

No Hospital do Rundu, há muitas enferneiras, que se revezam amiúde, não calhando A ou B, sistematicamente..
Apesar de tudo, evola-se de todas um ar de carinho e meigo conforto, que lhe torna a influência prodigiosa em extremo, É um sorriso gracioso, um ar de leveza, um mirar
carinhoso, sem jeito de malícia.

No espírito do enfermo que se vê estremecido, brilha prestes a luz que desfaz as trevas..

De quantas, no Rundu, me prestaram assistência, lidando comigo, tão faniliares e tratando zonas, assaz delicadas, guardo no peito, suave lembrança e jamais esquecerei a luz prodigiosa que me entornaram na alma,
avistando-se comigo!
E se aludo ainda ao modo inexprimível de substituir os pensos,?!
Que leveza de mãos! Tive a impressão de que os seus dedos eram asas mágicas de aves bem raras!
Que roçalgar tão leve, pela carne ferida! Mais diria, com razão, serem fadas a tratar-me!
Se fossem homens a lidar comigo, seria bem outro, o
ambiente do Hospital!
******
Nyangana
5-11-1976
Estados Unidos.
Terminou a disputa, entre Carter e Ford. Após renhida campanha e dadas influências,de toda a natureza, terminou o caso na vitória de Carter. Previa-se o contrário e não sei porquê o mumdo queria Ford. Mais ao corrente dos grandes problemas, tendo por assessor o famoso Secretário, Dr. Kissinger, esperava-se , pois, que não fosse vencido por uma figura, ainda no escuro, sem prática nenhuma.
Foi, pois, um democrata que desalojou os republicanos, há 8 anos senhores do poder! Será, realmente, melhor para o mundo e, de modo igual, para os Estados Unidos? Resposta difícil que tremo de formular!

Se olho, a valer, para os grandes anseios da pobre Humanidade que reclama e grita, por ser objecto de tremendas injustiças, afigura-se Carter melhor paladino.
Milhões de Negros apoiaram em massa, a candidatura, levando esta à vitória.
Na África Austral, haverá igual número, ao Sul de Angola e de Moçambique

Aqui, porém, o caso é diferente, pois a raça negra tem por fim oculto expulsar os Brancos daquele território. Problema gravíssimo! Os Brancos, afinal, também têm direitos! Caso bem sério de vida ou de morte! John Kenedy também foi paladino da liberdade humana.Trágico
o seu fim! Uma bala assassiina prostrou-o para sempre, cá neste mundo.
******
Nyangana
6-11-1976
O drama ingente da África Austral.
Vai-se esboçando uma aurora de sangue, malquerença e ódio, nesta zona do globo: rancor sem limites, entre Brancos e Negros. Se avalio com justeza, o sentir de uns e outros, é mais condenável a atitude dos Pretos.

Com efeito,pretendem estes, sem mais delongas, aniquilar de vez, a raça dominadora, ao passo que esta, de modo nenhum tinha isso em vista, no tocante aos Negros.

Postas assim as coisas e atendendo,além disso,a que o preto africano é facilmente iludível por vozes de longe, qu o incitam à guerra, fugindo a tratados, nada mais resta que uma luta de morte, em que uma das partes haverá - de sucumbir.
Neste caso, embora sofram todos, que a guerra civil é o maior flagelo, será, por fim, a raça negra que fica dizimada. É de notar, a propósito, serem os Brancos mais assisados e disporem de meios que os outros não têm.

" Em sua casa, pode tanto um homem, que até depois de norto, são precisos 4, para dela o tirarem!"Ora, é precisamente o caso dos Brancos, aqui na zona. Estão em sua casa!Não têm outra! Além disso, criaram em África, alta civlização, pois quanto se vê é obra de suas mãos.

Os Negros iludem-se, olhando para Angola,,onde o nosso Governo ofereceu aos Pretos, em bandeja de prata, a sua independência. Aqui, porém, não será o mesmo caso. Os
Sul-Africanos vão dar-se à guerra, até ao último soldado. h
O ideal a atingir, se houver, realmente, Pretos com cabeça, é o arranjo em família, com boa harmonia, sem dar ouvidos a vozes de longe.

******
Nyangana
7-11- 1976
Amanhã, exactamente, faz 4 semanas que fui paao Rundu Não pensava então que levaria um mês, ara
voltar ao trabalho. Duas semanas, isso admitia! Entretanto, surgiram problemas e a quertão agravou-se, duplicando assim, as apreensões.

A infecção que logo sobreveio transtornou os meus cálculos.. Por esta razão me encontro desligado, sem retorno ao Liceu. Recomeçarei, a 8 do corrente, início da semana.
Não tenho (a) certeza, pois só ante-ontem foram retirados os últimos pontos! A enfermeira de serviço disse-me, por fim, que hoje, exactamente, faria uma visita, para
resolvermos. Ainda não veio. Se não puder, talvez amanhã, na parte da manhã. Neste caso, perco um dia. Estou, pois, inseguro.. Contudo, a saúde em primeiro lugar!
Surgirão mais transtornos?! Para evitá-los, se tomaram cuidados, retardando sempre as actividades, Não
vá eu agora estragar num momento, o que tanto custou!

Também já falta pouco, até ao final. Um mês apenas!
Se me reservam os testes, feitos em Outubro, e as provas de Pretória, não sei, para já, como hei-de aguentar! Quem precisa como eu tem de sujeitar-se.

******
Liceu
8-11-1976
Cheguei às 8 horas. Passados minutos, começava logo a terceira aula, que devia dar, mas faltou-me energia.
Tendo em vista lançar-me, dispusera lentamente os objectos necessários, ficando tudo em ordem, para início do trabalho.
Qual o meu espanto, ao sentir-me prostrado, gotejante de suor! Fiquei alarmado, pois estava longe de esperar tal desfecho. Por esta razão, houve de ir para a cama, onde me estendi, a todo o comprimento, afim de recuperar,do grande cansaço.
São 15 para as 10, ocorrendo agora a 3ª aula das que me pertencem. Tenho de ir ao Liceu apresentar-me ao Reitor e perguntar, desde logo, o que hei-de fazer. Não me sinto com forças, embora o ano escolar esteja por um triz!

Por outro lado, a necessidade obriga-me a valer, que o 25 de Abril, em seu evoluir, estragou-me tudo! Além disso, minha irmã, em Portugal, desalojada e sem meios, também pesa sobre mim, de mneira especial. Deus me valha e console, pois é hora de incerteza e de grande amargura!

Aconferência, havida em Genebra, acerca da Rodésia,
encontra-se agora em ponto morto. Ora, esse caso liga-se
estreitamente com o do Sudoeste e África do Sul..

É um barril de pólvora! Dada a explosão, vai tudo pelos ares! Quem me dera, pois, estar longe daqui, na hora
fatal, em que surja a desgraça! Tudo agora está pendente do senso e acuidade que os Pretos revelem, fechando os ouvidos â voz da sereia, que lhes canta de fora!

******
Liceu
9-11- 1976
Avistei-me ontem, com o nosso Reitor, afim de saudá-lo e ouvir-lhe o parecer. Entregou-me o cheque, respeitante a Outubro e perguntou logo pela saúde.

Como eu lhe disse que estava fraco, inquiriu sobre o tempo, em que eu, realmente, poderia trabalhar.

Hesitando, no assunto, respondi, finalmente, que estaria
apto, na próxima semana. Esclareceu ele que não fazia mal
e que as minhas aulas estavam sendo ministradas por Oficiais, já diplomados. Certificou-me ainda de que as Provas de Pretória se encontravam, de facto, já em seu poder, entregando-me um número, para dar parecer, acerca do conteúdo.

Em 25 e 26 do mês corrente, efectuar-se-ão os Pontos de Inglês da Form One, que este ano preparei: consta de 4 turmas.
Como era natural, vim logo para casa, apressando-me ali a observar as Provas de Inglês.

Estão, realmente, bem elaboradas: variedade de assuntos e abundantes perguntas, proporcionando aos alunos campo variado, afim de revelarem os seus conhecimentos e fazerem opções.
Entretanto, para o nível dos pretos que vêm mal preparados, da Escola Primária, não é acessível para o Standard 6.
Hoje ou amanhã, vou já informar o Reitor do Liceu, acerca da questão e ouvir o que ele diz.
Coração ao largo e que Deus me proteja.
Tudo me facilitou, não obstante a doença. É uma grande nação a África do Sul!
******
Liceu
10-11-1976
Planos de Futuro.
Vai quase no fim o ano de 76. Gostaria, realmente, de passar mais dois, como já disse. Nessa altura, estou com 6o, muito bem cumpridos.

Haverei tratado o caso da saúde, conseguindo reaver o que fora roubado, na vizinha Angola. Verei bem o problema! Como a data provável da independência para o
Sudoeste ocorrerá ,segundo consta, no mès de Dezembro de 78, parto do Cavango, após os exame.s

São estes os meus cálculos, mas eu ponho sim e Deus é que dispõe! A última palavra pertence ao nosso Pai, cuja
vontade para mim é santa e mais que respeitável.
Entretanto,como é preciso lutar, para obter o pão em 3 anos de escola, ganharei, nesse tempo, aproximadamente 12 000 randes, que balançam, mais ou menos, o latrocínio de Angola.

Obterei esta soma pelo meu vencimento e pela ajuda pronta que as Missões e Pretória estão canalizando, em meu favor! Viajo de graça; internam-me de graça nos hospitais do Estado; operam-me lá e recebo ali madicamentos, sem nada pagar! Uma bela ajuda!
Sem isso, pobre de mim! Ainda que pague 20% não é de assustar!
Se me exigissem tudo, estava perdido, com a alta de preços! Não ganhava, decerto, para remédios! Deus, nesta hora, é que está favorecendo a minha pessoa!!

Este ano cheguei ao fim só com 35oo randes; em 77, já sobe o montante a 4400; em 78, a 4795.
Isto, caso haja ordem e tudo corra normal, nesta parte da Ãfrica!
Com este montante, embora pequeno, asseguro já um viver modesto, nos anos da velhice!.

******
11-11-1976
Nyangana
O sexo neutro
Certa ocasão, encontrava-me em Prados, aldeia serrana, contígua da minha, por terras da Guarda. Havia uma festa e, a convite de amigos, estive presente.

Sentados à mesa, conversavam todos, com muito agrado, em companhia distinta, de que fazia parte o Meritíssimo, o
Dr, José, abalizado Médico. Ora, referindo-se este às notáveis qualidades de certo rapaz, prorrompi, abrupto,
em funda exclamação: então o sujeito é do sexo neutro!
Não queiram saber!
Provocou hilaridade a saída espontânea, havendo ali pessoas que desataram a rir, de maneira incontida.
O Dr. José Manso ficou em silêncio; eu, bem fora de mim!

Iria longe demais?! Não estava em minha casa! Aquilo, porém, tinha forçosamente de ser o que foi!
O dito rapaz era um anjo entre os homens: inalterável e sempre sereno, tratando embora com o sexo fraco!
Deu-me aquilo pela barba, pois não acho possível!

Um homem que o é fica sempre virago e portador de energias que não pode esconder nem deixar de sentir! Seria anormal ou do sexo neutro, como eu confessei.
Claro! Isto só por troça! Todo homem sente, necessariamente, o impulso natural que Deus nele infundiu. Nem sequer tão pouco ele o pode aniquilar! Seria uma aberracção!
Lá por virtude, pode orientá-lo num sentido nobre.
evitando as consequências a que seria levado, se deixasse falar a sua natureza.
Entretanto, o que então não entendia acho-o hoje pura
realidde. Entre certa gente, pertenço também ao sexo neutro
******
Nyangana
12-11-1976
Racismo.
Por hipocrisia ou razões ocultas, joga-se hoje muito com o termo, "racismo."O seu conteúdo, no entanto, pode variar, de homem para homem! Eu, na verdade, entendo-o como segue: desprezo de uma raça, tedo-a por inferior, não a admitindo a pleno convívio nem lhe concedendo os mesmos direitos que às outras raças.

Como ser humano, jamais desprezaria um ser racional, onde há capacidade para sofer e amar. Como cristão, outra causa mais forte actua sobre mim: Deus é Pai de todos, sendo nós irmãos! Além disso, Nosso Senhor Jesus Cristo
derramou o angue, no Monte Calvário, por toda a
Humanidade
A palavra "inferior" carece de reparos. Há um aspecto aceitável e outro que o não é! Aquele indica somente que as raças humanas são desiguais, em seus predicados. Isto é
evidente!
Não duvido nada que o povo alemão, o povo judaico e o japonês sejam dotados de qualidades raras. Neste sentido, os outros povos são inferiores, comparados com eles.
O segundo sentido da palavra " inferiores", coloca certas raças ao nível dos animais ou proximamente. Este
coceiton é falso em extremo e deveras condenável! Isto, sim é que é racismo!

Quanto ao mais, seja por exemplo, não amar contratos de tipo matrimonial, não julgo racismo, embora a lei dos homens não deva proibir.
Até entre brancos há preferências e recusas formais!

******
Nyangana
13-11-1976 (cont.)
Eu sei muito bem que há pessoas diversas que vêem nisto racismo! Acho improvável! A lei humana deve permitir cruzamento de raças, embora estas, por sua vez, se arroguem o direito de fazer sua escolha. Não é verdade
que, mesmo entre brancos, há certa repulsa, ao tratar de escolher? A ou B?

Não é assombroso o caso dramático do famoso Tolstoi?! Quem alguma vez leu a Tragédia Sexual fica habilitado, para dar uma resposta. A esposa que adorava tinha nojo dele, o que provocou um viver amargo de tortura moral e também física.
Tolstoi, afinal, era um homem bom, mas isso não bstou a que toda a sua vida andasse doente, por motivos psicológicos! Quer isto dizer que não estavam talhados um para o outro. Ela, por sua vez, também não tinha culpa!

Vamos agora dizer que havia racismo?!
Não ocorre a mesma coisa, nobeijar de uma criança?!

No Diário imortal, escrito pos Amiel, refere-se o facto. É verdade confirmada sentirmos fascínio por certas
crianças e também experimentarmos repulsa notável por
muitas outras! Beijamos, com gosto, as da primeira série ,
mas não fazemos o mesmo às da segunda!.

Um homem branco repele uma preta, se ela intenta matrimónio? Será isto racismo?! Não o ceio assim! Não repele igualmente determinadas brancas?!

******
Nyangana
14-11-1975 Racismo (cont.)
Entretanto, se um preto ou uma preta se virem repelidos,, em questão de matrimónio, por parte de uma branca ou então de um branco, dizem logo, à boca cheia, ser puro racismo. Eu, cá, navego há muito, em outras águas.
Ainda a propósito, vou agora apresentar dois casos típicos, que jogam em contraste e foram observados, em terra angolana.: um, em Silva Porto; outro, o segundo, na Colónia Penal ( Dirtrito do Bié).

Trata-se, efectivamente de dois sujeitos brancos.
Um dentre eles confessou-me um dia, em conversa amigável: " Estive solteiro, aqui em Angola, durante alguns anos, mas nunca me sucedeu o que vi fazer a outros.: manter com pretas relações sexuais, Para mim era impossível! Se o não faço com brancas!

Seria racista?! Não era. Tratava os pretos humanamente!
Nunca humilhara fosse quem fosse quem fosse daquela raça! A sua repulsa nada tinha de racismo! Era , de facto, um sentimento espontâneo que podia tomá-lo com certas mulheres da sua própria raça!

O segundo caso apresenta-se ao contrario, F ez o dito sujeito um elogio tal da consorte preta, que fiquei ambasbacado Não havia qualidade que ela não tivesse:
amor estreme ao lar, assim como ao trabalho; honestidade; asseio e limpeza; docilidade, etc. Onde está o racismo?

Podia citar ainda o mais fanoso desta natureza; a amarela
Natércia e Luís de Camões ( ver soneto " Alma minha gentil", a ela dedicado
É de louvar que w lei humana deixe fazer livra o acto matrimonial.
******
Liceu
15-11- 1975
Holden Roberto emergiu do silêncio, revelando há pouco, emocionantes e graves casos.
A FNLA e a UNITA controlam dois terços de terra angolana, limitando-se, pois, o MPLA às cidades costeiras e uma estreita faixa de Luanda e Malange.

Foi à França e Alemanha, para conseguir armamento pesado. Conta ainda ir à China, com a mesma intenção.

Informou igualmente que os soldados de Cuba têm sido larápios, já que, só no Lobito, carregaram sem vergonha,
2000 veículos, todos angolanos. os quais seguiram para a Ilha de Cuba. Só de marca alemã eram 6oo!

Fez saber ainda que da terra angolana continua o grande êxodo, pela sanha feroz que é timbre dos Cubanos. Destroem aldeias, raptam mulheres, assassinam jovens, com mais de 1o anos!

Só para a Namíbia terão vindo já 47ooo, encontrando-se na Zâmbia mais de 14000..
Estes números referem-se aos angolanos.
Na semana anterior ao 11 de Novembro, travou-se uma luta, assaz renhida, no Sul de Angola, contra as tropas da UNITA
Disse ainda Holden Roberto que a mesma operação se está desenrolando, no resto do país, fugindo a população para a Zãmbia vizinha.
Os dois Movimentos, declarou o Chefe, jamais descansarão, enquanto houver um estranho que seja,
em terra angolana. O plano assente é destruir pela base, a
economia de Angola.
******
Liceu
16-111-1976
Um mês que perdi encravou-me altamente a sequência das aulas, pois não tenho elementos. para julgar das orais. Devia ter começado, no mês de Outubro, logo no final da primeira semana, dispondo assim de mês e meio. É que, em 18, já para breve, entrego o que apurei ao nosso Reitor.
É um processo interessante e bem mais humano que o
usado em Portygal. Não há júri. O professor da turma indica a matéria a ser preparada, por cada um dos alunos (um capítulo cheio ou só parte dele, no Conde de Monte- cristo) e ajuíza depois, atendendo à leitura, compreensão e
conversação, de tópicos fáceis, etc. Ao menos, três notas. O total conseguido não pode exceder 5o pontos.

Pode ainda escolher-se o Estado do Cavango, o seu rio familiar ou outro assunto, bem ao alcance, como certos costumes, folclore, etc.
Os pontos referidos vão depois somar-se aos 25o da Prova Escrita. Eleva-se, pois, o todo a 300 Pontos. Para que o aluno avance, há-de chegar a 100. Abaixo disto, fica reprovado!
O professor da cadeira é quem vê as Provas e as classifica. Júris não existem!
Para obter a nota das chamadas orais, tive de usar o processo exposto, mas isso aconteceu, porque, realmente, o não havia feito, ao longo do ano.

Tal nota decorre do que o aluno revela, durante o ano escolar. Não se fazem chamadas, para notas adar e recomendam ao vivo que o aluno evite sempre situações
enervantes, como as de chamada, para ser classificado.

******
Liceu
17-11- 1976
Costumo ouvir a "África Livre", às 19 horas. Ser em Português e tratar de Moçambique, é motivo que agrada. Geralmente, faz-se um comentário, vindo em seguida,o"recorte da imprensa".
Não faltam, por vezes. informes variados e pormenores, acerca de Moçambique.
Ora, o recorte da imprensa, vindo ontem a lume, encheu-me de surpresa e logo actuou como explosivo. " Um comunista da velha guarda", tal era o epíteto, desde a primeira hora.
(1917). Teve, pois, ocasião de avaliar a fundo o tal comunismo!

Cinquenta e oito anos é, por assim dizer, a vida de um homem. Ele tem agora 84. Este senhor, que é russo de berço, trabalhou, em tempos, com a esposa de Estaline, ocupando na sua Pátria, lugares de relevo, dentro do Partido. Resolveu mais tarde abandoná-lo e deixar a Rússia,fugindo para a Suécia.

Para obter a devida licença, esperou 4 anos, alegando em vão que tinha lá uma filha que há muito não via.

Escreveu uma carta ao então Secretário do Partido Comunista que será eternamente um documento assassino
contra o Comunismo: " Trairia os meus ideais de justiça e liberdade e de sociedade, regenerada, continuando filiado.
Por isso, desligo-me."
******
Liceu
18-11-1976
Última escrita, respeitante âs notas.
O sistema aqui usado é bastante original e diferente do nosso.
Entreguei ao Reitor as notas obtidas, em chamadas orais, sem presença estranha. O total dos pontos não excede 50, distribuindo-se, em regra, por 5 alíneas: 1. leitura preparada; 2. não preparada; 3.tópico sugerido, dado pelo professor e preparado, em seguida, pelos alunos,
durante alguns minutos;

4. dado já o tópico, o aluno responde, sem qualquer preparação. O tópico em causa pode versar qualquer tema: um parágrafo do livro; um parágrafo também, mas de outro livro, como por exemplo " o Conde de Montecristo", dado na aula, durante o ano; um livro estranho, ao alcance do aluno, etc.
Estão, pois, 4 alíneas, restando a 5ª. A derradeira é chamada "general": um assunto qualquer, mas já sem livro, como por exemplo: refeições diárias; o que faz a família do aluno; a Escola que frequenta; seus planos de futuro; jogos preferidos; ocupações diárias; modo de passar as férias e assim por diante.

O 7º e 8º têm Provas Escritas, emanadas de Pretória.
O 6º recebe-as do Liceu que frequenta, na ocasião.
Julgava-me feliz se, nos tempos de rapaz me tivessem aplicado este processo humano, justo e racional. A minha
média geral subiria, desde logo, 3 valores por assunto.

Conclusão: o que ficou registado, nos livros escolares, não é a verdade. Encontra-se ali o produto real do nervosismo, que não deixa jamais raciocinar o aluno e o vai prejudicar, na vida profissional, quando o tempo chegar.

******
Liceu
19-11-1976
Vai-se abeirando o final do ano. Refiro-me, é claro. ao ano escolar..Que bom! Mês e meio de férias, após 10 meses de intensa labuta, em que tudo para mim foi duro e árduo. Quantas dificuldades não tive de vencer, numa fase da vida, em que já não é fácil voltar ao princípio! De facto, aos 58, é só continuar a linha encetada. De modo algum iniciar ainda processos novos!

Os meus, então, foram novíssimos! Mas, enfim, com a graça de Deus, em cujo auxílio depositei confiança,
vou chegando à meta. A necessidade é que me obrigou.
Apesar de tudo, esta dura vivência trouxe algum bem, havendo ocasiões de verdadeiro prazer, O contacto gera benefícios.
Ensimesmar-se é desaconselhável, pois roda o mundo
e nós ficamos. Há sempre coisas novas de grande interesse e processos mais fáceis que urge detectar. Os outros em globo, vêem sempre mais do que um isolado.
Foi, portanto, benéfica esta minha permanência
no Sudoeste Africano. Muitos outros dados virão adicionar-se.
******
Nyangana
20-11-1976
No dia que finda, transpirei um bocado, não só por causa do clima, se não também da composição.
Trata-se de um modelo a imitar pelos alunos.
Já fiz a mesma coisa, a respeito das cartas. Escreve-se no quadro, e os alunos copiam. Quanto às últimas, o caso foi fácil, pois achei duas, numa Gramática.

Quanto à redacção. o caso assoberbou-me. Tinha eu de fazê-la, não a achando prepreparada como eu desejava, Não era fácil de achar... Dois assuntos diversos, ao mesmo tempo.
Se não é lógico este processo, é ele bastante prático, já que deixa maior margem, para o aluno escolher.
Consultei vários livros, mas fi-lo em vão! Finalmente, esgotados os recursos,, lancei mão do Okavango, aproveitando achegas, respigadas ao acaso.

Em Angola, era eu próprio que fazia os textos, havendo necessidade, mas aqui no Sudoeste, vogo em outras águas,
porque a censura é feita, a rigor, por quem fala Inglês!
Isto fia fino! Às duas por três, lá vai uma falta que bastante confunde!
Lá no princípio, tinha mais receio.
Pois a dita carta abrange 10 linhas e vale 3o pontos. A
composição ascende a 20 linhas, recebendo 7o.

Temos, portanto, a seguinte contagem: 50 na orai; 1oo, provenientes da carta, junto à composição; 150 da
Prova de Gramática e compreensão do texto.
Perfaz-se, deste modo, um belo total de 300 pontos!.
Esta é, pois, a via seguida, nos Liceus do Sudoeste, em que pontificam Reitores , sul-africanos., utitlizando programas, feitos na sua Pátria..

Uma vez integrado no processo exposto, já não custa, afinal! Só a princípio é que ele, de facto. levanta calafrios!

******
Liceu
21-11-1976
Em vez do Missionário, que não pôde vir hoje,
celebrámos nós a Eucaristia, para os alunos do nosso Liceu. Sendo, na verdade, a festa da Realeza do Snhor Jesus Cristo, não faria sentido ficarem privados desta solenidade. Por isso, às 8 e 30, estava em princípio a sagrada função.
Houve cantos diversos e usaram-se três línguas: Dirico ( epístola e evangelho); Afrikaans ( ordinário da Missa e cânon); em Inglês, e o que falta ainda.

Alunos e alunas estavam atentos. Muitos deles comungaram, notando-se respeito e concentração.
No fim, respondi às perguntas que alguns fizeram.
Estavam presentes: Rafael e David, Stephanus e Reinold. Este bom aluno vai deixar o Liceu, pois é já finalista.
O assunto da conversa foi muito variado, recordando-me agora de que o tópico maior versou o Comunismo e seus derivados. Veio também a pêlo a faceta religiosa e bem assim, a económica, a social e política, focando sobretudo
as duas primeiras.

De modo nenhum podemos na vida excluir o nosso Deus,
Ele enche tudo e é razão de quanto existe. No tocante à
produção, se trabalho para mim, jamais tem limites o esforço que dispendo, o que não se verifica, trabalhando para o Estado!
Como eles são pretos e, ao que dizem, ficarão já livres, em
1978 ( 31-12), gostei de focar determinados aspecto.

******
Liceu
22-11-1976
Na sala de professores, vai grande barafunda: matraqueiam as máquinas, surgem composições, tentativas diversas, para que os alunos fiquem ao par, Bem se vê, pela aragem, que o fim está próximo.

Os negros, por sua vez, dão mais atenção, indo a passeio, de livro sobraçado. Ninguém, neste mundo, quer fazer má figura!
De todos os docentes, ficam só os veteranos, Há 7 dentre nós, que pertencem ao exército. Por isto mesmo, acabado o tempo, no mês seguinte, partirão sem demora, para a sua terra.. Outros, depois, virão substituí-los, durante dois anos.
Também eu ficarei, até ao final de 78, se as contas não falharem. Nessa altura, darei costas ao Cavango, regressando a Portugal, onde espero morrer, quando Deus for servido.
É muito provável que, ao chegar esse tempo, as coisas vão melhor, sentindo os Portugueses maior conforto e mais alegria.
Se, por má sorte, o sistema comunista se infiltrasse no País,, regendo ali a vida nacional, voltaria para aqui, mais 4 ou 5 anos. Tenho para mim que nunca a minha Pátria vai aceitar o Comunismo ateu. Lá como Partido, ainda vá que não vá, mas em governo de franca maioria ou Ditadura cruel, era enorme desgraça!

Um país cristão, individualista e bastante maduro, jamais
aceitará um sistema do género! Prezo em alto grau a minha liberdade! Foi Deus que ma deu e nunca ma tirou!

Não venham os homens armar-se em mandões e tutores baratos da mimha consciência! Não aceito!
Baptizem o Comunismo e depois veremos!
Precisa alterações!
******
Liceu
23-11- 1976
A noite passada fizemos serão. Homenageou o Liceu os nossos finalistas, Houve, naturalmente, discursos e brindes, em diversas línguas. Algumas vezes, recorreu-se a intérpretes, servindo para isso o distinto finalista, de nome Johannes..
Havia muita gente e foi ao ar livre, no relvado fronteiriço à casa do Reitor. O corpo docente fazia-se notar, executando canções, afim de alegrar o ambiente festivo. O mesmo fizeram os nossos finalistas, cantando vários números que mostraram perícia.

Para mais animar, houve dansas nativas. Embora situados em região semi-desértica, reinou grande euforia, por parte de todos.
Do Rundu, capital, vieramn também alguns convidados,
salientando-se Duprès, capitão do exército, mais a Ordenança; Mr. Eliseu, membro do Governo; o Capelão militar e seu ajudante.

Em lugar de honra, como sempre acontece, o Chefe da Tribo ( o Rei), Hompa Linus Shashipapo. Este Rei nativo lmpressiona muito. À volta dos 70 ou mais talvez é um cristão exemplar, um homem recto e de costumes austeros. No trato é lhano, acessível e franco. Nunca ele falta à Missa dominical!
Esta área extensa pertence, de facto, à Missão de Nyangana., onde passo o Domingo.
Os nossos alunos são todos católicos, ao passo que os docentes, todos protestantes ( calvinistas, sim, da igreja
reformada)). Os pretos são católicos.
Hompa Linus Shashipapo benzeu-se e rezou, antes de comer.Na sua conversa é de extrema candura.
Lá no passado, era pagão, mas baptizou-se há poucos anos, renunciando a très mulheres, das 4 que tinha.

******
Liceu
24-11-1976

Às 18 horas, havia por aqui grande agitação e os
alunos cantavam, na sala de sessões. Encaminhei-me logo para o local, julgando ir a tempo, mas afinal havia-me enganado.
Tudo a postos! Falava o Reitor, abrindo o encontro.
Na plateia elevada, a tribuna de honra! Estavam sentados os seguintes senhores: Mr. Jacob, Comissário do Governo; Mr. Erasmus que fez um discurso; o Ministro da Justiça ( preto) que também discursou; o Capitão do Rundu, Mr. Duprès, que falou derradeiro.

Embora em Africânder, percebi globalmente o sentido em vista: falavam de Comunismo, MPLA, FNLA e UNITA.
Por fim, "slides" curiosos, documentando, em pormenor, a guerra de Angola. Também não faltou o Sudoeste Africano.
Terminou a sessão com o hino do Cavango
.
***
São 11 horas. Encontro-me na vivenda.
De facto, às quartas-feiras, tenho as aulas seguidas, com
intervalos de 10 minutos, após o 4º tempo. Isto permite, sem dúvida, regressar mais cedo. Que, realmemte , nada já fiz, preferindo os alunos rever a matéria. Foi lá com eles!

Aproveitei esse tempo, revendo os meus escritos de 67. Foram 19 que ficaram aprontados.
Como se vê, terminaram as aulas. Amanhã, se Deus quiser, começam as Escritas!
Só é grande pena que eu não tenha família nem lugar para férias!
Se eu vivo só e pobremente!

******
Liceu
25-11- 1976
Às 11 em ponto, vai começar a Prova de Inglês:
redacção e carta! A primeira Prova teve seu início às 7 e 30, no grande salão, destinado às festas.
A vigilância cabe aos professores.
Em cima de cada mesa, pode ver-se uma régua, uma pequena borracha e duas esferográficas.

Pouco antes do início, os docentes da matéria entregam a cada aluno o material que falta: Provas de Pretória e papel de exame. É tudo assaz prático: ao alto, avistam-se dizeres, no quadro preto.
De Novembro, 25, a Dezembro 8, segundo estou informado, o nosso trabalho é apenas este: vigiar as Provas; ir classificando, à medida que vêm e aprontar por escrito, os resultados obtidos. Tudo muito simples!
Passar dias em sessões, para ditar as notas, é coisa que não há!
Provas orais, como em Portugal, não figuram também.?!
Porque não fazer assim, em todo lugar?! Quem melhor que ninguém pode avaliar, com todo o rigor, o que o aluno aprendeu?!
O aparato dum júri, formado por estranhos; interrogatório, adrede preparado, feito por inexperientes; uma assembleia que escuta, aprecia e reage... tudo isso é
depressivo, alarmante, enfatuado!
Efeito necessário: as crianças enervam-se e o exame atraiçoa-as.
Quando será o fim de tanto espavento, cujo resultado não é a verdade?!
******
Liceu
26-11-1976
Efectuaram-se hoje as Provas de Inglês e não em 25. São, evidentemente, as Provas Escritas do 1ºano, Standard 6. Ao presente, já têm os alunos 8 anos de Escola
Primária, sendo pois três língua s que os primários estudam; Dirico ( região do Cavango), Inglês e Africânder.

Quando no Liceu, junta-se o Alemão.
Como vinha dizendo, Form one ABC e D tiveram hoje a Prova de Inglês. Um ambiente de sonho para todos os alunos!! Tudo em ordem, sem nada faltar!
Ficam nas carteiras, pela ordem alfabética, Alguém superintende, mas sem espionagem!

Achei graça, de manhã, ao pedir enunciados! Julgava, na minha, encontrá-los encerrados, num cofre forte! Nada que se pareça! Estavam, como outros, expostos numa sala,
cujas portas, geralmente, se encontram abertas.

Tenho para mim que os estudantes não entram, mas seria facílimo, se algum tentasse!Tudo natural... tudo muito simples, sem haver truques nem puerilidades!
Os nossos alunos, quase todos de gravata, assumem para logo seus ares de importância.
Daqui a 2 anos, o Sudoeste é livre, com o nome de Namíbia, como ouço dizer.
Nota-se, pois, que desejam, a fundo, vir a ser alguém,
imitando, a rigor, as maneiras dos Brancos. O mesmo se observa, no processo de comer: garfo na esquerda e faca na direita, para ajudar aquele a dispor os alimentos.

Tal operação leva imenso tempo, quando falta experiência, mas arranjam meio. Tendo bom estômago, pouco mastigam, empurrando a comida, após uma volta!

******
Nyangana
27-11-1976
Vinte e uma horas! Se não cumpro agora, fica para amanhã, o que não me quadra! É costume velho escrever mais cedo, mas hoje, infelizmente, não foi possível! Efectivamente, as Provas de Inglê s absorvem o tepo e moem o físico!

Comecei a tarefa, às 7 e 3o, e quase fica a inpressão de nada haver feito! É de notar, para já, que os primeiros Pontos levam mais tempo. Depois, ganha-se embalagem e
vai bem melhor!
Aconteceu também que houve uma visita: Mr. Burger, Secretário de Estado e Ministro Adjunto, vinha auscultar-me, para dupla Missão, no famoso Caprivi, já perto da Zâmbia.
Os refugiados de Angola querem a valer, igreja e escola, sendo eu indicado para tal missão. Isto disse ele.
Respondi prontamente, alegando os motivos, ( não saíram todos)... Nem que viesse, do alto, a corte celeste!
Só obedecia, dizendo-me Deus: " Vai! "

Carradas de razões impedem-me a ida.
Ao chegar do Liceu, encontrei duas cartas:, ambas esperadas: de minha irmã e da Torralta. Levaram-me assim parte da nanhã, atrasando-me tudo.
Falta-me ainda rezar o terço, erguendo-se, em frente,
montões de Provas
******
Liceu
28-11-1976
Nove horas da noite!
Havendo começado, às 5 da manhã, só agora mesmo acabei, de vez, a segunda Prova. Já ontem, passei o dia inteiro, no mesmo fado! Nem o terço rezei! A Mãe do Céu
desculpa! Não o faço por mal!

A minha cabeça está pesada! Não acerta as coisas! Ao fim de 4 dias, o máximo 5, já terão fim as minhas lidas! Depois, a escrituração: tirar as médias, anotar, a rigor, as percentagens e outras coisas mais, de que não faço ideia, por ser o primeiro ano.

Estes dias são pesados, mas dentro em breve. como passo o tempo?! É certo, realmente, haver escritos em barda, para rever e até corrigir, mas precisava também de arejar um pouco, refazendo as energias.

Se fosse em Portugal, mas aqui no deserto! Só pretos e pretas que nada ne dizem, pois não lhes interesso!
Não correram comigo, de terra angolana?! Além disso, mataram-me a família!

Se vou pela estrada, só vejo estrume, buracos e pedras, burros e porcos,bois, vacas e cabras; se enveredo pelo mato, só espinheiras e agudos acúlios!
E o meu Natal?! Agora me lembro! É este o primeiro que decorre no exílio! Por outro lado, só fala à alma, junto de quem se ama!

Não é costume chamar-lhe o povo " festa da família" ?! Onde vive a minha?! Nem sequer me envolve ambiente
amigável!
Os pretos de agora andam tão impantes, que deixam a
impressão de trazerem talvez o diabo no ventre ou então de que lhes devo dinheiro
O que faz nas gentes a propaganda insidiosa! Acreditam em tudo! Tarde o reconhecem, por ser ao destempo!
Não estou para aturá-los! Tenham boa sorte e que nada lhes falte! Cá me arranjarei, o melhor que puder!
Eu e a solidão fizemos um pacto de funda amizade! Já não é tão duro este vale de lágrinas!

******
Liceu
29-11-1976
À data que passa, trabalho à sobreposse! Não ouso dizer que as Provas sejam muitas, pois o seu número não passa, realmente, de 109 alunos, distribuídos por 4 turmas.
No entanto, há vários factores que tornam morosa tal operação: letra de pretos que estudam 4 línguas, misturando-as,sem pejo, na construção da frase; mentalidade infantil que assaz dificulta a compreensão , tratando-se de ensaios; escrita descuidada, pois numa hora, devem eles dar pronta a redacção e a carta; jeito novo pra mim. habituado como estava aos moldes portugueses.

Em razão de tudo isto, a minha cabeça esvaiu.se já. Noto claro e sinto fundo que a fadiga me prostra e não posso chegar até onde queria.

Composições e Cartas levam-me dois dias, começando, às 5 e terminando só às 22. A outra Prova que é extensíssima e harto variada, pois comporta nada menos que 73 perguntas, ( incluo as alíneas) requer outros dois!

No próximo ano, custará um pouco menos. É de notar que, mesmo em Potuguês, se torna difícil corrigir redacções!
Numa língua estrangeira, que diremos, então?! Dura obra!
Deus ajude e me valha, para chegar até onde eu quero!

******
Liceu
30-11-1976
Acaba, neste dia, o mês das Almas, quero dizer, aquele mês generoso. em que nós sufragamos os queridos ausentes! Refiro-me, é claro, aos mortos saudosos.

Não há, no peito humano, um coração sensível que vibre e sofra, ao lembrar os que partiram?! Como olvidar quem tanto nos amou?! Esta gratidão é tão longa como a vida e prolonga-se ainda para além da morte! Quem haverá, no mundo pecador, que não tenha em pensamento os autores de seus dias?!
Esses mágicos seres, tão belos e santos, que só Deus lhes sobreleva! Que figuras amorosas,ceifadas pela morte, sem dó nem piedade!
Estarão no Purgatório? Deus é quem sabe, mas em tal caso, é premente dever sufragar as suas almas, para que Deus, em tempo breve, as leve para o Céu

Além destes entes que a piedade filial traz sempre na lembrança, há também os avós e demais familiares; os protectores e amigos; os nossos benfeitores e, de modo geral, os que mais sofrem ali, não lembrando a ninguém!
Novembro e todo ano são dias para amar e ajudar quem precisa!

Orações piedosas e boas obras: actos generosos de mortificação bem como de penitência é tudo isso um mundo de beleza, graça e caridade, em favor das pobres almas que sofrem no Purgatório, suspirando, noite e dia pela nossa ajuda e pronto auxílio.

Quem existirá, tão desnaturado, empedernido e louco, que não se enterneça, com estas realidades, procurando, sem detença, fazer alguma coisa por aqueles que o amaram e precisam de ajuda?!
******
Liceu
1-12-1976
Às 7 da manhã, levei ao Reitor as Provas dos alunos, ( um molho de papéis), ostentando cada Prova 5 ou 6 parcelas e o total respectivo, com a rubrica ao lado.

Era o fruto amargo de 4 dias seguidos.,em que só havia espaço, para a refeição. Todo o santo dia, inclinado sobre a escrita... Mas nada aí há, com visos de permanência!Tudo tem fim!
Agora, tinha o Reitor uma séria tarefa: explicar, de pronto, o que faltava ainda. Diligenciou fazê-lo, mas sem resultado! Entedi uma parte, ficando outra escura! Diz ele então: " Tell Mr. Van Zyl and he will explain!" Lá fui eu.
Novas diligências, com exemplos práticos, extraídos das Provas!
Tentei assimilar, regressando à moradia, para lançar-me ao trabalho. Gastei 6 horas que noeram a cabeça, mas consegui!
Primeiramente, houve-de juntar diferentes parcelas, com três origens: oral das aulas (50); 1ª escrita 150); segunda escrita (1oo). As très fontes dão, por esta via, 3oo Pontos.
Suponhamos agora que a dita soma é 24o. Muito bem! Devo, agora, procurar dois terços de 24o, para o que faço duas operações: multiplico por dois e divido por três.
Obtenho, pois, como resultado, 16o. Em seguida, somo esta nota com a média obtida nos 5 Testes, feitos durante o ano.
Imaginemos então que, nesses testes, obtém o aluno as seguintes notas: 30, 40, 20 80, 10. Somando tudo, aparece, desde logo, o número 180, que dividido por 5, dá a média exacta de 36, Juntando este resultado a 160, vem a média final: 196.
Este processo repete-se tantas vezes, quantos forem os alunos.
******
2-12-1976
Liceu
Pelo que vejo, encontro-me em férias, embora fique na Escola e deva estar presente, na abertura das 7
Entreguei as Provas todas ao Secretário Van Zyl que
as está verificando, na máquina electrónica.

Hoje, é quinta-feira, saindo os estudantes, no dia imediato.
Consta-me já que todos os docentes debandam, no dia 7.Tenho, pois, ante mim, as chamadas férias grandes que, a rigor, o não são.
Efectivamente, prolongam-se apenas até aos princíoios do mês de Março Este ano lectivo começou, exactamente, a 23 de Janeiro, se a memória não falha!
Habituado como estava, lá em Portugal, a três meses sem aulas! ... Mas está bem! Durante o ano, é menor o aperto
Quem dera, em seguida, tomar o avião e regressar logo ao meu Portugal. Ver a família, fixar jubiloso o céu da nmnha terra, deleitar.me em cheio com os ares sadios... percorrer. extasiado, seus inúmeros jardins... morar ali, para todo o sempre!
Esse dia virá, que Deus vai trazê-lo, mas não é para já!
Urge ter paciência, aguardando resignado que cesse o meu degredo, em terras da Namíbia, aqui no Cavango.

******
3-12- 1976
Liceu
Por volta das 7, cheguei ao Liceu, afim de integrar-me no acto de abertura. Como é uso já, os
alunos cantam, perfilados no salão, aguardando impacientes a nossa chegada. Todos em pé, junto das carteiras, davam expansão`à sua hilaridade. Não fosse já hoje a última Prova e a partida alvoroçante para o lar amado!
Notei, de longe, a vibração mais forte que os alunos punham, em seus cantares. Foi por isso mesmo que observei a um colega: today, our pupils sing strongly!

Era verdade! Hoje como ontem; amanhã como hoje,
o homem viajor, através dos séculos, é sempre o mesmo
As férias gulosas são para o estudante, como os oásis para o turista, no deserto imenso!
Nada há, neste mundo que lhe tome a dianteira.Compreendo-o bem, já que fui estudante!
A minha euforia valia-me castigos que hoje abomino e censuro, com raiva.
Era no Fundão, vila portuguesa, na Cova da Beira, verdadeiro jardim e celeiro da província. A pequena distância, avulta o colosso! Tremo, ainda agora, só de imaginá-lo!
O sistema repressivo que ali se usava, em 1933, e do
qual fui vítima, durante 4 anos, atingiu a minha alma, por forma tal, que apenas me liberto, fugindo e condenando!

Aplicar a crianças doses de palmatória, como faziam, em
tempos aos pobres escravos, no Império Romano...
E porquê?! Só de estarem alegres e não caberem em si?! Entretanto, o fascismo e os lacaios fiéis não podiam consenti-lo! Eu era então a pedra calcada, que não tinha direito a sentir e amar!
******
Nyangana
4-12-1976
Ontem, precisamente, ao chegar aqui, proveniente do Liceu, deparou-se-me logo uma carta amiga, que muito apreciei: era de meu irmão. Havia mais de um ano, que não tinha notícias, Razão para tanto? O caso de Angola!
Finalmente, refeito o contacto, fiquei bem disposto, já que ele está bem, juntamente com os seus!. Isto. realmente, enche-me de alegria. Surpreendeu-me, no entanto, a rapidez da resposta!

De facto, enviara uma carta, em 4 de Novembro, chegando a resposta, ao fim de um mês.

As cartas de minhs irmã levam sempre mais tempo. Talvez se extraviem! É um atraso pasmoso! Agora, estou esperando uma resposta urgente à carta que expedi, a 4 de Novembro. Veremos quando chega!

Aqui, na Missão, há outro Missionário, além do Superior: é o nosso Padre Hermas que missionou, no Tondoro, onde já o conhecera, e trabalha, em Nyangana, há mais de um ano. Pois, agora, ficou ele a chefiar, porque o Padre Baetsen foi para Doebra, junto de Vinduque.

De velho não foi, pois conta apenas 6o anos.
Devo-.lhe atenções, razão pela qual fiquei saudoso, mas o actual é excelente colega e dou-me com ele às mil maravilhas!
******
Nyangana
5-12-1965
Às 8 e 2o, batem à porta. Abro num atmo, a ver o que há. Enxergo então duas caras, negras como a noite, onde apenas alveja uma parte dos olhos. What is the matter?
-- Somebody is dying, at the Hospital!
-- Fico perplexo, pois não há livros e não ando informado, acerca do assunto! Apesar de tudo, parto sem delongas, para administrar a Santa Unção.

Entro no edifício, onde há muita limpeza, mas os corpos tressuados, em que o lixo faz crosta, exalam um cheiro, que não posso aguentá-lo! Não fui preparado para exercer tal cargo, ao menos por cá!
A verdade, porém, é que somos irmãos, pois Jesus Cristo morreu por todos nós, sendo eles também herdeiros como eu, da Pátria celeste!

Entretanto, os cheiros pesam forte, sobre o meu olfato! ! Ainda que não qieira, vem a repulsa! É quase obsessão! Pois se eu não suporto o meu próprio cheiro, quando é desagradável! Que fará, pois, tratando-se de outrem!

Uma vez no quarto do citado enfermo, avisto dois corpos, em que a vida é frágil ou já se evolou, ao menos de um!
Ainda jovem, permanece ali, como fardo arrumado,
esperando-se apenas o último suspiro.
O companheiro respirava ainda, artificialmente, com enormes problemas, anunciando, para breve, o momento
derradeiro.
******
Liceu
6-12-1976
Cheguei, às 6 e 30, Logo de entrada, fiquei chocado, pois era um silêncio como de túmulo. Faltava alguma coisa, donde vinha o movimento, a cor e a vida: eram os alunos. Efectivamente, haviam saído. em sexta-feira. Hoje, é segunda e ultimam-se os trabalhos, para entarmos em férias.
Eu, a rigor, nada tenho a fazer, por inexperiente, mas os outros docentes têm como dever o preenchimento de vários mapas, que serão enviados para a Inspecção. Lá estão, pois, harto afadigados e expeditos , para dar cumprimento aos últimos deveres.

Os militares agem de bom grado, pois dentro em breve, regressam à Pátria. Para todos eles é isso um triunfo!
Apenas um fica mais dois anos, por gostar do ambiente. Fá-lo com prazer, já que ultima igualmente o serviço militar!
O meu dever. ao presente, é assistir à leitura, por volta das 7. Leva apenas 1o minutos! De lá, regresso então à moradia, onde escrevo as Memórias e faço revisões. Leio ainda com gosto autores preferidos, como Dockens e
Chaucer. Este é bastante mordaz e até brejeiro, embora seja cómico.
Na Missão Católica, aguardam-me também certos escritores, que vou ler em férias. Um desses livros trata de pontos divergentes, entre o Catolicismo e o Protestantismo; celibato dos padres; infalibilidade, no Sumo Pontífice; Nossa Senhora; Purgatório e Sacrifício.

Vou lê-lo com interesse, ficando, já se vê, no que me
parece! Não vou converter-me, para abandonar o Catolicismo!
******
Liceu
7-12-1976
Amanhã, pelas 7 horas, há encontro de docentes, com o Reitor. É, pois, um dia morto. Hoje, ao que sei, nada fazemos, uma vez que os mapas ficaram prontos,
a partir de ontem.
A reunião tem apenas em vista apresentar cumprimentos e fazer as despedidas.
Tenho para mim que, pelas 7e15, pdemos afastar-nos.

Oficialmente, é no dia 8 que terminam as aulas, sendo a reabertura. a 18 de Janeiro.. Finaliza assim o ano scolar, que, desde Janeiro, tantos sobressaltos e fundo alvoroço me tem causado. Com a bênção do Céu, lá singrei, no mar alto!
Começar vida nova é amargo e duro, numa fase qualquer da vida humana! Entretanto, se o facto ocorre após os 50,é um bico de obra!! Para mim, então, foi bastante espinhoso, por várias razões.

Basta, na verdade, o labéu humilhante de refugiado, para complicar-me a vida inteira! Ninguém conhecido, hábitos diferentes, Línguas estranhas,, saudades da família
e do berço natal, privação completa do que amei, no passado!..
.Tudo isto e mais,, havendo como fundo o caso de Angola, donde fui escorraçado e onde ficaram, submersos, para todo o sempre, bens adquiridos, saúde e alegria, quando não até, os entes amados, que balas assassinas logo prostraram,no pó da terra.
Refiro-me a este mundo, pois que no outro vamos encontrar-nos.
É quade impossível viver após isto!
Se não fora, realmente, a protecção divina, e tantas vezes a bondade e gentileza dos Sul-Africanos, teria baqueado, a meio do caminho!
******

Nyangana
8-12-1976
Cheguei aqui, às 8 da manhã. Após breve encontro, em que todos figurámos, veio o adeus e logo a partida.
Colegas e Reitor foram sempre gentis e assim terminaram. Admiro esta gente, pela sua camaradagem,
espírito de ajuda, simplicidade e largueza de vistas.

Cerimónias e vénias é coisa inexistente! Cada um entre os mais anda como pode ou mais lhe agrada, que ninguém lhe lhe vai à mão nem faz reparo. É surpreendente este modo de ser!
Olhando agora a que sou português, mais fundo me atinge este mundo que ignorava. O amor e o sexo encaram-no eles como facto natural, sem nehum constrangimento nem ar de mistério, como é próprio dos Latinos. Acho assim melhor.
Estou em férias, num quarto franco, cedido pela Missão. É aqui o meu lar. Modesto, por ventura, e sem
adornos, constitui abrigo certo, para um refugiado.
Vim triste para férias.Todo o corpo docente esfuziava de alegria, sendo eu apenas a fazer excepção.

As férias, realmente, só têm sentido, quando a alma se inunda! Com tal objectivo, procuramos o lar.
Onde estão as surpresas que dão alto relevo à existência humana?! Tudo é morto e parado, utilizando sempre a mesma linguagem.

Encontrei duas cartas, sem grande interesse!
Assim gasto a vida, o tempo, a existência, numa longa apatia, que inspira compaixão!
Quando nada interessa nem fala à alma, tudo caiu! Tudo morreu, para esta vida. Outra vai seguir-se que há-de
compensar-me!
******
Nyangana
9-12-1976
A vida é triste! Ao chegar do Liceu, no dia de ontem. estranhei a aparência do amigo Padre Hermes, Ele,
sempre bem disposto... que vive para servir e ostenta nos lábios o sorriso inocente das almas lavadas, estava acabrunhado!
A Irmã Margaret regressava da Alemanha, trazendo, ao que parece, notícias incómodas! A mãe do meu colega encontra-se internada, há já seis semanas! Declarou-se um cancro! A Clínica hospitalar assim o garantiu, fazendo-se tratamento, à base de cobalto.

A palavra "cancro" arrepia de chofre e faz estremecer! Foi dele, por igual que morreu minha mãe! Corria o ano de 1964!

Como é doloroso ver um ente querido sofrer horrivelmente, sem poder ajudá-lo! Para mais ainda, volvido pouco tempo, é caso arrumado!
Este bom amigo encontra-se esmagado e razões sobejas tem ele para isso!

A perda irreparável, que o facto representa, faz sempre abater o coração mais duro! Um filho amigo que é tão delicado e tão sensível à dor como ao prazer... tão amigo da mãe que sempre idolatrou! Avalio-lhe o tormento. porque eu já o vivi!
Até me compadeço, mas que hei-de eu fazer?!
Tivesse eu na mão algo portentoso que operasse o milagre!
Somente Deus é que pode valer.nos!

******
Nyangana
10-12-1976
Decorrem as férias, mas trabalho, por igual.. O próprio horário está sem mudança: deitar às 22; levantar às 5. É-me grato fazê-lo, mas que o não fora, estou em casa de outrem! Por esta razão, tenho de sujeitar-me aos hábitos alheioa. Ora, sendo assim, passo o dia ocupado: revejo Diários e faço também o de 76.

A média, agora, é apenas 1o. Verifico, realmente, que são mais trabalhosos, à medida que recuo Como é que o nosso Eça não havia-de observar, sobre Júlio Dinis:"Viveu de leve; escreveu de leve e morreu de leve?!"

O ritmo da frase e bem assim a melodia como a harmonia só o tempo os ensina. Eu próprio sou colhido em grande surpresa! Como é possível achar fraco ritmo, nos meus escritos de 67?, obrigando por isso a fazer alterações?! Apenas há 10 anos, proximamente, tendo eu já, nessa altura, 46!

E não fica a meu gosto!
Após o almoço, vem então a leitura: Literatura inglesa; estudo do Alemão como do Africânder!. Não sobeja tempo! Se mais horas, ainda, tivesse o dia, mais utilizava.
Quanto ao Africânder, não lhe vejo saída, fora da região, mas se os colegas utilizam essa língua no diálogar!
Estou entre eles como bruto animal.

******
Nyangana
11- 12- 1976
Os refugiados que vieram de Angola e se encontram no Rundu já estão saturados e criam problemas. Compreende-se bem tão ingrata situação! Pelo menos eu, que sei, por experiência, quanto é desolador, justifico muito bem as suas atitudes. E remediá-las?! Não vejo saída! Havia só uma: regresso à Pátria!

Entretanto, se fugiram em pânico e Angola continua em guerra fratricida, que podem fazer?!

O Movimento UNITA, declarou Savimbi, jamais descansará, enquanto um cubano estiver, na sua terra.
Efectivamente, sendo isto assim, acontece desde logo que
paralizam, em breve, tanto as estradas como as vias férreas,o que torna a vida bastante pesada. ao MPLA.

Pobre do povo que vive em angústia e não vê solução para tão grave problema! Só cá, no Rundu, há mais de 5000,
provenientes de Angola! Se juntarmos agora os que estão no Caprivi, Ovamboland, Zâmbia e Zaire, que soma astron+omica isso não faz! Uma tragédia! Só no Ovambo,
chegados recentemente, há 2000 órfãos!

Que tristeza! Uma terra a saque! Ser alguém estranho, na própria terra! Ser aí perseguido por quem veio de fora!
Incêndios e pilhagens, espancamentos, violações e raptos, é o que dizem ocorrer, na sua terra natal!
Remédio? Se não fosse a ambição, a inveja e o ódio!...

******
Nyangana
12-12-1976
Se Deus quiser, amanhã, vou ao Rundu. Aproveito uma boleia que parte de Andara e, com o Irmão Van Dick, regresso também.
O meu fim é cumprir o que disse o Clínico: " Após o dia 1o, venha ter comigo, por causa da próstata!

O Dr.Olivier sul-africano, é o meu Cirurgião. Aprecio-o muito, pela sua competência .e rara gentileza. Se me quiser operar à terceira hérnia, fico a seu dispor.

Passarei o Natal internado no Rundu? Pobre de mim!
Entretanto, será o melhor! Estou, pois, indeciso, acerca do futuro, em tempo de férias.

Se não houvesse disto, era muito natural que fosse a Joanesburgo e lá passasse algum tempo. Assim... Depende ,como é facto, do próprio Médico. A minha saúde em primeiro lugar! Se ele for de opinião que tenho de ir a Vinduqie, por causa da próstata, sendo ali operado, passo as férias grandes retido no hospital.

Eu, que tão cheio fiquei, em 1969, quando tive a pleurisia! Não estive internado, por longos 4 meses, no hospital de Manteigas?! Entretanto, pior é morrer! Se Deus entende que assim é melhor, só tenho que aceitar! Mas é tão duro acamar no hospital, em terra longínqua, onde tudo é estranho e nada vem falar ao nosso coração!

Quem me dera em Portugal, onde tudo é nosso...onde sentimos, em grande alvoroço. a vida correr... florir... perfumar... sorrir e cantar! Até lá, contudo, quanta paciência , domínio de nervos, resignação e espírito vivo!
Se me ponho caído e não intento reagir, não alcanço a
Pátria, onde tudo é belo e cantam rouxinóis magoadas endechas!
******
Nyangana
13-12-1976
Cheguei do Rundu, capital do Cavango, onde me avistei com o Dr. Olivier. Observou, cuidadoso, a minha incisão, praticada em Outubro e fez palpações, em diversos lugares, examinando atento os movimentos da pele, quando eu tossia. Ficou satisfeito, dizendo em seguida: "It is fine! The scar is not big. Everything is all right!"
É de opinião que não devo operar-me à terceira hérnia, situada à direita, ao menos por agora. Só devo fazê-lo se, no acto de tossir, verificar movimento ou tiver alguma dor. Caso contrário, devo esperar. Seguidamente, vai fazer um teste, por causa da próstata.

Deixei, a propósito, no laboratório, uma amostra de sangue e outra de urina. Hoje, é segunda, ele vem aqui, na sexta imediata, para dar medicamentos, a serem tomados, durante 15 dias. Após isso, dirá então o que devo fazer: ser operado ou desistir.
Por meu lado, fiquei satisfeito! É um Médico novo, mas abalizado, muito cumpridor e amigo dos doentes, que trata com desvelo. Jamais o esquecerei!
É belo, sim, amar o que se faz e sentir prazer na sua execução Tem isso um nome:felicidade!

******
Nyangana
14-12- 1976
Ontem, precisamente, ao chegar do Rundu, achei uma carta: era de minha itmã. Embora esperada, é como surpresa que deleita e vivifica. Acusa a recepção da encomenda enviada e confessa-se grata. aaaaaarevela apreensão, quanto ao futuro dos pobres refugiados.É natural pensar no caso, já que o Estado não aguenta a despesa senão por algum tempo!

O que interessava era, de facto, facto achar trabalho. Diz ela ainda que é assustador o custo de vida, em terra portuguesa: tudo subindo, dia a+ps dia!
É sinal evidente que o valor do escudo já passou à história! E era tão cotado! Quantas vezes sucedeu, em viagem pela Europa, recusarem os Bancos moeda estrangeira, perguntando ávidos se tinha esudos! Hoje é diferente!
Apesar de tudo, confio no Socialismo e na cúpula governante! Para o sistema em curso vai todo o meu apoio.Decorreram bem as nossas eleições, para a escolha livre das autarquias locais, sendo ontem informado de que é, na verdade, o partido vitorioso. Agradou-me a notícia!

De contagem incompleta, levava já de início, 30 e tal por cento, enquanto os mais partidos ficavam abaixo! Regozijo-me, pois, fazendo votos sinceros porque a Pátria se erga, do caos vergonhoso, em que há mergulhado!

Será dia festivo, para o meu coração, quando notar que Portugal ressurgiu, sentindo os Portugueses orgulho de o ser!
Como foi possível julgar de outro modo(! Verifiquei-o eu, tan Uma Pátria gloriosa, tão bela e respeitada, cai num momento, em vil escuridão!

******
Nyangana
15-12-1976
Encontram-se, entre nós, aqui na Missão, professores nativos que se ocupam actualmente em verter
para Dirico um dos 4 Evangelhos O fim é bom, na verdade -- pôr or Livros Santos ao alcance de todos --.

O que me faz impressão é o meio empregado -- pessoal nativo de baixa cultura, a qualquer nível, sem o mínimo que seja, em questão de exegese, sem cultura linguística.
Arrepia-me a ideia!
Eu, lidando com línguas, há tantos anos, sinto dificuldade em fazer traduções. Que é que diz o rifão popular? " "Traduzir é trair"

Pelo que me respeita, conheço bastante bem a Língua Portuguesae tenho achegas razoáveis de algumas outras das mais importantes. No entanto, se quiser verter para a nossa língua, sinto, às vezes, forte embaraço!

Isto que revelo, por duas razões: 1. chegar, com rigor, à equivalência, no campo ideológico e revesti-la de Português genuíno; 2.penetrar cabalmente no génio próprio das línguas estrangeiras

Bem tenho presente que há muitas versões em outras línguas, mas ainda assim, não vejo saída.
Por outro lado, tratando-se afinal de livros santos, quanto cuidado isso não requer!
Fujo de ampliar este grave assunto e demorar-me nele, porque não vejo bem nem acho justificação, nos meios empregados, para fazerem versões.

******
Nyangana
16-12-1976
Ando a ler um livro que foca as diferenças entre o Catolicismo e o Protestatismo. Vou já na página 220: mais ou menos um terço. O autor é calvinista e tenta pôr em cheque a Religião Católica,exaltando para logo a beleza ideal do Protestantismo.

Aparece tal escrito minado de preconceitos, revelando no autor espírito obcecado, nem sempre aberto à luz da verdade. Os seus argumentos são tão pueris e, às vezes, tão insípidos, que fazem rir e causam dó uma parte das vezes.
Quase nada sabia acerca dos Protestantes, o que me levou a tomar em conta o livro referido.

Julgava para mim que haveria solidez, na sua argumentação. Em geral, as razões, inda quando plausíveis, à primeira mirada, não passam de capa, afim de
encobrir a sem-razão. Confesso, abertamente, que estou decepcionado! .Religião sem alma! Nada há como a católica! Esta, sim, tem espírito e vida, com bela poesia, acção e movimento!
Que secura ali vai, no Protestantismo! Aridez e fartum! Desinteresse e funda apatia!
A Bíblia Sagrada é tudo para eles!

Livro divino, também nós o aceitamos. Mas, se eles, por vezes, o não entendem!...Se pode cada um interpretá-lo, a seu modo!
Rebanho sem pastor, condenado aos lobos!
Falta~lhe a base, sacerdócio e Missa! Depois, não tem chefe, assistindo a Igreja, para decidir e prestar auxílio
É árida a doutrina, desconsoladores seus templos vazios!
******
Nyangana
17-12-1976 (cont,)
Boetner é que foi o autor do famoso livro, "Roman Catholicism".Surgiu publicado, nos Estados Unidos da América do Norte, em 1962 e, 4 anos mais tarde, na Grã-Bretanha,

Procura o autor salientar as diferenças, entre a sua Religião e a Católica Romana.
Devia ser um livro harto imparcial e sem preconceitos, sujeitando-se à evidência, respeitando, por norma, a crença alheia e jogando sempre com razões convincentes.

Tal, porém, não ocorre!
Com grande surpresa e não menor espanto, verifico agora, desiludido, que é um livro perigoso, pois joga largo com a mentira e até me parece que o fim do autor é só evitar a aproximação entre as duas confissões.

Fim vil e satânico, só próprio de alguém, muito mal intencionado e a serviço do diabo!.Para conseguir o que tem por alvo, mete a ridículo as coisas mais santas da Religão Católica.
Nunca eu vi, em parte nenhuma, servir-se alguém do próprio ridículo, minimização ou ainda chacota, como razão válida. Sei até muito bem ser essa a única, se realmente não acha outra.

É um livro, afinal, que fere e revolta, indispõe e satura!
Por outro lado, envenena e informa, torcidamente, os correligionários do Protestantismo.

Haverá, no livro, algum capítulo, em que eu me conforne?! Apenas aquele do celibato imposto e, bem assim, o dos votos religiosos, sendo perpétuos.

*****
Nyangana
18-12- 1976
Era um dia como hoje, em 1952. Vinte e quatro anos a separar-me dum ente que eu amei tanto! Como se encontrará esse corpo idolatrado?! Ossos apenas, já descomjuntados e só os maiores? Santo Deus! Onde está agora o meu paizinho?!
Estas ruínas são meros despojos, que o principio da vida -- a alma imortal -- encontra-se em Deus, na celeste morada! Por mercê do Senhor, a sua alma é feliz, pois Ele
dá o prémio a quem foi bom.

Esta crença me alenta e dá consolação, tanto mais que o corpo será vivificado e unido à alma. Creio firmemente no
mistério insondável -- a ressurreição! Que dita para nós termos a certeza de que os entes queridos se encontram já, na glória do Céu!

Custa bem peregrinar em ambiente de mistério, sem aviso nem sinal que adormente a nossa dor! Não fora um mistério! Crer sempre e esperar é o que me aconselha a fé do Baptismo que vem logo em socorro!

Senhor Omnipotente, de infinita bondade, se o meu paizinho ainda está sofrendo, no Purgatório, aliviai-o um
pouco e tome assento, junto de Vós!

Senhora de Fátima, que ele tanto invocava, pela reza do terço, implorai do vosso Filho, perdão e clemência, para este pai, tão santo e querido!
Amanhã, 19, faz 24 anos que .ele foi sepultado, em
Vide-Entre-Vinhas.
Rezarei por sua alma, darei esmola também e renunciarei a coisas de que goste, para que Deus se compadeça e o tome à sua conta, nos Umbrais da eternidade.
******
Nyangana
19-12-1976
O Natal vem chegando e com ele, juntamente, a dor e a tristeza! De facto, sendo a festa da familia, é motivo de alegria para aqueles que a possuem, vivendo no
seu lar.
Poderei eu, afinal, compreender, a rigor, a festa da família? Fará ela sentido, na vida que levo, isolado de tudo?! Parece-me absurdo, humanamente falando! Jamais o senti menos que o ano em curso! Nada mo recorda!

Antes ao contrário! Se olho à minha volta, só vejo ruínas, em que a morte e o luto, o desespero e a própria dor fazem sinfonia!
Estou vendo Angola, aqui mesmo em frente, e avisto de igual modo, animais e pessoas. Ouço até os cantares das meigas avezinhas, mas ali a voz humana emudeceu para sempre! Que traz isto ao de cima? Um passado feliz, um destino equilibrado, uma vida com rumo...

Hoje, porém, só entulho e ruínas, tristes lembranças , ais desconsolados! O morticínio prossegue e Angola que eu amo, é amplo cemitério!
Enquadrado nesta zona, que Natal é o meu?! Onde a vida, o relevo, a cor,a animação?! Onde o riso, a surpresa,
o pulsar de corações, batendo logo forte, em alta sintonia?!

Amargo o meu Natal que só me fala de mortes e riscou da minha vida quanto amava e queria! Perdi tudo o que é humano: só me resta o Deus-Menino, que afinal é tudo! Este, sim, não quero eu perder, que seria uma tragédia, bem pior que a primeira!
******
Nyangana
20-12-1976 Divórcio?
Um problema excitante que agita as multidões e em frente do qual a Igreja Católica se mostra sem ouvidos! Inegável também que ele se pratica, apesar de tudo, em grande escala!
Há 6 anos já, informaram, em Lisboa, haver 13% entre católicos.

Numerosas causas de vária ordem levam ao desfecho, mas o caso em si é muito delicado, pois vai bulir ao vivo com a Moral de sempre, na Igreja Católica.

Sendo ele uma fonte de mal-estar social, ódios e vinganças, dissolve a família. Pondo esta em perigo, arruína a lealdade, subesima a mulher e desatende a tarefa de educar os filhos. Numa palavra, os malefícios, daí resultantes, são incalculáveis.

Por estas razões, disse Jesus: " Não separe o homem o que Deus uniu!"
Um dos motivos que provocam o divórcio, reside, creio eu, na má preparação, em ordem ao Matrimónio, e na escolha apressada. Sendo feitas as coisas, à base da prudência,, com maturidade e vivendo cada um os princípios religiosos, tenho para mim que o triste divórcio
ficaria em palavras.

Se qualquer jovem escolhe, de facto, a mulher ideal, que prefere, entre muitas; se, por igual modo, ela aceita o
homem que preza e adora, e a todos sobreleva, que razão pode haver a exigir o divórcio?!

Apesar de tudo, há casos determinados, que se afiguram mais graves e que, não sendo muitos, talvez a
Igreja pudesse atendê-los. ponderando atenta as várias circunstâncias. tão agravantes, que anulem por si o matrimónio em causa.

Nestes casos, a Igreja não anula: só confirma a nulidade que já exista
******
Nyangana
21-12-\976 ( Divórcio) Cont.
Imaginemos, para esclarecer, alguns casos possíveis, em que o matrimónio seja nulo, de origem. Certo jovem, que é muito ponderado, recto de consciência e deseja acertar, inicia o namoro, com seriedade e muita abertura.
A sua idade -- 24 anos -- leva-o a agir com tempo bastante -- 6 meses -- para acertar o passo e ter bom êxito.
Por isso, nada esconde, afim de evitar surpresas desagradáveis.
Ora, uma das coisas que muito o preocupam é que a futura esposa não seja estéril, dependendo o casamento dessa condição.
Foi este o princípio. Deixemos agora o resto, tomando apenas em conta este caso particular. O tempo não pára, ficando a impressão de que tudo corre bem.

Aparentemente, é de facto assim.Decorreu o noivado,
passou a festa de núpcias,mas descendência é que não houve
Surge o problema que levanta comentários, pois o jovem despediu-se, aprovando uns e censurando outros.

Corre o divórcio, na área civil, enquanto na igreja o tribunal eclesiástico é posto ao corrente de quanto passou.
Tudo favorável, pois tal casameno foi declarado nulo.
Notemos bem: a Igreja não anulou o que já era nulo
Outros casos possíveis hão-de surgir, paralelos a este.

******
Nyangana
22-12- 1976
O livro parcial de Loraine Boottner, " Romam Catholicism" está recheado de preconceitos. Foi pena havê-lo escrito, já no século XX. em que a Igreja Católica anda em busca dos irmãos, com boa vontade e muita compreensão.
Sinceramente digo: foi grande pena vir a lume tal veneno, em que a própria verdade se desvirtua, apresentando ali o Catolicismo qual perigo social, religioso e político

Protestante que o leia e se oriente por ele, fica logo julgando que segue o recto caminho, alimentando rancor ao Catolicismo, em que vê somente deturpações, hipocrisia em barda, crines, ambição!

Por vezes, argunenta, fazendo citações de pessoas despeitadas, que deram à costa!
Ora, toda a gente sabe que ninguém, neste caso, exprime a verdade e que tudo quanto diz sabe a preconceitos.
Faria Boottner muito melhor se, emvez de escrever o livro, arranjasse umas cabrinhas e as guardasse na pastagem, umavez que o seu parto ultraja a Deus e , de igual modo, a sua Igreja
Jamais eu vi no mundo tanta falta de civismo, tamanha má vontade, tão grave deturpação de atitudes e factos, tanta desonestidade, ao expor um assunto!
É, realmente, um escritor que desonra o Protestantismo! O Senhor Jesus quer-nos a todos unidos no amor e este livro satânico inspira só ódio!

******
Nyangana
23-12-1976
Partido Comunista
Há certos governos que o não toleram, exigindo, a rigor, partido único; outros ainda admitem vários, marginando aquele; outros, enfim, como em Porugal, admitem o Partido, juntamente com outros.
Este é,pois, o quadro que já se apresenta, em muitos países
Entretanto, surge a pergunta: é admissível esse Partido! Terá jus a figurar como outro qualquer?!.
Claro se deixa ver que a resposta a dar há-de ser diferente, sendo originária de várias fontes. Apresento a minha, sem pretender seja ela a única.

Se o Partido Comunista serve a nação e defende os direitos de todas as classes, pondo a trabalhadora ao nível das outras, é de todo aceitável,assistindo-lhe por isso o mesmo direito que aos outros Partidos. "Defender os direitos de todas as classes", implica o respeito pelas crenças religiosas.
Nestas circunstâncias, não vejo impedimento, de espécie alguma, para que tal Partido figure na lista, juntamente com outros. Não viesse também eu da classe trabalhdora!
Se, porém, tal Partido defende os interesses duma potência estrangeira, colocando-os acima dos nacionais, em caso de colisão, não vejo mameira de justificar a sua existência.
Assim também não respeitando as crenças religiosas, dr modo particular as que têm Jesus Cristo como filho de Deus e segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
Também não quadra negar inteiramente o direito de propriedade.
******
Nyangana
24-12-1076
É dia de consoada!
Pelo mundo inteiro, vai nesta hora um frémito de gozo: o lado espiritual da grande celebração; o aspecto familiar que une e conforta ; o alvoroço infantil, que vê chegado o momento de satisfazer, em pleno, as suas aspirações; o fundo social, que tem na quadra a melhor estilização de boa orgânica e subsistência.

Os últimos 15 dias passaram sonhando: alguns tentam penetrar nos desejos de outros; este, por sua vez, quer levar então a ventura ansiada, por modo sesível; aquele. por seu lado, sente, por claro, que o mundo, afinal, tem coisas belas.
Não é isto,afinal, que faz a ventura?!
Pequenas demonstrações que despertam alguém de sono profundo; atitudes generosas que abrem novo dia à existência humana; intuições admiráveis que entornam, por certo, caudais de luz, nas trevas da vida!
O dia de hoje que é véspera de Natal, a todos sobreleva!
Lembro, com saudade, o movimento e a cor da cidade
capital, quando ali estanciava, pela quadra natalícia.
Deleitava e comovia presenciar as diligências de papás e mamãs: vai nisto a felicidade que, afinal, se entre tece de leves atenções!
Alguém nos lembra, tentando sensivelmente ir breve ao encontro dos nossos anelos.

******
Nyangana
25-12.1976
É a primeira vez que me encontro desterrado, em dia de Natal! Circunstância agravante é o facto lastimoso de ser refugiado, não havendo aqui nenhum português!
Uma vez que renego de tal solidão, por isso mesmo ela me persegue, com mais tenacidade. Azar e pouca sorte? Provação de Deus?

Pois ontem, à noitinha, fiquei surpreendido. Embora em terra alheia e já com 58, o Menino-Jesus lembrou-se de mim, com generosidade.
Falam por aí no Pai Natal, mas eu ignoro-o. O Deus- Menino conheço eu e sei muito bem o que lhe devo! Ao outro, porém, nada lhe devo nem ele existe!
Que pena eu sinto de impimgirem às crianças um tipo inexistente!, em vez da figura, adorável e santa do Menino Jesus!
Como dizia, foi grande a surpresa! De facto, o Padre Hermes, na sua bondade, quis fazer-me esquecer de que estou no exílio.
Fiquei emocionado e chorei abundante! Uma bela Parker; um calendário; 4 variedades de apetecíveis bolos; um desodorizante; um lindo postal e 5o randes!

Não foi maravilhoso?!
O que mais me confunde é não poder retribuir, já que o amor com amor se paga! Mas, afinal, que me cabe a mim?
Pobre refugiado... longe de tudo... privado em pleno de quanto possuo e de tudo o que amo e sem recursos!

******
Nyangana
26-12--1976
Passou o o Natal de 1976! Em lágrimas foi, que não pude contê-las, mas Deus seja louvado, que nem tudo foi mau! Na verdade, o bem que prezamos e tanto nos excita, ainda não se extinguiu, como às vezes parece!
Ele existe, realmente, onde menos julgamos e, não raramente, bem junto de nós.

O nosso pessimismo leva, por vezes, à convicção de que tudo é mau. e que Deus não se importa, como lá dizia um preto angolano, residente no Chitembo ( Silva Porto)
Estas as suas palavras:"O Deus já está cansado!"
Avaliava-O ele, pela craveira humana.

Erro profundo! Nem Ele se cansa nem o mundo é pior, encerrando coisas boas, almas generosas e corações dedicasos que são , na verdade, genuínos pára- raios da Justiça divina!
Lembra aquele passo da Sagrada Escritura, no Antigo Testamento, em que entra como agente o justo Lot.
Deus perdoava a Sodoma e Gomorra, em pura atenção àquele homem justo e outros como ele. O que ontem sucedia, ocorre hoje também !

Lembremos, a propósito, que o bem anda velado, por conselho de Deus. Apesar disso, actua e opera!
Pois ontem o Padre Hermes veio ao meu quarto, onde estive o dia inteiro, segundo hábito meu. Disse-lhe comovido a minha gratidão, fazendo sentir que não era merecedor. Na sua resposta, colhi novo dado: os 50 randes
foram, na verdade, presente de sua irmã que vive na Alemanha.
Este colega faz-me sentir que Deus está perto e que a sua vocação é, de facto, um dom.

******
Nyangana
27-12- 1976. (cont.)
Voltando ao assunto do Diário anterior, em atenção ao breve diálogo que houve entre os dois, foi caso imprevisto que assaz me tocou. Uma irmã da Alemanha envia ao Padre Hermes generoso presente: 5o randes.

Ele é novo ainda e vive a sua arte, querendo obter determinadas coisas, atinentes a seus cursos: Electricidade e Serralharia, que tirou na sua Pátria -- Alemanha.

Em razão disto, aquele dinheiro, â volta de 1o contos ou um pouco mais, havia-de fazer-lhe enorme jeito, para aquisição de alguns materiais e certos utensílios, que emprega habitualmente. Por outro lado, eu sou estrangeiro, desconhecido e secular.

Como pôde ele então, desprender-se inteiramente da oferta gentil?! Faz isto impressão e não sei responder! No entanto, palpita-me já que foi o Deus-Menino a operar esta maravilha!
Eu, no lugar do colega, não seria capaz de fazer a mesma coisa! Gostaria,confesso, de agir assim! Ser alma aberta, lavada e franca, à maneura da sua; viver para os outros, esquecendo até a minha pessoa.
Na verdade, é este precisamente o exemplo do Mestre.
Chocou-me em extremo a dita ocorrência e não pude evitar que as lágrimas saltassem, contrariando ali a minha vontade!
******
Nyangana
28-12-1976
Mercê do meu feitio, não terço armas, seja por quem for! Ainda que tentasse, julgo isso impossível!
Seja este um exemplo: reside aqui, na Missão de Nyangana, um Irmão idoso ( até são dois, de cor diferente) de origem alemã, Bruder Shedel, que é muito zeloso e até imprescindível, na Congregação.

Muito pontual, incansável no mister, não olha a esforço nem as dificuldades lhe causam receio. Portanto, é assaz apreciável o seu labutar! Para min, no entanto, não é simpático.
Feitio dele? Maneira de ser, da minha parte?
O certo e sabido é que o facto existe!
Apenas à mesa, fazemos companhia e, às vezes, no serão, após o jantar.
No entanto, é sempre indesejável, tanto num caso como no outro. À refeição, só ele é que fala, não se lembrando que os outros parceiros também têm direitos. Que eu, afinal. satisfazia-me já com poucochinho!
Bastaria, por vezes, resolver dificuldades, quer no Alemão, quer no Africânder.

Apesar de tudo, jamais há lugar! Outra coisa ainda: no uso do prato, segura a comida, com o dedo polegar da mão esquerda, lambendo-o. em seguida. Enoja-me isto!
No serão,monopoliza ele o assunto da conversa.

O defeito será dele ou antes meu?
Estou fora da Pátria e sou refugiado. Quem terá razão?! Mas é tão duro! Seria, talvez a única hora que teria a meu favor, para dizer o necessário! Assim, permaneço mudo, podendo suceder o que eu não queria: perder. no Cavango, o uso da fala!
******
Andara
29-12-1976
Visito Andara, no dia corrente, pela primeira vez. Havia. de facto, oportunidade.A Médica alemã que trabalha na Missão, viria aqui ao hospital. Isto ouvi eu, logo de manhã, ao colega, Padre Hermes, sugerindo o caso de poder acompanhá-la, se tal me fosse grato.
Oh! Palavra do Céu!
Disse logo que sim, pois andava há tempo, no meu espírito, o lugar do Caprivi e respectiva Missão.
Geralmente, quando em tal se falava, vinha sempre alusão à beleza do local.
Preparar então e seguir para Andara! São 13 horas, A nossa Doutora jã faz preparativos, na Ford da Missão, ajeitando lá dentro os doentes curados. À frente, somos três.: ela, bem entendido, a ajudante de enfermeira e a minha pessoa,
Vinha ansioso pela novidade e por quanto houvesse, para admirar!Entretanto,sobreveio,de improviso,horrenda tempestade que pôs a estrada na maior desgraça!
Em Angola, chamam " picadas" a vias como esta,
Após uma chuvada, é pavoroso conduzir um veículo!
Estão cheias de buracos,. tornando o piso bastante irregular!
O guarda-vento enlameia-se todo e os peneus do carro não seguem as manobras do condutor!: deslizam na estrada, fazendo zigue-zagues.Algumas vezes acontece também haver terra na estrada, com o fim de nivelar.. Estando seca, tudo vai bem, mas quando chove, é perfeito lamaçal!
Demora aqui, paragem além, chegámos a Andara ao fim de duas horas! Estas diligências tornam-se obrigatórias, para largar os convalescentes.
Havíamos percorrido 88 quilómetros.

******
Andara
30-12-1976
Que maravilha!
É de notar, a propósito, que o Sudoeste Africano fica situado entre dois desertos: um, a leste; outro a oeste. Nestas circunstâncias, o que resta de permeio é semi-desértico. A própria vegetação acusa isso mesmo, ostentando folhas duras, estreitas ou nulas, a maior parte das vezes.
Espinhos eacúleos harto agressiivos é o que reina por aqui.
Ora, pois, quase ao fim da jornada, cortámos à esquerda, metendoanimosos, por entre as árvores. Olho curioao, tentando situar a dita Missão,... mas dobra o encanto, porque richas enormes e farto arvoredo me impedem fazê-lo. Para mais é já Primavera!
Avisto agora a torre da igreja! Não há dúvida! Somos chegados!
Surgem Irmãs, pretas e brancas, dizendo,a propósito que os seus colegas virão em breve. São eles: Padre Bonifatius (preto) e Padre Bauer (alemão).
Passada meia hora ou coisa que o valha, aparecem os dois.
Um primor de recepção! Feitos os cumprimentos, aproveito o espaço que falta ainda para o jantar e dou um giro breve, pelos arredores.Um deslumbramento!
O Criador e o homem fizeram maravilhas! Natureza e arte conjugaram-seaqui, tornando o local um sítio de eleição
Em todo o Sudoeste, nada há que iguale, ao menos que eu saiba! Desconheço ainda a costa marítima.
O rio ubango que tenho seguido, após a fuga de Angola e tão bons serviços me tem prestado, vai manso e plácido juntinho à Missão.
Quando o avistei, afigurou-se-me um lago! É que, na verdade, expande-se um tanto, ficando velado por denso arvoredo, para a banda de Angola

******
Andara
31-12-1976
Chegado ao fim do ano, cabe-me, nesta hora ,agradecer ao Sernhor todos os benefícios que houve por bem conceder-me.
Pelo que me respeita, muitos eu conto, após a fuga em 1975, do campo de refugiados.
Mencionarei, pois, os favores do Céu, para que o meu coração renda ao Pai e Senhor infinitas graças: contrato com Pretória, para trabalhar aqui no Sudoeste, como professor; encontro de bons amigos que me ajudaram; saúde bastante,para exercer a profissão;

coragem suficientte, para vencer as dificuldades que a depressão, a idade e o exílio prestes me criaram; conformidade à querida irmã, para suportar, de forma cristã, o peso da cruz

Muitos outros obséquios omito agora, mas por todos eles fico grato ao Senhor. Jamais esquecerei tamanhos favores, graças e bênçãos, por ocasião da grande tragédia, ocorrida, em Silva Porto, a 8 de Maio de 1975 -- o assassinato da Margarida ( veja livro " A segunda Noite");
o infortúnio,abandono e desamparo, em extensos areais, com temperaturas a 60 graus. e, para remate. o desabar estrepitoso de tantas esperanças!

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.