Manteigas \\ 10-1-1971 Final Amarguradol
Morreu no Albergue. Facto banal! Por demais repetido, já não faz mossa, em peitos duros! Entretanto, o lugar do facto bem como as circunstâncias, em que ele decorreu, forçam agora a demora do exame. Era mãe como outras e tinha vários filhos, a quem sacrificava o melhor do seu tempo. Banhada em amor, sentia-se feliz, pois via em redor aquilo que chamava, orgulhosamente “ fruto amoroso do seu coração”.
De modo especial, depositava fé no filho celibatário. que n viveu embalada n guardaria sempre para sua mãe as formosas primícias do seu coração, o melhor da sua alma! Decorreram os anos. A ilusão vingou, cresceu, fortificou-se! Que mais a desejar?! Bastante ciosa do amor se seu filho, em que via espelhadas todas as promessa e concretizados os sonhos de outrora, viveu embalada , por tempo longo, sem prever jamais que os últimos dias seriam desditosos!
O que ela não fizera nem jamais faria, porque muito amava, iam fazer-lho, impiedosamente, atirando-a viva, para a cova aberta - um Asilo citadino. Ali viveu, cismou e sofreu, com a alma a sagrar! Pobre mãe! Ela que pedira e tanto suplicara! Este grito, porém, não havia de ter eco e, contra a expectativa, acha-se em breve, na companhia chorosa de outras infelizes, para deste modo curtir suas mágoas e chorar amiúde lágrimas ardentes. Sepultada viva por aquele mesmo filho a quem dera a vida, acabou seus dias, abençoando talvez!
Manteigas \\ 11-7-1971
Mãe e jovem apertava ao seio um bem inestimável! Vi-a passar e quedei-me extasiado! Cansaço ou fadiga não eram com ela! A sombrinha airosa, o pequeno fardo que pendia do braço, em nada perturbavam a serena alegria, que sempre irradiava do rosto juvenil! Se a visse, de novo, não ia reconhecê-la! Ignoro sinceramente de quem se tratava Uma coisa, porém, é mais que sabida e tanto me basta, para distingui-la, entre multidões: é mãe, por certo e ama a valer o filhinho adorado
Segui-a longamente, à maneira dum feitiço, que prende e arrasta. Não pude afastar-me! Comentários ao lado? Isso não contava! Fui-me inteirinho, após tal visão, pondo no acto a alma sensível e embrandecida. Ao dobrar a esquina e me quebrar o encanto, imensa tristeza se apode rou de mim. Haviam-me furtado poderoso sortilégio que infundira no peito agradável sensação. Voltei-me para o lado exclamando enternecido: veja só o que é ser mãe! Se os filhos pagarão, embora de rastos, carinhos e extremos como a gente vê!
Ouvi, nessa hora, o breve comentário do bondoso Padre Neves:”Os filhos haviam de beijar os sulcos do caminho, onde ficam vestígios das pisadas maternas!” Fiquei emocionado, com dizeres tão suaves, eloquentes e ternos, meditando longamente, sem poder esquecer-me! O quadro passou, ficando só a imagem, que a moldura do tempo esconde sumiu! Entretanto, não pôde obliterar, na minha retentiva , as linhas basilares da visão sem igual! Ficará para sempre gravada no meu peito, e enquanto vir a luz, jamais a perderei. Vê-la-ei acordado e a dormir também! Será um lindo sonho, convertido em realidade! Evocação do passado que adormenta mágoas, refúgio acolhedor, onde é grato ficar!
Manteigas \\ 12-7-1981
“ Conforme semeares, assim colherás”
“Quem semeia ventos colhe tempestades!” “ Quem não quer farruscas não vai à queimada!” “ Quem trabalha vence” Estes rifões vieram a ideia, pelo momento de enorme ansiedade, que está decorrendo! Aguardam-se para já as notas do 5º ano. Impaciência e nervosismo vão de mãos dadas, n este dia fatal! Docentes e amigos pais e alunos inspiram compaixão, esperando, a toda a hora, o desfecho cruel!
Que trará, por fim, este dia nublado, em que o Sol já não brilha nem desponta o sorriso?!Que tremenda agonia se desenha , em cada rosto! Que fundos ais se levantam de peitos amargurados! Promessas não faltaram nem votos aos Santos! Mas, afinal, quem é que vai descobrir o que o futuro reserva?! Interrogação medonha se esboça, no horizonte, avolumando-se mais com o tempo que não passa?!
Inquietação, grande mal-estar não se afastam jamai , seguindo pela mão a estrada sombria Nada há que distraia ou enleve o pensamento! Foge galopando, se queremoa travá-lo! Da Covilhã se espera o alívio nesta hora ingrata, em que o alento escasseia, soçobrando o espírito. Veio agora a trovoada, para cenário macabro, pondo medo nas almas, já cansadas de esperar!
Que moldura foi esta que tudo enegreceu?! Ironia das coisas ou prenúncio de amargura?!
Manteigas \\ 13 -7-1971
Chegaram, por fim, os nossos resultados e com eles também a desolação! Tantos sonhos destruídos, tanta esperança gorada! É assim a vida humana, sobre a Terra que habitamos! Jamais alcança o homem aquilo que pretende nem vê realizado quanto imagina! Reprovações em barda, na parte de Ciências e, no geral, notas de tangente! Nada aí há que não tenha uma causa. Descoberta, pois, a raiz do mal, é então por aí que se deve atacar Se não me engano, o motivo basilar reside, como é óbvio, no forte desinteresse, por parte dos alunos. Passam aulas inteiras, alheados do assunto, magicando em tudo, excepto no dever! Postas assim as coisas, claro se torna já, que não pode haver bom êxito! Fora das aulas, acontece o mesmo. Habilmente dispersos, andam todos eles à mercê de ninharias: futebol e radio; televisão , Imprensa, etc.
Coisas sem valor, assuntos banais! O resto não interessa! Aspirações fúteis é que não
faltam! Comer bem, sem cuidados! Triunfar sem esforço! Dizer aos outros que trabalhem.
Como extirpar este desinteresse?! Como levar certeiro o machado à raiz? A Direcção do
Ensino e os pais dos alunos vão ser chamados, em qualquer tempo, a desempenhar um
papel de relevo. Por outro lado, importa, na verdade, tornar as aulas alegres, interessantes
e atraentes. A propósito ainda, vem o Cinema, a figura e os mapas, manequins e o mais
Manteigas \\ 14-7-1971
O romance português tem sido muitas vezes alvo de censura, pois, sendo Portugal
um país da Europa, não criou ainda um romance próprio, isto é, que seja revelador do
homem português, versando temas nossos, exraídos já se vê, da realidade lusa.
Descontentes e críticos norteiam-se todos, como é sabido, pelo romance inglês, francês e
alemão, juntamente com o russo, em que sempre a análise ocupa, de facto, um lugar
primacial.
A verdade, porém, é que, tendo embora alguma razão, não a têm cabal. O nosso
romance jamais seguirá na esteira dos outros, uma vez que o povo luso é muito
diferente dos postos em jogo. A meiguice proverbial, o ambiente luminoso, a doçura do
clima, e o ameno da paisagem lançam-no breve fora de si. Ora, a
extroversão não é propícia à chamada análise.
Por outro lado, no aspecto social e bem assim cultural, não somos, na verdade, um povo já
velho, sendo certo e recebido que tal característica é harto necessária, para uma análise
pausada e fria.
Nunca haverá, entre portugueses , um romance como aqueles, porque, nesse
caso, não éramos nós a figurar nos livros O grande mal consiste a rIgor, em o nosso romancista aferir, geralmente, a realidade lusa pelo figurino, talhado lá fora.
Imitamos, pois, em vez de criar.
Camilo, julgo eu, deverá ser o modelo, embora aprofundado e sujeito a ampliações De
facto, foi ele quem melhor revelou o homem português.. Partindo desta base, a coisa afinal
não surge tão feia nem o mérito real se afigura despiciendo!
Manteigas \\ 15-7-1971
Em apêndice breve àquilo que disse, no Diário anterior, acerca do romance, apraz-me
ainda anotar o seguinte: somos um povo demasiado emotivo, para nos entregarmos a uma análise fria. Seria, na verdade, tentar o impossível! O sentimento avassala a razão e obstrui-lhe os caminhos. Por outro lado, nem sequer lhe dá tempo de aprofundar os motvos. Irrefle xão e sentimentalismo, impulsividade, precipitação e bastante cegueira! Não nos fazemos a nós!
Deus é que nos fez! Tais quais somos é assim mesmo que temos de figurar, no romance em questão. O homem do Norte, acossado pe bruma, interioriza-se logo, pois foge ao contacto da Natureza rude, para se acolher ao seio da família. Ali, pois, estuda o semelhante e nele se revê. Tem assim, na verdade, ambiente adequado a uma análise fria, total e objectiva.
O homem da estepe e em larga extensão, descai amiúde em sonhos longos que o
interiorizam, ao passo que o luso prefere agir a pensar. Entretanto, desde logo, em comunicação com a própria Natureza, que o atrai e seduz, extroverte-se pronto , dando
largas amplas à sua fantasia. É, pois, um Artista: pensador, não! Será um defeito? Não
entra isso em causa!. Cada um é como é! Temos defeitos e também qualidades!
Saibamos empregá-las devidamente, abandonando já o figurino estrangeiro! O fato de An-
tónio é muito natural que não convenha a João! Nem isso admira, pois cada um tem a sua
estrutura.
Manteigas \\ 16 -7-1971 Mais um Problema
Um abcesso nos dentes é coisa vulgar e, como tal, nada representa! A ,pesar de tudo, o caso em foco reveste importância, quando somos nós que o temos, de facto! Que
Que horas longas de tédio e que noites arrastadas em infinda amargura! Ouvir soar as horas, na vizinha torre da igreja de S. Pedro , verificando sempre que elas são morosas,
intermináveis! O corpo dorido, vira-se e revira-se, não achando apoio nem lugar de repouso!
Vem, finalmente, o Sol do novo dia, mas falta a vontade, escasseia o desejo! Foge-se ao convívio, desfazemos encontros, deseja-se até o próprio isolamento! Como não ser?!
Alguém suportaria o nosso mal-estar?! Que interessa a outrem a nossa amargura?! Ela só dói a quem ama e sente! Passar dias e noites, em extremo desconforto! Podia morrer, que ninguém dava conta! Houve, sim, alguém que sofreu comigo! Já foi no passado! A morte
jevou-os , para longe de mim, proibindo impiedosa qu jamais nos encontrássemos, cá neste mundo!
Oh! queridos pais, quanto éreis dedicados e como vos choro! Sem vós fiquei só, que não tenho ninguém: nem esposa nem filhos, cujo sangue estuasse. em minhas veias!
Desta solidão, ergo para já minha voz enfraquecida, para chamar em apoio os que a morte levou!
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17-7-1971 Em Viagem
Fui à minha terra, exígua aldeia, não muito longe de Celorico da Beira. Coisa banal, ``a primeira vista, mas que, na verdade, assim não é! Para outrem, não passa de trivial, se não despicienda, mas é outra para mim, que lá nasci e me criei! Cada vez que os meus olhos se poisam gulosos, em algo que lhe respeite, todo o meu ser estremece e goza.
Plantas já decrépitas, erguendo a custo seus ramos debilitados, ao verem-me passar, ainda longe do sítio, esboçam desde logo um ar de magia! Quanto eu lhes quero e como estou grato ! A sombra amiga e assaz deleitosa que prontas me ofertaram, em horas de repouso, e o prazer inefável do gorjear embalador, orquestrado pelas aves, tudo isso lhes devo! Agora o recordo, com viva saudade! Sempre que volto, avivam-se as cores e todo o passado se torna presente!
Ai! Paredes velhinhas a que hera viçosa se apegava com amor! Paraíso das aves, éreis de igual passo, campo deleitoso para cabras famintas! Se elas vos procuravam, cheias de pressa e ansiedade! Humildes casitas e velhas choupanas, casais envergonhados, arribanas e casebres, palheiras e cabanas o que vós me não lembrais, se adrego de passar!
E eu entendo a linguagem que me dirigis , sorrindo, enquanto alongo os meus olhos , sem poder abandonar-vos! Vivo assim embalado por mostras eloquentes, que ninguém ouve nem vê, mas que eu entendo, amo e conheço, por serem da minha terra!
Vide-Entre- Vinhas \\ 18-7-1971 Um Domingo de Julho
Na igreja velhinha, que ameaça ruína, estivemos reunidos, para adorar o Senhor. Estava tão cheia, que mais não podia. Foi-me grato ali presidir à função, onde Cristo Jesus é, ao mesmo tempo, sacerdote e vítima. Acção rememorada, sempre igual e formosa, em que muitas gerações tomaram parte ao vivo! Só o tempo variava, sendo outras as personagens, embora em suas veias corresse o mesmo sangue! Semelhantes pedidos, súplicas ardentes; a mesma fé viva, pua e sincera; cantos vibrantes , que me embala ram fundo! Que grata emoção alvoroçou ainda a minha alma saudosa, evocando t empos idos, em em que eu ali cantava, cheiinho de fervor!
Era criança, â data, mas tinha a ventura de possuir os meus pais, a quem sempre acompanhava, para rezarmos juntinhos! Horas inesquecíveis desse tempo formoso, como outro não vivi, embalai-me, ainda agora, que sinto o peito já desfalecer! Não resisto, claro está, a sensação tão melíflua, que todo o meu peito vai cedendo arroubado
Ouvi, enternecido assas vozes cristalinas e escutei no silêncio, as que ouvi, há muito já! Não morreram, não, que ressoam para sempre, na gasosa imensidade, indo e vindo prontamente a deleitar meu ouvido! Jamais vos dissipeis, vozes meigas do passado,, em que o meu coração mergulha velozmente, para ali afundar-se inebriado e rendido.
Vide \\ 19-7-1971
Conversar amiúde com gente da serra, é prazer inefável, que não se descreve! Ao voltar de uma esquina; à sombra acolhedora de velha árvore: biforcado ainda em pedras, já poídas, ei-los interessados, perguntando já por mim, já por meus familiares!” Como está, Senhor Padre? E a obrigação ficou bem?”Desfaço-me ali em pronta cortesia, tentando ser amável, para corresponder a tamanha gentileza.
Fazem, desde logo, referências ao passado, já pelo canto, já pelo sangue que me estua nas veias. São pessoas rudes, mas não enganam: o que têm na boca vai no coração. O verniz social ainda se não usa! A velha sinceridade é posta à prova, com o sim-sim ou o não-não!. Aparências mentirosas, atitudes balofas e subterfúgios é artigo que se não passa.
Este povo sadio, à maneira do granito, é duro, impenetrável, mas é o que é! Não tem misturas e apresenta-se ainda como ele seria no estado nativo. A conversa desliza, o assunto desdobra-se, e a mesma paciência tem visos de infinda!
Como é bom estar ali! Já eu não tinha, sinceramente o digo, desejo de partir! Apaisagem humana e a pureza destes ares dominam a tal ppnto, que não é fácil virar-lhes costas!
Vide-Entre-Vinhas \\ 20-7-1971
Hora da abalada para a minha terra! Molesta saudade ronda-me já o peito, não chegando a serenar! Tudo nesta hora, me parece mais belo, atraente, sedutor! Que manhã tão suave! Há-de vir, naturalmente, um dia sem par! Tudo, neste mundo, quer bons princípios. Acicatado agora pelo vivo chilreio das avezinhas, levanto-me prestes e assomo à janela. Um deslumbramento!
Do cimo do ‘castelo’( prédio esguio) vislumbro prestes a mancha anegrada, imponente e gigantesca do Penedo Gordo! Que bela estância granítica, onde, a capricho, se podia brincar, tendo à nossa roda panorama sem igual! Será, como dizem, palácio antigo de moura encantada?! Que pena, se é! Há tantos casos, para cumprimento de um destino cruel! Que vontade é essa que os deuses impõem, não cessando de actuar?! Ou será de preferência um tesouro valioso, que ali está guardado?! Há quantos séculos ?!
Mil ideias se atropelam, mas dar no 20, isso é que não! Bastião derradeiro e forte inexpugnável da soberba resistência, que os Gigantes opuseram ao Padre Júpiter? Eu sei lá bem o que vem a ser! Os meus olhos prendem-se: não há força, por maior, que os arranque dali! Um feitiço? Algo de celeste, que me tem desnorteado e não logro desvendar)
Manteigas \\ 21-7-1971
De correm os exames, na Covilhã. Em visita breve, fiquei logo inteirado, sobre os meios que utilizam, para classificar. O homem é, de sempre, fraco e venal! Qualquer nada o prende e faz desviar do caminho que se impõe. Justiça humana, quanto és falaciosa!
Afortunados e grandes, a quem não faltam recursos valiosos nem manhas escasseiam, trazem consigo a chave do triunfo! Comprando e subornando, a mentir e dar presentes, operam o milagre! Os pobres, porém, que a sorte enjeitou; aqueles, de facto, que a ninguém intereressam, porque nada possuem, esses infelizes, que só Deus aprecia, vêem-se postergados, quando não esquecidos. Quem lembra o seu nome?! Quem lhes vai ao encontro?!
Alguém se apieda ou comove, de seu grande mal?! Que tragédia imensa o viver humano, sobre a face da Terra! Um opíparo jantar, aquentado pelo vinho e, ao mesmo tempo, salpicado de sorrisos, opera maravilhas! Como pode o homem, pequenino e baixo, vender a consciência, calcando aos pés, os princípios mais sagrados?! Por que ignora o ditoso aqueles que nada valem, por nada terem de seu, ajudando exactamente os que a sorte bafejou)!
Onde vigora a nobreza de rectos sentimentos, a delicada consciência, o espírito nobre de bem-fazer? Não somos, por ventura, filhos do mesmo Pai, que por nós morreu, na árvore da Cruz?!
Manteigas \\ 22-7-1971
Acabam hoje as as provas orais do 2º ano. O Pedro Viegas é quem finaliza, pois a letra alfabética assim lho exige. Em 33 alunos, candidatos às provas, nem 1 houve que fosse excluído. Justiça rigorosa, feita ao Externato, em que foram preparados, ao longo do ano? Provas brilhantes ou significativas? Admito, na verdade, que grande número deles estivessem à altura, mas todos em globo é coisa dura, que não me entra na cabeça! Nem 1 exclusão, para amostra do pano!
Não sou tão vaidoso nem levo a insensatez ao ponto de ver nisso a prova inequívoca de competência docente! Contra mim falo. Houve, sim, proteccionismo, levado ao extremo, pois alguns deles, embora poucos, mereciam raposa! Mas enfim tanto pior para eles! Vão para o 3º constituir, sem dúvida, fonte de amargura, para mestres caprichosos! Coitados deles, uma vez que os seus ombros carregarão animosos fardo tão ingrato!
Em 35 alunos, só duas reprovações, verificadas na escrita! E é porque, realmente, se tratava de exemplares que, por serem destituídos, outra coisa , de facto, não era esperada. Por que não fazem justiça, passando somente quem esteja habilitado?! Q eu sociedade vamos preparando, em que pululam insuficientes a dirigir um povo rude?! Um pobre ceguinho a conduzir outro cego, que pode suceder-lhes?!
Manteigas \\ 23-7-1971
O tempo corre mau e ouço queixumes. Mau ano agrícola, previsão de fome e tédio sem igual!. Interroga-se aflito o pobre lavrador, angustiado e incerto:Terei, para viver?!Virá o suficiente, da labuta dos campos?! Sua voz é lastimosa, e os olhos inquietos alongam-se, desmedidos, para além da serrania.
Pobre agricultor! Como ele se dói e sofre imensamente, comunicando alarmado que um quilo de batata se vende em Lisboa por 9 tostões! Ninguém ajuda nem acorre prestes, estendendo a mão a quem revolve a terra! E, no entanto, seria feliz, com um mínimo razoável , que bastasse aos de casa! Ambição e poderio não têm lugar, no seu coração! Unicamente o pão de cada dia! De que presta o seu lamento, se vê tanto, no fim do ano, como tinha no princípio?!
No Céu apenas, será ele ditoso, pois cá na Terra já descrê afinal que haja bondade ou surja interesse pelos humildes! Ao pensar que assim é, e que nada vale, neste pobre mundo, uma sombra de tristeza lhe anuvia a fronte. Não tem ele iguais direitos àqueles que o rodeiam e se dizem portugueses, por nascerem, no país?!
Choro com eles o imenso infortúnio, a que a sorte os condenou, pedindo ao bom Deus que alivie a sua dor!
Manteigas \\ 24-7-197
Consegui ler, sem enfado nenhum, muitas páginas curiosas das Ciências Geográficas. É este um assunto que deveras me interessa, pois tem relação com as Ciências Naturais, de sou professor. Percorri agradado a Cosmografia, detendo-me, em seguida, nas causas variadas, que sempre modificam a temperatura. Entre elas, ocorrem as seguintes: altitude e latitude, vizinhança dos mares, cobertura vegetal, a mesma exposição, ventos e correntes, natureza do solo, as horas do dia, as próprias estações e, para remate, a espessividade, existente na atmosfera. Estão em causa os fumos, as poeiras, etc.
Por 180 metros que subamos na atmosfera, a temperatura baixa 1 grau. Por cada quilómetro, devia baixar proporcionalmente. Isto, porém, é que não acontece. A causa do fenómeno está, decerto, na subida de ar quente e descida de ar frio, provocada pelo vento ou pela temperatura. A razão fundamental de a temperatura ir sempre baixando, à medida que subimos, reside nisto: o vapor de água vai sempre diminuindo; o ar agita-se mais, diluindo assim o possível calor; a fonte principal do aquecimento, que vem a ser a Terra, depois de aquecida, fica mais distante; há maior transparência.
À medida exacta que nos elevamos, vão predominando os gases mais leves. Assim: a 80 quilómetros, o mesmo hidrogénio já iguala o azoto; a 90 quilómetros, ocupa, se não erro, 90% do ar atmosférico
Manteigas \\ 25-7-1971
Foi ontem, exactamente, pelas 21 horas. A noite ia caindo, medonhamente, ao passo que o Sol se afastava já, para além das montanhas, pressuroso e gentil, oferecendo os seus préstimos às gentes mais distantes. De vez em quando, um chuvisco molesto assomava à janela,, enquanto no alto se ostentava agressivo um nevoeiro indiscreto , aborrecido e pesado
Hesitava em sair, mas era tão cedo! Noites longas, morosas, intermináveis infundem terror! Para a cama, não! Trabalhar, com má luz também não dá jeito! Nesta indecisão, alguém sorriu triste, convidando-me a sair. Não resisti! Aquilo, afinal, tinha de ser! É ponto assente! Quando ela quer, não tenho vontade própria! Impõe-se de tal modo, pede ou suplica, de maneira tão fervente, que não há resistir-lhe !
Simples volver de olhos, um gesto esboçado, algo indefinível, mas que eu adivinho , é quanto basta, para eu a seguir, não opondo jamais qualquer resistência! Também se dá o invés, Sendo eu a convdá-la, faz exactamente o mesmo que eu. Feitos um para o outro, ajustamo-nos logo perfeitamente! Fundidos, amalgamados, não há dois seres, mas um somente! Como não querer-lhe?! Só com ela me entendo! Ela só ,me acmpanha e sorri, bondosamente, embora o faça, com imensa tristeza!
Como é gentil a amarga solidão!
Manteigas \\ 26-7-1971
Oito horas a dar, na torre de S. Pedro, e eu em marcha, rumo ao Fundão. Não me largava a ideia obsidiante, por isso, resolvi hoje dar-lhe cumprimento. Retocavam-me o Tau –nus, que já anda lastimoso e visitava Alcaria, decorrendo assim um ou Góis dias, agradavelmente. Meu dito, meu feito! Largo pressuroso, direito à Covlhã, onde finalizam os temidos exames, sem que ali me detenha. Amanhã, talvez! É coisa a pensar!
Às 9 e 30,já eu estacionava o pressuroso veículo, pouco antes de Alcaria. O “paraíso terrestre” é algo tentador! Vive-se ali, por mero gosto! Na verdade, o local é bonito, pois ficando situado, na Cova da Beira, outra coisa, realmente não era de esperar! Por outro lado, o rio Zêzere , que já vai alentado, contornando graciosamente a pitoresca aldeia, empresta à paisagem um ar inconfundível. Paira, nesta zona de remota origem, a lembrança nostálgica de povos fatalistas. Efectivamente, as palavras portuguesas , começadas por “al”entroncam geralmente em palavras árabes. Trata-se, afinal, do artigo semita, facto ocorrente em outras palavras como Alcaide, Alcongosta e outras ainda. Prova este facto a influência dos Árabes, na Cova da Beira. Entretanto, aquilo que para mim a torna sugestiva é, na verdade ´”o paraíso terrestre”e a presença ali de pessoas amigas, a quem me cingem, há muito já, vínculos estreitos que o tempo não rompe.
Manteigas \\ 27-7-1971 # Paraíso Terrestre”
É uma casa recente, exposta e arejada, a 500 metros do povoado vizinho e rente ao comboio oza de privilégoos, que raramente se encontram pelo menos em conjunto! Estância tranquila, emldurada ali de tenazes oliveiras, dá gosto viver lá ou passar alguns dias. Airosa e simples, na sua estrutura, a casa do “paraíso” exprime, ao vivo, a alma dos moradores. Nem deixam as aves de entoar ali suas belas canções, alegrando o sítio, onde parece, facto,viver a paz e einar a ventura.
Os inquilinos são poucos, mas acolhem gentilmente, ao gosto português. Na verdade, oferecem aos amigos o melhor que possuem. A propósito, não faltam, nesta época, as vagens tenrinhas, que é um gosto comer! A fazer coro, vêm também as favas grandes e ervilhas saborosas, não faltando em redor, para completar o belo quadro, imensa variedade de manjericos e cravos, abundando, para mais toda a espécie de flores
É bom chamar ali, que surgem para logo, bondosos amigos, oferecendo seus préstimos. Permanecer algum tempo, nomeio do arvoredo, é enorme prazer, sendo com tristeza que de lá nos afastamos! Como seria grato viver tranquilamente, num lugar assim, aonde não chegasse o ruído molesto nem a confusão que indispões e aturde! Ainda há, neste mundo parcelas invejáveis! Mas o tempo é cruel, pois nos leva sempre o que mais prezamos!Por isso, vou-me embora, mas já me acompanha a ideia de voltar.
É o Padre José Duarte a alma do “Paraíso!”
Alcaria \\ 28-7-1971
Já me encontro distante. Cinquenta quilómetros ou coisa no género, tal é o espaço, que medeia, na verdade, entre a moura Alcaria e a vila de Manteigas. Não é muito, de acordo, mas parece-me bastante. Que haverá, no local, a prender-me assim, atraindo os meus olhos?! Três presenças apenas e uma bela paisagem! A velha mãe, com 83 anos, é relíquia preciosa dum passado longínquo. Apesar de viúva e um tanto gasta, acumula energia que me causa surpresa!. Habituada ao trabalho, só a morte, decerto a fará render.
De muito longa data, viveu ela ocupada, numa linha de honradez, que é o orgulho da família. Enviuvou muito nova, o que lhe trouxe desgostos, barreiras e trabalhos. A sua coragem com tudo arrostou: venceu barreiras; transpôs obstáculos. Admiro e prezo esta mulher varonil, que viveu na minha aldeia, onde levou, aproximadamente, um quarto de século. Em 1937m iniciava eu já o meu 4º ano e, passando na Guarda, recebo a notícia: “ A tua aldeia vai ter novo pároco”. Quem é? - pergunto logo insofrido. “ É o senhor padre Duarte, natural de Alcaria”. Tinha eu 18 anos, a esse tempo recuado. Quem dera retornar!
Mas não! É preferível seguir o caminho, que o Senhor traçou a cada um de nós! Caminhar sempre, animoso e confiado, evitando o que é mal e dando-me ao bem. É, pois, o padre Duarte a alma operante daquela estância. Sem ele, realmente, nada ali haveria. Assim reina consigo a bondade em pessoa, aliada ao bem-fazer! A terceira presença é da mana Maria. que sempre o ajudou e lhe fez companhia.
Manteigas \\ 29-7-1971 Rescaldo. Uma Reunião
Iniciada às 9 horas, quer dizer, às 21, teve o seu termo, ao fim deste dia. Assuntos de importância foram debatidos, mas tenho para mim que o proveito foi nulo! A vidade ferida e o orgulho abatido servem-se de tudo, na mira de explicar o insucesso da vida., seja ainda a beliscar o nome de alguém ou até a insinuar processos condenáveis. que segundo o seu critério, estariam na base do enorme pesadelo!
Uma reunião de todos os docentes devia ser, em verdade, um elo de união, para estreitar amizades sinceras, incrementando a bela harmonia. Jamais, por ser realizada, no fim do ano lectivo. Tal, porém, é que não sucedeu. Atribuir a outrem as causas dum fracasso, é desculpa, a meu ver, bastante pueril, de modo especial tratando-se de colegas! Não reconhecer o mérito alheio, posto bem a claro, por obras repetidas, já é censurável, mas dizer em alta voz que o êxito alheio foi a causa real da sua humilhação, coisa é que repudio e contesto vivamente!
Houve 10 reprovações na secção de Ciências e 2 em Letras. Eu, por ventura, é que tive culpa dos factos ocorridos?! Trabalhei incansável, em colaboração e na base da lealdade. Os professores de Letras é que foram os culpados?! Houve três dispensas, na secção de Letras e nenhuma em Ciências. Causou espanto e má disposição?! Quem teve culpa?! Falta de nobreza e sentimentos plebeus é, de facto, o que eu vejo!
Vide-Entre-Vinhas \\ 8-8-1971
Vou deixar a minha aldeia, seguindo para Fátima. Tenho já pena e sinto dor, que estes ares são meus e porque tudo me fala uma linguagem assaz diferente. Compreendo as coisas na sua nudez; elas agem por igual, no tocante a mim. Aqui não sou estranho nem me julgo sozinho! Todos sabem, na verdade, o meu passado remoto, referindo-se a ele com funda emoção. E eu deliro, escutando, porque esse passado, embora já distante,, sou eu em pessoa, desentranhando o meu ser, que se afirma e impõe.
Relatam coisas, sendo eu menino, em tempos decorridos que a memória impotente não pode abranger! Acenam-me de longe estas plantas carcomidas, à sombra das qiais eu folguei jubiloso, em dias de Verão. Falam de segredos estas fontes rumorosas, revivendo no peito sonhos lindos que gerei. Sorriem carinhosos estes muros denegridos, ao longo dos quais eu seguia diligente, para o’bicho’(jogo) predilecto ou para furtar-me ao olhar materno
Acendem-me o peito estes Largos familiares, onde tanto folguei, tranquilo e venturoso! Como vou deixar tanta coisa excelente, que assaz acarinho?! E a música dos ninhos, a labuta dos campos, o murmúrio das fontes, o sibilar do vento?! E a imponência dos montes, a sisudez dos fundos barrocais, o augusto das matas, o gorgolejar dos mansos ribeiros?!
Aih tantas coisas a integrar o meu ser, pois com ele próprio todas se confundem! Igreja paroquial e humilde cemitério! O que vós me lembrais!
Companheiros de outras eras, vinde agora ao meu encontro, par a trazerdes, sem demora, refrigério à minha alma!
Nazaré \\ 10-8-1971
Manhã divinal, se algo de facto me interessa a valer! Centro de turismo e assim de pesca, não passa indiferente, perante os nossos olhos. A falésia é soberba! Majestosa e horrífica, grava-se na retina para nunca se olvidar. O funicular, então, parece irreal! Subindo quase a pique, chegamos a ter pena de seu esforço hercúleo. Mas, enquanto isto nos empalma, a fundo, um olhar à recta- guarda, faz-nos arrepiar! Se descarrilasse?! Que seria de nós?!
Tentámos esquecer, distraindo-nos um pouco, mas foi quase em vão! Aquilo é grandioso e deveras medonho! Calafrios, alvoroço, pavor e grande frémito é coisa de toda a hora! Quem ali nasce já á diferente! Integrou-se no meio, afez-se a ele e perdeu, a breve trecho ,a noção do perigo! Para o forasteiro, que lá não fora ainda, yudo se avoluma, fazendo-se espantoso! O mar, por um lado; o abismo, pelo outro!
Lá no alto, porém, reina a paz e o bem-estar! Igreja e capela mostram desde logo, o fundo religioso desta gente cristã. a Senhora antiga que chamam ‘da Nazaré’ +e já tão velhinha, que remonta, por certo, às origens do País. A legenda é que o diz e vai mais além. Trazida de Espanha, noséculo8º, permaneceu oculta no alto rochedo, até ao século 12.
Muito venerada a imagem da Senhora, amontoam, obre ela, o que há de mais rico: pulseiras magnificas; pendentes valiosos; cordões e colares; anéis e arrecadas. Aquela Senhora não pode esquecer-se!
Manteigas
8
Amadora \\ 1-1-1980
Gralhos e gralhas enxameiam nas ruas, abrindo impiedosos seus bicos arranhantes. Nada vale a idade nem o mister nem a probidade! Bicam e ferem, arranham, picam, seja quem for. Insensatez, impudência, leviandade campeiam infrenes. É preciso ter bossa, para assim afrontarem, rindo e provocando quem passa na rua! Quem lhes deu permissão, a fim de lesarem a liberdade alheia?! Terão, por ventura, credenciais diabólicas, para tirar o sossego a quem deles se abeira?!
Provocar, fazendo troça, mostrar claramente que o senso lhes falta, revelar descontrolo e carência farta de honestidade é timbre de gralhos e de lãzudos. Sucedeu o caso, logo de manhã, na rua de S. José, ao largo da Anunciada. Aguardava eu que a porta se abrisse, para entrar na igreja. Nisto, dois magarefes quebram o silêncio, dizendo irreverentes: Ó careca!
Nem podia convencer-me fosse aquilo para mim que respeito o próximo, seja ainda uma criança! Obtida a certeza, fixo logo um deles, com barba hirsuta, cabelo sujo e desgrenhado, virando-lhe a resposta: ó peludo! Entalado e surpreso, quase emudeceu, ante a rapidez da minha reacção. Sem papas na língua, dispara-lhe o outro: Anda, , bem feita, que levaste o troco !
Eu, então, fiquei-me sorrindo, no íntimo da alma, enquanto juntava: você é livre? Eu também o sou! . Estamos bem pagos. Siga o seu caminho, que eu sigo o meu
Lisboa \\ 2-1 1980
Falava-se muito no Vale do Jamor, onde estão concentradas gentes de Timor. Era meu desejo visitar pessoalmente os pobres refugiados e ver com meus olhos a triste situação daqueles infelizes. O ensejo favorável proporcionou-se em breve, levando-me assim a conclusões. Se bem comparo a sorte deles com a minha e de outros, que saímos de Angola, por fins de Agosto de 1975, não tem paralelo, sob aspecto nenhum.
Na zona do Catuitu, só a três quilómetros da extensa fronteira com a Namíbia, vivíamos em pleno abandono e extrema penúria. Nem balneários havia nem habitações. O céu nos cobria, espinheiras agressivas torturavam –nos o corpo. Além disso, havia decerto perigo iminente de ermos atacados ou virem as feras destroçar –nos ali.
Desde a negra fome, calores e poeiras, à dura enfermidade, física e moral, tudo experimentámos. Se não fosse realmente a África do Sul, o nosso destino seria bem trágico. Mas, enfim, Deus-Providência moveu os corações, para não sucumbirmos, â falta de alimento! No Vale do Jamor, estão bem melhor! Apesar de tudo, basta na verdade, o sofrimento moral, a incerteza do futuro, a funda apreensão de todas as horas, para a vida ser dura!
Como viva expressão de tais sentimentos, aparece-nos ali certa mãe angustiada, com tosse ininterrupta. De crianças à volta, fala-nos triste, mostrando nos olhos o sinal da agonia. Doze criancinhas! Uma das miúdas encostava-se a ela, a fim de aquecer. Mal enroupada, tremia, contorcendo-se. A mais pequenita, de chupeta na boca, tinha olhos fundos, como a dizerem que faltava o necessário, para alimentar-se!
Chorei de compaixão, vindo-me o desejo de ser milionário, para ajudar aquela pobre gente. As minhas primas, Aurora e Céu deixaram dinheiro e peças de roupa. Regressei amarfanhado, harto deprimido! É que eu, realmente, não podia ajudar!
Lisboa \\ 3-1- 1980
Dia favorável às minhas pretensões! Ontem, 2 de Janeiro, o caso premente da minha habitação; hoje, trabalho e receita! Embora os proventos sejam limitados, foi maravilhoso! Chegar a Lisboa, em tempo de carestia, sem trabalho nem quarto. é aflitivo! Deus, porém, encarregou-se logo de abrir caminho., pois Ele é bom e vela por nós! Graças infindas lhe sejam tributadas, pelo bem precioso que me foi proporcionado, sendo eu pecador e tão negligente em louvar e agradecer!
Pois bem! Ao fim de 15 dias ou melhor, 18, achei um ponto em que vou firmar-me: partilho a morada com João Afonso, professor efectivo do Passos Manuel. É um bom amigo, generoso e prestável. Deus lhe pague bem e o encha de bênçãos. No terceiro andar, 196, rua Silva Carvalho, viveremos juntos, por dois ou três meses . Em Março ou Abril, transfiro-me então para o lugar de Alcântara, ficando a morar com padre Alfredo, não longe do templo
Entrega-me, ao que julgo, o encargo das Flamengas,, ajudando na igreja, sempre que possa. Além disso, quando mo rogarem, darei explicações nas línguas habituais, Português, Francês, Inglês, podendo associar Alemão e Latim. Desta maneira, obterei o necessário para subsistir. São estes os planos dos meses que seguem, restando-me apenas achar emprego para a minha família, retornada de Angola. Quando este sonho for realizado, ficarei satisfeito, nada mais desejando, O Céu me favoreça!
Lisboa \\ 4-1-198º
Sete anos depois… Era lá em frente, no Campo Grande, 99 – 1º. No mês de Janeiro de 1973, fui ali despedir-me, Seria para sempre! Quem tal diria?! O que fora, noutros tempos amoroso e jovem e dava em 73 por Senhor Saraiva, sócio efectivo de “Mendes e Saraiva”, com automóveis para alugar, na Avenida Paris, já não pertencia ao número dos vivos.
Esta manhã, tirei-me de cuidados , a fim de lembrar o passado recente . Com este objectivo, encaminhei-me breve ao Campo Grande. Ia saudoso, alheado , pensativo! Já não veria um rosto sorridente e uns braços amigos, a estender-se para mim! Apagara-se nas órbitas o brilho de seus olhos; emudecera na garganta a sua voz carinhosa; diluíra-se nas faces a cor de magia, que a todos chamava; velaram-se os lábios que se inundavam de riso; paralisara a morte seus braços de carícia. Era isto que eu vivia, na romagem que fiz.
Perdi mais um amigo, para juntar à lista negra dos que haviam partido. Subidas que foram as primeiras escadas, avisto a porta, um nadinha aberta, Ouço bater, desprendendo caliça e vejo no chão objectos de caiador. Muito a custo, penetro ansioso, esquadrinhando o vasto interior. e tentando encontrar objectos conhecidos . Tudo foi em vão! Nada restava do que fora morada de Francisco Saraiva. Quadras vazias! Silêncio tumular em ordem ao passado!
Utensílios diversos falam de reforma, alindamento, progresso em marcha! Prostrado e mudo, vou até ao final, de coração oprimido. Olhando furtivamente, ia-me esgueirando, não viessem as lágrimas irrigar-me as faces! Logo em seguida, tomei a resolução: fugir pressuroso dum lugar horrorizante!
Lisboa \\ 5-1-1980
Amanhã, perfazem-se dois meses, que saí do Cavango, no Sudoeste Africano. Melhor diria: que deixei o Liceu, onde era professor. Ainda esperam por mim. Entretanto, resolvi não voltar. De 1946 até 80 vão a rigor, 34 anos, no decurso dos quais ministrei o ensino a milhares de jovens. Tenho para mim que já foi bastante, se tomo em conta o grau d e nervosismo do pós-revolução, em terra angolana.
Optarei, no futuro, por lições particulares. Somente a penúria fará que eu altere os planos de vida. A partir de Janeiro, tudo mudou! Efectivamente, a África do Sul já me não paga. Vida nova agora, em outro sector! Adaptar-me-ei? É o que resta saber! Irei tentar. Não conseguindo, volto às aulas, de novo. Ficou resolvido começar no dia 8, que é já terça-feira.
Espera-me assim a Capelania, lá para Alcântara. Apesar de tudo, já hoje me desloco, pelas 5 horas, uma vez que os meus préstimos foram solicitados . Ajudar quem precisa, ora por doença, ora por outra causa, está no meu sangue. Às 21 horas, há serão cultural na igreja de S. José, no Largo da Anunciada, Embora convidado, não posso tomar parte, mercê de trabalho que me foi pedido, na paróquia de Alcântara.
Segunda- feira, já faz três semanas, que cheguei a Lisboa, num avião gigante da SA.A. L procedente que foi de Joanesburgo. Vai já bastando para descanso e adaptação! Interessa, pois, iniciar a tarefa, que me espera na vida. Por Deus do Céu, será levada a cabo. Urge também que retire cuidados à família gentil que me deu hospedagem.
Estou grato à prima Aurora e a todos os seus, pela amabilidade, lhaneza e afecto que sempre mostraram. Deus lhes pague bem com favores celestes! Também não esqueço. o amigo Areias e familiares, de Joanesburgo, pela sua gentileza.
Lisboa \\ 19-1-\980 Cenários de Lisboa
A pós Abril de 1974, pintam-se os muros e carregam-se até as mesmas paredes com palavras e frases, alusões e desenhos, que me deixam perplexo e algo indisposto. Não quero falar nem ouso fazê-lo, de termos incorrectos e certas vilanias , que dizem bastante, sobre educação. Quem isto lançou não merece a liberdade. Esta, de facto, é coisa sagrada, que respeita os outros, não ferindo jamais ideias ou crenças!
Deixando àparte o lado vergonhoso, escurril e vilão de certos dizeres, que só a baixa ralé pode esvurmar, atenhamo-nos agora àquilo que não desonra nem envilece a campanha eleitoral Com radio prestável, televisão, jornais e revistas, folhas e brochuras haverá razão bastante, para manchar as nossas paredes, mostrando um aspecto que desola a alma?! Por que não cingir-se a meros cartazes, como pode ver-se, em países estrangeiros?!
Estes, por sua vez, nem devem ser colados! É de notar como ficam deveras imundas paredes de edifícios e vários cercados! Faz imensa pena que haja destas coisas, na formosa Lisboa. Usam-se tintas que é duro apagar, a fim de exprimirem intenções e desejos. Quando terá fim este baixo processo?! Quando acabará esta enorme vergonha, processo abjecto e nada construtivo?!
Escrever nas paredes, seja embora doutrna, que se admite e aprova, não é do bom tom. Que farão as crianças, vendo isto assim, por todo o lugar?! Recordo, a propósito, o que vi, na Suíça, em matéria similar. Era o ano do Senhor, 1960. Encontrando-me ali , acompanhado, então, de um bom amigo, tive largo ensejo de observar pessoalmente o alto civismo daquele povo admirável.
Nem uma palavra escrita nas paredes! Limpeza modelar, em toda a parte! As próprias sentinas constituem exemplo, que devemos imitar! Higiene do lugar e respeito ao próximo!
Lisboa \\ 20-1-1980 Cuspidores
Por esta Lisboa, o mal vem de longe. Não foi conquista do 25 de Abril! Já antes disso, eu via constrangido, ruas e passeios cobertos de escarros. Sentia-me afrontado, às vezes receoso e sempre enjoado! Que pena! Tão linda cidade, conspurcada e ensebada por matérias asquerosas! Quem serão os culpados?! Ignoro a resposta, mas estou em crer que sejam de fora os tristes autores de tal ousadia! Nem todos? Sim, provavelmente.
O certo, porém, é que as ruas de Lisboa se encontram manchadas por tal imundície! Vem de toda a parte: janelas e portas, bermas e passeios, estradas e praças, jardins e assentos! Grandes e pequenos, velhos e novos, pretos e brancos julgam-se fadados para ultrajar a nossa capital, tornando-a asquerosa! Seres nacionais e mais estrangeiros perdem alento, para voltar!
É lastimoso que o nosso turismo, fonte inesgotável de belas divisas, se veja diminuído e tome outros rumos. Malditos cuspidores a quem falta bom senso, idoneidade e até vergonha! Por que será que extravasam tantos?! Que razão os constrange a ser javardos? Por que hão-de fazer o que é reprovável em gente limpa?! Por que deitam fora o que tanto precisam?! Refiro-me à saliva, que é segregada, conforme a necessidade.
Quanto a escarros, o facto é horrendo! Para que servem os lenços?! Por demais é sabido quanto o facto horroriza e até amedronta! Fracos de pulmões, ou bastante afectados, lançam no ar o bacilo maléfico! Que vai suceder?! Crianças e velhinhos, doentes e anémicos, contraem, por força, a horrenda tuberculose! Há direito que o permita?!
Acabemos, desde já com tais cuspidores que, sujos e ignóbeis, se arrogam direitos que a ninguém assistem! Abaixo os cuspidores e mais as cuspideiras!
Lisboa \\ 22-1- 1980 Ainda a Linguagem
Não se trata de pronúncia ou de aspectos curiosos que o idioma apresente. É bem outro, afinal, o assunto em questão. Produto, já se vê, de má criação, não posso furtar-me à sua influência nem deixar o caso no rol dos esquecidos. Causa-me espanto e gera calafrios, o instinto soez e forte ousadia , que alguns manifestam.
Sem motivo nenhum nem discernimento com enorme carência, já de humanidade, já de compreensão, esquecendo inteiramente os problemas dos outros , para mergulharem no feroz egoísmo, esvurmam do peito, onde ferve a iniquidade e flameja o ódio, vagas sucessivas de impropérios e injúrias. Nem a condição ou ainda a gentileza de que outrem dê prova!
Encarnando em seu espírito o génio de Satã, jamais irradiam um sorriso de bondade. Nunca de seus lábios se desprende um termo que encerre ternura, meiguice, indulgência.
Faz muita pena que a nossa capital, cidade tão linda, que outras não igualam, enxameie de víboras e feros lacraus! Não hão-de faltar, aqui por Lisboa, corações generosos e almas formosas.Tenho a certeza de que elas existem , entretanto, operando no silêncio apenas por Deus, de quem esperam alto galardão, não se fazem notar! O Senhor nos valha e crie para breve uma nova sociedade, que não nos envergonhe nem traumatize aqueles que a formam!
Onde a liberdade para aqueles infelizes que são desfeiteados, sem darem causa para tais atropelos?! Ficam humilhados, perante as gentes , que aprovam talvez o silêncio prudente! Objectos de irrisão, passam confundidos , entre as multidões, corando talvez de serem portugueses! Não há providência que ponha logo cobro a estes desmandos?!
Lisboa \\ 23-1-1980
As pessoas de bem não viajam tranquílas. Temendo e receando, olham de leve, não haja motivo, mesmo infundado, que origine vilezas. Apesar de tudo, como enxameiam seres desumanos, nem a cautela serve de anteparo à vil ousadia. São gaiatos e jovens ou então já maduros, que vomitam da boca excrescências e dislates. Nada os contém: nem o sagrado nem a velhice ou respeitabilidade .
Autênticos selvagens, interpretam a seu modo a santa liberdade. Só existe para eles: a outrem é vedada! Bela democracia de trazer por casa e tudo permitir a quem falta bom senso e a mínima vergonha! Não há muito ainda, preparava-me já para sair do eléctrico., julgando erradamente que só havia uma paragem, até ao final.Tenho falta de prática. só com longo tempo se tornam familiares , problemas destes.
Aconteceu, pois, que o veículo parou, onde eu não esperava. Sendo isto assim, cosi-me estreitamente com o resguardo lateral, para facultar a saída a outrem. Poderia acaso fazer algo mais, no caso presente?! O que estava ao meu alcance procurei realizá-lo, sentindo-me acanhado e até confundido, ao olhar o corredor, para meu governo.
Julgará o leitor que me deixaram tranquí-lo uns olhos de fogo e lábios trementes?! Bem ao contrário! Mal se apeava um destes figurões, já entrado nos anos, mas ainda sadio olha de soslaio, encrespando a pele e esvurmando ira,: “ Estava para sair e põe –se ali, armado em parvo!”
Ouvi consternado e guardei silêncio! Nem podia ripostar, alegando razões, porque ele se esgueirou, furtando-se à vista.
Lisboa \\ 25-1-1980
Para meu regalo e, às vezes, tormento fui dotado pelo Céu de excelente pituitária.: regalo, sim, quando sinto prazer em odores cativantes; tormento, ao invés, quando na verdade se depara o contrário. Jà no século transacto dizia Herculano, referindo-se ao facto, que o cheiro em causa é próprio de cada um, Vai até mais longe, atrevendo-se a dizer que também as nações o têm próprio. Ele que o disse razões não faltavam, o que me leva a crê-lo!
Embora um século haja passado, ando a tombos com o mesmo problema, ousando afirmar que, em nossos dias, o caso é mais grave. O progresso da Química, gosto requintado e a mil exigências que todos conhecem dão a este assunto um campo vastíssimo.
Bom. Quem dispõe de nariz e bela pituitária, deve logo encher-se de muita paciência, já que o mau cheiro sobreleva ao bom. Sinto-me confuso e bastante perplexo, ao versar a matéria, Como vou explicitar e pôr bem a nu uma questão do género?! Eles são tantos os cheiros malditos, que tornam deletério o ar que respiramos. Se não é ver!
Provêm do cabelo, que os nossos lãzudos persistem e teimam em manter como donas; anicha-se também no pêlo comprido, que ensombra o rosto e o torna simiesco; gera-se ainda na pele ensebada, que os sovacos e os pés não deixam ocultar; alimenta-se nos fundos, onde medra e se expande, com angústia de tantos, que lhe recebem prestes os eflúvios maléficos; nutre-se de urinas, que atrevidos e javardos lançam nos passeios e junto de muros.
Que mais direi eu?! Um ror de casos me tolhe a pena, fazendo-a hesitar. Opor a estes o cheiro agradável, que se exala do perfume e vem das flores? Seria o contra-senso ou melhor quiçá o antídoto próprio. Entretanto, não consigo debelar a imundície tremenda, que anda encapotada Sucede não raro virem os cheiros todos, ao mesmo tempo, emanados, já se vê, de uma única fonte. Percebo-os eu, bem claramente, ao ser vítima deles! Pobre do meu ser!
O cheiro indesejável sobrepõe-se ao outro, diluindo seu efeito ou fazendo suprimi-lo, quase inteiramente!
Lisboa \\ 26-1-1980 Mais um Cheirinho
Associado a tantos, surgiu-me de improviso, na Rua dos Lusíadas, freguesia de Alcântara. Foi uma surpresa, harto desagradável! Faria, na verdade, esvair-se o apetite, a certas horas! Avistam-se os bichos em grupos reduzidos. ao longo das ruas, já com perícia e tento consumado. No trilho dos passeios, o caso é frequente! Passam alegres e até descontraídos esses cãezinhos que, ora de trela, ora em liberdade, gozam em delícia o 25 de Abril!
Não lhes tenho inveja nem proponho mudança, Há, porém, um aspecto que me permito indicar e merece reparos. Respeita aos donos, que não aos cães! Antes, porém, refiro um caso que se passou em Alcântara. Indo açodado, levanto os olhos, para ver à distância, atendendo ao tráfego. Nisto, depara-se não longe, o quadro aludido, ue me faz arrepiar, ainda agora: um cãozinho de média estatura espremia-se arqueado, tentando assim aliviar o corpinho.
Ao lado dele, segurando a trela, achava-se o dono, que fixava prazenteiro , indulgente e benévolo o bicho em apuros. Nessa altura, avultavam no solo torcidas variadas, ostentando , algumas delas cores duvidosas, Pelo ar, em volta, algo subtil como fumo ténue! Claro! Emanações deletérias não fazem esperar-se! Os peões que aguentem! Ningué os chama! Ora, aqui temos, precisamente, o fulcro da quer tão!
Não é agradável o aspecto da rua, amassada em fezes, que os bichos depositam. Como resolver?! Não me cabe a mim dar a solução, mas a quem de direito! Lembra-me, a propósito, o que li algures, sobre caso idêntico, nos Estados Unidos. Foi ali decretado que o próprio dono fizesse a limpeza. Para tanto, fazia-se acompanhar do necessário: vassoura e pá, e um saco plástico. Será, possivelmente, algo maçador, ingrato e pesado, mas quem há-de fazê-lo?! Não diz o ditado: Quem se obriga a amar, obriga-se a padecer?! Não indo por aqui, só temos, de facto, os pacientes varredores, como ainda também os encarregados da nossa limpeza, mas estou em crer que n~ao fazem bom rosto a semelhante função! A única saída é, ao que vemos, a que deixo exposta.
Gostam do cãozinho? Ninguém reprova isso, mas é preciso limpar o que ele rejeita!
Lisboa \\ 27-1-1980 .
MEMÓRIAS 38 D CONT.
Lisboa \\ 14-8-1971
Comemora-se hoje a famosa batalha, em que o povo castelhano se mostrou, à evidência, incansável corredor. Alguns combatentes fizeram prova farta de tanta perícia, que salvaram a vida, ultrajando, de longe, os mortos que ficavam. O mesmo Ayala por aqui ficou, meditando na prisão, sobre os feitos negativos de seus irmãos de raça, que tencionava exaltar, na Crónica de Espanha. Saíram-lhe as contas bastante furadas, o que sucede a muito boa gente. Isto e o mais provam claramente que a Pátria portuguesa é inassimilável. As pátrias, afinal, são como a gente: retalhá-las alguém não é permitido nem fácil de obter!
Deixemos, pois, falar Aljubarrota, com grande eloquência, para dizer aos novos como era, de facto, pundonorosa a gente dessa época. Que essa voz ecoe forte, para conservarmos uno o sagrado Património que nossos pais nos legaram. “Integração ou morte” isso jamais! Unidade de vistas, bom entendimento, como entre irmãos, seria maravilhoso!
Desaparecimento com absorção isso é que nunca! Associação e trabalho em comum – excelente coisa! Que a lição aproveite, não certamente para criar ódios ou ainda avivar animosidades. Seja ela um clarim se radiosa alvorada que fale de amor e compreensão, mas nunca, em tempo algum, de morte real ou integração!
Lisboa \\ 15-8-1971
Hoje é um dia singular, por tristes recordações que me traz ao de cima! Faz 5 anos que tive um desastre, em solo francês. Seguia descontraído, pela estrada de Bordeaux, não longe de Dax. Circulando a 80, conversava animado com o Antoninho, que é meu afilhado.À nossa frente, deslizava uma carrinha, com grande atrelado. Havia muito já que eu a seguia, não querendo ultrapassá-la. Foi o mal que eu fiz. Inesperadamente, ela estanca na via, sem aviso prévio. Fico desvairado! Travo logo a fundo, abeiro-me demais, tendo a impressão de que o espaço era pouco. Antevendo colisão, decido ultrapassar, não obstante a viatura que vinha contra mim! Tentava a sorte! Embora a via não fosse muito larga, passaríamos todos!
Assim julguei então. O lado pior é que eu não previ! Descontrolou-se o carro e, por mais que lutasse, guinou-me para a esquerda. Olho em frente e que vejo eu! Gigantesco pinheiro que me traz uma certeza: esmagar-me contra ele! Entretanto, não ia suceder, pois o carro da frente, em sentido contrário, apanhou-me de flanco, afrouxando assim a marcha do meu e evitando o pior! Gastei, nessa altura 15000$00. Mas gastem-se os anéis e poupem-se os de dos!
Lisboa \\ 16-8-1971
Ir à outra banda, levado em barco, é já obrigatório, quando venho â capital. Habituei-me há tempos e não posso resistir! É dulcificante, nos ardores do estio, o fresquinho da água! Deliro e prendo-me, ao ver as gaivotas, pairando sobre o ri. que ali é quase mar. Olho-as en tão, demoradamente, fazendo acrobacias , enquanto vêm desejos se possuir uma visão igual à das aves. A maior animação ocorre sem dúvida, no Terreiro do Paço, ao atravessar a bela marginal Centenas de pessoas aguardam inquietas, esperando ansiosas que a polícia de trânsito sinalize a permissão.
Ele bem se esmera, gesticulando amiúde, contudo mal se precata, a onda prossegue, envolvendo os veículos, que obrigam a parar. Motoristas impacientes, rogam ali mesmo, pragas aos turistas, enquanto estes, alegres, cantam em seguida, a marcha da vitória. De momento, ei-los, num pronto, galgando o Terreiro, para sarem entrada no cais de embarque.
Caminham desordenados, sempre aos tropeções e às cotoveladas, mostrando nas maneiras o inferior grau da civilização. Escarram onde apraz, cospem amiúde e não pedem licença. Qual orda de bárbaros , entram em Cacilhas, matando logo ‘bicho’ no Café-Restaurante. Lá os deixo, a agitar-se, enquanto jubilosos narram façanhas que seus apaniguados ouvem sempre atentos . Entrementes, as brancas gaivotas não cessam ali de fazer espionagem, olhando atentamente a superfície das águas.
Lisboa \\ 17-8-1971
Como em tempos de criança, vou agora correr mundo e dar-me, por algum tempo, ao gosto da aventura. Traçado o plano, meto ombros a ele. Prometido é devido! Cumprir apenas o que prometemos às outras pessoas? Por que não cumprir, de modo igual, o que prometemos à nossa pessoa? É prova de bom gosto e depõe a favor! Aí vou eu, através da cidade! Andar, andar, subindo e descendo, uma vez por outra, cortando à esquerda, para logo em seguida, voltar à direita!
Arranco da baixa e vou de caminho à igreja de S. José, no Largo da Anunciada. Cumprido gostosamente um dever matinal, volto logo em breve ao ponto de partida, fazendo então caras ao Terreiro do Paço, aonde me encaminho. Uma v ez aqui, rumo à esquerda, tendo por alvo a Santa Apolónia, que não chego a tocar. Ao Terreiro do Tabaco, sondo o arredor, pois é ali que trabalha o Carlos. Não descubro, mas deve estar perto!
Subo, depois, a Santa Engrácia, explorando, curioso, esta zona citadina, para mim desconhecida! Como as pernas fatigadas se vão doendo já, descanso um pouco, ao velho Mosteiro de S, Vicente, mas não posso esperar muito, que a jornada é longa. Enfio então pela antiga rua de S.Vicente, contorno depois a linha do eléctrico e eis-me agora na Almirante Reis.
Encorajo-me um pouco e subo ao Areeiro, que me encara de longe, prazenteiro e inchado. Desvio-me em seguida, para outra artéria, a de Paris e desemboco noutra, que chamam Roma, seguindo de pois, até à da igreja. Agora, corto à direita, recuando em seguida, até à Praça do Chile. Não podia mais! Percorridos, se m dúvida, uns 17 quilómetros, tomo pois, o eléctrico, para me levar à Praça dos Correeiros, onde fica a Pensão.
Lisboa \\ 18-8-\971
Forasteiro insatisfeito, cruzo-me na rua com milhares de peões! São vultos humanos, de alma e coração, mas nada me dizem nem eu igualmente, em relação a eles. Bem podia ser de outra maneira! Os nossos destinos são tão divergentes! Que me interessam eles?! Nem os conheço! Que lhes interesso eu, unidade entre tantas, desconhecido ainda no imenso tablado ?!. No entanto, somos todos portugueses, todos filhos e irmãos, ‘na casa lusitana’. Santos da porta não fazem milagres! Proximidade e contacto desvalorizam as coisas, por mais que o neguemos! O terra-a-terra gera a ideia de posse, em que a nossa fantasia já gosta de actuar.
Ao invés da distância, que doura e melhora, aquela é prosaica, assaz desengraçada e bastante fria! É enorme, sim, o poder da fantasia, levando, por vezes, a enormes desatinos! Aquilo que se possui não desperta a gente; o que se domina perde logo o brilho! Aquilo que se abeira afasta-se prestes! É lei geral da psicologia , que não sofre excepções! Por isso. caminhamos na rua indiferentes , se não apáticos, a nada ligando! Se houvesse interesse! Mas se ele não existe! Ora, onde ele não reina, por meio de aspirações, viceja a indiferença e cresce a apatia! Assim acontece, nas ruas da capital.
No meio de tudo isto, os que vão acompanhados aparentam bem-estar; aqueles, porém, que vagueiam sozinhos , por infelizes, lamento-os eu que avalio o seu desgosto!
Lisboa \\ 19-8-1971
Lisboa, afinal, faz-me já tédio! É forçoso deixa-la! Dez dias somente e já não aguento! Sempre o mesmo e sempre igual! A fêmea delambida à procura do macho; escarros por toda a parte; aceleração; encontrões a montes! Acham-lhe graça? Quem gostar que lhe preste! Pernas que horrorizam; o nu excessivo, por todo o lugar, e o descaro também! Para onde fugiu a antiga vergonha?! Será de crer que já não existe?! E se ela existe, aonde foi morar?!
Mulheres horrorosas, de calções, à homem, julgando néscias haver chegado já, o alegre Carnaval! Anomalias harto reparáveis? Isso que importa?! O que interessa, além de tudo, é exibir o vulto em pleno! Ancas desconformes; pernas minguadas, ao jeito de varetas; nádegas a apontar! Ao que a moda obriga e a vaidade aprova! Que nojo tudo isto e que grande javardice! Quando virá o siso, para assentar arraiais , neste mundo tresloucado, que de si o afugenta?! Faltará muito ainda, para chegar o tal dia, em que já não coremos de vergonha e pudor ?!
Enjoa-me tudo! O que vejo é músculo, de espírito ausente e já sem primado! Insensatez e loucura, desvergonha e ousadia, atrevimento grosseiro, a rasar com a luxúria! Para onde caminhamos, sem bússola na mão?! Que mundo este, desvairado, sem norte por guia!
Vide-Entre-Vinas \\ 24-8-1071
De quantas lembranças não vem recheado o dia 24! S. Bartolomeu, Apóstolo de Cristo; dia de feira, na vila de Trancoso! Associado a ela um mundo de sonho, que não pode morrer! Era nesses tempos, que lá vão há muito e não podem voltar! Meu pai não faltava! Tivesse dinheiro ou visse-o de longe, era certo na vila e presente no mercado!
Éguas e bois, vitelas e bezerros faziam-lhe dar voltas ao miolo esquentado. Quando lá não fosse, no dia 21 ou então22, não podia escapar, no dia 24. Era matemático! Fazer tudo a pé e dormir no caminho, geralmente em Fiães nada importava! No entanto, de Vide a Trancoso, hão-de ser provavelmente uns 20 quilómetros. Mas que vale a distância, com alma enamorada?!
Era eu pequeno: meu irmão ainda mais Como ele nos lembrava, esperávamos ansiosos o seu regresso, já pela noite. A casa do Carvalhal, com seu átrio exterior, era o posto habitual da nossa observação. Corríamos a estrada e o caminho pedregoso, julgando em cada pedra ver deleitados sua linda figura! Um veículo distante, brilhando pela noite, poderia trazê-lo, para vir mais depressa. Horas bem longas, já intermináveis, mas cheias de encanto e ansiedade!
Que traria consigo? Uma potra formosa? Uma vitela, assaz bonitinha?! Pelo menos, o que t raria decerto, eram belas uvas, para deleitar-nos. Assim era este pai, que a morte levou, arrebatando-o prestes aos braços dos filhos, que tanto lhe queriam!
Vide –Entre- Vinhas \\ 26-8-1971
A igreja de Vide é já uma ruína! Quem a viu outrora e hoje a fixa não pode certamente esquivar-se à dor! Lugar sagrado e harto respeitável, onde todos aprendemos a amar O Senhor bem como ao próximo; donde haurimos sequiosos os princípios mais santos, vemo-lo agora já esquecido, quase abandalhado e em desalinho!
Bem sei eu já que projectam novo templo , em que o Senhor seja honrado , o qual possivelmente é de linhas harmoniosas, finas e modernas! Apesar de tudo, quem ali viveu com os entes falecidos as horas mais ditosas da sua existência, não poderá jamais perdoar o arrojo de a ver substituída. Ainda que seja para melhor estado, como tenho a certeza, afigura-se logo uma profanação!
Aonde irei buscar o gradeamento do coro, já carcomido e um tanto descorado?! Venha embora outro de ouro ou de prata, qual aí haverá que possa , na verdade, ocupar-lhe o lugar?! Que metal, por mais válido, faz surgir na memória os tempos ditosos que não voltam mais?! Na grade velhinha pendurava-me, em criança. tendo à retaguarda o vulto amoroso de meu querido pai. Que dizer da coxia , em que eu alinhava com outros meninos, para cantarmos, em dias de festa?!
E que pensar da obscura sacristia, donde o velho Cabral nos lançava impiedoso?! Os santos dos altares, na fria mudez e grave compostura, figurando ali pessoas sisudas, que infundiam medo às pobres crianças?! O sacrário humilde, o adro e seu muro?! Tantas recordações! Não quero olvidar a magia do presépio, com motivos diversos e sedutores, em honra e louvor do Menino-Deus, que sorria para nós!
Aquelas moradias, feitas de papelão, apresentavam janelas que fixava, curioso, esperando que alguém ali assomasse. Durante o dia, entrava na igreja, para observar, à minha vontade, o caso das janelas e da mulher biforcada na bicicleta. Contava surpreendê-la, usando-a no templo, em correrias, quando evacuado.
Vide-Entre-Vinhas \\ 28-8-1971
Dia grande para mim! Passa exactamente o aniversário da morte. Refiro-me, claro está, ao famoso Agostinho, Bispo de Hipona, conhecido vulgarmente por Santo Agostinho. Desde os tempos da Guarda, a cursar Filosofia, nunca mais o esqueci. No curso de Teologia, mais e mais se vincou a minha admiração e profunda estima ao famoso luminar que assombrou o mundo.
Apaixonou-me o seu génio, encantou-me a doutrina, deslumbrou-me o seu exemplo. É, com certeza, uma estrela brilhante, um chamariz sedutor, um apoio resistente sobre o qual descanso, cheio de alegria. Nenhum outro santo me cativa de igual modo. Por isso, exactamente, o elegi, entre todos, não só como padrinho, se não também como advogado no Céu A sua bela mensagem tem luz meridiana: só fechando os olhos é que se desama ou não se preza
É um santo admirável que serve de norma, pois foi pecador e amou depois a Deus, com grande paixão. O seu exemplo arrasta, e a prova de tudo isto reside nas conversões que os seus livros operaram. As Confissões, a Cidade de Deus, o T ratado sublime da Santíssima Trindade cá ficaram para sempre, atestando às gerações o que pode o intelecto e um belo coração, quando postos ao ser viço de uma causa sagrada.
Conto, s em dúvida, com a sua protecção, o que me dá segurança e atenua o sofrimento. Após as tempestades e baixos enredos que a vida tece, é grato acolhermo-nos ao seio do Pai. Na bela companhia de seus Anjos e Santos, gozaremos face a face daquele Bem total, que não , podem roubar –nos.
Vide \\ 29-8-1971
É Domingo. Veste-se melhor, que é preciso ir à igreja, para louvar o Senor! Além disso, as mocinhas e os rapazes tentam insinuar-se, com vista ao novo lar. A Missa de preceito ocorre ao meio dia, mas há pouca afluência. Galisteu já cumpriu, que a teve na capela. Por outro lado, a nossa juventude saiu para a Guarda, onde se realiza o projectado encontro de 11 freguesias, pertencentes à diocese. É como tirar a alma a um corpo animado! As ruas são pacatas: se não fora, pois, o vozear das crianças, e adolescentes, horrível pasmaceira cairia sobre Vide.
Os mais idosos sentados pelas sombras, vão contando sisudos os casos do dia e trocando impressões que incidem, no geral, sobre o ano agrícola. Lamentações e desânimos, alvoroço e angústia! Entretanto, jamais o desespero! No seu coração, nunca tem lugar!. A conversa, por fim, termina geralmente, com estas palavras: seja o que Deus quiser! Nosso Senhor já governa casa, há muitos séculos. Só o tempo é que anda, afinal, à vontade de Deus! Ainda temos mais daquilo que merecemos!
É edificante a fé desta gente que, na adversidade, jamais perde o norte nem rejeita os princípios que devem informar a vida e as obras. Para afogarem magos, encaminham-se à taberna, onde esquecem um pouco a dureza da vida. Se ficam algum tempo, jogam as cartas,, o que lhes permite levar a tarde em cheio, por modo agradável. As mulheres, segundo velhos hábitos, acocoram-se às vezes em frete das casas, passando em revista os casos notáveis da velha aldeia.
Vide-Entre-Vinhas \\ 1-9-1971
Vou deixar a minha terra. Pensamento acabrunhante, sentimento doloroso, ideia lutuosa! Estou preso a ela: noto visivelmente que agonizo e desfaleço, mas não sei resistir-lhe. Ela é bem minha, muito mais que o dinheiro, mais ainda que a amizade, pois e stá dentro de mim ,e eu dentro dela , formando um só ente, uma só realidade! Se eu quisesse por absurdo, afastá-la de mim, intentando alguma vez esquecê-la para sempre, era isso negar-me, não ser o que sou! Ele é eu, e eu sou ela, não fazendo senão um!
Sinto-me aqui tal qual eu sou, reconhecendo gostoso , naquilo que me cerca e dá vitalidade, uma parcela do meu próprio ser. Estes ares são meus, e este céu aliciante, cheio de encanto e funda magia, entontece-me a cabeça, refrescando o meu peito, que a amizade e o amor tornaram brasa. Se alongo os olhos pelo horizonte se m fim, logo bem perto, en frente do Terreiro, a vida ressurge e com ela de permeio, brilha a luz à distância. Estes muros derrocados, a que o musgo se abraçou; estas plantas velhinhas que os vendavais açoitaram, acenam-me todos , com infinda ternura, murmurando ao ouvido coisas de outras eras
Humildes casinhas, firmadas em rocha, espreitando, lá de cima, em jeito familiar; fontes generosas, aguardando pacientes que cheguem homens e gados; lares dos passarinhos, que eu olhava embevecido, deixo-vos agora, com imensa tristeza! Adeus… adeus!
Manteigas \\ 2-9-1971
Foi ontem o regresso. Apesar de tudo, sinto a mudança. Há na minha vida não sei quê de apagamento, que se furta à luz e não deixa olhar este céu reduzido. Obscuridade e até solidão, isolamento e nada-ser é coisa, na verdade que, se não deleita, me traz algum conforto. Entretanto, verifico, uma vez mais, ser isso contrário à própria natureza. Homem da Terra,” animal gregário”, podia aceitar-se como definição, embora incompleta.
Quanto a mim, porém, devido certamente a causas deletérias, não tem aplicação. Habituaram-me a viver desacompanhado, e, embora eu deteste a vida solitária, já não posso levar outra! Fruto degenera do que o tempo originou, vergado por costumes e preso de tradições, objecto infeliz dum regime puritano, sofro agora, por força, os efeitos nefastos.
Falhou inteiramente o ideal humano e deveras aliciante que um dia criara. Nem tudo se perdeu, bem sei e confesso. Aquela melhor parte, a que não renuncio, essa, bem entendido , ninguém ma roubará: conquistar no Paraíso, um lugar de ventura. Posso dizer, com fundada razão, que nem tudo foi ao ar! Resta ainda a melhor parte, que muito prezarei, até à morte!
Daqui para diante, vou caminhar aos tropeções, na calçada pedregosa, cruzando-me a toda a hora com gente desconhecida! Não convivo nem falo, não sorrio nem canto, porque a angústia me acabrunha e a dor é minha herança! Deus bondoso sustente minha grande fraqueza, garantindo assim, na Pátria ditosa, um lugar de eleição, a que aspiro, desde sempre!
Manteigas \\ 4-9-1971
Vi-o na Guarda. Um tanto encurvado, seguia no passeio, olhando minucioso para quanto havia, como se fora, realmente, a primeira vez. Os seus 90 anos conservam-no lúcido, provocando admiração em quantos o vêem. Apoiado na bengala dá belos passeios, como tendo 20 anos! Reparando em tudo e olhando para todos, é belo passatempo aquilo que observa, fazendo o paralelo entre a era presente e aquela que viveu. Tenho para mim que não entende aquela, mas, apesar disso, não entra em protestos nem se deixa abater!
Sem ler no presente nem tirar-lhe o sentido, passa indiferente, como se, na verdade, seguisse um filme. Que lhe interessa a ele?! Vive na Terra, mas no mundo de outrora. Esse é que ele ama , prefere e adora, porque foi seu e bem o entende! O presente é-lhe estranho e o Padre Popo, embora português e do século presente, não se sente à vontade.
Qual relíquia veneranda, a que o tempo dá valor, precisa apagar-se, de maneira total, para que suba de preço! Ninguém o olha nem admira. Reputado velharia, é, na verdade, como um traste sem proveito, que obstrui a passagem. Olhei-o eu, no entanto, e saudei, no seu perfil, os velhos tempos, que ele tanto amou, esse mundo saudoso de eras recuadas!
5?
Manteigas \\ 13-9-1971
Folheando hoje um livro de Ciências, melhor direi, de Zoologia, notei alarmado que lhe faltam 4 páginas. Levando o assunto, já de enfiada, fiquei bloqueado, nas minhas diligências. Defeito nato?! Consequência de maus tratos, por mim infligidos, ao estudar, na Guarda? Nada disso! Observando melhor, notei amargurado, com alta indignação, que velha tesoura ali tinha operado, conduzida, afinal, por mão assassina! Eu, nessa altura, tinha 20 anos!
Era homem feito e, por esta razão, conhecedor da vida ou, pelo menos, assim devia ser! Que planeavam esconder-me, se não tinha escolhido o rumo a seguir e precisava de saber tudo, para fazer a escolha?! Era isto lealdade, para quem viera duma pobre aldeia e que à guisa de cera, ainda informe, ia sendo modelado, a capricho alheio, sem respeito nenhum pela minha pessoa?! Actuaram em mim, com fito oculto e pensar reservado, procurando iludir-me, para ser enganado?! Não é isto, a rigor, deturpar a vida, para educar aiguém?!
Qualquer Instituição de formação integral leva os seus alunos a descobrir ao certo qual o rumo a tomar na vida que os espera. Esta averiguação deve processar-se de um modo seguro, leal e profundo, jogando prós e contras, em ambiente aberto de sinceridade.
Há certos factores que eu repudio, com toda a alma: angelização ingénua; puritanismo assaz desumano; alheamento cabal da realidade.
Vide \\ 27-9-1971 Romagem de Saudade
Não que fosse a Roma ou a S.Tiago de Compostela, mas ão somente a lugares velhinhos, que pisara em criança! É grato sumamente, após 40 anos, rever caminhos velhos, quase irreconhecíveis; galgar ainda informes penedos, repetindo sobre eles, ações de outras eras; descer a valeiros e trepar às colinas, achando já um tanto desfigurado o que a mão do tempo mudou impiedosa!
Arranco do Terreiro, abordoado sempre a um pequeno sacho, fazendo em seguida caras ao Barreiro, pela estrada nova. Uma vez ali, olho com ternura a grande presa antiga, onde violentado tomei, de empurrão, o primeiro banho frio. Momentos breves e deliciosos, que me transportaram aos tempos saudosos, que não voltam mais! Subo então à Carriça e envere do pelo caminho, que meu pai, noutras eras, seguia, com os bois! Entre giestas e pinheiros, servindo o meu sacho de rico bordão, lá vou, serra acima, o que me faz transpirar!
Vem logo a Roçada: é a primeira estação. Sentado, por força, reconheço, a custo, a pequenina boiça, onde havia, outrora, uma parte de mata e outra de centeio. Olhando a meditar, comovo-me então. Onde a topografia, guardada no meu espírito?! Nem limites salientes nem a velha matinha nem o vulto saudoso daquele pai tão querido, auferindo do solo, a troco de suor, o alimento e a vida para os filhos que amava.
Vide \\ 30-9.1971
Vide \\ 30-9-1971……………NÃO
Embora a muito custo, deixei finalmente o penedo saudoso, por não ser ali o termo da ‘romagem.’Outro Lameiro, ainda mais distante, que pertencia, em tempos, ao senhor José Pinto, iria rematar o passeio da saudade. Ansiava ardentemente por vê-lo também, como sendo um bom amigo! Havia muito já, que vivíamos distantes. Fora isto em criança. Mas olvidar para sempre lembranças desta época?! Impossível, na verdade! A ferro e fogo se imprimiram na alma, não estando a meu alcance extirpá-las do seio!
Embora o Lameiro fosse então de renda, o meu passado é ele vivo e não posso olvidá-lo! Aih tempo saudoso da remota infância! Não ficou ali, decerto, enorme pedaço de alma, na companhia amada que fazia meu pai?! Há 45 anos como eu era feliz! Além é Fornos, pois é meu pai? “É”, dizia logo, fosse embora Celorico!
Mas fiquei desiludido, assim que o avistei! Onde estão as presas grandes? Responderam acaso estes meus botões?! Muito receei, nessa hora amargosa, pois temi o pior! O Poço Santo, a Presa funda e a Poça larga, já no extremo?! Que vasto mundo de sonho, que eu teria perdido! Tinha de abeirar-me! Assim fiz, sem demora! Que desilusão! Simples miniaturas ou então arremedos, era tudo quanto via?!
Oh, caras presas, relíquias preciosas, onde eu tomava banho, surpreendendo no lar as carriças descuidadas ! Sois vós ainda ?! Ou que sois vós, atulhadas de terra ou já sufocadas pelos fetos invasores?!
25-12 MEMÓRIAS 38 F CONT
Manteigas\\ 18-10-\971\ Camus em Foco
Ando agora a ler um livro do famoso autor e criador Camus, argelino de origem. Descendente de Franceses, creio não me enganar, tornou-se, dentro em breve, um nome consagrado. Encheu a França de orgulho e transpôs as fronteiras, indo projectar-se no espaço fulgurante, onde brilham as estrelas de primeira grandeza! No céu constelado, onde brilham os grandes, refulge , poderoso, sem igual concorrente! Que maravilha fez, escrevendo este livro!
Realismo e vida, fotografia de suma perfeição, dramatismo e crueldade! Esta pintura é deveras excelente! Que diálogos vivos e que cenas chocantes! Gravam-se a tal ponto, em nossa retina, que jamais se apagarão! De interesse crescente, vamos de lés a lés, sem cansaço nem fastio! A dor e o desforço, o terror e o espanto, a amizade e o amor tomam proporções de enorme altura! Os sintomas da peste, a incerteza do porvir e o drama terrível do isolamento , na própria terra, são traços magistrais que a memória não olvida!
Estrangeiro em sua casa, perto afinal, mas longe, dos entes que mais se amam, como é angustiador um quadro assim! Um Galeno que não cura e só decreta mortes; um mal que não perdoa e vitima, em poucos dias; uma grande cidade, em que os vivos se confundem, misturando-se b revê com os próprios mortos.
Manteigas \\ 19-10-1971
Que dia excelente de luz e calor! O céu formoso é espelho de cristal, que encanta e seduz, ostentando a curvatura como abraço de gigante, a acarinhar toda a Terra. E como ela, deslumbrada, se deixa seduzir, cedendo aos afagos, que lhe vêm do alto! Tudo se renova, pondo no semblante um ar festival, que a todos enleva!
Dá gosto viver com o tempo assim! Apetece, realmente ir campo fora, respirando, a capricho, o bom ar matinal. Não fossam as aulas, iria pressuroso, calcorreando sem parar, tanto montes como vales, para gozar em pleno os eflúvios deste Sol. Dilataria, a fundo, a cavidade torácica, aurindo em campo aberto o oxigénio precioso. Perante o belo Sol, o meu olhar tristonho ficaria embevecido, agradecendo, a fundo emocionado , o favor que me concede.
Um dia assim, em Manteigas, é mais que uma bênção. Entorpecido aqui pelo frio intenso, logo os músculos retardam seu agir necessário, recusando-se à tarefa que a vida lhes impõe. Mas quando o Sol dourado, emanando raios vivos, nos aquenta diligente, remoça a humanidade, aparentando ar de festa e depondo a tristeza. Animaram-se as ruas e também conjuntamehte o rosto das gentes
Uvas escarlates sorriram breve, nos seus parreirais, não sendo isso estranho aos figos das esteiras, postos a secar. Saíram os velhinhos para junto da testada, onde trocam i mpressões , relanceando olhos meigos pelos netos buliçosos, que andam cabriolando.
Outono reconfortante, visita-nos assim, para a vida se animar, fugindo à morte horrível!
Manteigas \\ 20-10-\97\
A caminho do Hospital, deparou-se-me um quadro. assaz encantador. Às 7 e 10 minutos, subia vagaroso a rua Zero 1. O ar fino cortava, insinuando-se no peito, que gelava, a b revê trecho. Penetrando, em se Guida, na rua Zero 2, fico deslumbrado! É agora o Nascente, que me está seduzindo! Os meus olhos rebrilham! O coração estremece! Lá muito ao longe, recortado na montanha, surge um painel, que me atalha o passo, dando sustento à curiosidade.
Uma placa enorme, feita de ouro e prata, reluzindo intensamente, onde os tons se combinam com graça infinita, é sedução para o meu olhar! Tenho-me ali como num sonho! Em baixo, cor de fogo; em cima, puro cristal! Mas, onde acaba uma parte, e a outra começa?! Impossível distingui-las! Na base, a maior intensidade, para ir diminuindo, progressivamente, a caminho do topo! Aquilo só visto! Arredar pé? Não era capaz!
Deleitando-se os olhos, mais e mais se afogueava a base do quadro, atenuando em muito o resto da cor. Que artista exímio ali trabalhava, para alegrar meus sentidos e deixar-me extático?!.Em dado momento, aparece então ali uma brasa viva, arredondada como hóstia, no altar do Senhor! Lembrou-me a elevação, em que nós prostrados, adoramos, ao vivo, a presençdo Senhor!
Que linda hóstia aquela, recebida com júbilo por toda a Natureza!
Manteigas \\ 21-10- 1971
O lugar X ( não é o Colégio!) tornou-se um calvário! Repelido sem apelo, como indesejado, agonizo e sofro, num silêncio amesquinhante. Rica prenda são os homens, se a vaidade os espicaça! A sinceridade não conta nada e a lealdade não vale! é preciso bajular, distribuir sem medida vénias mentirosas! O mundo vive assim, alimentando s existência de hipocrisia e traição. Quem triunfa e se impõe é quem mente mais, sofra embora na honra e vacile no ideal.
Ai do homem que se esquive, arrogando-se valor que os outros não tolerem! Se algo valemos é que outrem o permite, na medida exacta, em que apraza a estranhos! Riscar a direito, seguir a consciência e viver os princípios é cavar a sepultura! Endireitar alguém?! Quem pensa em tal coisa, se quem manda é o orgulho?! Não se pôr de joelhos, adorando a criatura, como sendo o próprio Deus,é abrir a sepultura!
Resvalamos com +rigo, em vert ente inclinada. Nada pode aguentar-nos, uma vez neste plano! Chorar ou gemer nada já presta! Seria bela ocasião, para mofarem de nós! Como é triste a condição de quem vive sozinho, com a dor a seu lado! Oh! a voz do sangue é bem clamorosa, mas essa, há muito já que não tem eco em mim! Como dói intensamente cravar os pés nos acúleos, sem alma generosa que os venha tirar!
Manteigas \\ 22-10-1971 O Punhal actuou!
Fui despedido! Mas porquê, afinal, essa grande injustiça?! ( Não se trata do Colégio) Só campeiam n este mundo, a doblez e a vaidade?! Somente vencerá o que o medo apadrinha?! Os valores defensáveis, n esta época má, residirão tão só na corrupção e no vazio?! Mas que seca! Isso é, na verdade, contra-senso marcado! Por que vamos no enxurro, adaptando-nos ao mundo?! Já não há idealistas que desprezem tais razões, argumentando prestes com a verdade, que é filha de Deus? A quem vamos prestar contas, no fim da jornada?
Aos homens orgulhosos, que tudo amachucam, para eles emergirem?! ?! Asquerosidade e falácia vil, a rrojo e despotismo, at é quando vencerem?! Mais que aos homens deste mundo eu prezo o nosso Deus, não me importando, realmente, que os homens se empertiguem? O que é certo, porém, no meio do torvelinho, é ficar mal disposto, cuspido e humilhado!
Que fazer agora, pois, se a vida é grande cruz? Levá-la paciente e recorrer ao Senhor. Que receba esta angústia, qual moeda preciosa, a fim de satisfazer minha dívida terrena. Irei assim descontando, embora de espaço, boa parte do meu débito. Aos homens que fazer? Perdoar-lhes a insânia, mas dar-lhes a lição, a fim de não voltarem, por caminhos iguais.
Manteigas \\ 2-11-1971 Dia de Fiéis Defuntos
Entre os Finados, encontram-se já os queridos pais, não falando nos avós e outros ascendentes. É tempo somente de compaixão, dia inesquecível! Venerando a memória dos entes queridos, endereçamos a Deus uma prece fervorosa, para que, em breve, os tome para Si. Estarão no Purgatório, penando ali, por culpa dos filhos? Mercê talvez de incúria e desleixos ou ainda, quem sabe?, porque entraram em desmandos, sugeridos pelo amor? Neste caso, que é que se impõe, como nosso dever?! Que nos diz o coração e murmura a saudade?!
Ficaremos insensíveis, agora e sempre,, ante seus lamentos e pedidos amorosos?! Ergamos pois ao Senhor uma prece fervorosa, a fim de que, por sua clemência, liberte essasalmas das penas que sofrem! Roguemos de início, por todos aqueles que nos são queridos,já por laços de sangue, já pelos da amizade. Além destes, por todos os pecadores, que são infelizes e esquecidos. Nada mais, em seguida? Oferecer esmolas e obras de caridade; aceitar resignados, trabalhos e aflições, pedindo ao Senhor os converta desde já, em moeda preciosa, que lhes garanta a salvação eterna! Aos mortos saudosos da Igreja Purgante dê o Senhor o descanso eterno!
Manteigas \\ 3-11-\971
Dezanove horas e trinta minutos! Neste fundão, anoitece agora bastante cedo, pois o Sol há muito já, que imergiu no abismo, além da Fraga da Cruz. Quando outros felizardos continuam bafejados pelo astro amigo, já nós suspiramos, na grata expectativa de vê-lo chegar, na manhã de outro dia. Ocultado agora pela serra altaneira , alastra breve pelo Covão, uma tristeza infinita. Os macróbios da vila recolhem aos tugúrios, onde os acalenta uma pobre fogueira. Até as criancinhas, mimo de Deus e regalo da vida, com seus descantes e ingénuos bailados nas vielas sombrias. É silêncio profundo o que reina já! Não foi tudo envolvido por um manto de sombras?!
Mas hoje, a esta hora, faz excepção o vale afundado. Entro apressado no velho presbitério e, abrindo a porta, volto-me um pouco para o lado esquerdo. Que é que se depara?! Um belo espectáculo, assaz deslumbrante! À Torre de S.Lourenço, avisto desde logo uma salva de prata a mais brilhante e preciosa, que fora dado aos meus olhos contemplar, neste mundo!
Redondinha e alva, como hóstia de altar, subia mansamente, por trás da montanha. Olho ali extasiado, com amor e ternura, essa meiga companheira da noite de breu!
Manteigas \\ 5-11-1971
Vi-o há momentos, sulcando o espaço. Era branco, branco, da cor sedutora da prata luzente que, a um tempo deslumbra, enfeitiçando os olhos. Segui, por longo tempo, o rasto luminoso, enquanto os meus olhos passeavam deslumbrados, dum extremo ao outro do sulco brilhante. Uma réstia de quilómetros, esbatendo-se na cauda e tomando cores vivas, no ponto da cabe ça.! Tal era o seu efeito, nessa hora matinal!
O Sol belo e radioso não assomava ainda, por sobre a montanha, mas já punha realmente caudais de luz forte, na ‘ave’ prateada. Aquilo só visto! E o aparelho seguia através do espaço, enquanto eu me quedava, saudoso e triste, por ele se afastar, com tanta rapidez! Queria detê-lo, observar-lhe os contornos, trocar impressões com as gentes felizes do seu interior, mas pobre de mim!
MEMÓRIAS 38 G CONT.
............... Iam-se os olhos, juntamente com ele, sob a cúpula imensa do céu imaculado. Depois de estar mirando, lá se esvaiu, para jamais o poder avistar. Qual brinquedo infantil, em carreira de vertigem, parecia empolgado por mão invisível! Que máquina potente e assaz admirável, para lançar-se, quase loucamente no espaço infinito! Quem me dera segui-la num trajecto sem fim e bem mais que isso, habitá-la também, durante horas e horas! Fá-lo-ei, para o Verão, se Deus quiser e aprovar os meus planos. Voarei, nessa data, sobre o mar atlântico, rumando para Angola.
Manteigas \\ 6-11-1971 Nuno Álvares Pereira
Neste dia., veneramos um santo que é também herói. Como iria ser o futuro da Pátria, se não fosse o Condestável?! De certo, muito outro! Nem sequer o podemos sonhar! Como é que um só homem, para mais ainda jovem, pôde tanto, com tão poucos?! A soberba castelhana é assim apeada! O rumo dos contendores, se não mesmo da Europa, vai ser já diferente. Eu não disse bem! O destino do mundo foi logo talhado por Nuno Álvares Pereira!
Imaginemos, por algum tempo, que este herói não surgia. Sem liberdade nem paz e estímulo, quem iria fazer a travessia dos mares, cientificamente?! Adeus, pois, Escola de Sagres e quanto se aprendeu, no ramo em causa! O Infante D. Henrique, Tânger e Ceuta jamais se tornariam formoa realidade! Deste modo, o orbe infeliz continuaria nas trevas, como sempre estivera!
Só um povo bom, generoso e dedicado, sem quaisquer ambições nem prepotência, era capaz de transportar o facho da civilização, do mar Mediterrâneo para o Oceano Índico. Tudo isso foi obra de Nuno Álvares Pereira. Garantindo a liberdade, que foi bem selada, em Aljubarrota, com o sangue generoso dos nossos homens, pôde este povo conceber altos planos e depois realizá-los, de maneira cabal
Se não fora a sua audácia, que enfrentou prontamente um exército enorme, preparado a rigor e bem equipado, onde estaria a epopeia imortal?! Perdida a consciência, fica o homem destroçado.
Manteigas \\ 7-11-\97\
Faz-nos bem variar os temas, quebrando assim a monotonia. Desta vez, rumamos pronto ao género épico. É narrativo, conservando, por isso, a essência da origem.” Epos” é um vocábulo grego, que denota “narração.”Sendo assim, acode a pergunta: que tipo de narração?! O objecto da epopeia reside, em verdade, nos feitos militares, de cunho heróico. O fim da epopeia consistis, pois, em cantar actos belos de essência militar.
Igual fim se propôs o grande vate luso, no Canto imortal: “ As armas e os barões assinalados” Os elementos do género épico são os seguintes: assunto e acção, maravilhoso e personagem. A forma não é, a rigor de tipo clássico, pois não veio do Grego nem do próprio Latim. Efectivamente, naqueles idiomas, os elementos do verso eram os seguintes: a quantidade ( sílaba longa ou breve) e o número de pés ( grupos de sílabas, em número imposto.
O verso preferido pelos poetas latinos era o exâmetro (verso de 6 pés). O poema de desse tempo dividia-se em cantos, mas não tinha estrofes., com arranjo e número, submetido a regras. Nas línguas românicas ou novi-latinas (derivadas do Latim) os elementos do verso elevavam-se a três: Número de sílabas, acentuação rítmica e, por fim, a rima, que não é de facto, elemento essencial. A forma do verso foi imitada, na Europa quinhentista, dos poetas italianos., como Ariosto e outros.
É facto provado e, por isso, indiscutível, que o poeta Ariosto já tinha usado decassílabo heróico de oitava rima.
Manteigas \\ 8-11-1971
O sistema rimático funcionava deste modo: abababcc. As vantagens desta rima são mais que evidentes. Nos primeiros 6 versos, verifica-se um ritmo de movimento, ao passo que nos dofs últimos, se vinca fortemente uma ideia poderosa. No concernente à acção, há que disti,guir entre acção central e acções acompanhantes, como sucede nos próprios Lusíadas. Aquela, por sinal, é o descobrimento do caminho marítimo para a Índia remota; estas, afinal, são os feitos notáveis dos audazes portugueses, que vêm exornar a acção centra, colocando-se logo em plano de igualdade, relativamente àquela
O herói glorioso da acção central é Vasco da Gama, ao passo que o das outras é o povo português. Aquele é individual, e este colectivo. A nossa Epopeia é de tipo clássico, em sua estrutura, exceptuando, claro está, a forma do verso. Se não, é ver: a divisão em cantos; emprego abundante da mitologia; recurso ao sonho e à profecia, à metamorfose e alegoria; ainda às mensagens e passos idênticos (alguns versos traduzidos à letra); a tempestade, conflitos e adornos, por meio de episódios, descrições e quadros vivos.
Vejamos os cronistas da acção central: o poeta e Júpiter, Vasco da Gama e Fernão Veloso ( primeiro e segundo, até ao 6º inclusive). Das outras acções é Vasco da Gama. Paulo da Gama, uma Ninfa, etc
Manteigas \\ 9-11-1971 Invocações nos Lusíadas.
São em número de 4. Localizam-se elas, bem entendido, interiormente a partes narrativas. A 1ª I 4-5 precede o poema, em forma global; a 2ª (III 1-2),antecede a exaltação dos reis de Portugal; a 3ª ( 7º , 78), antes de exaltar os heróis do continente e do Norte de África; a 4ª ( 1º. 9), antes de exaltar os heróis da Índia.
Quanto âs fontes dos Lusíadas, temos a considerar as de ordem estética ou ainda literária, e as fontes estéticas. Aquelas foi o vate buscá-las aos poemas notáveis da antiguidade clássica , de modo especial â Eneida de Virgílio. Terá consultado ainda o poema didáctico “As Geórgicas desse auto; Metamorfoses dos Deusas, da autoria de Ovídio.
As fontes históricas distavam menos, no tempo e no espaço, uma vez que Fernão Lopes, Zurara, Rui de Pina, João de Barros, Diogo do Couto e Castanheda eram cronistas notáveis, que tinham já tratado os feitos heróicos dos portugueses ilustres, que se haviam distinguido, no Continente europeu, no Norte de África e também na Índia ( os três últimos).
Quem exalta os feitos dos heróis portugueses é Vasco da Gama, no 3ºe 4º Cantos, que se ocupam, a rigor, dos reis de Portugal ( duas grandes dinastias – primeira e segunda: Paulo da Gama, no 8º Canto, descreve ao Catual as figuras das bandeiras I heróis do Continente e vizinho Norte de África). No 10º Canto, é então uma ninfa, que apresenta com ênfase os heróis da e seus feitos valorosos: Afonso de Albuquerque e muitos outros.
Manteigas \\ 10- 11- 1971
Pontos marcantes da Epopeia Nacional: Moçambique e Melinde; Ilha dos Amores e Calecute, ainda antes. Em Moçambique é, de facto, o início da acção central e um lugar perigoso para a navegação, visto que, longe da Pátria e cercados de inimigos, corríamos sério risco de de ser aniquilados. O nosso destino é urdido pelos deuses, no Monte Olimpo, decidindo o concílio permitir, finalmente, a ousada empresa.
Em Moçambique, é tecida por Baco engenhosa cilada, que vai repetir-se em Quíloa e Mombaça, com o fim de aniquilar a gloriosa armada e apagar para sempre o nome português. Vem agora Melinde, onde somos acolhidos favoravelmente, mercê do pedido, feito a Júpiter, pela deusa Vénus. Como garantia, enviara Júpiter o mensageiro Mercúrio, acompanhado da Fama.
Tão grande alvoroço tomou o rei de Melinde, que pediu ao Gama, com toda a insistência, lhe contasse, em pormenor, a História de Portugal. Recebemos ali apoio, ajuda e carinho. Por ser gloriosa a História do Reino, exalta o Gama, perante o rei, a notável acção dos reis de Portugal, até D. Manuel. Em Calecute, é já o remate da luta porfiada, ocorrendo ali a exaltação brilhante dos heróis do continente, feita ao Catual por Paulo da Gama.
Na Ilha dos Amores, são os portugueses consagrados como heróis e logo elevados ao nível de deuses, por seu enlace com as belas ninfas, símbolo do prémio que aguarda sempre os que fazem grandes coisas. Ali, é contada, finalmente, a história brilhante dos heróis do Oriente.
Manteigas \\ 11-11-1971 Acção Central dos Lusíadas
Distribui-se o feito pelos Cantos seguintes: 1º e 2º, 5º e 6º. Efectivamente, nestes 4 Cantos, é percorrida a longa rota de Lisboa a Calecute. Nesta cidade, termina, de facto, a viagem ao Oriente e o irmão do Gama conta no local, os feitos valorosos dos heróis do Continente. O 7º Canto é formado, todo ele, por contactos e visitas: Monçaide que visita a nossa armada; a recepção do Catual; encontro do Samorim com Vasco da Gama.
Partes da viagem: de Moçambique a Mombaça: de Mombaça a Melinde; de Lisboa a Moçambique; de Melinde a Calecute. Profecias: 2º Canto, feita a Vénus por Júpiter, (após o pedido que ela) lhe endereça); Canto 4º ( pelo velho do Restelo aos ousados navegantes, já prestes a partir para a Índia longínqua; Canto 5º ( gigante Adamastor); Canto 10º ( feita por uma ninfa, na Ilha dos Amores, durante o banquete, oferecido por Rètis aos heróis portugueses.
Intervenções de Baco, que representa, de facto, a oposição eterna do Oriente ao Ocidente: a 1ª de todas ( no encontro do Olimpo); aparição ao rei de Mombaça; 6º Canto ( aparição a Neptuno, deus do mar; 8º Canto ( aparição ao Catual , governador, na figura de Maomé, Foram, pois, 5 vezes, durante a viagem. Baco representa os interesses, que os nossos descobrimentos iam prejudicar.
Manteigas \\ 12-11-1971 Intervenções de Vénus
No 1º Canto, foram duas vezes: No Monte Olimpo e na viagem para Quíloa; 2º Canto, na viagem a Mombaça; 6º Canto, durante a tempestade;9º. para consagrar os nossos heróis. Simbolismo efectivo do Canto IX. Era costume, nos poemas antigos, serem as personagens de raça divina. Assim, o herói Eneias era de Vénus. Ora, como os portugueses provinham de simples homens, tornava-se necessário elevá-los, desde logo, à classe de deuses, em recompensa da grande bravura, heroísmo e coragem, que tinham revelado. Só podiam consegui-lo, mediante o enlace com as belas ninfas. Foi o que sucedeu, na Ilha dos Amores.
Pelo consórcio, foram eles que subiram, ao nível de deuses, e não elas que baixaram à condição humana. Sempre o mais é que absorve o menos e não vice-versa. Chama-se profético o X Canto, e a ninfa eloquente, que exalta ao vivo os heróis ds Índia surge nos portugueses, na Ilha dos Amores. Paulo da Gama glorifica em Calecute os heróis do Continente, em presença do Catual. Vasco da Gama narra a bela história da Pátria lusa ao rei de Melinde, na própria cidade, com nome igual. Nos Cantos 3º, 4º e 5º, é Vasco da Gama o cronista dos factos.
Manteigas \\ 13-11-1971
Decorreram 7 anos. Parece muito mais! Em dia como hoje, na estação dos frutos, caiu da árvore quem me dera à luz, havia já mais de 40 anos. Foi um sonho o meu viver, enquanto ela não partiu, mas após a sua morte, o Oceano tranquilo volveu-se, num pronto, em Mar de tempestade! Acabado para mim o chamado “sonho belo,”depara-se logo, carrancudo e negro o tremendo pesadelo.
Com a mãe presente, embora já velhinha, nem a dor se atrevia. Era providente sua mão carinhosa. Raio clareante seu olhar de bondade! Viração embaladora sua voz de meiguice! Muralha intransponível seu braço vigoroso, que sempre abençoava! Mas agora, coitado! À mercê da fera sorte, caminho desolado, pelos trilhos da vida!
Em cada muro, há sombras más que, ao verem-me passar, vociferam rudes e me fazem chorar! Em cada pedra onde tocam meus pés, há bicos acerados, que se enterram inclementes na carne dolorida. Avanço logo, mas nada ganho, pois a vida presente carece de tudo o que a fazia bela!
Ó mãezinha, amor incomparável, como sinto, amargurado, tua longa ausência! E, no entanto, és lá no Céu, um dos Anjos do Senhor, a velar por mim, em todo o momento!
MEMÓRIAS 38 G CONT
Manteigas \\ 14-11-1971 A Fúria de Mandar
Chega, por vezes, a ser ideia fixa, qual monomania que tudo sacrifica. Ter muitos ao dispor, ordenar a subalternos, impor-se a toda a hora, para arvorar-se em deus! Com este ojectivo tudo imolam: a vida e a morte, o Céu e a Terra, a carne e o espírito! E se mais houvesse, houvesse, mais ainda jogariam na mesa fatal! Terrível sina que faz da existência verdadeira tirania, atropelando os demais, nos seus direitos sagrados. Mandar em quê?!
O mundo inteiro e, caso não possam, no seu mundo restrito: oficina ou fábrica, Escola ou Asilo, no campo ou no lar. Pessoas e coisas, animais e plantas! Quem alguma vez se deixou possuir deste horrível demónio, é um perigo constante, no grupo em que actua.
Exige incenso, impõe curvaturas, demanda atenções, intenta que o adivinhem! É tirano consumado que se levanta somente, para derribar os outros semelhantes. Ai de quem não ouça ou tente fugir-lhe! Perseguido e acossado, não terá certamente, onde, onde possa abrigar-se! Num lugar qualquer, em terra ou no mar, lá terá, sem dúvida, o espectro feroz, a entenebrecer-lhe os dias da vida!
Pois o que se erguer contra esse homúnculo, argumentando sincero, com razões a asistir-lhe?! De nada lhe vale! Pisado e batido, como o pó dos caminhos, só lhe resta aguentar um desfecho lastimoso! Se for leal e sincero, homem impoluto de um só querer, tanto pior ainda é.
Manteigas \\ 15-11-\971 Uma Noite de insónia
Quando isto sucede, é uma luta inglória! Sou lá capaz então de conciliar o sono?! Tentei uma, duas vezes, três e quatro ainda, mas foi tudo em vão! Às 9e 30, encontrava-me no leito. Ouvia bater, com grande nitidez, as horas e as meias. A última de todas foi depois da meia-noite. Como é tremenda a nova desagradável! Qual garrote poderoso, infiltrado no pescoço, ele age fortemente, impedindo os movimentos. A gente vira-se, torna a virar-se, e uma vez mais se volta no leito, mas inutilmente! Atrair o tal amigo é que não há meio!
O tempo ali roda moroso, não tomando em conta o sofrimento que oprime! E quando sós?! Então sim, é que a dor avassala, tomando vulto maior! As paredes não sentem, as coisas não falam: é tudo silêncio! Unicamente a ingrata solidão por nossa companhia! Mas que pode ela, em tais circunstâncias?! Como há-de actuar?!
O pobre coração, a dados intervalos, quebra o ritmo de sempre, dando logo a impressão de que vai repousar! Que seria de mim?! Quando ele repousar, tudo está consumado! É o fim da existência, neste mundo de amargura, para início de outra vida que não mais acabará!
O maior imprevisto ocorreu ontem, pela tardinha. Em vez de aperitivo, deram-me a beber um cális de fel! Foi já nomeado outro capelão, para o Hospital! Porquê esse imprevisto, desempenhando alguém, as ditas funções?! A quem foi pedida a substituição?!
Arbitrariedade! Enorme injustiça!
Manteigas \\ 15-11-1971 Encontro a dois
Um diálogo vivo, entre a velha ama e a minha pessoa! Este apodo é um tanto forçado, uma vez que minha mãe exercia cabalmente as funções peculiares, inerentes a seu múnus. Entretanto, como o leite não chegava, era mister socorrer-se, ao tempo, da amiga Cremilde, para obviar à notável escassez de que estava sendo vítima. Contudo, a ama aludida, já não era jovem, embora muito lúcida e bastante saudável. Ela sozinha orientava a casa e cultivava as terras, pois o marido estava enfermo
Um dia, em conversa, diz ela, com ênfase: “ É uma carestia que não faz ideia! Aquilo é lume! E se fosse apenas isso! Chama-se alguém, e ficamos mal servidos! Sabe, por ventura, quantas vezes, no passado, iam as mulheres à Tapada Inês levar estrume?! Nada menos de 27 hoje? Faça-lhe um cálculo!
-- Umas 20, possivelmente!
-- Qual história! Apenas 10! É uma dor de alma! Quando morreu o meu Agusto, gastei munto dinheiro! A urna dele 800$00; o bem de alma, soma igual; Delegado de Saúde 110$00! Uma coisa assim! Uma coisa e outra! Faz lá ideia! Quanto mais vêem a gente afogada, mais apertam a corda! Então, era preciso cá virem, para só declarar que ele estava morto?! A gente não sabia?! Uma coisa assim!...
Manteigas \\ 15-11.1971 Continuação
De momento, a conversa, entre nós, deriva para os dentes. Ouvi com atenção os reparos divertidos que ela faz para mim, acerca do caso. Que não caísse em tal! E alongava-se então, citando muitos casos, de que tinha notícia. Aquilo só visto: “Só me lembram caveiras esses dentes malditos! (dentes postiços). Dizendo isto, fazia um desto de espanto, em que punha a alma toda! “ Uma dentuça!” rematava com ênfase. Vale muito mais comer sem ela! Eu mastigo tudo! Só leva mais tempo! Só leva mais tempo! Olha agora! Não vêm lá os Franceses! Cozendo-se bem os nossos alimentos, nada temos que recear!
Não ponha dentes novos! Olhe que se arrepende, mas já ao destempo! Podia falar de inúmeros casos, em que certas pessoas lamentaram chorando o dinheiro empregado! E depois?! Era tarde! Tal houve, sei eu, que os meteu na mala e, quando a abria, alvoroçava-se todo, pois lhe lembrava que já estava morta! Deus que os dá, também os tira”
Fiquei a pensar, meditando nas razões. Algumas delas provocavam-me o riso! Mas a sua convicção?! A alma que punha em quanto dizia! Guardarei tais razões para todo o sempre! Ilustrações amigas que eu, a rigor, não devia contestar, tinham na verdade um sabor especial, devido às circunstâncias, em que foram expostas. Foi no Terreiro, em Vide-Entre-Vinhas que a cena ocorreu
A sua presença lembrou-me velhos tempos, em que a vida era bela. Quão diferente é hje, após entalões e grandes geadas, que me aturdiram a própria cabeça, rareando os cabelos e mudando-lhes a cor!
Manteigas \\ 18-11-1971
Ser professor, na época actual é ter vocação para lento martírio. Foi um prazer, em tempos idos, exercer o cargo. Hoje, porém, devido a factores, que são abundantes e muito variados, quase chego a detestar a minha profissão, pois não traz, de facto, a soma de alegria que lhe era peculiar. O que vejo, afinal, é desinteresse enorme, grande apatia e dissipação! Num ambiente assim, resta só uma coisa: aviar as malas e pôr-me ao fresco! Trabalho inglório, somente dói e muito perturba!
Que aproveita, afinal, o nosso ardor, se não cai, para logo, em terra fértil, mas em solo ingrato e deveras sáfaro?! De que vale eu queixar-me, quando à minha volta, ressoam pronto vozes de troça?! Aproveita alguma coisa diligenciar e afanar-se alguém?! Não sabemos nós, antecipadamente, que o duro labor é de si infrutuoso?! Se ao menos alguns aproveitassem bem o esforço dispendido! Já não era tão amarga a desilusão que fundo me invadiu e harto prostrou!
Não havendo interesse, morre a vida ao nascer! A alma da Ciência e a base do progresso residem ali, com toda a certeza. Para quê afadigar-me, roubando à existência alguns anos de vida?! Trabalhar ingloriamente, com z certeza do grande fracasso, faz cruzar os braços e perder a coragem. Uma aula de hoje é algo de frio, que logo me enregela, invadindo as profundezas de todo o meu ser! Remar ainda contra a maré? Que o façam os novos! Eu depus o remo!
Manteigas \\ 19-11-1971
Transcorrido um mês, cerram-se já 9 anos, que meu pai faleceu. Parece, realmente ,que foi há longos séculos. Jamais será dado contemplar o seu rosto, cá neste mundo! A verdade, porém, é que hei-de revê-lo, na Pátria da Alegria. E le está no Céu, que Deus projectou para as almas belas. Honestidade e grande equilíbrio, sensatez e abnegação eram qualidades que nele avultavam. A saudade imensa que dele me ficou avoluma-se agora, de dia para dia, não obstante a distância, que já nos separa.
Laços vincados, aderindo firmes, não há aí poder que os faça relaxar. Está na minha frente, representado em foto. Que pena ser única e um tanto imperfeita! Levei-a para a Bélgica, em 1965, procurando ali aperfeiçoá-la. Entretanto, não pude conseguir o que tanto desejava! O sombreado que abunda esconde o lado esquerdo, os olhos e o pescoço. Era, se bem me lembro, ao cair da tarde, num Poente obscurecido. Colocados em linha, frente ao cemitério, e voltados a Nascente, fomos alcançados pela modesta máquina do José Tiago. Corria, nessa data, o ano 44. Tinha meu pai 58 anos, e minha mãe 57. Eu andava então pelos 26 e minha irmã, pelos 17.
Bons tempos eram esses, em que o lar integral se conservava unido. Agora, tudo foi! Como vendaval a impelir brutalmente o que lhe barrava a passagem, foi varrido o lar amigo, sem deixar para lembrança uma pedra sobre outra. Quando alguma vez tento reconstruí-lo, vejo apenas destroços, vazio, escuridão!
Manteigas \\ 20-11-1971
Decorre a minha vida, sem interesses algum, em constante alheamento. Como ser de outro modo?! A vida presente apenas interessa, quando a ela nos prendem amarras poderosas. Assim, portanto, de que posso ajudar-me, em tempo desfavorável?! Qual é a tábua de pronta salvação, em que me apoie confiado?! Se tudo é venal, passageiro e volúvel! Se quem julgava amigo também se conjurou em na minha perdição! Só em Deus, realmente, eu posso descansar! Nos homens deste mundo sei que há malícia, não sendo puro o seu coração.
Colocado assim, entre agudos espinhos, não tendo ainda atractivo poderoso, necessário se se torna que eu hesite e soçobre. Enquanto o não fizer, que profunda tristeza me invade o coração! Ouço, às ve zés, cantar e outras muitas ainda, trautear certas árias. Nesse caso, fico-me a olhar, demoradamente, como se aquilo fosse novidade! Então pergunto baixinho: Como é possível cantar alguém?! Haverá razões, neste pobre mundo, para causarem satisfação?!
Quando tudo é proibido e ninguém sorri que não lhe calquem as mãos, pode a criatura ostentar alguma vez o rosto afável?! Assim vivo tristemente, passando as minhas horas a dialogar com a solidão. Que me vai dizer ela, para aliviar o meu coração?! Também está só e não tem amparo!
Manteigas \\ 21-11-1971 Encontro Amigo
Qual oásis deleitoso, após longa caminhada, assim ele se apresenta, np meu duro viver. Por que não usar mais desta brisa suave, que logo enche a alma de bem-estar e conforto?! Porquê, afinal, encerrar-se alguém, lá dentro de si ou então de velhos muros, curtindo ali fundas penas e dores, sem que outrem o note?! A dor, assim, é mais que horrorosa. Açoitado o pobre ser, exposto e rendido aos golpes da sorte, , não tendo arrimo nem apoio sólido, que fará desprovido, uma vez escarmentado?
Ontem, porém, houve excepção. Resolvi-me de vez, metendo em breve os pés ao caminho. Havia tanto já, que não fora a um lugar, que pedia o coração e também a saudade! Fui ao serão do Dr.,Isabel, velho amigo provado, na vila de Manteigas. Coração generoso e carácter impoluto, granjeia, em breve, estima e afectos! Venho sempre melhor, da sua companhia. As palavras sentidas, o pronto raciocínio e de igual modo, as profundas convicções, em matéria de fé e bem assim de costumes, são viva realidade, que a todos se impõe.
Além disso, é uma alma delicada, que sofre ou se alegra, quando outrem chora ou então rejubila! Caldeado o carácter, nas agruras da serra, foi timbre nobre do seu viver conservá-lo inalterável e mantê-lo impoluto. Reagiu e actuou como bom e grande amigo, perante o caso injusto de que eu fui alvo.
“ Compreendo o seu caso e vivo-o também”
Mamteigas \\22-11-1971
Já lá vão as 10 horas desta fria manhã, no mês de Novembro. Aguardo impaciente, que venha em breve o Sol aquentar-me, batendo na vidraça. Parte ainda cedo e chega tarde, que os montes vizinhos a isso o obrigam. Antes que surja além, por cima da escarpa, vamos nós cá penando, aqui mesmo no fundo, bem geladinhos! E pela tarde? Com que saudade o vejo imergir ou melhor diria, lançar-se malhão no abismo sem fim! Direi bem? Em abismo fico eu,, tenebroso, enregelado! E le se guê triunfante a carreira gloriosa. Beneficiando o mundo que lhe fica em redor, põe na alma o sorriso, levando conforto.
Ah! bateu agora de chapa, na vidraça da janela! Que alvoroço no peito, onde o gelo domina! Que estremeção, aqui nos meus olhos, afundados em treva! Que choque profundo, em todo o meu ser! Oh! que momento ditoso e que grande ventura! Ao fixá-lo, risonho, desviou seus raios de fogo e ouro, tentando lisonjear-me. Aonde foram pousar-se? No mais elo conjunto, que se apresenta à esquerda. Que deslumbramento e funda sedução! Que horas de gozo! Ali se erguem mudos quantos eu amei! Já não falam nem se movem, mas o Sol complacente empresta aos ademanes jeitos de encantar!
Bem hajas, Sol amigo, pois trouxeste a meus olhos eflúvios repousantes, que adormentam para logo, a dureza da vida!
Manteigas \\ 24-11-1971
Linguagem chula, por certo, mas colorida e bem sonora! Vinha eu do Colégio, atra- vessando a ponte, ao senhor Joaquim Pereira. Inclinada sobre o muro, que resguarda o caminho, certa mãe gesticulava, com destoantes movimentos, fazendo ouvir sua voz potente , agitada e convulsa: “ Anda, anda, que levas hoje uma puta de uma sova, que te deixo de cama!
Foi uma surpresa, uma revelação! Tinha-a visto já, por mais de uma vez, e fazia, na verdade, uma ideia diferente! Talvez bonacheirona, mais para tolerar que para agir, com prontidão. Enganei-me! A sua linguagem, o tom de voz e os próprios ademanes eram disso prova certa! Bem diz o rifão que as aparências iludem! E, ne verdade, assim é! O substantivo plebeu é que já não sai da memória impressionada!” Uma puta de uma sova” deve ser, julgo eu. um tremendo castigo! E eu nem sei! Talvez não fosse má!
Passada a ocasião, os nervos aquietam-se, a razão serena e o espírito ilumina-se. A breve trecho, como é de supor, vem tudo ao normal A mãe irritada, ao chegar a casa, já talvez se não lembre! Episódio raro ou jeito especial, adquirido e conservado, ao longo do tempo. Apesar de tudo, por ser educadora, tratando-se, afinal, da própria mãe, a sua linguagem, de modo nenhum se adapta ao cargo!
Manteigas \\ 25-11-1971 Conversa Desabalada
Para quê, tamanha ansiedade?! A que vem tão ingrato penar, se a vida é já triste?! Arrumá-la sim, pôr tudo no seu lugar é medida prudente! Uma noite em peso, trocando impressões, levantando alvitres, contando amarguras, decepções humilhantes! Eram dois colegas incertos, provavelmente, sobre o rumo a tomar. Eu, por mim, acho tudo muito fácil, na idade em que estou. Já penei bastante e muito sofri. Se fosse hoje, nem sequer hesitaria! Ape sar de tudo, ainda não sei bem. Seria lá capaz de entristecer minha mãe. Ignoro a resposta! Ela era tão boa e tão minha amiga!
Eis o grande problema, a poderosa amarra, que pesa tremenda, sobre espáduas fracas! Mas eu estou velho, e ele é é jovem! Ainda irrealizado, não aceito já pela comunidade, procuraria absorver as minhas energias, escolhendo então o que mais agradasse. Viver oprimido, sem finalidade, é não ser nada, renunciar loucamente aos direitos sagrados! Em que aplicar as fortes energias?! A que agarrar-se, cá neste mundo?! Para mim é já tarde! Sim, muito tarde!Se assim não fora, custasse embora à querida mãe, tomaria novo rumo., convencido que estivesse de não ter vocação, como a Igraja exige.
Deus não quer opressão! O seu jugo é suave e se Ele nos deixou caminhos diversos, todos conducentes à Pátria Celeste, porquê então viver inconsolável, sem arrimo nem carinho?! Viver só, neste mundo é grande heroísmo. Absurdo lhe chamo, quando não existe a dita vocação. É tão grande o vazio, que não há palavras, para o descrever, por modo cabal!
Manteigas \\ 26-11-1871
Vai grande entusiasmo, entre os nossos rapazes. Amanhã, defrontam-se as equipas de Belmonte e Manteigas, na vila famosa. Outrora, a nossa gente distinguiu-se nos mares; hoje, porém, leva a palma da vitória ( assim o julga), mas em terra firme! O homem do nosso tempo é mais trivial: volta-se para o corpo, em vez do espírito. A musculatura a sobrepor-se já ao mesmo intelecto! A inversão de valores há-de fazer sentir-se, logo que faltem elementos básicos.
A rapaziada agita-se, inusitadamente, e todos eles são vida, movimento e cor! O sorriso espalha-se, aviltando no rosto e faiscando nos olhos. Dir-se-ia talvez que um grande evento se encontra iminente! Já vai muito longe o tempo de rapaz, em que eu, impensado e cheio de euforia, me entregava deleitado a estas efusões! Hoje, ao invés, acho-as incolores e um tanto balofas! Tanto eu mudei ou elas o fizeram!
Que é que entusiasma, na fase presente? A que agarrar-me, se tudo perdi e nada já encontro daquilo que amava?! O que tenho não é meu, porque a minha escolha não foi espontânea! Sugerida, sim, engenhosamente, fazendo-me da vida pintura aliciante, que não era exacta! Abusando certamente, da minha ingenuidade, levaram-me a crer no que eu desadorava, sendo muito outro o caminho verdadeiro.
Acreditei cegamente, à maneira de aldeão, que não disserta nem tão pouco reflecte e aceita logo,de olhos fechados, o que lhe dão por bom. Sendo assim, é logo de prever o triste resultado! Solidão e vazio, revolta perpétua: eis, pois, em resumo, a soturna companhia que me tem rodeado!
Manteigas \\ 27-11-1971 Feata Natalícia
Os 44 anos da única irmã que vive desterrada, em solo angolano! Quem me dera estar perto, neste dia assinalado! Infelizmente, porém, a vida é traiçoeira e com praz-se amiúde em dar a beber um cális de fel! Um aniversário, vivido em família! Algo de sagrado e até inesquecível, de modo especial entre pais e irmãos! Que tristeza, porém, quando o mar se interpõe ou o Continente se ergue em barreira! Viver assim, à distância é ser sede e não beber, havendo água cristalina, abundante, correntia!
Como sofro, neste dia, em que as almas se aproximam, tendo embora de manter-se, a distância infinita! O que penso e não digo! O que sinto e não revelo! O que desejo e não alcanço! Que força é esta que nos mantém separados?! Que destino ingrato acorrentou nossas vidas, para todo o sempre?! Poderá existir, neste mundo habitado, algo superior à nossa vontade, ou a ela contrário?! Haverá, por ventura, realidade tão cruel, que se erga ameaçadora, contra irmão e irmã?! Jamais para mantê-los assim afastados?!
Existe aí no mundo, por mais grave que seja, alguma realidade que me empolgue e devore, sem visos de piedade?! A quem votei o meu ser ou dele fiz doação?! Só a Deus e mais ninguém! Por que temos, sem razão, motivos banais, que reputo, sem demora, causas infundadas, néscias e loucas?!
Espectros maus, retirai-vos para longe, que este dia é venerando! Deixai rezar a minha alma devota, para obter da Providência vida longa e venturosa, que não torture, mas antes sorria, à querida irmã!
Manteigas \\ 28-11-1971 O Maior dos Horrores!
Voltará Jesus ao mundo, para chamá-lo, uma vez mais?! Impõe-se ainda violenta Paixão, a fim de resgatar o homem perdido?! Que loucura é esta que tanto surpreende e logo assusta?! Que desatino campeia, neste mundo venal?! Que é que desdourou a pobre Humanidade, com seus actos vilãos?! Em viragem como esta, ninguém já se entende! O contraste parece lei; o absurdo figura preceito; a hediondez um grande anseio! Sinceramente confesso: não entendo ninguém, a começar de cima!
Já não têm prestígio! Acabou até a própria autoridade: lavra a rebelião! Para onde caminhamos?! Pede-se orientação: ficamos à espera! Apontam-se anomalias: encolhem os ombros! Após isto, o caos! Remédio nos homens é coisa que não vejo! A corrupção abastardou, por certo, há longo tempo já, o carácter volúvel desta geração. Quando isto é um facto, nada se espera!
Compreende-se lá que agora se ache bom o que dantes era mau?! Admitimos, por ventura, que certos reformadores, feitos à pressa, ergam solícitos o pendão da revolta, só para destruir?! Que esperam eles?! Que nos deram, em troca?! Demolir é fácil. Construir é mais difícil! Também eu quero reformas, algumas das quais são bem desejadas, mas não quero destruir, ao menos em globo, o património sagrado que vem já do princípio. De modo nenhum!
Sobre o dorso do passado, limadas que sejam as arestas picantes, eu desejo, sem dúvida, estruturar o porvir.
Manteigas \\ 29-11-1971
Enreda-me os passos a folhagem da rua. Como é eloquente essa dança arrítmica! Tem ela princípio, mas não finda jamais! Folhas desmaiadas, em lenta agonia, de palidez mortal! Algumas enrugadas, outras já desfeitas, surgem na via, remoinhando agressivas! Vão na minha frente, arrepiam caminho para seguir à direita e logo pela esquerda! Que fado é este da folhagem sem tino, que não sabe o que quer nem para onde vai?! Ficassem na planta, nutrindo-a de seiva! Não Tínhamos agora o quadro angustiante!
Mas não! O seu destino é cair, desprendendo-se da vida, para morrer em breve. Redemoinham e param, voltando em seguida, a pôr-se logo em marcha; cobram alento e, às vezes, amortecem, embaraçando os meus passos. Folhas já mortas, que fazeis por aí, revoluteando sem rumo definido?! Sois a imagem da vida, que breve se afastou do seu Criador. Doidejamos loucamente, na mira da ventura, julgando encontrá-la, onde nunca fez as sento. Triste sorte, afinal, em que nos vemos lançados, buscando nossa dita, longe e fora do Senhor! À margem d’Ele, só pecados e loucuras, estonteamento!
Se quisermos ser felizes, vamos já sem demora, ao encontro do Pai. Procuremos o Norte, onde Cristo nos espera.
MEMÓRIAS 38 H CONT.
Manteigas \\ 2-12-1971 À Volta da Igreja
O desaterro do templo velho, em Vide- Entre-Vinhas, chamou a atenção. Passei por lá e quis observar, com os meus olhos. Catarpil gigantesco armado na frente de grande embocadura, recolhia vorazmente os pedaços arrancados. Para tanto, cravava os dentes no saibro remexido, havia longos anos. À segunda vez, enchia o camião. Dava gosto olhá-lo! Os seus movimentos eram quase humanos! Avanço e recuo, arranque e paragem tudo executava, com aprumo e valentia! Se acaso falasse, teríamos então o cume da maravilha.
Ao passo que o fitava, cheio de interesse, seguindo-lhe os movimentos, deparava-se ali, a um metro ou coisa do nível do terreno, emergindo da terra, um osso enorme que parecia um fémur. Belo achado para mim! Estremeci por ele, embora inanimado, e lamentei condoído, que se mexesse, por algum modo, no campo dos mortos. Nem após a vida nos deixam repousar! Dentro em breve, os dentes do engenho se vão ali cravar, qual iguaria, apanhada com ânsia e logo devorada! Que importa?! Já não sente!
Seja embora! Sinto eu por ele! A quem pertenceu aquela relíquia?! A pessoa de família, conhecidos ou amigos?!
A cada impulso do motor potente, o osso estremecia, já meio pendurado e prestes a cair. Tive enorme receio de que então se magoasse. È que ele alvoroçava-se, devido à insistência do potente engenho! Logo ao lado, em pequeno cesto, jaziam inertes, caveiras carcomidas, desafiando ali a minha curiosidade. A quem pertenceriam?! Ainda quis saber qual a sua rigidez, mas esboroavam-se, qual barro desfeito e sem coesão!
Manteigas \\ 3-12-1971 Uma Visita
Foi há dias já, mas o facto não esquece. O Manuel Mendes, natural de Salgueirais, encontra-se internado, razão pela qual rumámos ao Sanatório, para o saudarmos. Aquilo só visto! Já lá fora uma vez, mas sem atenção! Desta feita, porém, assentei mais um pouco, observando melhor. Almas e corpos, ambiente, que nos gela, não obstante, já se vê, o aquecimento que baste!
Para quê estranhar?! Não é a Guarda aquela cidade altiva e fria, que o mundo conhece?! Por outro lado, o bacilo de Kook não se desenvolve, a temperaturas, assim tão baixas, caso sejam constantes. E m tal ambiente, definha e morre! Quem quiser não se abeire! Mas o caso era outro! Encontrando-se ali um velho amigo, o Mendes da viola, impunha o dever ir-lhe ao encontro. Por isso, avisados, já de ante mão, sobre a hora disponível, lá nos dirigimos ao Serviço 3, às 12 e 30.
Caras novas e pasmadas a transpirar aflição, começaram a chegar, A palidez e a mesma ansiedade iam já traçando, nos rostos definhados, os sinais claros da fria morte. Entre os demais, lá surgiu o nosso amigo. Vinha sorridente, procurando ser como era noutro tempo. Mas um homem doente e, para mais, incerto do futuro, com os filhos a estudar, não consegue transmudar-se. As rugas fundas mostravam-no bem. Ia já melhor, esperando curar-se, mas voltaria a ser o que fora, no passado?!
As brancas adensam-se, ao alto e de lado, mas a sua viola é que não falta ali. É um derivativo! Meio excelente, para esquecer!
Manteigas \\ 6-12-1971
Tempo lastimoso, em que tudo nega, com descaro tal, que põe estremeções, em peitos serenos, causando arrepios! Se tudo cai, pergunto eu: que é o que fica?! Poderemos negar o que é evidente?! Acaso será lícito alguém pôr em dúvida o que as gentes creram, ao longo dos séculos?! Nada aí haverá, por mais sagrado, que seja inviolável?! Que ousadia furiosa levou alguns teólogos a contestar, insensatos, o que deve ser aceito como indiscutível?! É mais que loucura! Direi até que se trata de satanismo!
Ensandeceu este homem que o Senhor criou, a fim de O louvar?! Criou-se ele a si mesmo?! Pobre taranta, que hoje existe, sim, e amanhã já não! Que poder tem ele, para dizer disparates?! Entre eles todos, ocorrem-me agora: “Jesus Cristo não ressuscitou. A ideia tão viva que deixara nos discípulos é que era responsável por esse caso irreal: apresentava-lho como estando vivo”
E há tamanha ousadia, para contestar, em plena luz, o que foi incontestado e aceito como certo, ao longo de 20 séculos?! Isto a partir do próprio tempo, em que o facto se deu! Nem o mesmo S. Paulo nem as aparições de Cristo ressuscitado a tantas pessoas, umas vezes em grupos, outras ainda individualmente ?! Se, na verdade, não foi contestado, no tempo inicial, como se atrevem agora, após tantas gerações?!
Outro disparate, que é o número 2:”Jesus Cristo não foi gerado por influència divina mas sim por um homem” Sendo a Escritura assim tão clara, como é possível afirmar tais coisas?! Não disse a virgem:”Se eu não conheço varão?! “Negando uma coisa, nega-se tudo! Esses teólogos mereciam cautério!
Manteigas \\ 7-12-1971
Era um jovem prendado, com futuro promissor. De voz maravilhosa, equilibrado e sensato, um dia chegou que lhe pôs entraves na vida corrente. Não conheço bem o caso. Sei unicamente que ele foi vítima de grande injustiça. Trabalhava, em S. Romão, onde teve desaires, se não mesmo ultrajes, que a fundo o magoaram. Por fim, veio então o pior! Obrigado a sair, deu logo em pensar, redundando em cisma.
Reflectiu, meditou e ardeu em paixão. Novo rumo lje surge, que o seduz e empolga, e a sua personalidade transforma-se em extremo, de um momento para o outro. Adeus equilíbrio, adeus sensatez e gosto do trabalho! Temos outro homem: intempestivo, a roçar já pela grosseria! Ninguém o reconhece! Mal-humorado, sempre receoso e sumamente altivo, é agora antipático. A quem o vê figura-se enfermo que lavra, em toda a parte a suspeita amarga! Em cada homem, vê ele o demo em carne, interpretando seu proceder qual manobra insidiosa, para ajudá-lo a perder. Vem, por fim, o vício terrível!
Levado então por forte desânimo, crendo-se também desamparado e em extremo sujeito a injustiças, dá-se à bebida que o domina inteiramente. Emborca diariamente um garrafão de 5 litros! Como é triste e lamentoso o destino humano! Se a cabeça não regula!...
Inútil e mal visto, foi para o Brasil, onde se encontra, â data presente!
Manteigas \\ 8-12-1971 “Esteve já no Limoeiro”
Esta frase terrível soou, no momento, qual dobre a finados! A Penitenciária – assim ceio eu – espera, de facto, os grandes criminosos! Como foi possível a um cokega me, que possuía dotes assaz invejáveis, ir ali parar! O próprio ouro também se altera, e a prata reluzente perde o seu brilho?! Sumo desatino foi aquele, por certo! Rematada loucura fez perder a cabeça a quem a tinha organizada! Mas não! Algo houve de mau que lhe transtornou a maneira de viver.
Pede aqui, pede além, mas volta não há! O caso triste dá que falar, e os seus credores ficaram de pé atrás… desconfiados e até perigosos! Como seria, no entanto, o começo da tragédia?! Herdara uma quinta, onde em pouco tempo investiu capitais, na mira de transformá-la.
Havendo esgotado os recursos próprios, recorreu em seguida a conhecidos e amigos, com o fim oculto de não restituir. (?) Seria assim, logo de início?! Custa-me crê-lo, em boa verdade. Onde estão os princípios de honra, gravados a fogo na alma de alguém?!Onde também a sua consciência, meticulosa, talvez, a qual dificilmente renuncia aos hábitos de longa data?! Caiu tudo, num momento?! Julgo que não! Um abismo chama outro. Veio talvez a primeira conjuntura, em que não pôde cumprir, pelo mero facto de haver consumido o que não era seu! Impossibilitado, afez-se ao desaire, havendo por habitual o que fora episódico.
Criara-se, pois, uma situação bastante delicada, que o poria, mais tarde, no plano inclinado.
Manteigas \\ 9-12-\971
Após um feriado, vou novamente, a caminho do Externato. Há que trabalhar e fazê-lo com afinco, pois a fome é negra e o dever constante não admite infracções. Que eu gosto do trabalho, afigurando-se até como indesejável uma vida sem cuidados. Lombeira igual à que vejo tantas vezes, não dá para mim! Ao chegar ao Colégio, depara-se logo um Fiat 800 , cuja cor é verde. Já o vira muitas vezes, mas sem observá-lo, de meu vagar. Hoje, porém, foi com outros olhos! Eu era o mesmo, e o carro também., mas havia em mim um quê de novidade, que o punha diferente! Ficara ali aguardando, com ar submisso. Não ia desanimar: ao fim de 1 hora, o senhor Pelicano estaria de volta.
A chefia da Câmara não lhe permitia descansar longamente. Olho, pois, à minha roda e acho-lhe graça! A traseira da viatura voltada para o Colégio esperava decerto a chegada breve do seu proprietário. Outros veículos se encontravam ali, que eu observei, cheio de curiosidade. Nenhum tomou, porém, o sentido prático. Fazendo caras ao nosso Externato, assim ficavam, durante uma hora, se não 3 ou 4. O Fiat é que não!
Prontinho a marchar, com ares de quem aguarda, inquieto e preparado! Meditei no caso e logo deduzi que o actual Secretário e professor do Colégio é pessoa metódica. Um simples gesto, mera atitude lodo fazem luz, nos caminhos dos homens.
Manteigas \\ 10-12—1971
Cravou-se em meu peito e não posso arrancá-lo! É um espinho acerado, harto pungente, diria lancinante! Por mais que eu tente, não há força, aí que o desarreigue ao produzir no seio a desolação e a morte! Partiu, de vez e eu não soube! Infortúnio foi este que assaz lamento e harto deploro! Disseram que morreu! Será verdade, meu Deus?! Fiquei mais pobre que dantes era, pois agora soçobro, ao longo da via. Falta-me o apoio que há muito recebia, do seu grande afecto.
Doutor Evaristo Franco, meu primo e bom amigo! Médico exemplar! Escritor exímio! Por que não disseste que partirias breve?! Não sabias por ventura, que ficava angustiado, chorando amargamente, na na dura solidão da minha alma enlutada?! Que me vale agora prantear a tua morte? Se ouvisses meus ais! Mas aih! Os teus olhos fulgurantes, e o coração de bondade são pasto dos vermes, pois jazes no sepulcro!
Como neste mundo passa ligeiro aquilo que é bom! Vitimou-te esse cancro! Bem podia poupar-te! Eras, na verdade, o encanto da vida para quantos se abeiravam da tua pessoa, humana e radiante! Disseste-me um dia, querendo eu pagar-te a grande maçada, por causa do meu estômago: “Paga lá em cima” e apontavas para o Céu!
Que Deus te recompense de todo o bem que me fizeste! Rezarei por ti, com muita devoção, ao Senhor do Calvário! Foi vida trabalhosa a que levaste no mundo. Aliviaste a dor e escreveste a verdade; cultivaste a virtude e execraste o vício. Agora, recebes o prémio!
Amortalhado, pois, em imensa dor e minado pela saudade, venho dizer-te adeus e abraçar-te de longe!
Manteigas \\ 11-12-1971 Esperar
Como é doloroso viver esperando! Mais ainda, por certo, se o nosso viver é já sem esperança! Parece disparate, mas tem fundamento, que a vida o ensina! Se ela, de facto, é mestra exemplar! Tenho esperança, afinal, mas não consigo realizá-la jamais! Torcido o meu destino?! Quem ousou atravessar-se, para lançar-me na cova fria, sem cumprir ainda os meus dias na Terra?! Que o Sol escureça e a luz não aclare! Sentir de outro modo, seria demência!
Amar a outrem igual que a mim, é já, na verdade, esforço heróico! Somente por Deus eu o realizo. Mas querer-lhe mais reputo isso absurdo e até grosseiro. Contra a razão e o própri o bom senso iria realmente contra a justiça, calcando o meu ser e atingindo, ao mesmo tempo , na sua marcha louca, os princípios do equilíbrio.
Esperei inconsciente que Deus bondoso me trouxesse à vida, o que foi um dom para a minha pessoa; esperei, logo em seguida, que mão carinhosa se apiedasse de mim. o que foi concedido e bastante lisonjeia. Após este princípio, foi tudo, afinal, contra a esperança. Espero pelos outros e ninguém o faz por mim; aguardo a sua chegada , mas ningu«em, realmente, se ocupa da minha.
Deparam-se rosas no caminho dos outros; : o meu, por«em, apresenta só espinhos, Esperei, embalado, realizar um sonho, mas torceram-me o plano e fiquei logrado..Só me resta uma esperança que, afinal de contas, é mais importante que a própria vida: ganhar o Para
isso. Neste pobre mundo foi tudo um engano ou quase tudo, Se, ao menos, realizasse a última esperança! Que Deus me ajude e ponha energia nos meus intentos!
Manteigas \\ 12-12-1971 Semana de Notas
Semana de trabalho e longas canseiras! Acabei agora essa dura tarefa Pontos nas aulas, serões em casa, apuramento de notas, previsão de insucessos, esperanças mal fundadas! Perde-se a coragem, vendo tais provas! Para quê ralar-me eu tanto, perante o desinteresse, que apresenta, de facto, o jovem de hoje?! Se eles não querem, pode rei acaso levá-los a querer?! Impossível! Ainda se riem da minha pessoa! Vale mais atar as mãos e partir de vez! Efectivamente, já o teria feito, se a minha reforma fosse maior!
Assim, tenho-me aguentado, com o fim de avolumar essa magra ração que o Céu me depara, volvidos que sejam tantos anos de labor e bem assim tantas horas de estudo.
Já vêm chegando as férias de Natal. Foram belas no passado! Espécie de sortilégio, verdadeiro encanto, para a minha alma, em extremo ardente, juvenil, apaixonada! Possuía, nessa altura, os queridos paizinhos, cujo rosto adorado era feito de meiguice, que apagava males fundos. Finaram-se já! Outras fortes raízes me faltaram igualmente. Hoje, estou desfalcado, vendo o meu ser em ruína total! Férias para mim!...
Só descanso leve, para o corpo se manter. O meu espírito vai continuar deveras perturbado, inquieto e ferido, meditando a cada passo, na insegurança da vida presente e na doblez do homem actual!Princípios de honra, palavra dada, compromisso tomado, é fantochada! Não posso adaptar-me a estes enganos! Desenraizado como vivo já, da prezada família, também o estou da sociedade. No entanto, há excepções!
Manteigas \\ 13-12-1971 “O Meu Menino “
Quem é o meu menino! Fiz esta pergunta, achando estranheza, pois estava à margem das circunstâncias, atinentes ao caso. “ O meu menino é meu pai, a quem eu trato e acarinho como se fora criança.”Dizendo isto, o padre Luís Leitão abriu enormemente seus olhos rasgados, enquanto dos lábios lhe voava um sorriso, assaz encantador, reflexo evidente duma alma generosa.
Pela graça do caso, pus-me a olhar, à volta de mim., tentando ver alguém, já um tanto idoso. A princípio, nada consegui. Estaria entrevado?! Pobre velhinho! A curiosidade instigou-me a fundo e então fiz perguntas, com bastante ansiedade. Quantos anos já tem o seu querido menino?! “ Nada menos que 88!”
Dizendo isto, apontava dois leitos, dispostos no mesmo plano. Lado a lado, bastante próximos, como foram as vidas e o bom entendimento.
Desejei, naquela hora, possuir ainda o meu paizinho, que a morte arrebatou, já lá vão 19 anos! E, no entanto, era mais novo. Fiquei sem ele, há tanto já! Mas, afinal, para que estou a lembrar-me, sabendo que me acabrunham pensamentos assim?! Procuro então dissipar breve esta ideia funesta, entregando-me à pesquisa, até que por fim, descubro ali perto, à sombra de uma árvore, o ridente patriarca. O filho bateu palmas, na mira certeira de chamar-lhe a atenção. Não fez inutilmente, pois o bom velhinho ergueu-se logo, procurando a bengala, sua amiga, há longotempo.
Lá vinha ele, com passo meúdo e faces risonhas. Avanço eu logo, para o saudar! Sua boca hiante é feita de sorriso Sua alma bela nada em ventura. Senti-me diferente e preso de tal modo que não queria partir!
Manteigas \\ 14-12-1971
Tive sempre amigos cuja cifra foi exígua. À medida exacta que passa o tempo, esse número reduz-se. Motivo? Uns vão morrendo; outros, porque a velhice é de si egoísta e assaz desconfiada, não fogem à regra. Quanto mais conheço os homens, tanto mais os desamo. Avultam os defeitos, surgem misérias, notam-se manchas e aparecem fraquezas. A idade, sempre desconfiada, prende-se ao útil, como ainda ao prático, levando, pois, à fuga imediata do que é abstracto ou imaginário. De cantigas não se vive! Interessa, pois, a realidade pura, o utilitarismo, a concretização!
Mesmo em tempos de criança ou ainda mais tarde, na mocidade, jamais revelei, fosse a quem fosse, os mais íntimos segredos. Fui em todo o tempo, um rochedo impenetrável, permanecendo fechado. Isto é mau, no campo educativo. e péssimo também na escolha do rumo que há-de tomar-se. Abrindo a alma a pessoa sensata, ela pode ajudar-nos a solucionar os problemas graves, evitando assim escolha desacertada e caminhos espinhosos. No entanto, cada um é como é! Nada, pois, acrescentar-se! Ensimesmado e orgulhoso, preferi emudecer, para não ser enganado ou sofrer humilhação.
Atravessei, depois, o tempo de Internato, e o meu estado conservou-se o mesmo. Fortaleza inexpugnável, debrucei-me sobre mim, sem ater-me a ninguém. Quem soube, alguma vez os meus íntimos segredos?! A quem os revelei?! Um erro cometi: deixar-me guiar, de maneira cega.
Só tu, Diário meu, tiveste essa dita: conhecer a fundo a minha alma torturada!
Manteigas \\ 15-12-1971 Impressões de Inglaterra
Regressou há pouco e falou-me do assunto. Neves Fraga delira! Eloquente, ao expor, ele empolga o ouvinte porque vive o que afirma. Calculado em negócios, compara o seu viver com o de outros povos. Isto exactamente é que o fez deslumbrar e, ao mesmo tempo, desiludir também. A vida em Londres! Diz ele, a propósito: “Ganha-se muito e gasta-se pouco!” Fez uma pergunta a que eu, realmente, não estava habilitado, para responder. “ Quanto pensa que ganha, na Inglaterra, um empregado sem curso?”
Em que actividade? – inquiro diligente. “ Na Vauxall, por exemplo!” Eu sei lá! – gaguejeu eu, mal senhor do assunto! “ Repare bem: 2600$00, por cada semana! Não acha esplêndido?!”
Com certeza! Ouro sobre azul! Ganharão muito, sim, mas se gastarem o que ganham, não encontro vantagem. “ Qual gastar muito, meu bom amigo?! A vida, lá, é mais barata do que entre nós! Um disco tipo-grande, em microgravação, custa lá 69#oo, que é exactamente o custo de um pequeno, aqui em Portugal!”
Ia por diante, citando outros casos, em que a diferença é bastante sensível, quando gracejei: voltou da Inglaterra menos português! Engano-me?!
Manteigas \\ 16-12-1971 Dobram os Sinos
Aqui, em S.Pedro, vizinho como estou, recebo em pleno. os sons dolorosos. Que pungência magoada! Que dores profundas, ali estilizadas! A Natureza associa-se, ocultando para logo o Sol radioso e mostrando no semblante aspecto carregado. Dir-se-ia talvez plangência cônscia, em que tudo se harmoniza, para chorar e gemer! Alguém partiu que não volta mais! Viagem inquietante, para olhar sem temer! Fim desta vida: início da outra! Como eu te aborreço e, ao mesmo tempo, te desejo e quero!
Repugnas, de facto, pois contrarias a minha natureza e o fazes sem brandura! Separar, neste mundo, corpos e almas, destruir com violência, o que Deus uniu, substancialmente, é labor ingrato! Há-de ser abalador esse golpe fatal que os vai separar! Por outro lado, acaba o sofrimento e vai-se a angústia, pois que, servindo a Deus, aqui na Terra, há prémio seguro, na outra vida. Deus é bom e, como tal, há-de olhar, certamente, para as nossas angústias, usando de compaixão!
Embora pequemos, se Ele vir realmente, um coração contrito e deveras humilhado, receber –nos-á, em seus braços carinhosos, que logo se abrem, mesmo de longe. Este dia sonolento. em que a grande obscuridade se assemelha à noite, recorda sem dúvida, outro mais terrível, em que o pai querido se foi de viagem, para não voltar. De pois de amanhã, cerram-se já 19 longos anos, que ouvi, desalentado, a notícia angustiadora desse golpe tremendo!
Afigura-se eterno este lapso de tempo, que seguiu a sua morte! Quem me dera vê-lo, ao menos de relance, mas isto, a rigor, não passa de sonho, que estou acordado! Só a morte, na verdade, abrirá suas portas, que franqueiam a passagem!
Bendita seja ela!
Manteigas \\ 17-12-\971
Chegou a seu termo o período lectivo, acabando assim a realização dum grave intento, que já perdeu interesse. Isto, afinal, só por alcançado. Anseio, desejo, vontade e não sei que mais, vêm de quê?! Quem algo deseja é que tem um objectivo, mas eu realmente não tenho nenhum ou melhor, desejo, sim, que tudo acabe, para acabar também!
Lutaria pela vida, se ela fosse risonha, mas, ainda assim, estou preso a ela. Entretanto, nada oferece, no momento presente nem espero obter seja o que for. Passou o tempo fugaz, escoouse-me a vida e aproxima-se breve a fase derradeira. Melhor diria, talvez, afirmando agora que jamais comecei. Aquilo que finda teve princípio e todo o fim implica início.
Eu, porém, de olhos velados por imensa tristeza, nunca vi com eles nem pensei alguma vez com a minha cabeça! Fui impedido, quase manietado, logo em criança, mercê de conselhos e hábeis sugestões, que então se faziam a minha santa mãe. Ela foi vítima e eu também, de puritanismo, que nos fez a vida bastante amargurada. Orgulhosa e crente, receando, a valer, cair no Inferno, infiltrou na sua vida como na minha, o ideal que recebera.
Não foi crime, não, o que ela ideou. Não é tal servir a Deus! Entretanto, foi escravizantea maneira de pensar como de agir que devia ser outra! A vida é bela, porque o próprio Deus a tornou assim.Por que é que então a fazemos pesada e tão insuportável?! Por que é que lutamos ingloriamente, contra o amor, se domina a vida e a torna risonha?! Nãoé ele, afinal, criação de Deus?!
Manteigas \\ 18-12- 1971
Dezanove anos se escoaram já. Em 1952, encontrando-me em Pinhel dava Português ao 3ºano, quando inesperadamente ouço o apelo frenético do nosso telefone. Importava isso algo especial?! Tantas vezes eu o ouvir! Indiferente, pois, continuo expondo, mas em breve tempo, ouço passos agitados. Alguém se encaminha, apressado e nervoso, à sala de aula. Suspendo logo a respiração, porque aguardo um sinal, bem leve que seja, no exterior da porta.
Assim acontece. Encaro na pessoa e meço-a de alto abaixo, estremecendo todo. Não sei o que é, mas adivinho que algo de sério está ocorrendo. Irrompem a custo as primeiras palavras, que saem de lábios quase trementes, onde a emoção transparece já. E u, por minha parte estremeço também, com forte arrepio a sacudir-me o corpo violentamente de lés a lés.
Não capto bem os sons produzidos, É tudo confuso. Vista e ouvido não acertam no objecto! O quê?! – pergunto eu logo, quase aterrado, se não aturdido, como se o mundo estivesse a acabar! “ Seu pai está a morrer! Vá pressuroso a Vide-Entre-Vinhas”
Como se um raio viesse fulminar-me, da cabeça aos pés, estremeço e choro, e todo o meu ser entra em convulsão. Não posso andar! As pernas recusam-se, ignorando tal facto! e a vida para mim, perde logo o seu brilho! Meu pai a morrer! Ia realmente ficar sem ele?! Haveria poder que tal fizesse?! Não era ele meu?! Vira morrer outros, mas julgava eu que a meu santo pai jamais tocaria! D esde aquela hora, nunca mais lhe falei!
Manteigas \\ 19-12-1971 Natal!
Férias de Natal? Mas, na verdade, que são elas para mim? Um simples elo, a vincular o passado ao negro porvir! Se não tenho nada que me prenda à vida, que posso realmente encontrar-lhe de belo?! Estou farto de viver e, a cada passo em frente, recresce o meu enjoo. A mim a ida saciou-me de tédio e encheu de náusea a alma atribulada. Sou pobre de amigos e rico de amargura! Quem espera por mim, no labirinto da vida?! Ninguém!
Caminho só, curtindo as mágoas e, se não fosse o Diário, nem desabafava! És tu que me vales, amigo fiel e assaz dedicado, a que sou devedor de inúmeros favores! Levaram-me tudo o que eu deveras amava! Removeram do meu caminho o que pudesse alegrar-me! Houve, de facto, estre la funesta, presidindo sempre à minha existência. Deus do Céu não criou s vida para ser tortura. Ele é bom e clemente: fez homem e mulher, dando filhos a ambos, para neles se reverem, prolongando-se no tempo.
Além disso que era muito já, concedeu a liberdade, para que todos os seres pudessem realizar-se, a gosto próprio. Na minha vida, porém, jamais deu brilho essa luz divinal! Em treva constante andei sempre envolvido: não espero já Sol Desprevenido, entardeceu, no meu horizonte e, havendo finalizado esse longo sono, já não tinha remédio! Os dias belos passaram e as oportunidades, por modo igual!
Roubaram, afinal, quanto havia de meu, torcendo-me o destino! Levaram-me a abraçar o que nunca amei. Resta-me agora uma só esperança: já que sou infeliz, cá neste mundo, Deus me conceda a glória eterna, para desforrar-me de tanta amargura!
Manteigas \\ 20-12- 1971
Aproxima-se o Natal. Festa bem linda, assaz comovente. em que todos se reúnem, à volta do lar! Em belo conjunto, velhos e novos, o p assado e o presente, o porvir e seu cortejo, tudo se acalora, ao fogo da lareira! Os mais novinhos são fagueira esperança; os outros, saudade! Que misto saudoso e que doce harmonia, a percorrer então a bela árvore! Aguardam-na as crianças, com alvoroço, deveras incontido; esperam-na igualmente os próprios velhinhos, com grande emoção!
Todos eles, por motivo diferente, andam inquietos e deveras agitados! Festa da famíla! Reunião tão esperada! Aconchego tão humano! Emoção tão profunda! Vêm de longe e chegam de perto! Acabam ódios e cessam discórdias! Olvidam-se afrontas, lembrando só a bela amizade, vencendo apenas o risonho amor! Lá vão eles caminhando! Uns de avião; outros de carro; este, de barco; outros, a pé! Segundo as circunstâncias, todos se abeiram, levando na fronte o riso da esperança!
Há quem espere, ao longo da existência, a chegada de alguém! Os peitos alvoroçam-se, vibram as almas, todas em coro! Esperam uns; aguardam outros! Enquanto isto passa,a vida toma cor e o entusiasmo vem reinar também! Há motivo de esperança, bons sinais de alegria. “ Paz na Terra aos homens de boa vontade” Só quem a não quer é que a não terá!
Eu queria-a também, mas a rigor, não sinto alento nem vejo caminho, para estreitá-la nos braços trementes. Jesus Menino, tem pena de mim! És tão bonzinho! Faz, desde já, que brilhe este Natal em minha alma, assim atribulada! Que a tua luz a inunde, para afastar de mim a treva que me envolve!
Manteigas \\ 21-12-\971
Espreitando acaso, da vlha janela, enxergo na rua dois vultos humanos transportando caldeiros, talvez com vianda. Mãe à frente, encurvada pelo peso, e filha atrás., ostentando valentia, no corpo direito. Tenho para mim que seguem as duas o mesmo rumo, participando, naturalmente em acção comum. Alheado como ando, não advirto logo. O nevoeiro denso que a todos envolve, e a humidade crescente, molesta e constante, impedem os olhos de prontificar-se, influenciando, às vezes, a própria inteligência. Mas é ali tão perto, em frente da janela, que só cortando-se à faca, o nevoeiro impediria.
A senhora Amélia vai açodada, não obstante o fardo, pesado e molesto. Ao vê-las caminhar, , dobrando a esquina, em ar de pressa, um mundo risonho se ergueu do passado, começando logo a tomar vulto e cor. Que traço haverá, pois, entre o facto presente, modesto e incolor, e esse mundo distante, em que mal já diviso os próprios contornos?! Há muito, decerto, embora não pareça! Mulher assim também, por igual ocasião, trabalhava diligente na ceva do suíno. Farinhas e farelos, batatas e milho, quanto o bicho quisesse!
E porquê tudo aquilo? Esperava alguém que era muito seu, e essa ideia brilhante enchia-lhe a alma de luz em caudais! Viriam em breve as férias desejadas, apreciando eu, por essa altura, os bons nacos de carne e deliciando o gosto com tais iguarias. Isto só, bastava, dando-lhe incentivo, para levar com alma os trabalhos da vida.
Manteigas \\ 22-12-1971
Fazendo o meu Diário, em manhã de nevoeiro, ofereceu-se à vista, sem que eu a procurasse, uma aranha enorme. Impressionaram-me os “braços”, enormes e encurvados! Muito embora, nas aulas eu falasse de aranhas, o caso agora é muito diferente. Abstracto e concreto, sonho e realidade. Pis na velha casa, ali em S.Pedro,, melhor direi, residência paroquial, moro eu com aranhas, r atazanas e ratos!
É um mal, direis vós, que sendo o homem gregário, ama desde logo a presença de alguém e demanda-a incansável. Mas eu? Estou só, porque há férias. Os alunos partiram, e o Vigário de S. Pedro já mora no C entro. É outra coisa! Edifício confortável companhia a toda a hora e auxílio pronto, caso seja necessário. Aqui, porém, é tudo ao invés. Mas, se não há realmente presença humana, também não faltam outros seres vivos. Em razão de estar só, quase aprecio estas presenças. Refiro-me, é claro, aos seres brutos. Desta vez, porém, abri larga excepção! Odeio violências e detesto, por igual, perseguição. Não me cabe na alma a vil tirania nem sequer um olhar de benevolência para o despotismo! Todo eu me arrepio, à simples ideia que me lembre tais coisas!
Mas aquela aranha representa para mim a vida e a morte, a cruel traição e a vil perfídia, o embuste e o perigo! Aguarda ali, matreiramente, que insectos inocentes passem descuidados, para logo agir, dando largas prontas à voracidade.
Manteigas \\ 25-12-1971 Natal!
E Natal, diz o sino, repicando festivo! Se olho à minha volta, nada vejo que não cante. Aleluia! Natal! Esta palavra nunca a entendi!! Melhor diria, talvez que nunca foi Natal, no meu coração! Antes de” abrir os olhos”, era Natal, mas sem o saber: tudo ia manso, pela via da existência. Amor e carinho constituíam a moldura, cujo centro era eu. Embalado e feliz, avancei então pelos caminhos da vida, não pensando talvez, ao gizar o meu rumo. Segui, ao longo deles, sempre acorrentado a preceitos familiares, acordando maniqueu, que se preza e honra. Realidade e paixões só mais tarde se impuseram: nascer em aldeia, é triste condição!
“ Abri, pois, os olhos”, já tardiamente, após o Sol-posto. Para que servem eles, se a luz feneceu?! São bons para quê?! Quase puritano que não preza outras vias, como se, naverdade, o homem fosse um Anjo, que vota seu corpo ao máximo desprezo!
Infelizmente, porém, a realidade é outra, já que pesa assustadora sobre a pobre natureza. Fácil é, com certeza, embalar uma criança e levá-la crer em tudo o que é belo, ao nosso olhar! A ingenuidade, em casos destes, é boa de explorar, transformando o ser vivo em pessoa que o não é! Disponível e dócil por maneira extrema, abdica de si próprio, até que um dia, em forte sobressalto, acorda então para a vida real!
Foi assim que eu perdi o meu lindo Natal!
Mant eigas \\26-12-1971
Fui eu que mudei ou seria o Natal? Como tudo é outro, na pobre aldeia! Aqui passei eu meus verdes anos, imerso em ternura, com que a vida é bela e se adorna a primor! Aguardava ansioso que chegasse esta quadra! Depois, vinham logo as Janeiras, com seus mil atractivos, Beijaria o Deus-Menino, a sorrir prazenteiro, julgando inocente que Ele se animava, no barro, mal vazado!
Os meus olhitos fixavam longamente os olhinhos de barro, à espera de um volver que me certificasse. Suas faces coradinhas, os lábios de carmim, era tudo nesse tempo, o que podia encantar-me.Mil perguntas fazia, para saber, a rigor, quanto ainda faltava, para o Natal suspirado! Vinham breve as lembranças, que aguçavam o desejo, avultando entre todas a que jamais olvidei. Eram doces e bolos, filhós e bacalhau, e uma pinga fresquinha, que, neste dia, também não faltava!
Ao canto da lareira, crepitavam as achas, entornando, à volta, bem-estar e ventura! E o tostão desejado para o Deus- Menino?! Onde e quando mo dariam?! Vêm sonhos rosados,, atrevidos expedientes, para que nada me faltasse, nesse dia abençoado!
E o presépio mimoso, que se erguia em frente, de casinhas tão lindas, que ostentavam janelas?! Espreitava para dentro, mas ninguém aparecia! O meu Natal querido, rodando tempo e vida, foi perdendo a graça e desmaiando na cor!
Manteigas \\ 29-12-\971
Fazer castelos no ar! Grata diversão, muito embora saibamos que a base «e fraca! São horas de alegria, em que vivemos o sonho como sendo realidade! Quem nunca os fez não sabe em verdade, Quanto é bela ocupação! Que importa desiludir-se?! Que vai na logração?! Foi diferente o que então adveio?! Tudo são banalidades! Afinal, que sucede, neste mundo, igual ao que pensámos?! Geralmente, o que sucede é o invés do que esperamos! Nem por isso odiamos a fagueira esperança!
Que momentos deleitosos, vividos a fundo, ao formar planos altos, acordes, já se vê, com o nosso eu Também eu fiz os meus! Se muitos falharam, caindo gorados, nem por isso descaio em desânimo! Formulo outros novos, que meu peito gerou, o coração alimenta e doura sem entraves a minha fantasia! rês anos mais, consagrados ao ensino, pedirei sem demora a minha reforma. Chegará ela a dois contos, ao menos?! Dificilmente irei alcançar o débil montante! Andarei então pelos 57! É já idade razoável, no tempo em questão!
Optaria, claro está, por um cursito d línguas em explicações. Reconhecidas vantagens apresentam esses cursos; menos esforço, mais eficiência, melhor compensação! E o campo de trabalho?! Nova Lisboa, talvez, com derivação para Silva Porto. A vila do Chitembo fica dali perto. Visitaria, depois, minha irmã e família, cada fim-de-semana. Para as minhas férias, escolheria a Metrópole e os países estrangeiros
Por volta dos 70, regressaria à Europa, finalizando na terra natal.
Manteigas \\ 30-12-1971
Aproxima-se o fim. Dar seu balanço é tarefa habitual para todo aquele que se preza de sensato. Ora, se as coisas materiais mos ocupam deste modo, que dizer então de realidades, já espirituais?! Haverá aí balança que se meça também?! Intenção que se distinga?! Quanto mais supera esta vida mortal a que vem após o fim, maior garantia vem ela dar à nossa ventura. Por isso, tanto mais irá crescer o nosso interesse por tudo o que se prende com tais realidades.
Eu creio em Deus e no seu poder; acredito ainda na sua bondade, amor e clemência, na sua justiça, inteiramente perfeita e também igualmente na sua paciência, Vejo bem claro e distingo sem erro que a minha alma é imortal, por suas aspirações, insatisfação, e muito mais ainda pelo que me ensina a Religião Católica. Sinto realmente a presença divina em todo o ser criado, pela técnica perfeita que deslumbra a minha mente.
Verifiquei, historicamente, que Jesus Cristo é o Filho de Deus, centro do Universo e ponto de convergência dos factos humanos. O mistério do Além está bem presente no meu pobre ser e actua sobre mim, levando a reflectir, com ponderação: não é por temor ou mero servilismo, sim por filial sentimento, relativamente a Deus, e com alegria que tudo agradece ao bondoso Senhor. Professo tais verdades que amo sinceramente. Se não tenho vivido, em toda a extensão, pesa-me disso e rogo indulgência para as minhas faltas.
Que Deus me perdoe, acarinhe e abençoe, não obstante a leviandade que, tantas vezes, caracterizou o meu triste viver!
Manteigas \\ 31-12-1971
Por alta mercê do Senhor Omnipotente, mais um ano passou, que me aproxlma do fim. Fim? Não digo bem:é grande princípio! Fim imediato da vida mortal!: início já da vida eterna! Entristecer-me com isso? Não cabe decerto no meu espírito. Com efeito, abeiro-me de Deus, fonte inexaurível de quanto é belo! Por outro lado, é-me grato sumamente ir assim ao encontro daqueles que amei.
Eu sei, por experiência que tudo neste mundo gera saudade e, por isso é duro partir. O pôr do Sol é idílico, majestoso, direi quase augusto e sublime e, embora regresse, ao outro dia, o astro promissor é sempre nostálgica a sua partida. A separação! Quanto mais risonho e assaz prometedor não é realmente, o dealbar do novo dia?! A vida, porém, é feita assim! Que me pode ligar ao mundo em que vivo?! Os bens que ganhei?! Mas isso é matéria e, como tal, de segunda ordem.
Amigos?! À medida que avanço, rareiam mais e mais e, tão poucos são eles, que julgo às vezes, haver só um! Eu, sim, não duvido! Portanto, embora pecador, ouso pedir ao Céu, em final de ano, que reserve, lá na Pátria, um lugar para mim. Agradeço penhorado todos os benefícios que tenho recebido e todos os favores que já concedeu, sem que eu merecesse! Louvo-O gostoso, por sua paciência, bondade e justiça! Peço perdão e ajuda segura, para o futuro, que me aguarda ainda!
Se bem reparo, a quem amo, de raiz?! Após tanta desilusão, é somente a Ele! Aqui na Terra, ainda tenho laços, mas são reduzidos e de menor alcance! Por isso, meu Deus, concedei-me longa vida, se Vós achardes bem e for virtuosa. Assim ganharei outra, mais apetecível que a vida presente.
Amadora, 23 de Outubro de 2010
Pedro Inês da Fonseca, aos 92 anos
MEMÓRIAS 38 A
Lisboa \\ 27-1-1980
Um Dia aborrecido, incolor e sem luz! Não fora a gripe, talvez o meu estado em breve mudasse! Assim, no entanto, a cabeça a doer, o corpo sem vigor e o pesado silêncio a amachucar-me!... Sozinho neste andar, por ser domingo, vou logo meditando no vazio da existência. Não fosse o bom Deus valer-me sempre, em tanta abunbdância, com graças e favores, que seria de mim! Soubesse aproveitá-los! Em vez disso, que é que vejo?! Frieza extrema, desinteresse, abandono e prostração! Este é o dia do Senhor: portanto, mais sociável. Comigo, porém, dá-se o contrário .
O próprietário encontra-se ,em Belém, junto dos seus ; a nossa empregada saiu ainda ontem, para o fim de semana. Tudo junto e o mais deu em resultado ficar eu só, num terceiro andar, solitário e frio, na rua Silva Carvalho. Que me prende aqui?! Só as amarras que sempre me apertaram, continuando seu labor de espezinhar o meu ser! Terá muita graça chegar do trabalho, encontrando no frigo almoço gelado?! Eu que detesto gelados, agora no Inverno! Até porque em verdade me fazem mal! Isto é a vida! Acho na geleira um frango assado arroz e sopa de couves. Há mais coisas ainda, não faltando pão, vinho fruta e queijo.
Entretanto, como eu não faço rosto a pratos gelados, no tempo frio, sucede realmente que finjo comer! Também não faz mal, que no passado, engodei demais!
Lisboa \\ 28-1-1980 Casalinhos
Vejo-os amiúde ao longo das ruas, bem chegadinhos, irradiando ternura! Revelam interesse em tudo o que dizem., olhando-se às escâncaras , nos olhos sedentos! Quando Deus quer, vejo-os sentados; outras vezes, passeiam juntinhos; ainda outras, avisto-os recuados, em ângulos e sombras, para darem expressão ao mundo que sonham. Eu, então, fixo esta gente com muita bondade, alta indulgência e muito apreço. Gosto a valer que seja feliz todo ser humano. As fases da vida têm exigências que fazem na verdade o mundo mais belo. Ir contra isso é ficar incriminado, não havendo censura que baste para o facto!
Estarei enganado?! Julgo que não! A quem assiste jus, de mutilar a existência , negando fanático o que Deus outorgou?! O que eu aprovo, defendo e acarinho não é devassidão libertinagem! É amor sincero, fonte de enlevo, oásis se paz! Não teríamos, de facto um mundo melhor, a partir desta fonte, que o bom Deus criou?! Se escolhem livremente, estudando seu caso, durante o namoro, que mal vem ao mundo?! Sendo bons amigos e dando fartas provas, mina-se acaso a base social?!.
Já vivem em comum seus vários problemas, encarando a existência com senso e realismo? Óptimo! Procuram bastar-se, demandando trabalho, para não ser pesados a seus pesados a seus progenitores? Não é belo o programa?! Estes casalinhos, que parecem felizes e tentam acertar uma união de amor , em que tudo sejam rosas e promessas jucundas, que podem sugerir-nos, vendo-os assim, com os olhos já fitos, no grande amanhã? Um caminho acetinado, em que o trilho seduz, uma senda venturosa , em que tudo nos encanta, uma face diferente de quantas hemos visto, falando bem alto a peitos amantes
Como isto é bem outro do que vi florescer, em meus verdes anos! Seres truncados por falsas razões e mal entendidos! Onde a razão?! Casalinhos ditosos, prossegui no amor, dizendo segredos e fazendo promessas! Não desçais a vilezas! Procedendo assim, não vos barro o caminho, pois tenho para mim que rumais à ventura! Sejam vossos beijos de enlevo e ternura, amor ter e carinho! Jamais um ósculo a depor lascívia ! Sim, daqueles beijos que se entornam da alma, com viva fragrância, a perfumar a existência!
Respeitai-vos sempre e aguardai o momento da suprema ventura, abençoada por Deus!
Lisboa \\ 29-1-1980
Apinhado e lento vai o auto-carro, número25. Sentados alguns, outros de pé, lá se acomodam, a bem ou a mal! Este, paciente; aquele, agressivo! Um malcriado, outro, gentil! Sucede o mesmo todos os dias. Para quebrar a monotonia, uma senhora, harto nervosa expõe desalinhada, factos e razões que muito a afligem: seu filho está preso, sem causa para isso! Enquanto manifesta o que lhe vai na alma, estremece e agita-se, vibrando a fundo, por todo o ser. Move-se frenética, volteia a cabeça, agita os braços e grita amiúde.
Os olhos de todos viram-se para ela, escutando a sério ou fingindo simplesmente!Em fre nte, de pé, encontra-se alguém, que vai mais ou figura ser tal. Penso deste modo, porque de vez em quando, interrompe a senhora, a fim de contar mero incidente que nada interessa. É um diálogo, sim, mas um tanto fingido: nem uma nem outra seguem razões, que não sejam as próprias. Salva a situação a paragem do eléctrico, em devida altura! Momento de alívio para os circunstantes!
Quando tudo acabava, surge de improviso, um cheiro nauseabundo, que os velhos latinos chamavam ’peditum’, e os Ingleses de agora designam por‘winds.’Viragem completa! Há no silêncio grave reprovação, voltando-se os olhos, com ar de reprovação, em todos os sentidos. Quem Se fora apenas isso! Podia lá saber-se! Aguentar, sim, e cara alegre!
A náusea sobrevém e, do mesmo passo, grande mal -estar! Assim foi o remate duma tarde molesta, em que todos sofremos, sem haver compensação! Integrei-me, pois, no sentir dos parceiros, mas só os olhos tiveram a palavra!
Tarde brumosa, que trouxeste, em má hora, tão fétido cheiro!
Lisboa \\ 30-1-1980 Beijos
Atiram-se a esmo, pelas ruas de Lisboa, que olha encantada e cheia de interesse! É a mocidade que vibra e se enternece, ante o belo sonho que espera realizar! Ainda agora no eléctrico, onde tudo é prosaico, vislumbrei deslumbrado um caso de amor! A voz do rapaz, bastante comedida: a comparsa, porém, vinha hilariante, deixando extravazar monossílabos doces.
No ambiente de tristeza, materialismo e fundo rancor, pareceu-me o casalinho um belo canteiro de flores odoríferas. Como eram brandas as falas trocadas Como então bailavam, inquietos e gulosos aqueles olhos donzéis! Como estremecia, no peito fechado os dis corações! E os lábios frementes?! Esses então agitavam-se em volúpia, tentando aproximar-se e roçar ao de leve. Não eram certamente beijos caninos, encharcados e lodosos, à maneira exacta do Cacá brasileiro e Júlia Matos! Destes não gosto! Arrastam consigo carrdas sd lama, que sujam e conspurcam a leveza etérea do sentimento!
Foram aqueles, sim, ósculos etéreos, rasando em magia, para ficar a impressão dum sonho alado , que vem até nós como pena de ave, tocando-nos branda, para logo fugir! Não será este o beijo ideal?! Para que servem então contactos delambidos, em que reina a carne e alta o espírito?! Que deixam após si esses beijos porcinos, também próprios dos símios?! Nada mais, nada menos que alta decepção! Sentido claro da insignificâncla! Arrastar de excrementos que mancham. à passagem, desfigurando a Terra e tornando-a prosaica!
Acabem, pois, esses beijos sórdidos, em que só a carne, fervendo em volúpia, impera e comanda, no ser racional!
Lisboa \\ 1-2-1980
Levar quase 8 anos, em terra africana, sofrendo a inclemência do Sol abrasador, não pasa em vão. Sucedeu exactamente o que era de prever! Para mais, regressei ao país na quadra invernosa. Cá estou encerrado no quarto- frigor!ífico de um 3º andar, na rua antiga de Silva Carvalho, 106.. A muito custo, ergui-me do leito, cerca das 13, para breves arranjos. Isto, afinal, apesar dos protestos da minha cabeça. Uma dor constante, aguda e molesta havia-me prostrado horas seguidas! Achava demais, para simples gripe! E não me enganava !
O irradiador ficou responsável, tomando eu logo a feliz iniciativa de abrir as portas . Senti a mudança. O mal-estar deixou-me em breve. Tratava-se, ao que vi, de ar viciado. Um quarto exíguo, de portas cerradas, Para agravar, horas e horas queimando oxigénio, enquanto se libertava óxido de carbono! Foi assim! Tive disso a prova clara!
No momento presente, estou já liberto, embora a gripe se mantenha ainda, com efeitos nefastos: um tanto de febre; falta de apetite; escassez de energia! É este o primeiro dia que não saio à rua, desde o meu regresso do Sudoeste Africano! E causa-me transtorno! Os hábitos de longe inserem-se na vida, tornando-se depois complemento dela. Não há dúvida nenhuma que a nossa capital oferece motivos que fazem esquecer: o tráfego das vias; o bulir dos peões; o movimento, algo acelerado, nos transportes modernos; a reacção a encontrões, nos carros-laranja.
Aqiu se prova realmente a nossa bondade e mansidão! Entalando uma pequena, pediu-lhe desculpa, ao que ela respondeu: Não faz mal! Foi muito gentil a bondosa menina! Além do trajo, temos ainda, para alívio pronto, as montras garridas, com dizeres sugestivos e harto originais.
Entre tanto, o que mais encanta, nesta Lisboa, nos deleita o olhar e dá cor à existência, é, na verdade, o ar meigo e sonhador, generoso e etéreo dos grupos a dois! Haverá na capital, alguma coisa que possa ombrear ou de longe se aproxime?! São eles, com efeito, a primavera florida, cheia de promessas e amplo conforto, no coração deste longo Inverno, que me põe doente, inseguro e triste!
Lisboa \\ 3-2-1980 Aos Cuspidores
Jamais foi meu gosto ingerir-me, a qualquer título, na vida particular, fosse de quem fosse! Entretanto, casos se apresentam a fazer excepção. Tal é, a rigor, o dos cuspidores! As suas atitudes prejudicam o público. Logo, por isso, há razão de sobejo, para este se indignar, levantando protestos e exigindo medidas! Nesta ordem de ideias, haverá, por ventura, alguém no mundo, que se atreva e abalance a lançar um escarro, na face de outrem?! Não, dizem todos, em forte uníssono! Entretanto, não é isso o que eu vejo!
A face de Lisboa continua ainda a ser conspurcada! Que a linda cidade tem a sua face! Jardins e ruas, praças e parques, largas avenidas e airosas alamedas que são, afinal?! Se cuspis ali, fazei-lo exactamente na face da capital! Desacato e desdém, suprema ignomínia! Impudor sem nome! Quem escarraria na face duma jovem?! E haverá no mundo jovem mais louça, fresca e adorável que a nossa capital?! Não creio, não! É por isso, exactamente, que assim me horrorizam tamanhos desconchavos!
Venho, pois, uma vez mais, rogar aos cuspidores e a certas cuspideiras que não transbordem! Guardem cautelosas aquilo que precisam, em questão de saliva! As glândulas salivares apenas elaboram , de harmonia com os gastos! No tocante a escarros, isso é mais grave! Puxem dos lenços e, se estes não chegarem, usem lençóis. Para que servem os ditos?! Para estar encofrados?! Deixemo-nos já de tanta pieguice e sejamos realistas! Se me disserem, porém, que já tudo fizeram, nas são incapazes de furtar as nossas ruas e bermas de passeios â javarda imundície, que polui e desonra , enveredo prestes noutro sentido!
Aí fica a sugstão, à maneira de conselho: antes de sair para as ruas da cidade, preparai-vos em casa, de maneira eficiente: cuspi, a bel-prazer, na cozinha e na dispensa; escarrai até mais não, em roupas e móveis; salpicai as divisórias, muros e corredores; ide à baixela e fazei também o mesmo. Sobejando excrescências, atirai-as a esmo, como fazeis cã fora! Não vos importeis, se caírem na panela! Onde cai, lá fica! Fazei-o sem cuidado ou leve atenção. Não regateeis nem digais nunca estar já no fim. Ninguém vos censura! Estais no que é vosso! Desta maneira, vireis já limpos da vossa habitação!
Libboa \\ 4-2-1980 Alcatifar o chão?
Alcatifem o chão, mas de outra mameira! Não vou repetir o que já escrevi: antes quero salientar aspectos diferentes , que vejo indisposto, se passo na rua. Não é de saliva nem tão pouco de escarros : é, sim, de beatas, cascas de frutos e bilhetes usados que desejo falar! Oh! calamidade! Talvez alguém pense de maneira errada. Se não, vejamos! Há pontas de cigarros, em todo lugar, seja ele embora o mais incrível! Tudo fuma e se diverte, assumindo, por vezes, ares de importância. Este facto banal dá origem a cheiros e faz cuspinhar. O remate final é, simplesmente, deitar para o chão. Assim, pois, surgem beatas à direita e à esquerda, atrás e à frente.
Vejo-as no chão, já pequenas, já grandes, lançadas a esmo. Variando no tamanho, são em tal profusão, que impossível eu creio saber-lhes a conta. As maiores dentre elas, revelam pedantismo e desejo imenso de figurar na vida, mostrando importância, quando não resultado ou fruto imediato de pressa ou apuros. Algumas vezes, manifestam ainda apego deficiente ao vício do fumo. As de outro tamanho exprimem o contrário: vício radicado, apego ao dinheiro!
Seja como for, as malditas beatas, jazem a montes, por todo lugar! Nada se poupa: ruas e praças, bermas e centros, jardins e passeios; assentos e paragens, degraus e plataformas; miradouros e varandas, alamedas e vielas! Um perfeito horror! Que pena me faz! A orgânica geral dos nossos transportes , aqui em Lisboa, é maravilhosa e bastante acessível a todas as bolsas, mas a grande ‘sementeira’ que o público faz é que me apavora! São os bilhetes, lançados ao acaso, sem a mínima decência!
Nenhum lugar, à superfície da Terra, pode escapar-lhes! Entretanto, onde o caso mais assusta, á na escadaria que leva ao Metro. Aí, na verdade, torna-se alarmante. Dir-se-ia melhor ‘trabalho de crianças’, tentando cada uma exceder as congéneres! Grande seca! Por que não deixá-los nos sítios designados?! Por que não atender aos pedidos insistentes, que são formulados?!
Finalmente, as cascas de laranja! Grandes e pequenos descascam os frutos, sem o mínimo pejo de lançar no exterior o que não aproveitam! Farão a mesma coisa dentro de suas casas?! Julgo que não! Se acaso me engano, javardos não faltam!
Lisboa \\ 7-2-1980 Mulheres de Primeira
Foco, esta vez, o que é só exterior, impressionando apenas os 5 sentidos. Tenho agora em mente dividir as mulheres em várias classes, atendendo, já se vê, à maneira de vestir e atitudes assumidas, ao lidar com outrem. Ficarão situadas no primeiro plano as que seguem geralmente o velho costume, em sua indumentária. Admito excepções, no tempo frio, em dados trabalhos ou quando em viagem.
Vestir daquele modo, com elegância, faz da mulher um ser amoroso, com ar de mistério, algo de mágico. Quase se transporta a uma esfera diferente, onde o homem a admira e se deixa prender. Tudo nela é medido, sem afectação: antes, sim, com ar natural e finura de gosto.
Quase diríamos ser ela de outra espécie, levando-nos a surpresa a um mundo de sonho! Esta é, na verdade, a mulher tradicional, que fez o orgulho dos nossos maiores; a mulher ideal, que logo se impõe e harto admira, pelas suas qualidades, reveladas, no exterior, espontâneo e medido; a mulher cem por cento, que se afasta do ‘machismo’, evidenciando-se apenas por aquilo que é. Jamais lhe interessam vícios masculinos, que a tornam disforme e um ente sem graça!
Nunca fez rosto a preferências machistas, que tanto desdizem e assaz desdouram! Vemo-la agarrada a privilégios e praxes. que não podem extorquir-lhe nem fazem vacilar! Nem sequer fuma ou então se o faz, é tanto ao de leve e com tal discrição, que ninguém se apercebe nem fica molestado. Sempre é menos um cheiro a torturar ao vivo a pobre Humanidade!
MEMÓRIAS 38 C CONT,
Lisboa \\ 13-2-1980 Ainda os Cheiros
A semana passada, vi consternado o que não desejava e, para mais, reprovo com ardor: uma senhora passeava o cãozinho, que levava de trela, junto de um prédio. O dito animal farejava constante, averiguando a rigor, se o local era apto para novo esguicho. Ao longo da rua, nada escapava ao olhar inquiridor, para depois cheirar, molhando em seguida. Era fatal! Focinho em acção, levantar da perna, esguicho imediato! Figurava inexaurível a fonte da urina! Este, o facto! Ninguém ignora que é nauseabundo o cheiro das urinas! Demais, quando já retardadas e sujeitas, por força, à decomposição, é aquilo irritante!
Ora, os cães aproveitam, como é sabido, qualquer obstáculo, para aliviar: muros de quintas, paredes e móveis, pneus de veículos , bancos e o mais. Como vamos passear ou ainda sentar-nos ,utilizar objectos ou tocar nos móveis?! Será decente?! Haverá deleite, absorvendo tais odores?! Sentirá paz em seu coração o pobre transeunte, que deseje repousar, de longa caminhada
Grande porcaria! Como pode tolerar-se um abuso destes?! Os culpados, a rigor, não são os cães, mas os seus donos. Querem passeá-los? Muitíssimo bem! Afastem-se no entanto de lugares frequentados, onde só gente deve passear! Respeitemos o próximo, dando outro rumo a tais digressões. Ocorre-me agora perguntar o seguinte: uma senhora não tem mais que fazer?! Não era preferível dar os seus cuidados, ternura e afecto a pobres criancinhas, que não têm ninguém?! Entretanto, se preferirem, que o façam então, em lugares diferentes!
Tratando-se de fezes, e o mesmo problema, ainda agravado. Quem vai limpar jardins e passeios, ao longo dos quais se deslocam as gentes?! Há cheiros irritantes, escorregamentos, um aspecto horroroso e confrangedor ! Quem deve limpar? Os próprios donos ou ainda alguém, a quem eles paguem, na ocasião. Trata-se de um extra,
Lisboa \\ 14-2-1980 Fumadores
Entre os cheiros nauseabundos, encontram-se os que vêm do tabaco e de brônquios imundos. Tão desinteressados, alheios e estranhos, dão os fumadores a nítida impressão de que tudo é normal, em seu agir constante. Puxam do cigarro, seja onde for. A presença de outrem não lhes interessa! Aquilo, afinal, faz parte da vida e cai naturalmente como forte rotina. Algum deles se lembra de que não deve fumar-se ao pé de quem não fuma?!
Passar-lhe -á pela cabeça que torturam os outros a quem deve respeito, consideração e algum amor?! Pudesse ler, nessa própria hora, o que vai de censura, reprovação e má vontade ,no espírito dos outros ! Quem deve retirar-se, procurando sem demora um lugar afastado?
Os não fumadores ?! Ninguém o afirma! Os já viciados é que devem ausentar-se, pois não têm o direito de molestar os presentes! Mas não é assim! Têm de aguentá-los, ingerindo o fumo. Devem absorver o que tanto detestam. São obrigados então a aspirar em cheio o hálito mefítico a exalar-se da boca! Não é isso de facto, abuso imperdoável?! Não pede correctivo, eficiente, adequado?!
Nos auto-carros assim como no Metro, algumas vezes no próprio eléctrico, é preciso heroísmo! Ainda vêm longe, sinto já o peito enfermo e oprimido! Os danosos miasmas cruzam-se nos ares, invadem as narinas, espalham-se em torno. Quem vai suportar exalações deletérias, proximidades que são irritantes?!
Como se não bastasse, lançam no chão as pontas dos cigarros, que atapetam caminhos, bermas e estradas, passeios e jardins. Que belo tapete. É triste conviver e falar ainda com tais fumadores! Até há pouco, eram só os homens que irritavam o próximo! Agora, porém, também as mulheres, na ânsia de amachar-se vão penduradas em cigarros e charutos.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
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