Liceu Linus
1977-10-07
Ontem, achei por acaso a Emissora Nacional. Procurava eu, às 7 e 30, um posto emissor de língua inglesa, quando surge, de improviso, um fado de Coimbra! Que belo achado!
Ninguém me havia dito ser portuguesa a tal canção, mas eu adivinhava, pelo que senti, dentro de mim!
Expressava claramente que algo de meu estava no ar! Não posso descrever o meu estado de alma! Prendi-me inteiramente a rádio AEG, como se nele encontrasse, de facto, a minha própria vida! Quisesse eu embora arrancar-me dali, não seria capaz!
Era Portugal a cantar para mim, numa fala doce, com alta emoção! Era na distância um peito a gemer, chorando amarguras que eu também sinto! Era o passado, que há muito rodou, mas fala ainda ao meu coração!
Que voz tão bela! Que língua suave!
Habituado aqui às línguas germânicas, tão deselegantes para o meu ouvido, afigura-se divino o Luso idioma!
De modo especial a língua africânder é tão arrepiante para almas sensíveis! Será ela a expressão da alma austral?! Arranha e fere, molesta e não olha!
Que língua rude, pelos sons guturais e falta lastimosa de suavidade, nos outros sons! Lembra as espinheiras que há, por aqui!
Vejo-as, de facto, em todo lugar, medrando ali, a olhos vistas! São elas, realmente, que dominam e comandam a vida humana, não deixando às gentes movimentos livres! Qualquer gesto nosso, por leve que seja, traz picadela ou grande arranhão!
Nestas circunstâncias, foi para mim uma hora deliciosa. Ainda hoje ressoa, de forma velada, no íntimo seio da minha alma, qual brisa suave. a dar lenitivo a peitos ressequidos!
Não te apagues em mim, canção de maravilha! Fica
para sempre a habitar no meu peito, que os ardores da Namíbia o estão requeimando e os acúleos eivados o fazem sangrar!
Visita-me, pois, com muita frequência, voz da minha Pátria, que és expressão da voz materna! Vem muitas vezes! Entra no meu peito, onde chora gemendo a voz da saudade! Doces momentos, em que eu, embriagado, me colava ao rádio, como se, realmente, ali estivesse a minha ventura!
Daqui a um ano ou coisa assim, estará para breve o fim da aventura! Deus o permita, que sinto a alma vergar, desfalecida, pelo enorme peso da solidão!
Nada me fala, neste deserto, em que vivo imerso e me sinto prestes a desfalecer! Noto somente que vida se escoa e vão escasseando as minhas energias.
Apressa, meu Deus, o tempo do regresso, que
anseio vivamente, por ver Portugal, onde espero repousar e morrer feliz!
Nyangana
1977- 10- 08
Chegou, finalmente! Quatro longas semanas haviam decorrido, enquanto saudoso aguardava a sua vinda. O tempo rodou e, em voltas sucessivas, trouxe o Padre Hermes à Missão de
Nyangana, onde é luz e calor. Foi-se a noite de breu e clareia o novo dia. Como Sol no Oriente, a romper glorioso, com brilho e promessas, assim o bom amigo surgiu pela manhã, a fim de ajudar meu viver de exilado, no distante Cavango.
Apareceu radioso e de sorriso nos lábios, correndo para mim, a fim de abraçar-me! Como foi doce este encontro amigo!
Quanto vale, neste mundo uma boa amizade! É conforto e apoio, nos contras desta vida. A qualquer hora, favorável ou adversa, lá está presente, a fim de tomar parte em tristezas e dores!
Sentia-me tão só! Mais solitário e desamparado que em tempo algum! Tudo era triste, obscuro e sem graça!
Entretanto, o Padre Hermes não é só de palavras e meigos sorrisos! Junta ainda a isso acções nobilitantes, que prendem e cativam! Sem que eu lho dissesse, procurou, em várias lojas um
Método bom, para acordeão. Mas não teve bom êxito.
Como ele é gentil! Lembrar-se de mim que nada lhe dou! Tanto me faz, sem recompensa! Só digo palavras, mas é tão pouco! Podia, na verdade, aparecer aqui, sem o dito livro, mas trouxe outra coisa muito necessária: uma calculadora que faz maravilhas, pois é electrónica! ´
Como é delicioso ser lembrado por alguém! Quem não lembra a ninguém, é semelhante à planta solitária! Neste caso, o homem vegeta: vive e cresce mas, a rigor, não sente nem ama!
No seu coração, jamais o alvoroço! Nunca o prazer da suave emoção! É um deserto o peito do homem, quando somente areais e arbustos espinhosos ali se anicham! Triste condição!
Como são inebriantes e, ao mesmo tempo, geradoras de vida provas assim! Seria belo o mundo, se reinasse em toda a parte o amor e a caridade!
Nyangana
1977- 10 – 09
A máquina electrónica faz-me pensar! Cabe, certamente num bolso qualquer, pequeno que seja! Olhando para ela, ninguém conjectura o que pode realizar.
Funciona com pilhas que duram 10 horas, equivalendo a dizer que se estende a vários meses. Pode também ligar-se à corrente, ficando accionada por energia eléctrica. Na sua exiguidade opera maravilhas. É muito cedo, para a conhecer, de maneira cabal, mas o que descobri é já bastante, para me encantar. O engenho humano é prodigioso.
Se observo a máquina, sou levado a pensar que ultrapassa de longe a inteligência humana. Mas isto é aparente! De facto, a inteligência arquitectou a máquina, mas esta, por sua vez, não faz aquela. Além disto, se ela avaria, só a inteligência a pode consertar. A si própria nada ela faz e aquilo que realiza fá-lo inconsciente.
Apesar de tudo, é grande maravilha, que revela a acuidade e o poder do intelecto.
A quem devemos nós este dom precioso? A Deus Criador, Fonte da vida e Génio da Ciência.
Já lhe agradecemos?!
Nyangana
1977- 10-10
A vida em sociedade, origina problemas, se não abdicamos de certas pretensões. Para consegui-lo, exige-se controlo, sobre os nossos actos, reacções e atitudes. Um é fanfarrão e gosta de figurar: toma a palavra, sem que deixe aos outros momento de intervir.
Evidentemente, nestas circunstâncias, há mau ambiente ecria-se má vontade, sendo natural que alguns não voltem. Desta maneira, vai o grupo diminuindo.
Quando fala só um, não deixando aos outros ocasião de exprimir-se, já tudo corre mal, pois tais monopólios não são bem vistos.
Outro fala muito, por ser destituído, já que é vulgar o monopólio da fala por quem menos sabe ou então é mais estúpido!
Entretanto, já por estupidez, já por arrogância e louca vaidade, é sempre mal visto quem chama as atenções e tenta preencher os momentos livres. Os mais lesados e indispostos jamais voltarão ou não. Se o fizerem, será por humildade ou espírito nobre.
Nas minhas circunstâncias, banido e só, hei tido ocasião para sentir a fundo o amargo da convivência, decorrendo assim!
Enjoa a solidão e mata em nossa alma o desejo de viver, mas é preferível a certa convivência, em que outros figuram, sem deixar um momento!
Que grande maçada! Viver sozinho e, nos raros momentos, em que a língua se desata, ver tudo açambarcado por almas grosseiras, corações empedernidos e falhos de sentimento!
Aconteceu ontem. À hora do convívio, após o jantar, havendo permanecido, ao longo de várias horas, encerrado, no meu quarto.
Não pude sequer dizer uma palavra! Razão para tanto? De modo nenhum! O contrário, afinal, é que estaria certo! Não temos já connosco o bom Padre Hermes, que é o deus de todos? Foi por tal razão que me aguentei duas horas, sem tugir nem mugir, ouvindo apenas o que não entendia?!
Fala de tal maneira o monopolista de ocasiões e palavras, que não consigo acompanhá-lo! Qual será o motivo desse disparate?! Ocupou todo o tempo. Estupidez? Orgulho? Inveja? Falta de gentileza e sensibilidade?!
Quando o homem faz isto, deixa de ser amado e cria-nos logo profundo mal-estar! Parece incrível que haja, no mundo,
tropeços destes, que apenas vegetam, à maneira das plantas,
sem o menor sentimento de bondade e amor, delicadeza e renúncia!
O que vale é o Padre Hermes que, sendo embora alemão,
ocupa neste campo o lugar contrário, pela sua gentileza, nobres sentimentos e espírito pronto de bem servir!
Este assunto, para mim, é deveras crucial, pois me encontro solitário, m tristeza e mudez, por noites e dias, sem conta nem medida.
Liceu Linus
1977-10-12
Estou lendo agora, pela segunda vez, a Novela encantadora,
David Copperfield. Em Inglês tem sabor especial.
Charles Dickens reproduz a sua vida, por maneira sugestiva e assaz tocante! O seu livro excelente, pondo bem a nu dificuldades e penas que os desprotegidos tèm de enfrentar, comove os leitores, levando a tomar em conta aspirações e cuidados da gente humilde!
A luta ingente que houve de travar, para subsistir; as contrariedades que teve de suportar, recalcando o seu querer; os enormes sacrifícios, todos a capricho bem como as veleidades de quem era mais forte deixam no leitor uma terna piedade para com os humildes. Que pinceladas vivas, analisando a propósito, situações delicadas!
Jamais esquecerei a figura de Pegotty, servente da casa e tão dedicada! O largo ascendente que tinha sobre ele e a jovem mãe!
Como fala terno, referindo-se às duas, a repartir seus afectos
pelo menino, tão disputado! Sua mãe enviuvara, sendo muito nova.
Reside neste facto a causa da desgraça. Casando outra vez, juntou-se a um homem d feitio mandão que trouxera de casa, para dirigir, uma irmã caprichosa e nada razoável!
O pequeno Charles odiava o padrasto e não via com bons olhos a tal governanta. O drama, porém, não findava ali. Havia de prolongar-se e tomar proporções, que nos enchem de piedade e provocam lágrimas: separação forçada, entre mãe e filho; busca de emprego, para não sucumbir; uma série constante de factos inesperados e cheios de imprevistos.
As pessoas do convívio, desde Mr.Micawber ao irmão de Pegotty, jamais se apagarão no espírito do leitor.
Fazem parte do grupo a velha tia-avó e o marido excêntrico.
No fundo, é esta Novela símbolo vivo do ser humano, que luta sempre em busca da ventura, embora a não encontre! Há milhares de obstáculos a impedir-lhe o êxito, provenientes, quase sempre, daquelas pessoas que nos rodeiam. Afinal, É Deus-Providência a reger o Universo e a velar pelas almas.
As contrariedades fazem parte da vida, tendo elas em mira desprender-nos da matéria, para subirmos até ao nosso Deus, princípio e fim da vida humana. Viemos d’Ele e caminhamos ao seu encontro. A nossa felicidade reside no Senhor que nos criou para Si. Na realidade, as várias barreiras, que se deparam, através da existência, constituem para nós uma fonte de riqueza.
São alarme vivo, que nos desperta do sono; convite à emenda; clamor eloquente para a vida do espírito. A dor é fecunda, altamente criadora! Pela dor, viemos ao mundo; pela dor
Fomos libertados em Cristo Jesus.
O paraíso dos comunistas é decepcionante, falso, abusivo!
Liceu Linus
1977 - 10 – 13
Qual será na verdade o futuro da República? Refiro-me agora à África do Sul. Ninguém, com certeza, pode conjecturá-lo
pois vemos mudanças, que muito surpreendem, quando não espantam. Entretanto, avaliando as coisas pela faceta pior, não pode aguentar-se, durante muitos anos. Vejamos primeiro o lado negativo, agindo em seguida sobre o contrário, mais ou menos provável
Quanto ao primeiro, há-de ter-se em conta a pressão enorme, que estão fazendo, contra o apartheid. Temos a certeza de não ser apenas o mundo comunista, pois com ele fazem coro as nações do
Mundo livre. Sanções económicas, embargo às armas, corte de relações, cancelamento de contratos feitos.
Sendo isto real e aplicado à letra, ao fim de alguns anos, acho impossível que o Estado se aguente. Além disto, a campanha infanda, que alastra pelo mundo, cria má vontade aos Sul-Africanos. É de notar para já que essa campanha se estende, no presente ao mundo inteiro!
Até aqueles povos que são da mesma raça entram no coro.
Para cúmulo, há dentro da República ferozes inimigos que,
sozinhos embora, são capazes de a minar! Dezoito milhões de gentes nativas e um grupo de brancos que vai engrossando, já por traição, já por discordância e certo despeito. Os inimigos internos são os piores!
De lembrar, a propósito, que os grupos referidos são muito apoiados, com todos os recursos já de ordem material, já de espécie moral.
Nestas circunstâncias, pode alguém sobreviver?!
Não vejo saída, já que o inimigo está dentro e fora, contando com apoios de toda a natureza.
Factores positivos: dispõe a República de imensas riquezas, nomeadamente o que é necessário para a bomba atómica. Além disso, utiliza já uma técnica avançada. Tome-se em conta a vontade férrea deste aglomerado (4 milhões) que, ao longo dos séculos, deu largo contributo para a civilização, criando até uma língua própria.
É esta a sua pátria que eles defenderão, com toda a valentia.
“ Nós viveremos, nós morreremos todos por ti, África do Sul!”
Ons sal lewe…
Liceu Linus
1977-10.-14
Bacoreja-me, por alto, haver hoje concerto, durante o serão. Começará, pelos vistos, às 20 menos 5. Eu, no entanto, como é sexta-feira, já tudo ordenei, para ir a Nyangana, após o meio-dia.
Entrou nos meus hábitos e agora largá-los já não é possível.
Se o Reitor me convida, tenho de ficar, saindo amanhã, logo de madrugada. Confesso, porém, ser acto indesejável. De facto, ouvir o tambor, em ritmo certo mas sempre igual; presenciar movimentos que são repetidos e sem variedade; sentir que os meus ouvidos são logo arranhados por cantos arrepiantes!...
Que pode entusiasmar um peito europeu, habituado há muito a primores de arte?! Par mais, ouvir línguas duras, já guturais, já pululantes! Será isto engraçado ?! Entretanto, o que mais repugnaestá para vir! Rir, aplaudindo! Bater palmas, concordar em tudo, mostrando que aprecio! Dizer talvez que tudo está bem!
enganar o próximo, fazendo eu disfarce ! Não! Não me sinto fadado para tanta comédia!
Fugirei, se puder! Fazem, além disso, representações ou simples comédias, cuja rudeza lhes roubou o interesse. Safa daqui! Ao menos em Nyangana encerro-me, no quarto, onde estou seguro! Escrevo e leio, pratico acordeão e ponho as minhas coisas no devido lugar!
Há já três semanas, que o jornal O Século de Joanesburgo não chega às minhas mãos! Pobreza de Correio! As cartas, então, … miséria também! Às vezes, esperam no Rundu que almas caridosas vão desencantá-las. Tudo isto é primitivo, árido, boçal e assaz prosaico.
Quando chegará o dia projectado? Terei eu carta, da Europa ou de Vinduque? Os amigos rareiam: unas vezes, a morte indesejada corta o nosso destino; outras ainda, os vaivéns da existência. Perdem o pio, como usa dizer-se! Seja como for, tenho de resignar-me, pois é melhor que ficar indisposto.
Quanto às missivas, vivo nesta esperança, até ao dia ‘h’.
Se nada encontrar, assalta-me a tristeza, descendo mais fundo que havia imaginado. A vida é assim, com altos e baixos, alegrias e tristezas, mágoas e prazeres. Enquanto a esperança reluz no horizonte, é bom e suportável!
Quando, porém, deixa de brilhar, tudo acabou! Os jovens são velhos! A vida cessa! Há movimento, vida vegetativa, mas não espiritual! É assunto arrumado! Corpos sem alma que se arrastam gemendo, sempre aos encontrões, sem estimulante!
Hoje, estou quase assim! Dói-me já o corpo e sinto nas pálpebras força poderosa que tende a fechá-las. É noite de concerto! Que me importa a mim?! Que pode alegrar-me?!
Unicamente pessoas dedicadas! Destas, porém, não vejo aqui! Não sou exilado?! Não fui vexado, em terra portuguesa, onde residia, junto da família)!
Agora, longe de tudo… julgo até longe de mim próprio!
Liceu Linus
1977-10-15
Encontrando-me em Angola, desde 1972, ignorava quase tudo o que tinha ocorrido, no Portugal da Europa. Por esta razão, andava ansioso por notícias de lá, esclarecendo-me sobre os efeitos da viragem política, no 25 de Abril.
Nada mais a propósito que enviar uma carta a pessoa amiga,
solicitando informações exactas, sobre o caso em foco.
A resposta desejada não se fez esperar, já que em breve tempo a tive à mão. Era uma catilinária, extensa e fervente, com pormenores em abundância. Devorei com empenho essa exposição, que não vou repetir, seleccionando breves dizeres que,
em poucas palavras, digam bastante
“Só mostram bem-estar ladrões e imbecis!”
Mas esta, afinal, não é a minha Pátria. Não é esta, decerto a Pátria de Camões que tanto engrandece, na Epopeia imortal Não a reconheço! Alguém pelo diabo intentou deformá-la! Mas isto,
a rigor, equivale exactamente, à sua destruição!
Como pode viver-se, numa pátria assim?! Sentirão alegria as pessoas de bem, que vivem honestas e ganham o pão honradamente?! Dará gosto habitar, onde roubam de dia, reina a insegurança e não há decoro?! Que sociedade é esta?!
Nyangana
1977- 10- 16 Ideal Cristão
O pensar do cristão deve ser este: o nosso futuro é mais divino que humano. Como alongamento, vem o seguinte: onde achar abrigo? Tudo nos foge: pessoas, bens, etc…
Só em Deus e na fé! De facto, é verdade! O homem, sem Deus, anda à mercê; não controla os seus actos, caminhando assim por via tortuosa-
Se Deus nos criou para o seu Reino, fora deste mundo ficamos em trevas.
A cruz da vida, amargura e decepções, luto pesado e lágrimas ardentes, bens que se perderam, fruto bem amargo de pesadas canseiras, tudo isso é vão e foge num momento, se Deus quiser e assim ordenar. Importa, na verdade, meter o Senhor em nossas vidas. Trabalhar sem Ele, aceitando-O embora, mas afinal sem fogo na alma e afecto no coração, é andar às cegas!
Sendo Providência, governa o mundo: não pode largar a obra imensa da criação! Acompanha e segue aquilo que ama. orienta o Orbe, em que vivo imerso
É, pois, ilusão actuar sem Ele, viver à margem.
Urge intercâmbio, vivo e frequente; exige-se pronto que os seus Mandamentos não sejam letra morta. Como seria o mundo, se todos cumprissem os 10 Mandamentos!
Nem guerra nem ambição nem inveja ou desamor!
O que o mundo precisa é Jesus Cristo em nossa vida!
Sem Ele, apenas loucura, se não desvarios, para matar uma fome, que nada pode travar!
Vem a propósito a célebre frase de Santo Agostinho, no século IV:”Fecisti nos, Domine, ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te!”Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto, enquanto não repousar em Ti.
Felizes aqueles que sabem ler nos casos da vida, focando-os bem, com o facho da fé.
Liceu Linus
1977- 10- 17
Ouço, geralmente, a África livre, por causa das notícias e locais interessantes, que são retransmitidos. Estes artigos, além de curiosos, são a panorâmica do mundo em acção, de maneira especial, o mundo lusófono. Habitualmente, são extraídos de jornais e revistas, em língua portuguesa, referindo-se, em regra ,ao nosso Portugal e seus problemas: descolonização e efeitos desta. Ouço-os, pois, com muito agrado.
Afim de não quebrar o hábito adquirido, fiz ontem o mesmo, pelas 20 horas. Qual não foi o meu espanto, ao ouvir com surpresa, uma voz desconhecida, a falar na Emissora! Por causa do ruído, não captei o princípio, mas logo notei que ela realmente se afastava do comum. Digo francamente: gostei, a valer!
Afigurou-se-me oásis, em pleno deserto!
Sempre a mesma coisa também esgota!
Pois aquilo foi um belo êxito! Notícias e comentários, Voz da Resistência, palavras fortes, cheias de realismo e ânsia ardente de vida melhor! No fundo, ânsia de justiça, fome de paz, em tom aguerrido! Resoluções e protestos usam esta via.
Aquela voz falava de Cristo e do seu Evangelho, mas por modo novo, original, compreensivo e até eloquente! Que bem assentou a voz do Evangelho… a voz do Céu, num mundo a arder em ódio e vingança! Como é repousante o ensino de Cristo! É Ele, afinal, que devemos seguir e não os homens! Só asneiras é que fazem! Disformam tudo… lançam a morte, onde existe a vida.
Procedem exactamente ao invés de Cristo! Por esta razão, incendeiam a Terra, pondo-a de jeito que não pode tolerar-se!
Como viver, num mundo assim?! Lavram no ódio, vivem da mentira, não cumprem palavra, fazem a capricho engenhos de morte, ceifam inocentes, assassinam passageiros! Nunca o nossomorbe esteve como agora! Que é que vai sair deste amontoado?!
Quem semeia ventos colhe tempestades! Semente daninha só mal origina! As novas gerações aprendem a matar! Será deleitoso viver com elas, estando no poder?! Viveram de pilhagens, assaltos e morte. Assim continuarão, pelos séculos fora! Só Deus do Céu é que pode salvar o mundo de hoje, em tamanha convulsão!
Foi o que sucedeu, no século V, depois de Cristo. Se não fosse a Igreja, que seria da Europa, no tempo das invasões! E após o facto?! Mercê de Deus, por meio da pregação, os bárbaros converteram-se e não houve reveses para a civilização.
Se a Divina Providência, já saturada pela nossa frieza e espírito pagão, não vier prestes libertar o mundo, cairá no abismo, donde mais se não ergue! Entretanto, Deus e Senhor há-de ter pena de tantos inocentes, que pagariam com a vida o facto de existir!
Liceu Linus
1977- 10-1 \\ Um jesuíta foi silenciado pela Santa Sé, por escritos e notas, que têm como objecto os homossexuais. Segundo ele escreve, os actos desses homens deviam ser reputados, moralmente bons, dado que houvesse um compromisso de amor e respeito, de carácter mútuo. Li as referências, no Souther Cross.
A primeira reacção foi logo negativa, por ligar tais actos a práticas censuráveis e também por eu julgar serem contra a moral.
Discuti o assunto com um Padre alemão, Missionário em Nyangana, o qual me forneceu alguns pormenores que eu desconhecia. Perante eles, a minha atitude é já moderada. Perdeu, pois, o ar de rigidez e severa intransigência que tive, de início, chamando ao jesuíta nomes incorrectos.
O caso, realmente, não se apresenta como eu julgava. Antes de mais, estão fora de jogo práticas indevidas, altamente imorais, havendo entre ambos compromisso de amor e respeito mútuo. Esta, a posição do tal jesuíta! Analisando a frio, reprovamos logo, mas é bom tomar em conta que as ditas pessoas não são normais. Se fossem como nós, era mais que certo não podermos admitir a homossexualidade!
Trata-se, pois, de pessoas doentes, que vivem a sua vida: não outra diferente, imposta de fora. O caso deles merece atenção, embora, de facto, não seja fácil penetrar no seu mundo.
Num encontro realizado, tomaram logo parte 500 delegados de várias nações, Apresentaram-se lá como bons católicos, estando presentes 75 padres e vários religiosos
Houve Missa dialogada e outros actos de culto.
É problema angustiante, porque desejam, a sério, praticar a religião e ser bons cristãos. A Santa Sè resolveu, no entanto, que o tal jesuíta deixasse de escrever e falar sobre o assunto. Não estamos preparados para aceitar estes casos; mas é natural que o tempo e os factos aclarem a situação, dando uma resposta ao caso de tal gente!
Segundo afirmam, não existe cura para tal doença. Qual será, na verdade, a razão do facto? Aparelho genital incaracterístico? A Medicina e a Psicologia poderão responder. Quanto a mim, escasseiam-me dados, para emitir opinião própria. Aguardarei, pois, que alguém informado traga mais luz. Delicado assunto!
Se os doentes são pessoas e querem salvar-se, devemos tomar em conta o seu problema.
Com relações carnais, nunca a Igreja vai transigir, segundo eu penso.
Liceu Linus
1977. 10-19
Há 44 anos, tinha eu só 15 e levava já, na vila do Fundão, 8 dias a estudar. Árduos esses dias e cheios de alvoroço, já pela novidade, já por decepção. Afinal de contas, as agruras de então eram só amostras daquilo que viria, ao longo da existência. Vivendo os pais, tudo é excelente e apresenta sempre cariz aceitável.
Os espinhos não torturam, porque alguém os arreda! O que parece amargura não passa de uma sombra, ante a crua realidade. que mais tarde surgirá. Se eu tivesse ainda pais, embora já velhinhos, seria diferente o mundo, em que vivo. Bastaria, de facto, a sua presença, para dar-me coragem, nos passos difíceis. Sofreria por eles. Em seu favor é que eu trabalharia, sendo isto, na verdade, um grande incentivo.
Mas já tudo passou, qual sonho formoso, que de noite visita, para não deixar, logo após ele, senão mágoa e saudade. O tempo o desfez e levou para tão longe, que jamais o vivi, na sua realidade. Só conjecturas,
Imaginação, apenas lembranças, envoltas em mágoa, a que seguem, não raro, suspiros e lágrimas.
Hoje, então, ao ver-me exilado, longe de tudo e, às vezes, de mim!
Como sinto a falta dos entes queridos! Só Deus me acompanha, nesta dura provação! Estou mais perto d’Ele, verdade seja dita, mas que grande sofrimento e amarga decepção!
Os problemas amontoam-se; as dificuldades multiplicam-se também e tudo redunda em minha provação! Pessoas e coisas fazem grande coro,
Conjurando-se tudo na minha perdição.
Apenas confio na bênção do Céu! Ele é tudo para mim! Pois quem me vale, nas horas amargas do triste viver?! Quem me dera pagar em moeda igual! Mas, se tenho na Terra os pés a prender-me! Sou carne, sou nervos, funda sensação! Ave sem asas, barco sem leme! Apenas o Céu me pode salvar, nesta jornada que faço, chorando!
Eu creio firmemente que Ele é Santo, Justo e Bom, não cerrando os ouvidos ao gritar do meu peito! Por isso me resigno e vivo conformado,
na esperança firme de alcançar um dia a ventura do Céu.
Tiraram-me a família e furtaram-me os bens, apenas me deixando martírio e dor, e eu segui chorando, mesquinho, ensimesmado, até que o Senhor corresse ao meu encontro. Assim que Ele veio, senti-me feliz e
ganhei logo coragem, para trilhar decidido a via espinhosa. Apesar de tudo, sinto a minha alma chorar em agonia, porque eu sou também carne, sensibilidade e nervos doentes!
Liceu Linus
1977-10- 20
Dentro em breve, começam os exames, abeirando-se, pois, o fim das aulas. Em Portugal, era uma festa, porque as férias do Verão davam sempre lugar, para tudo fazer. Nos anos de passagem, (1º-3º-4ºe 6º) prolongavam-se elas, de Junho a Outubro. Duravam, pois, cerca de 4 meses. Nos outros anos, eram só dois.
Aqui, é diferente, pois não chegam a dois!
Ideal para mim era sair, rumando a Portugal, mas segundo a Imprensa e as cartas de amigos, aquilo não vai bem! Ocorrem assaltos, em pleno dia! Por noite fora, ninguém sai à rua! Quanto a retornados ,
é apavorante! Somente pobres e infelizes!
Ficar por aqui era bom, sim, mas o futuro prevê-se mau também!
Quem dera, Senhor, que na minha Pátria, houvesse já ordem, paz e alegria!
Pode alguém ser feliz, vivendo inseguro e sem confiança no Governo de Lisboa?! Por que será que o Governo Português já se não impõe?! Maus elementos há-os é claro, em todas as sociedades! Hão-de ser retirados, após o uso de meios inteligentes e razoáveis.
O caso viu-se ainda há pouco, lá em Nova Yorque, ao faltar a energia, durante a noite. Selvajaria, primitivismo, crime e desaforo, perigo social! Não faltaram pilhagens, assaltos e virulência!
Liceu Linus
1977-10-21 Professor de Pretos
Vir da Europa e meter-se em África, onde há povos diversos, na Idade da Pedra, é deveras excitante e cria problemas. Este é já o 5º ano que lido com nativos, mas agora apenas é que vou penetrando na sua psicologia. Nos primeiros tempos e parte do ano, agora corrente, já tive dissabores, por haver aplicado os processos europeus.
Na verdade, são mais humanos, cristãos e razoáveis. O certo, po-
rém, com tristeza o digo, é que eles não actuam, pois ficam gorados.
Apelar alguma vez para a alta nobreza de sentimentos e responsabilidade, o mesmo é que dormir! Pelo menos, durante um longo período.
Não tiveram, de facto, preparação!
Nestas circunstâncias, o professor inditoso fica desarmado, perante o número e a falta de carácter. Tímidas e servis, estas gentes do Cavango
fazem-na pela calada.
Devo observar que os pretos de Angola são mais evoluídos, muito mais correctos e dignos de afecto. Recordo-os agora com muita saudade e conservo deles as melhores lembranças. Os do Cavango são primitivos.
Uma boa parte só entende bem a linguagem do pau! Precisamente o que eu não queria! O certo, porém, é que outro caminho apresenta-se nulo e improdutivo!
Berrar, enervar-se ou mostrar desagrado, para eles é festa, gastando seu tempo a imitar a voz e os próprios gestos. Por sinal, imitam canhestros.
Mas criam situações que amachucam a gente, durante longo tempo.
Aconteceu-me este ano.
Como a experiência é mestra da vida, o meu agir vai sofrendo mudança.
Jamais ralharei, assumindo atitudes, que sirvam para festa! Não falar, não fazer gestos nem contorções!
No chamado “Concerto”, sendo animado e feito de mil coisas, farão
imitações, ridicularizando! O pior não é isso! Iniciam a farsa, com antecedência, prolongando-a depois, durante longo tempo.
Para mim, isso acabou! Um pauzinho na mão, apontando no quadro e
gerando compostura! Nada como isso! Gorados outros meios, optei por este, embora o utilize o menos possível!
Nyangana
1977-10-22
Ouvimos e lemos tanto desconchavo, sobre Portugal, que muitos portugueses já se envergonham. Será verdade que os nossos Governantes não evitam o caos em que a Pátria se afunda? Não haverá, no seu elenco, peitos generosos e espíritos egrégios, que salvem do naufrágio a frágil barquinha?! Não me convenço! Embora cá longe, sem dados precisos, tenho ainda confiança no Governo Socialista.
Seria para mim decepção amarga que o nobre país, a caminho do abismo, não fosse travado, a fim de ingressar na via da honra, por que todos ansiamos. É preciso travão! Três anos longos de funda ansiedade é já demasiado para quem sofre.
Portugal, que deu mundos ao mundo e levou generoso a civilização a todos os cantos do Orbe terráqueo; que assombrou as nações, pela audácia e renúncia, que mostrou amplamente; que ensinou o Evangelho e mostrou o caminho do Céu a milhões de nativos; que viveu prestigiado por obras e feitos, recebendo de Roma privilégios e graças; que se ergueu do nada por seus próprios meios, vencendo inimigos a quem envergonhou, por derrotas infligidas… tornou-se imortal!
Portugal amado, meu lar ideal e ninho tão querido, como eu te lastimo, na hora da amargura! Mofam de ti quantos me rodeiam, alegando exiguidade e falta de génio, para resolver problemas vitais. que urgem e clamam. Escarnecem de ti e eu sofro com isso! Entretanto, não sinto vergonha de ser português. Reputo sacrilégio toma alguém a sério essa atitude. Se eu me envergonhasse, negava-me por isso! Poderia fazê-lo?
Se a minha alma é deveras portuguesa! Se tudo o que eu amo é
português! Só no meu país sou igual a mim próprio. Em qualquer outra parte, sou menos do que eu! Fora de Portugal só empreendo o que os outros me deixam. Nem razões sequer eu posso alegar, ainda que me assistam.
Como era possível destruir, sem rebuço, a minha pessoa?! Não é isso contrário à própria natureza?! Sou português e sinto orgulho de não ser outra coisa! Em nossos dias, troçam de ti, meu Portugal, mas um dia virá por certo, em que hás-de erguer-te da vil tristeza, em que jazes prostrado.
Então, por certo, vai surgir de novo, o nobre orgulho de ser português! Eu ainda confio nos bons portugueses, que têm o leme! Não os conheço, mas em meu peito, ouço esta voz: Não deixes vergar-te ao peso enorme da humilhação, que a tua Pátria, abençoada por Deus e Santa Maria, tem almas generosas que hão-de levantá-la.
Eu creio nesta voz, que fala e roga!
Precisamos, sim, de homens genuínos, caracteres impolutos, vontades fortes, que ponham a nação para lá do Partido e de qualquer vantagem, de ordem pessoal. Necessitamos chefes que respeitem a fundo a nossa bela História, no que tem de puro, nobre, exemplar!
Do remoto passado rejeitamos apenas o que foi ultrapassado ou não diz nada! Tudo o mais há-de conservar-se, pois é garantia da nossa união e orgulho nacional. Negar o passado é, para logo, destruir a Pátria. Uma vez assim, já não ergue cabeça! Deixou de ser ela! Um fantasma talvez! Um ser degenerado, que vive de fora. Já ninguém a reconhece.
O nosso Portugal foi sempre cristão! Tirá-lo desta via é já destruí-lo!
Quem isso intentar é mau português! Não é fanatismo o que estou defendendo! Sim, amor a Deus a quem devemos tudo.
Quando eu regressar, ó Pátria formosa, quero desde logo, reconhecer o teu rosto! Anseio por beijar-te a fronte cuspida e enxugar as lágrimas que estiveres chorando! Quero ajoelhar, perante a grandeza da tua desventura!
Irei logo rezar, para que Deus e a Virgem acorram do Céu e garantam a paz que tanto desejamos.
1977- 10- 3
“Se queres morrer, volta para o teu lugar”
Uma freira alemã, que trabalhava em Angola, antes de 74, houve de fugir, como tantas outras. Entretanto, o nobre coração ficara-lhe preso. Nunca mais esqueceu as populações humildes a quem dava assistência como enfermeira. Foi andando sempre cá por esta margem, esperando voltar, logo que pudesse.
Esteve em Andara, Vinduque e outros sítios, mas nunca olvidou os primeiros lugares, onde trabalhara, por amor das Missões. Volvido algum tempo, foi à sua pátria, indo em seguida a caminho de Roma, a fim de avistar-se com a Superiora.
Exposto o seu caso e tornado patente o alvoroço de alma, diz-lhe então aquela: “Já que assim é, não quero opor-me às tuas pretensões. Vai para Angola”-
Radiante ficou a jovem Enfermeira, preparando suas coisas, a fim de rumar à cidade Luanda, capital da República.
Como era natural, apresentou-se logo ao Arcebispo, o angolano D, Muaca, a fim de elucidá-lo, acerca do caso e ouvir a propósito o que fosse necessário.
Diz-lhe em resposta o Bispo da cidade:” Se queres morrer, volta para o teu lugar!”
Que triste situação! E, no entanto, já passaram três anos!
Aquele povo infeliz, sem nada para comer, sem nada para vestir, sem qualquer assistência, de carácter medical, incerto da vida e já sem esperança, vai morrendo aos poucos, em lenta agonia!
As palavras do Prelado não deixam qualquer dúvida! Angola, na verdade, é um campo de batalha! As áreas rurais estão de facto, sujeitas a assaltos, pilhagens, violências.
Hoje, Angola não é independente! O povo angolano é tão infeliz! Este povo querido está sendo aniquilado por motivos estranhos à sua felicidade Chefes angolanos, não vedes a pátria caindo prisioneira?! Não vedes as gentes, que já não eram muitas, antes da guerra, caírem no silêncio, donde se não volta?! Que vos fica, depois?! Apenas estrangeiros senhores da vossa terra, que não amam nem prezam?!
Matais agora e deixais que morram os vossos melhores filhos?! Que resta, depois?! Voltai já costas aos ventos danosos que sopram de fora, venham tais ventos donde vierem! Uni-vos, como irmãos! Trabalhai para vós! Deixai a ambição e os sórdidos interesses de ordem partidária! Enterrai bem fundo as vistas alheias Convidai para ajudar-vos quem for amigo.
Angolanos saudosos, acreditai: nós, portugueses sofremos também, com a vossa desgraça! Nós queremos a fundo que esta velha província, amada relíquia do “vasto império,” viva desafogada, feliz e gloriosa! A mártir Angola está no coração de todos os Portugueses, como todas as parcelas desse mundo vasto, que foi português.
Só nos alegramos, quando vós, de facto, estiverdes livres.
Mas dessa maneira, jamais o sereis! Irmãos contra irmãos. destruindo vidas e fazendo de Angola uma ‘terra queimada! Meu Deus!’Iluminai, Senhor, os chefes negros! Levai-os prestes à compreensão e desejo de servir! Encaminhai-os ao bom entendimento!
Que pena me faz, quando vejo Angolanos, aqui pelo Sudoeste! Há deles, por toda a parte, afigurando-se párias, que a sua terra ardente expeliu de si!
Falam com tristeza e funda mágoa no peito ferido! As lágrimas afluem, enquanto vão narrando a tragédia pessoal! Nem casa nem bens nem sequer família! Não sabem uns dos outros!
Nyangana
1977-10- 24
A 12 de Novembro do ano corrente, vou fazer o casamento dum par angolano, que vive refugiado, aqui no Sudoeste. Veio já o Manuel avistar-se comigo, para indicar a data do enlace matrimonial.
O casal, à data, já tem filhos pequenos, vivendo portanto em pura mancebia.
Por esta razão, desejam a sério, legalizar suas vidas, para que o bom Deus os proteja e ampare, abençoando-lhes a prole. Por tudo isto, aceito de bom grado, incumbências morais.
Para mim, os queridos angolanos são diferentes dos outros, no Continente africano. Pudesse eu ajudá-los, em todas as circunstâncias. Infelizmente, porém, estou manietado, esperando ansioso que Deus me liberte, conduzindo-me à Pátria. Se os planos não falharem, por fins de 78 ou ainda 79, devo regressar!
Sendo a nossa política já de confiança, embora com socialistas a deter o leme, ficarei de vez, leccionando então como particular. Piorando as coisas, voltarei de novo para o Sudoeste ou África do Sul.
A segunda alternativa é menos agradável! Gostaria imenso de ver Portugal desafogado e livre, vivendo alegres todos os portugueses. Em tendo pão, segurança e conforto, já sentem desejo de viver neste mundo.
Eu, no exílio, abandonado e só, é que não participo, nesse desejo. O 12 de Novembro vem acentuar a minha tristeza: perfazem-se 13 anos que a mãe querida partiu deste mundo para outro melhor, Após a sua morte, senti-me angustiado, pobre e mendigo!
Uma coisa apenas vem mitigar a dor e a saudade: a certeza absoluta de que é feliz! Realmente o Céu é para os bons!
Ela pertencia, não tenho dúvida alguma, ao número dos eleitos!
Quatro longos meses de intenso penar, sem um queixume!
Sei que é ditosa, sendo esta realidade conforto e alegria para o meu coração.
Nyangana
1977-10-25
No dia 22, pelas 22 horas, ouviu-se em Nyangana, potente explosão.
Ficámos a julgar seria do outro lado, na mártir vizinha. Se tal canhão fosse de alcance!..Factos desta ordem ocorrem frequentes, originando em toda a gente elevada tensão. Desafinam-se os nervos, originando mal-estar! Ao mínimo ruído, é logo alvoroço, terminando assim o repouso da noite. Quem dera ver-me livre do inferno da guerra!
Há já 5 anos, trabalhando em perigo, sempre arriscado, em zona de guerrilha! O pior de tudo é eu não ver meio de o bulício terminar! Antes ao contrário: abuso e tirania aumentam hora a hora! O terrorismo alastra, de maneira assustadora, pagando os inocentes por culpas que não têm
Ultimamente, vieram mais cubanos dilacerar em sanha a
Mártir Angola. É voz no Cavango terem já chegado à vila do Cuangar. Toda aquela zona foi há dias ocupada. Segundo vai correndo. Vieram tropas e tanques do MPLA e com esta,s juntamente, os homens de Castro.
Ao que dizem por aí, dispersaram-se já, pelo Catuítui, após fuga em desespero, estendendo-se agora por toda a área, até ao Cuangar. Havendo sido acossados pelas tropas da UNITA, voltaram de novo, passado algum tempo, fazendo-se acompanhar de tropas cubanas.
Reina, pois, o alvoroço, nesta margem do rio. A população indígena está sendo retirada para zonas interiores, bastante produtivas, tendo isto a seu cargo as tropas da UNITA.
Segundo o relato do Padre Bonifatius, nativo do Sudoeste, a Missionar em Andara, tem morrido muita gente, com tais deslocações, acentuando-se o facto em pessoas idosas.
O caso agrava-se e não vejo solução, pelo menos em breve.As gentes angolanas do centro e do Sul, zonas mais povoadas, são fiéis à UNITA, em grande maioria. Acontece, pois, serem mal tratadas pelas tropas inimigas.
Nestas circunstâncias, vai o povo angolano caminhando para a morte. Há carência de tudo: é escasso o vestuário; os alimentos; habitação e remédios; enfermeiros e Médicos. Além disto, que é já bastante, ameaças de morte, violência e pilhagens, espancamentos, desespero e ruína, sem faltarem vinganças.
Quanto melhor não vivíeis, no antigo regime, que vos levava serenos à independência, de maneira gradual, sem gota de sangue! Mas cantou a sereia, e os ouvidos de muitos ficaram deleitados!
Não sabíeis, por ventura, que a voz da sereia é sempre enganadora?! Quem pode fiar-se?! Tenho pena de mim, a quem
a guerra infernal assassinou já um ente querido, sem qualquer motivação, mas sinto por igual muita pena de vós. gentes angolanas, em terra de ninguém!
Terra queimada, terra de maldição!
Se Deus não é presente à obra dos homens, receemos sempre! O veneno subtil vai-se infiltrando e, às duas por três, surge a ratoeira… o crime… a desgraça
1977-10-26
O Terrorismo Internacional
O maior flagelo da época actual é o terrorismo. Remontou o ser humano ao tempo da barbárie, utilizando habilmente os recursos da técnica. Já não parece um mundo civilizado em que vivemos. É mais que certo haver injustiças. Todos sabemos que o mundo tem fome e, nalguns casos, só a Revolução é capaz de sanar o que não pode aceitar-se.
Mal necessário? Às vezes, sim: quando falharam os meios pacíficos. Mas o pior ainda não é isto! Por este caminho, treinam-se os povos na prática do crime, sem respeito nenhum pela vida humana. Uma vez habituados, o terrorismo não cessa e, ao mínimo pretexto, vão repetir-se actos paralelos.
O homem, afinal, é um ser decaído e nunca satisfeito! À margem de Deus, infunde terror, pois traz no peito o veneno letal. Não havendo, pois, acção conjunta, de fibra e cerne internacional, que o extinga, de vez, a chaga vergonhosa, apenas crescerá, pelos séculos vindouros.
Este aspecto é grave e até crucial, pois tira a paz, garantia sem a qual não há gosto de viver. Isto que digo, no tocante ao futuro. Quanto ao presente, causa arrepios a atitude insensata dos chamados terroristas De facto, se provoca horror a pena de morte, aplicada a capricho, por motivos fúteis, quanto mais não entristece o destino lastimoso de tantos inocentes que os bárbaros empolgam!
Não acho, neste mundo, coisa mais injusta, repelente e asquerosa! Crianças em flor mulheres e velhinhos, pessoas de bem…ninguém escapa à sanha infame destes canalhas!
Por que é que não usam outros processos?! Libertação de bandidos, pronta aquisição de milhões em dólares, bons meios de transporte e lugar seguro, para habitar! Que belo programa!
Assim, era o mundo um inferno!
Apenas os bandidos viveriam em paz e sempre em abundância!
Inversão de valores?!
O dólar em foco é preciso ganhá-lo! “Comerás o pão com o suor do teu rosto! Não é assim que diz a Escritura?!
A palavra de Deus já não tem ensejo nem merece respeito?!
“Se as nossas pretensões não forem satisfeitas, até à hora X,
mataremos os reféns, destruindo o avião!”
Com que direito se faz tal coisa?! Em pé de igualdade inocente e facínora?! Donde veio o padrão que repugna e indigna?!
Ter-se-á o homem convertido em fera, para assim realizar seus intentos perversos?! Possa eu ver o dia, em que o mundo horrorizado lavre o seu protesto, para o cancro se extinguir,
decretando medidas sábias! Seria para mim um dia venturoso!
Matar inocentes! Sacrificar ao venal terrorismo pessoas de bem! Amordaçar a virtude! Criar situações que não podem tolerar-se! Que todos os povos se debrucem já sobre este caso espantoso, que envergonha a nossa época. Nenhuma nação deve dar apoio a tais elementos. É deveras infame tal proceder!
Se o mundo assim usar, decretando além disso, penas dolorosas para tais facínoras, levará o terrorismo um golpe mortal! Se têm pretensões, que usem outros meios. Se não puderem, aguentem, pois quem as faz é bom que as pague! Os outros infelizes não têm culpa!
Nyangana
1977-10-27 Os cães do Tondoro
São dois casais de raça diferente, havendo a mais a fêmea Coimbra. Esta e um casal são pastores alemães. Forçoso é dizer que tal raça de cães é a mais elegante de quantas já vi. O outro casal é mais desengraçado, mas tem qualidades. Uma dentre elas é a afeição que votam ao dono. Outra ainda consiste no faro, que
julgo inigualável.
Contaram-me, a propósito, o caso seguinte: numa zona fronteiriça, fazia-se busca aos vários artigos de contrabando, sobretudo à droga. Ora, para casos tais utilizava a polícia cães adequados. Chamam-lhe Dorbers.
Aproximando-se eles do automóvel, indicaram logo artigos proibidos, por meio do latir. Nestas circunstâncias, é feita a busca, no interior do veículo. Bancos e malas, vazio das portas, mala de trás, interior dos pneus. Feita a diligência, nada apurado!
Entretanto, os animais não arredam.
Então a polícia ordena ao condutor que esvazie o depósito. Quer medir a gasolina. Tiradas as medidas, para achar o volume. Nota o agente haver desde logo enorme diferença. O tal depósitolevava muito menos do que era natural. Aberto em seguida, por ordem superior, encontram breve um depósito menor, recheado com droga.
Razão cabal tinham os bichos, para não se calarem.
Provado ficou, uma vez mais, que o cão Dorber é incomparável.
Pois na Missão de nome Tondoro, fazem eles também as suas partidinhas. Por serem dois casais, há lutas horríveis, entre os dois machos. Quando tal sucede, vem Padre Manfred, bengala na mão, para afastar os fortes lutadores. Apesar de tudo, o ardor do combate não deixa separá-los. Partem os flagelos, tressua o Missionário e nada se obtém, ao menos de princípio.
Um dia, o Dorber feriu o dono. Claro está que o facto insólito valeu lhe uma sova. A falta, porém, foi logo perdoada,olhando à causa. O Dorber não consente que o outro cão ocupe o seu lugar: o traço da porta que o dono utiliza. Ora, um dia o pastor alemão quis honras iguais, em seu proveito. Tanto bastou para logo causar uma luta de morte!
Portentosos animais os cães do Tondoro! Durante a noite ou por tempo de sexta, é de vê-los estendidos, ao longo do corredor!
Ai de quem entre sem que vejam o dono ao pé dos estranhos!
Falta-lhes falar, que o mais abunda!
Vendo o Padre Manfred em presença de alguém, é já suficiente, para eles se absterem de qualquer atentado! Basta uma vez! Impagáveis cães!
O pastor alemão também ajuda a polícia; depois de treinado, é um bom lutador! Em instinto e beleza excede o Dorber. Este apenas o excede em questão de faro.
Se o dono arranca em veículo, tomam logo a dianteira, impedindo a marcha, durante uns quilómetros.
Pela ausência do dono, mostram-se abatidos, ficando alerta, para vê-lo surgir.
Liceu Linus
1\977-10. 28 Exames
Lavram os nervos, aqui e além. Todos se agitam, em maior ou menor grau. É tempo de exames ou melhor, talvez, caminhamos para eles, a passos largos. O 7º e 8º já vão terminando, mas o 5º e o 6º a que dou Inglès só em 1 de Novembro terão seu início.
Se eu bem comparo esta quadra efervescente, remontando a Portugal, que diferença enorme, em questão de exames e atitudes humanas! Alguns aspectos são harto chocantes. O factor ‘cunha’ andava em bolandas! Pedido a B, rogo ainda a C, promessas a D. Movia-se tudo, Este aspecto, porém, avultava muito mais, durante a Primária ou mais ainda, no exame de admissão.
Apesar de tudo, no Curso Liceal também não faltava. Lembra-me, a propósito, a saída jocosa de certa mãe, que dizia, impante, na Covilhã: O meu filho está jogando hoje com várias ‘cunhas’ Três pedidos feitos e a Cunha do nome!”
Aqui, então, nem uma sombra a rogar por alguém! É preferível! O aluno, por cá, recebe o que merece, em função do esforço e do trabalho feito! Nem mais nem menos! Quem sabe passa; quem não sabe, fica.
No meu Portugal, em época de exames, até os contínuos subiam de importância. É que eles actuavam com certa eficácia! Os liceais, esses então ganhavam logo personalidade , que não era brincadeira! Nós, aqui, não temos esse luxo. Somos os mesmos!
Quanto aos alunos, a questão do nervosismo não tem paralelo! Orais não existem! Só escritas para todos, sendo a nota final a totalidade obtida, sobre várias parcelas: pontos de frequência; chamadas orais, ao longo do ano, em que se atende à leitura e boa recitação; compreensão dos textos; conversação preparada e outra impreparada; tópicos gerais. Soma abrangente(50 pontos).
Se eu, quando aluno, tivesse exames destes, conseguia, digo firme, três valores a mais, na média geral. É que, nas orais ficava inibido de usar o raciocínio. Hoje, à distância, reputo essas provas verdadeira injustiça. O pedido, realmente, está na berlinda, mas ele só é válido para certos meninos que são, em regra, os mais incapazes.
Os que têm valor, mas vêm de baixo, não podem mostrar aquilo que sabem! Com horror e espanto, revelam, sim, que não têm protecção, ficando à mercê dum sistema irracional e contraproducente. Quando acabará tal processo de exames?!
Por que não fazer como nós aqui usamos?!
Mais uma achega, a tal propósito. Certo dia, viajava de comboio, pela Beira Alta, quando me surge um antigo aluno.
Então, que fazes por aqui, meu bom amigo?
-- Olhe, vou à Guarda prestar contas do 7º. na Cadeira de Latim. Aquilo é certinho. Sei, de antemão o que vão perguntar-
-me. Quer assistir? Venha daí!
Disse-lhe que sim. Uma vez em presença, todo eu sou ouvidos.
-- Qual é, afinal, o escritor latino que mais aprecia?
-- Cícero
-- Entre os seus escritos, quais são os que prefere?
-- Cartas.
-- Escolha uma.
Assim vai o mundo! Os de baixo, coitados, é que passam angústias!
Nyangana……….?
1977-10-29
Minha irmã, ao presente, na terra natal! Como há-de ser chocante o primeiro embate, volvidas já, dezenas de anos,
passados em Angola! Nem palavras tenho, para exprimir tais
sentimentos! Antes de Abril, 74, e a data posterior, que logo
surgiu!
Seria, talvez, como passar dum mundo para outro? Não sei, mas imagino. As cartas da mana irão informando logo em seguida, pois viveu a ‘tragédia’( palavra de Melo Antunes, insigne militar do nosso Exército).
Enquanto não chegarem, vou eu supondo a desgraça familiar, que terá sobrevindo: ruir estrondoso de hábitos radicados; perda total dos bens adquiridos, honestamente, sem indemnização; sepultura de duas filhas em solo africano; futuro incerto dos filhos restantes.
A última carta era já do povoado, a queixar-se de tudo: casa inabitável; falta de aquecimento; inadaptação; frio insuportável; custo de vida a que não é possível fazer logo face. Um ror de coisas!
Merecia outra sorte! O caso dela, porém, não é exclusivo!
Entretanto, cada um vê o seu! Tenho para mim que Deus a compense, pois a sua vida foi sempre honesta.
Aguardava outra carta, já que a primeira era escassa em pormenores. Apenas informava, acerca do facto e era abundante em lamentações! Esperava nova carta, mas não a encontrei.
Que Deus alivie todos os inocentes! (Era o meu pedido!)
Num Diário do tempo, escrevia eu: aquela pobre irmã o que tem sofrido! Tanta desilusão! Tantas decepções! Tantos contratempos! Horríveis percalços! As mais inesperadas e amargas decepções!
Lembra-me, a propósito, a frase de Garrete; Deus aflige neste mundo aqueles que ama. O prémio, só na outra vida.
Tenho a certeza de que também esta frase se aplica a minha irmã. Que ela saiba interpretar os casos da vida, â luz da eternidade! Aplicando aos factos a ciência humana, afiguram-se logo autênticos enigmas. Os caminhos de Deus são muito diferentes e têm como fim a nossa felicidade!
Parecem, às vezes, um tanto absurdos, porque os focamos à luz deste mundo. Ora, este espírito é, de si, contrário ao espírito de Deus. O nosso destino prolonga-se muito para além da morte. Aqui, só de passagem, Deus criou-nos para Ele.
Nyangana
1977-10-30
Nas horas de lazer que, afinal, são poucas, vou lendo alguma coisa, alheio às matérias que rejo no Liceu.
Ultimamente, consagrei a atenção a livros de Marx, Engels e Lenine. Li com atenção e vivo interesse argumentos e notas. a favor do Socialismo.
Achei muito de verdade, nas suas afirmações, mas confesso, abertamente, que não respondem a quesitos diversos que se impõem, de imediato.
Concedo plenamente que a ordem social, vigente em nosso tempo, é detestável, por ser injusta. Não está certo que exígua minoria acumule a riqueza, enquanto a massa humana, que representa, decerto, a maioria absoluta, viva parcamente, sendo ela, afinal, a causa produtora, imprescindível.
Conciliar os interesses, de um lado e outro não será muito fácil, mas há sempre caminhos, existindo realmente desejo de acertar. Segundo me parece, há duas saídas: a de
Marx-Lenine , que chamam comunista ou de substituição; outra de correcção.
Vejamos a primeira. Se lermos, alguma vez, sociólogos comunistas, ficaremos presos, dando-lhes razão, sem qualquer argumento que possa travar o seu raciocínio. Entretanto,
reflectindo um pouco sobre os princípios que, na verdade, têm muito de certo, não resistem, me parece, a uma crítica honesta e bem conduzida.
Diz o citado Marx: Um operário produz, trabalhando, uma peça de máquina, cujo preço inicial é de 21 francos, antes do labor. Se o patrão, em seguida, pagar ao empregado 3 francos de salário e vender o objecto por 27, rouba 3 francos.
As minhas palavras não são textuais, mas revelam com certeza o pensamento do autor. À primeira vista, o seu argumento apresenta-se logo como incontestável, mas eu refuto em parte o seu raciocínio. De facto, após a força do trabalhador, aplicada no objecto, este valorizou-se em mais 6 francos, o que dá em resultado: 21+6= 27.
Naquele 21 entram as máquinas, bem como os motores, matérias- primas, matérias acessórias, luz e local.
Ora, diz Marx: A capacidade e a força de trabalho daquele operário aumentaram em 6 francos o valor do objecto. Logo, 6 francos é, a rigor, o salário daquele trabalhador e não apenas três! O patrão dá-lhe três e rouba outros três!
Sem exame acurado, parece ter razão, mas agora pergunto: quem sofre os embates do lucro cessante e do dano emergente?! Suponhamos que, devido à concorrência ou super-produção, vende a mercadoria por baixo preço.
Segunda pergunta: quem se responsabiliza, se a fábrica arde ou sofre graves prejuízos, em máquinas e motores?! Quem aguenta os prejuízos?
Não devemos esquecer o valor imprescindível da inteligência, pois é um dos factores da produção.
Ao todo são três: capital. Inteligência e trabalho. São inter-dependentes e solidários.
Da boa coordenação e firme equilíbrio depende o êxito,
nesta matéria.
Liceu Linus
1977-10-31 Cont.
Terceira pergunta: quem paga ao patrão, dando 6 francos ao dito operário?! A gestão acertada, mercê da qual aumentaram os lucros quem a pagaria, dando ao trabalhador os francos em causa? Terá ele jus a mais de três? Digo que sim, mas não a 6!
Muitas empresas têm lucros fabulosos, devido `a perícia de gerentes argutos. Segundo penso, a inteligência não é para Marx factor de riqueza, o que é infundado! Vejo estas coisas da seguinte maneira: os operários devem tomar parte nos lucros da Empresa, vigorando nela regime capitalista. Será de utilizar a substituição?
Apear o capitalismo, para alojar o comunismo?
Se trouxer à sociedade uma vida melhor, é de tentar. Mas eu não creio! É mau o capitalismo, na estrutura actual? É.
E quanto ao comunismo? Pior ainda! Portanto, de nada vale a substituição. Ir a pior não adianta! Realmente o comunismo é novo capitalismo, que reduz o ser humano a ‘peça de máquina’, privando-o assim da sua liberdade.
Interessa apenas a colectividade, a que tudo sacrifica. O indivíduo fica apagado!
Há nisto, por certo, enorme desequilíbrio
Nova objecção ao sistema comunista: é o Estado, afinal, que adianta as máquinas assim como os motores, etc. Depois, não vai pagar nada, pelo uso e desgaste?! Quem é o patrão de quanto existe?
Está provado que, tirando pela raiz, a iniciativa privada, as empresas definham e morrem breve.
Que vai, por Moçambique? Que se passa em Angola?! Que se vê em Portugal, como resultado do Governo comunista?! Eliminar totalmente a iniciativa privada é matar a produção. Ninguém ignora que os povos capitalistas produzem muito mais que os seus opositores. Quem alimenta os povos da África Austral? Não é, afinal, a África do Sul?!
Quem vale à URSS e outros povos comunistas?! Não são realmente os Estados Unidos?
Apesar de tudo, não quero defender o Capitalismo!
Precisa ser corrigido. Os operários merecem ter parte nos lucros da Empresa. O comunismo geral foi delineado pelos históricos.
É inaceitável também o Socialismo, ficando muito â esquerda. Socialismo equilibrado que respeite sensato o direito de propriedade e a liberdade do homem, nacionalizando o mínimo possível ( só o que é basilar para o bem do país) é o sistema ideal. Deve olhar-se ao bem de todos.
Não apenas a um grupo! Todos têm direitos e deveres a cumprir, de maneira igual.
Capitalismo, um tanto corrigido ou socialismo cristão, mas não comunismo!
Nyangana
1977-09-24 Projecto
Baila na mente uma ideia sedutora: escrever um livro, encabeçado, como vai a seguir: Gonçalo em Camisa.
O caso em foco não surgiu de repente, mas nesta data revigorou-se o desejo. Tentando passar de potência ao acto.
Trago entre mãos a primeira Novela ( Um Sonho Fascinante), começada há 30 anos e logo interrompida, no Capítulo XII. Ficará, provavelmente, com mais 21. Restam só 4, para dar-lhe remate.
Há outra Novela, já posterior, que teve seu início, lá em Pinhel, para onde fora, como professor, em 1950. Conto ampliá-la substancialmente, pois julgo inadequada a maneira de acabar.
A revisão completa de todos os Diários e estes dois finais
levam tempo imenso, requerendo por força os momentos disponíveis.
Voltando ao Gonçalo, seria possivelmente um livro de instantâneos. Quase anedótico, focaria somente aspectos cómicos, imprevistos e trágicos da tal personagem, os quais são próprios do ser racional.
Tudo o que humilha, rebaixa ou indispõe e se tenta esconder surgiria logo, nos ‘instantâneos. A ideia é tentadora, mas falta disposição e, às vezes, tempo.
Satura-me em extremo a vida que levo. aqui no Sudoeste!
Se fosse em Vinduque! Não é meio ideal, para a minha aspiração, mas era melhor! Veremos, em breve, o que o tempo me oferta!
Nyangana
1977-09-25
De hoje a 15 dias, haverá entre nós imenso regozijo. Terá
regressado aquele que esperamos, com viva ansiedade – o nosso Padre Hermes. Sem ele aqui, falta-nos alguém que dê vida e relevo à Missão de Nyangana. O mesmo é dizer que lhe falta a alma. Que impressão nos dá um corpo sem alma?
Impressão desoladora que nos leva a fugir, cheios de horror e já vencidos!
Eu, exilado de Angola e, por isso, refugiado, no Sudoeste Africano, encontrei no Padre Hermes o irmão que muito amo, pela sua gentileza, dedicação e puro altruísmo!
Venha ele satisfeito, para junto de nós que estamos saudosos, já suspirando! Destes corações é que o mundo precisa! Nem egoísmo nem rancor! A todo momento, boa disposição e alegria no rosto! Ele veio da Alemanha, não para servir-se, mas servir os outros. Grande recompensa o espera no Céu
Nyangana
1977-09-26
Acontecem na vida factos estranhos que fazem cismar.
Eu creio na Providência, que rege o mundo todo e o tem de
Sua mão. Há dias já, que ando pensativo e assaz preocupado.
Tenho agora em foco uma pobre criança, originária de Angola, segundo parece. Pode ter 10, quando muito 12 anos.
Usa aparelho na perna esquerda e quando se desloca, faz leve pendência, nessa direcção
A primeira vez que notei o facto, avistei-a de longe e tive grande choque. Coisa banal uma criança doente, preta ou branca? É uma de tantas que aparecem no mundo e se nos deparam! Talvez seja isso, mas o caso, para mim, é deveras singular.
Eu sigo-a com os olhos, até perdê-la de vista. É como feitiço que me prende e arrasta. Por mais que tente, não consigo desprender-me! Piedade e ternura, para com os infelizes?!
Sim, um pouco disso, não haja dúvida, mas o caso, para
mim, é muito diferente
Esta miúda figura exactamente a Maria Margarida (sobrinha e afilhada), quando fui por ela, no mês de Agosto de 68, ao
Aeroporto da capital portuguesa.
Saíra de Angola, para fazer seus estudos, no Colégio de Manteigas, onde eu era professor.
Tinha aquela a mesma doença e na mesma perna. A idade e o tamanho do próprio corpo andariam próximos.
Atendendo agora ao destino cruel que depois a vitimou,
quando já prestes a entrar na Faculdade, sinto no peito um baque tremendo, mas é um ponto de atracção, ao ver tal criança. Não lhe sei o apelido nem lhe sei o nome nem conheço talvez a linguagem que usa, mas é um ponto de atracção e causa de angústia
Era a 8 de Maio de 75, na cidade Silva Porto.
À hora do recreio, no Liceu Silva Cunha, conversavam animados, trocando impressões, alunos e alunas.
Nessa altura exacta, a maior fatalidade estava a incubar-se, para esta menina. Uma bala assassina atinge-a na cabeça, penetrando no cérebro.
Dezasseis e oito duma tarde sinistra! Cai para sempre, cá neste mundo, a nossa Guida, que tanto amávamos! Não fizera mal! A ninguém ofendera! No entanto, a guerra feroz nada respeita, achando melhor pôr fim a seus dias. O que vale, para nós, é Deus existir, para vingar tamanho crime! Punir um assassino, para livrar a sociedade humana, é razoável e justo
Matar um inocente, com requintes de maldade, nada
existe no mundo que possa justificá-lo! O sangue de tais vítimas clama da Terra pelo nosso Deus!
Ela partiu, mas deixou nos seus eterna saudade. Que o Pai do
Céu a tenha em glória, abreviando clemente a sua expiação, lá
no Purgatório
Segundo informação, o Comandante Tigre, que mandou atirar, morreu no Lobito, quando a UNITA invadiu a cidade.
Quem com ferro mata com ferro morre.
Liceu Linus
1977- 09-27
Reabre o Liceu, para hoje iniciarmos o 4ºperíodo.
Com ele, finaliza também o ano escolar. A 8 de Dezembro, estaremos já livres, para gozo de férias! Praticamente, são apenas dois meses, que passam ligeiros, por haver, nessa data maior aplicação.
Levo, pois a bom termo dois anos de magistério, em terras do Sudoeste. Perfaz isto já o bom somatório de 32 anos.
Conceda-me Deus mais um ano aqui, o máximo dois, para assim finalizar o múnus de professor. Trinta e quatro anos já vão saturando! Falta a paciência e com facilidade me torno pesado.
O esforço que utilizo, para dominar-me, excede os recursos. Uma vez em Portugal, vou dar explicações, até perfazer os 40 anos, dados ao Ensino, a tempo inteiro.
Nota
O número de anos ficou assim repartido: 27 em Portugal (Ensino Particular); 3 em Angola (Ensino Oficial,
de 1972 a 1975); 4 na Namíbia, administrada pela África do Sul.
A minha residência com a família era no Chitembo, onde
eu passava as férias e os fins de semana, e onde começava “, a zona perigosa”que chegava a Serpa Pinto.
Para minha desgraça e vergonha eterna dos Serviços Sociais, foi-me recusada a tal ‘Reforma’ como professor do Ensino Secundário, quando outros a receberam, com menos tempo do que eu. Tenho testemunhas.
Retomemos o fio da longa narrativa.
Faltam 2 Capítulos, 34 e 35, para acabar s Novela, Será coisa de jeito?! Com a morte na alma, darei eu vida às personagens?!
Pátria linda…família adorada…amigos que prezo! Tudo
morreu, que a distância falou! Entre nós todos, cavou-se o abismo, não sendo possível darmos as mãos.
Após tanta dor e tamanha desventura, conceda-me o bom Deus a sua companhia, Será Ele o grande prémio para amarguras e dores, Fora de Vós, Senhor e bom Pai, só o mal e a desgraça podemos encontrar! Não olheis irado para as minhas faltas! Que Vos mova pronto aquele amor operoso que Vos pregou no madeiro, entre dois malfeitores!
Liceu Linus
1977-09-28
Ser professor em zona operacional é algo delicado e cheio dc imprevistos. As regalias auferidas aqui não compensam jamais os perigos tremendos que surgem pela frente. Comparemos então, focando as regalias: cinco dezenas e meia de randes mensais; casa, água e luz; mobília essencial.
Os contras danosos são em maior número e de grande projecção. O maior de todos é o risco enorme de ficar sem pele, em qualquer altura. A zona em causa está vigiada, mas não podem evitar que, uma vez ou outra se dêem fatalidades. Basta ver por alto o caso da Rodésia, onde há por certo vigilância pronta e bem organizada.
Na Ovamboland, com a base militar só a 3 quilómetros, da Escola Oficial, os terroristas invadiram-na pronto, levando na frente alunos e docentes. Outras vezes, matam simplesmente, da maneira mais bárbara, como fazem na Rodésia. Além disto, que já não é pouco, há o ambiente que se respira e sente.
Seja como for, o lume espalha-se, deflagra e queima.
A malta nova traz já no sangue o fermento da revolta. Raro é o preto que não disponha, ao menos, dum aparelho de radio.
Por meio dele, recebe a mentira, gerando-se no peito ódio e vingança. Ensina-se a matar, a fazer assaltos, a roubar o que é de outrem.
O aparelho radiofónico devia servir para erguer o homem, tornando-o melhor. Afinal de contas, foi convertido em instrumento diabólico, para degradar!
Que tempos estes! Que será o mundo, no dia de amanhã,
com esta aprendizagem?! O Senhor Jesus Cristo pregou o amor: o Comunismo prega sempre o ódio! Quem terá razão?!
Deus ou o homem? A quem devemos nós obediência pronta?
Adestrada assim, por tais mentores, que será, realmente, a nossa juventude, nos próximos anos?! Há-de ser impossível viver, neste mundo! Já temos amostras. É ver, por exemplo, o que vai no Uganda!
Os chefes do futuro ver-se-ão obrigados a converter-se em feras, para defenderem a própria vida. Sociedade sem Deus cria chefes despóticos. Onde reina o ódio só mal é de esperar! Mas isto é efeito do ensino diabólico, ministrado às crianças. Quem semeia ventos colhe tempestades.
Por este andar, eu prevejo para África um futuro lastimoso! Ainda será tempo? Alguns dos chefes já viram o problema; outros, porém, são levados e guiados pela sereia.
Será este, de facto, o processo natural, para que toda a África venha a destruir-se! Extinta a Religião e perdido o respeito a qualquer autoridade; alimentada a ânsia do poder bem como a ambição, nada mais resta: só auto-destruição!
Assistiremos inquietos a una época incessante de lutas e mortes, em que os melhores valores tombam primeiro. As Religiões bem como o tribalismo são valores preciosos, para a defesa do Continente Africano. Unir as tribos, com um só chefe, igual para todos! Destruir o tribalismo é um erro palmar
Outro erro igual, se não maior é pregar o ateísmo, destruindo a Religião
Liceu Linus
1977-09-29
Perguntou de manhã um membro do exército por que é que as freiras não gostam dos militares da África do Sul. Não pude responder-lhe, pois na verdade ignoro o facto, em pormenor. Leio nos jornais certas referências, donde posso inferir que seja assim mas, daqui à realidade, pode haver ainda uma longa distância.
Constou, há poucos dias, que uma freira americana havia dito o seguinte: Se eu fosse da mesma cor, juntava-me aos ‘turras!’
Tenho para mim que esta má vontade provém do apartheid. Foi, na verdade, o que tentei expor, para justificar.
Se eles efectivamente não têm iguais direitos, fazendo como é certo, parte da nação, que deviam esperar senão a revolta?!
Por sua parte, as freiras, sobretudo as pretas, clamam e bradam contra a injustiça.
Exigem condições que não separem as raças, por motivo da cor. Ora, uma vez que o exército representa a lei, há-de estar aí a causa real dessa má vontade.
De facto, o apartheid legal é contra a justiça. Mercê dele, um preto, habilitado qual branco, ganha menos que ele; não pode habitar determinadas zonas; não é admitido como membro do Governo, pois lhe estão vedadas funções políticas; não pode casar com elementos brancos; não pode comprar terras, na área própria dos europeus.
Claro se deixa ver que tal maneira de agir é fundada, exactamente, na desigualdade, perante a lei. É algo semelhante às castas na Índia. Ora, o Sol, quando nasce é para todos.
Os Sul-Africanos defendem-se então, dizendo em alta voz que a sua região não é pluriracial: sim multinacional
O mundo em geral não aceita o dito, alegando, a propósito, que os pretos, afinal, são 80%, dispondo somente de 13% do extenso território
Na minha opinião, os vários Estados, auto-governados ( home lands) têm vantagens, limando colisões que surgiriam ,
naturalmente, da integração. Por outro lado, não é de repente que uma Comunidade se pode inserir noutra diferente.
Tenho para mim que o ponto de vista da África do Sul é
defensável, mas legalmente devem ser abolidas proibições e entraves, que separam as raças. Isso é injusto e clama ao Céu.
Não é cristão! A divisão das terras é também de rever!
Acerca de injustiças, também o mundo é injusto para a África do sul, pois o que se intenta é a sua destruição, a fim de extrair-lhe a imensa riqueza utilizando, ao mesmo tempo, a situação estratégica. Portanto, à África do Sul, com deveres a cumprir(nisso estou de acordo) cabem-lhe também direitos,situando-se entre estes o direito à existência.
Ora, vendo bem as coisas, penso, e não me engano, que o mundo em geral, alinha sempre com os inimigos, intentando somente focar os deveres e negar, em seguida, qualquer direito.
Haja moralidade e acabem de vez os tais cri.térios.
Liceu Linus
1977-09-30
Como tudo o que é matéria ou revela mudanças, a ela inerentes, também Setembro agoniza e passa de vez. Tanta ansiedade e tanto pensar, procurando com desejos apressar o movimento! Para què, se tudo, por certo, corre velozmente?!
Gostaria, sim, que o tempo voasse, para deixar o Sudoeste Africano, ingressando em Portugal.
A data não vem longe, porquanto ao lembrá-la, vejo-a mais perto. O segundo ano vai quase no fim, pois o Reitor anunciou já ontem a data dos exames – no mês de Novembro! Por outro lado, hoje de manhã, veio ter comigo o Secretário da Escola, dizendo, sem rodeios que tirasse as médias às Provas de frequência. Pelo que vejo, tudo fala do fim. Foi aquele o meu trabalho, durante a manhã.
Tinha aulas, mas foram só duas, como ontem sucedeu. Amanhã, vai ser a mesma coisa!
Ocasionou a mudança a presença entre nós dum alto funcionário, residente em Vinduque. Os nossos alunos estão sujeitos a vários testes, a fim de mostrarem o grau de inteligência. Ignoro as razões para tal ocorrência, mas quer-me parecer que é para ficheiros, que interessam ao Governo.
De facto, os mais classificados terão bom ensejo de continuar os seus estudos, com ajuda estranha.
Voltando aos exames, o processo aqui usado é mais que excelente. Quem me dera a mim havê-lo eu tido, quando era estudante! As Provas Orais que aterram o aluno e o colocam em jeito de não mostrar o que sabe, não existem aqui. Há só Escritas e algumas destas fá-las o docente.
Quando vêm de Pretória, são corrigidas pelo professor.
Os do 5ºano fizeram seu exame, no mês de Setembro, mas continuam, para revisões e serviço de Inspecção, que virá, em Outubro. O ano passado não veio cá. Pois a nota final, para o Standard 5 é assim obtida: Oral (chamadas, durante o ano) 40 pontos;1ªEscrita ( carta e composição) 20 e 30, respectivamente; 2ª Escrita, 60 pontos. O total é de 150
Lisboa – Alcântara
1981-01-07
Doze mil escudos! É escandaloso! Não posso entender nem quero admiti-lo! Um ano agrícola, cheio de canseiras, eriçado com espinhos e trabalhos diversos! Nem falo em doenças, que fundo angustiam e logo deprimem! Também ponho de parte o enorme traumatismo, gerado em Angola, devido não só à ruína material senão também ao drama psicológico, originado em crimes e horrendos assassínios.
Vêm dum exílio, criado por Satanás, sem achar protecção nem calor ou estímulo. Por falta de emprego, havendo que sustentar-se um grupo de 5 pessoas, escorraçadas de Angola, com modesto subsídio atribuido a um só, dão-se à cultura da terra, enfermiços e débeis, acabando a ruína em saúde e haveres.
Cultivam batata. Chegada a colheita que não é abundante, esperam animados que haja bom preço. Não querem muito! Apenas o bastante, para subsistir!
Pela arranca da batata, não dá entusiasmo, vender prestesmente!
Apenas 1oo$00 por 15 quilos! Esperam-se meses. Entretanto, devido a factores que não podem evitar, o precioso tubérculo apodrece já e continua a baixar, descendo para 90 o preço duma arroba. A esperança esmorece e com ela a ventura e o gosto de viver!
Postas as coisas no pé indicado, faltando recursos têm que vender pelo preço aleatório. Não há protecção, de carácter oficial.
É necessário morrer à fome… sucumbir à doença! Quase se atiram para o negro desespero! Seis escudos, por quilo! Que é isso, afinal?!
É que a receita mal cobre a despesa e o trabalho pessoal!
É isto, realmente, a orgânica social?! Pode o ser humano, de juízo são, encolher os ombros?! Para onde caminhamos, de olhos bem abertos?!
Para cúmulo de tudo, sobe a 8 escudos o preço do quilo!
Resultado? Enorme prejuízo… um dar em ruína! Doze contos em perdas! E não entram aqui os sacos de podres, que foram rejeitados!
As esferas competentes não olham para isto?! Não há garantias para a gente dos campos?! Onde o estímulo para cultivar?!
Lx.
Alcântara
1981-01-08 O Branco graxista
É vulgar e frequente depararem-se graxistas, aqui e além. Ninguém o estranha e, verdade seja, prestam bons serviços, embora dispensáveis. Com efeito, não era impossível engraxar cada um os seus próprios sapatos. Entretanto, o que hoje me prende é coisa diferente
Notei o caso ali para Santos. Fez-me impressão e dei-me a pensar, durante momentos. É que eu, vivendo em Angola, observei o sentir da gente nativa. Sendo isto assim, estou mais autorizado a formar opinião e a pesar os factos.
O negro em África tinha o Branco por alguém superior, a quem tudo sorria, de nada carecendo. Nesta ordem de ideias, atribuía-lhe dotes e potencialidades que nem sempre existem: inteligência rara, alto prestígio, dinheiro a rodos.
Tudo abundava, no ser privilegiado, que era o Branco. Este conceito generalizara-se, entre os nativos, de modo especial os mais atrasados.
Somente o Branco podia vestir bem, ter carro e serventes, habitar lindas casas, gozar a capricho! Eles, afinal, sem eira nem beira nem dotes de alma que podiam fazer?!
Estas graves razões pesavam no meu espírito, agindo agora noutro sentido, ao ver um Negro ser engraxado por um Branco de Lisboa.
Pareceu-me ironia, em face do passado! Um dentre eles, já engravatado, impante e hirto, bem senhor de si, ufano e limpo, olha sorridente para quem o serve; o outro, ao invés, diligente e curvado, sujo, amarfanhado, põe toda a alma no girar das escovas, que limpam os sapatos e dão novo brilho.
Aquilo que eu vi será humilhante? Não digo tal! Considero apenas a lição da História, se não até o quê de irónico, proporcionado que é pelas viragens do mundo actual.
Aquela imagem ficou na retina e persiste indelével, embora não queira! Não fiz nenhum juízo. Escrevi somente o que vi e senti, fazendo paralelo, entre dois momentos: passado e presente. Bem? Mal?
Diga o leitor e tire ilações
Lx.
Alcântara
1981-o1-09 O Grande Pilar
Refiro só um, mas isso não obsta a que sejam mais. Se tenho preferência, há causa para isso. É natural que o mesmo se dê com outros pilares, que alinham submisso, erguendo ao alto a Ponte Salazar.
Eles, de facto, aí se perfilam, poderosos e firmes, atestando ao mundo o cariz duma época, enquanto revelam os prodígios da técnica. Colossais e altivos, sentem orgulho da sua tarefa. Não os intimidam fortes vendavais ou forças poderosas da Mãe – Natureza.
Os turistas admiram-nos pela sua resistência, figura e tamanho.
É algo de belo que não posso olhar, sem funda emoção.
Entretanto, a grande maravilha que se ostenta aqui, sobre a minha cabeça e o mundo olha, em pasmo e surpresa, é vítima de ultraje qe não têm perdão. Esta ponte gigantesca sustenta-se no ar,
devido aos pilares sobre que assenta. Em razão disso, merecem eles grande atenção, respeito e carinho Entretanto, que vejo eu? O maior desamor, profunda negligência, altivo desprezo! Se não, é ver.
Há dias atrás, passava eu, daqui aSanto Amaro, para colher um dos auto-carros. Por esta razão, fixei uma vez mais, os grandes pilares que olho enternecido, orgulhoso e surpreso. Juntinho à via, ostentam-se dois. Pois foi um deles que me chamou a atenção. ficando eu revoltado, pela acção ignóbil que vi realizar.
Um homem, talvez, ou coisa semelhante, cometeu o arrojo de fazer pipi, a coberto de um, conspurcando a superfície, ultrajando o seu perfil e fazendo como os cães. Faltava apenas alçar a perna!
Fiquei horrorizado, nervoso e sem controlo!
Como explicar tão vil acção?! Perdeu-se no país o senso e o pudor?!
Acabou-se o respeito e, do mesmo passo, a própria dignidade?! Não será isto obra de selvagens?! Fazer do pilar simples urinol?! O que tanto custou e deve acarinhar-se, transformado em retrete e horrenda cloaca! Não é revoltante?!
Aí fica o meu protesto, veemente, sentido!
Lx.
Alcântara
1981-01-10
Era o carro laranja, número 27, que vinha do Areeiro. Ao Saldanha, preparava-me já para nele embarcar, olhando pressuroso, através das janelas, Vinha muita gente, o que é normal e não causa surpresa. Em horas de ponta, o caso agrava-se. Quando não sucede, alivia-se o espírito: podemos sentar-nos. Vindo apinhado, não temos remédio. Vai-se em pé. Não fosse o pior!
O que eu temo a valer são os bamboleios ! Alguns deles têm potência que nos atira a dois metros, ficando nós à deriva, sem comando nem controlo! Podendo encostar- nos , seja onde for, é meia solução.
Basta depois firmar-se a gente, com uma das mãos! Não sendo possível obter o encosto, fica apenas uma boa saída: apoiar as mãos ambas em lugares diferentes. Ainda assim, não chegamos ao ponto de tudo eliminar.
A estas diligências me entregava eu, na tardinha de ontem. Fora ao Saldanha e, nesta zona, demandava transporte, que me levasse ao Restelo. Era o 27, como já foi dito, o que mais convinha.
Embora a custo, logo penetrei, acomodando-me ali, de qualquer maneira, Não havia escolha: era o que viesse! Por esta razão, não pude seguir, como era meu desejo, a viva exposição que fazia um polícia, ao pé do condutor.
Notara apenas que era loquaz e prendia as atenções
À sua roda, havia silêncio. Ganhando calor, mais se entusiasmava! A voz timbrada, a que a sua juventude emprestava energia, ecoava ali dentro como vemos nos templos, quando um pregador empolga a assistência. Eu, então, ouvia, mas não escutava.
Balanços e ruído, espreita de lugares, que ficassem devolutos, incómodos e moléstia faziam divergir a minha atenção. Eis senão quando o grave monólogo se volve em diálogo.
Alterna e alterca uma senhora meia jovem, cuja voz eu distingo, com enorme precisão. É viva e troante a voz de censura, que a nova personagem utiliza no ataque Sacudida e galopante, acalorada e assaz impetuosa, não deixa espaço
que outrem preencha!
Lx,
Alcântara Cont.
1981-01-11
A viragem pronta, inesperada, violenta e rápida, que se opera, no auto-carro chama as atenções, concentrando-se todas na senhora em causa. Parece um trovão ou raio fulminante, que o céu atirasse, com fúria desmedida. Assemelha-se ainda a volumoso rochedo, galgando a vertente de escarpada montanha.
Todos os circunstantes a olham suspensos. É voz de censura, comando, repressão. Não há dique possível que lhe faça oposição.
De vez em quando, ouve-se o polícia, em tom de implorar, rogando permissão, para alegar a sua defesa.
Ela, porém, não dá ocasião, descarregando impiedosa montões de censuras que o jovem polícia tem de aceitar. A princípio, tentava ele, com voz de gozador, humilhar a parceira, utilizando ali alguns ditos jocosos. Mas ela insistia, porfiando sempre e não deixando lugar, para ele se exprimir.
“ O senhor, como polícia, deve ter vergonha! É assim, realmente, que a nossa autoridade moraliza o público?! Sou obrigada a escutar aquilo que não quero e me põe nervosa?! Esperava outra coisa da sua pessoa!”
O jovem polícia vê perfeitamente que ela tem razão, mas finge e não torce, embora a sua voz denuncie bem claro que o terreno lhe falta! Já não é cáustico nem incisivo! Perde a vibração e vai-se o entono. Vencido embora e até humilhado, persiste ainda, já sem calor
“Ofendi alguém?! Julgo que não! A senhora é puritana! Os outros não se queixam! Porquê?!”
-- Já lhe disse: respeite as senhoras que não são obrigadas a ouvir disparates nem escutar gracejos ou ditos chocarreiros! Vim para aqui, a fim de viajar! Paguei o meu bilhete, respeito quem está e não ofendo ninguém!
O senhor, porém, com essas alusões e palavras ambíguas,
vai-me indignando! Não é para mim?! Bem sei que não, mas é o mesmo! Repito ainda: esperava outra coisa da sua pessoa! Estou indignada, pela falta de pundenor, baixeza de sentimentos e vileza de expressões! Não é isso, realmente, o que honra um português e muito
menos as pobres senhoras que estão ouvindo!”
Lx.
Alcântara
1981-01-12 Pedinte Branco em Santo Amaro
Falar num assunto, ignorando pormenores, é algo arriscado. Ideal seria, pois, conhecê-lo a fundo para logo espraiar-me e dizer o que sinto. Não obstante o facto, ouso tratá-lo, embora com reservas.
Quando vejo criaturas que julgo não precisam de mendigar sustento, fico logo em brasas! Tendo saúde, por que não trabalham?!
Aqui na cidade, pelo menos agora, é fácil em extremo arranjar ocupação. Não ouço as gentes queixar-se?! “Nem por dinheiro me fazem as coisas!
Que significam, pois, estas palavras? Há inúmeros trabalhos, faltando mãos para fazê-los! Sendo isto assim, não existe razão para mendigar, em caso de saúde ou idade razoável. O que sucede, porém, é antes o contrário. Preferem os tais a doce vadiagem… o nada fazer!
Apraz-lhes a vida sem inquietação, na extrema negligência. Em meios como este, onde abundam as gentes, é sempre facílimo obter alguns cobres. Acontece, no entanto, que as próprias crianças ganham maus hábitos, dando-se como outros à mendicidade. Ora esta chaga é assim perniciosa!
Deixemos, por agora, os casos estranhos, focando somente o que eu observei, em Santo Amaro.
Trata-se dum velhote, ainda sadio, que pede sorrateiro e parece feliz.
Desloca-se pronto e age com perícia, ostentando nos modos, um ar ainda jovem. Escorreito e lépido, entranha-se nos grupos, onde faz a recolha. É baixo e magro, surgindo num lugar para logo ser visto, noutro diferente. Actua com denodo e toma bem a sério o mister que desempenha.
Tudo ia assim, quando o vejo abeirar-se dum preto mal vestido. Foi esta cena que me chamou a atenção. Olhando alarmado, fixo por algum tempo as duas personagens, tendo para mim que nada obteria, em suas pretensões. Pois enganei-me O preto modesto, senhor dos seus actos e com gravidade, puxa dos pertences e dá-lhe uma moeda!
Quem viveu, no Ultramar e viu claramente o que ali se passava, fica estupefacto, perante casos destes!
Lx.
Alcântara
1981-01-13 Cont
Vivi no Estado de Angola, por mais de 3 anos, Foi pouco, na verdade, mas já suficiente para ter opinião, sobre aspectos diversos. No conceito dos pretos, era o Branco, sem dúvida, um ser inteligente, que vivia na abastança e dispunha de bens que tudo permitiam. Jamais a penúria batia à sua porta.
Ele, pobre indígena, estava condenado: nem podia nem sabia! Tinha de resignar-se à triste situação, em que fora lançado pelo nascimento. O Branco vestia à rica, tinha boa casa, comia e bebia!
Era assim mesmo! A própria cor, habilitações e a mesma esperteza vinham garantir-lhe tal posição! Gastava à grande e banqueteava-se?
Vestia com requinte? Passeava e consumia? Fumava, de leve, o cigarro apetecido, lançando no chão a sua maior parte?
O Branco, sim, podia fazê-lo. Tivesse embora as suas carências, ele, que era preto, não acreditava. Tudo era esplêndido, sempre magnífico! Ser branco, afinal. era a mesma coisa que ser feliz, rico e venturoso!
Conceito errado? Quantas vezes sucedia! Nem tudo o que luz é ouro! As aparências iludem! A maior parte dos Brancos, posso dizer até, a grande maioria, quantos sacrifícios e enormes canseiras, para chegarem um dia à grande fartura! E, mesmo assim, não havia extravagâncias, vindo a ser causa de grande infelicidade, para uns e para outros!
Que foi o que lhe disse a propaganda infame, contra Portugal, ao longo de 13 anos?! E eles acreditaram. Hoje, não pensam já, de igual maneira! A triste experiência é que veio esclarecê-los! É tarde!
Muitíssimo tarde!
Enfim, que esta lição lhes seja proveitosa, em ordem ao futuro, uma vez que o passado ruiu estrondoso, lançando nos escombros vítimas sem fim!
Lx.
Alcântara
1981-01-14 Cruz Vermelha
Há coisa de um mês, fomos ali, para inquirir. Podia acontecer, julgava eu, que dessem ajuda a lares em crise. Na verdade, constava o facto, de modo especial, sendo retornados.
O agregado da mana Augusta vive, há 5 anos, de módico subsídio, concedido apenas a um, dentre eles, O marido obtinha, de início, 4200$00. Recebendo os dois, como era de justiça, teriam que bastasse,
para 5 pessoas, embora limitassem a despesa a fazer.
No caso referido, passaram a viver em regime de miséria.
Subalimentados e cheios de doenças, vieram para Lisboa, a fim de tratar-se. Nestas circunstâncias, precisam de auxílio.
Fui então com a mana à Cruz Vermelha. Chegados lá, forneceram dados, limitando-se a dizer que pedíssemos impressos, donde constaria o que tínhamos em vista.
Lançámos, pois, o número de pessoas e suas
carências. Os nossos dizeres ficaram lá, aguardando nós convite, para futuro encontro. Mandaram um postal, convidando a voltar, no dia 14. É hoje, precisamente!
Às 10 em ponto, estaremos presentes, a fim de obter o que for disponível. Estou ansioso por saber o efeito, pois se trata realmente dum acto meritório. Contam de alguns que alegaram razões e fingiram motivos, a fim de conseguir o que não devia ser. Isto não ocorre, de modo nenhum, com a minha família. É um acto de justiça que tais organismos prestem auxílio.
Brada forte no Céu haver neste mundo tanta riqueza, para ser utlizada somente por alguns! Pois se eles trabalharam, durante longos anos, para conseguir os parcos bens, têm direito a ser ajudados
Lx.
Alcântara \ 1981-01-15
A Nossa Coelha
Veio para Belém, há poucas semanas. Não vive sozinha, bem entendido! Tem um amigo que partlha com ela sustos e couves!
A princípio, estranhava tudo: lugares, objectos e até as pessoas.
Ao mínimo ruído, fosse apenas vento, logo se internavam. Abeirando-se alguém, isso era o cúmulo! Não podíamos fixá-los, ainda que tentássemos. Isto, afinal, causava apreensão .
Era preciso olharmos por eles; ver se comiam e tomar providências! Entretanto, não iam na cantiga! Mais afeitos ao local, foram-se ajeitando, para assumir, de pronto, maneiras diferentes.
Ganhando coragem e certa afoiteza, lá se convenceram de que ninguém os ia molestar. Por esta razão, toca de olhar e chegar-se à frente.
Apreciando então o belo repasto, ganharam mais ânimo. Agora, o seu olhar é já confiado, amoroso e terno, à vista de alguém. É gostoso observá-los, ao comer ou beber. Podendo sair, vêm logo em tropel, demandando átrio, em frente da coelheira. Uma vez aqui, dão azo a seus jogos, corridas e saltos. Abeiram-se da rede e sentem prazer, se alguém os visita.
Vendo-os assim, enterneço-me logo, antevendo com júbilo o futuro do seu lar. É que, na verdade, a coelha anda ‘cheia’. Ela pressente-o. O volume do corpo revela-o também. Quem trata deles, os limpa e distrai é o nosso Isaías. Já o conhecem e gostam de o ver! Não lhes dá ele couves excelentes!
Assim corre a vida, na coelheira sombria, no termo dum quintal que o Sol enjeitou!
Lx.
Alcântara
1981-01-16 Cont.
Por ser lugar frio, à falta de palha, levámos um pano, que servisse de lastro, para agasalhar. Com grande surpresa e espanto igual, verificámos isto: a dita coelha afasta, porfiada, o que tínhamos lá posto. Recusa, decidida, os panos de agasalho, repelindo-os, sem demora
Alarmados, ante o caso, fizemos então perguntas: porquê, afinal?! Não era melhor?! Forte mania!
A verdade, porém, é que ela os rejeita! Panos é que não! Faria bom rosto à palha de centeio? E onde encontrá-la?! O problema era esse! Procurou-se já, mas foi tudo em vão!
Ora, a coelhinha já pensa, devidamente, no porvir de seus filhos! Quem lhe disse a ela que vai ser mãe? Quem lhe fez notar que é preciso um abrigo, sossegado e mais quente?! Ignoro a resposta! A verdade, porém, é que ela o adivinha. Isto se infere daquelas diligências, a que agora se dá. Que maravilha! Como é grande, excelente e portentoso o Deus-Providência que tudo criou, dando a todos os seres o instinto necessário, para se bastarem!
Vou narrar um facto, há dias ocorrido. A dita coelhinha não tem experiência. É muito jovem. Vai agora ser mãe, pela primeira vez.
Entretanto, preocupa-se igualmente, como se ela, afinal, tivesse experiência, prática já longa e muito saber! Se não, vejamos:
Plantou a mana Agusta as couves-galegas que lhe tinham enviado.
Madrugara até, a fim de regá-las. Escolhera para tanto as bermas das leiras, iniciando assim o plantio da horta. Vai se não quando, aparecem roídas, causando em nós funda emoção Que será, afinal?! As portas de fora estavam fechadas!
Entretanto, as mesmas pegadas
revelavam, sem dúvida, a sua presença! Havia buracos, aqui e além, sendo maiores no centro do quintal.
Lx.
Alcântara
1981-01-17 Cont .
Admirável senso que norteia os animais! Como Deus é grande, poderoso e belo em tudo o que faz! Aqueles buracos que tanto indignavam, por ser praticados, em horta recente, eram afinal exigências prementes da maternidade. Tentara lurar, em sítios diversos: a princípio, em frente do muro; em seguida, no centro do quintal, onde o terreno é já mais brando.
Que fazia a coelhinha, agindo assim?! Preparava o lar, para os filhos nascituros. Aproximava-se o dia! Nem dávamos conta! Pelo menos, dava a impressão de que levava mais tempo! Entretanto, o que nós ignorávamos, sabia-o ela. Por isso, esmerava-se em extremo, por dar abrigo a seus filhinhos.
Quem tinha razão? Ela ou nós? Como vimos em breve, cheios de espanto e funda emoção, era ela, na verdade, que em suas diligências, estava em bom caminho. Pensando o contrário, fomos corrê-la, proferindo palavras de forte vibração.
Estúpida coelha, o que foste fazer?! Isto são obras?! É coisa defensável?!
O que precisavas era uma tunda!
Ela ouvia, fugindo receosa, a fim de internar-se na húmida jazida. Como ela a detesta! Poderão seus filhos aguentar o frio?! Não vão eles, por certo, morrer ali?! Em sombra perpétua, no rigor do Inverno, queria poupá-los à triste sorte! Bom. Isto passou! Andava em mente arranjar-lhe palha, a fim de ajudá-la.
Com pêlo de seu corpo, ali ajeitado, não era difícil obter conforto para os filhos a nascer! Dia após dia, olhava curioso o volume do ventre, parecendo remoto o parto desejado. Este é que foi o nosso grande erro! O macho continuava, partilhando a vida com a sua companheira. Isto ocasiona a falta de experiência!
Volvidos 4 dias, em conversa amigável, digo à mana Agusta: vou ver o casalinho! Há dias que não visito a nossa coelheira!
Meu dito, meu feito! Decido pronto, encaminhando-me logo para o corredor, a fim de assistir à grande tragédia.
Lx.
Alcântara
1981-01-18 Cont.
Sem previsão, julgando muito longe tal desenlace, ficámos sem fala, ante o negro quadro. A mana Agusta chegara primeiro, sendo ela
que viu, com fundo horror, o quadro lancinante, Ao notar seu espanto e as maneiras aflitivas, não logrei aperceber-me do que tinha ocorrido.
Neste comenos, dou um passo mais, apurando a vista: jaziam lastimosos 6 corpos frios, Eram pequeninos, roxos, desditosos!
No cimento gelado, sem calor nem leite, assim desamparados! Tocou-me a cena, ficando pensativo! Consternado, impotente, nem sequer me lembrei de que podiam talvez estar ainda vivos! Entretanto, se não agi, a minha alma gemeu!
A coelha-mãe andava espavorida, farejando animosa os corpitos jacentes e dando focinhadas, como a repelir! O coelho então passava indiferente, pisando aqueles vultos, à mercê de piedade!
Antevi, nessa hora, que não havia remédio Tivéssemos nós separado o coelho, em tempo devido, e posto lá dentro, palha de centeio! Seria diferente, mas assim!
Um dos infelizes estava rebentado e vertia sangue! No piso superior, avistámos outro, o que já perfazia o número 7.
Irresolutos e sem decisão, íamos cismando, junto dos cadáveres.
Um campo de batalha, juncado de infelizes! Um cemitério a nossa coelheira! Nisto, vejo mexer a pernita roxa dum corpo jacente. Alto!
Aquele está vivo! Admitimos logo que todos os outros estivessem também nas mesmas condições! Acabados de nascer?!
Com certeza, mas logo repelidos pela família. Toca de apanha-los, aquecendo-os na mão. Cinco dentre eles
começam a mover-se, abrindo as boquitas e soltando queixumes.
Vai a mãe aceitá-los? Uma vez aquecidos, separámos o casal, pondo os filhitos dentro do cântaro. A mãe, no entanto, não prestou atenção, deixando-os morrer, à fome e ao frio.
Lx.
Ajcântara……….?
1981-01-19 Por um somente vem o mal-estar
Eu e a mana Agusta fomos, há pouco, a lugares de esperança, o que tem complemento amanhã, pelas 11. Deste caso não posso falar, uma vez que é futuro: do outro, porém, já posso dizer que foi decepcionante
e muito amargo.
Trata-se agora da Cruz Vermelha. Quanto mais sobe a esperança de alguém, maior o trambolhão. Sendo como é, na própria capital,
Afigura-se o caso em melhores perspectivas. A minha família seria ajudada, em questão de vestuário, alimento e cobertores.
Entretanto, não foi tal como esperava. Isto, afinal, por duas razões. Melhor diria, três: 1. má ocasião, em que havia somente rebotalho arredado; 2. falta de alguém que tomasse a peito o caso tratado; 3. má vontade no sujeito que recebia as pessoas. Este indignou-me, pelas suas maneiras.
Bastaria, na verdade, tal pormenor, para virmos descontentes. Embora tudo o mais fosse à maravlha. Efectivamente, aquele ar de empáfia, rosto carrancudo e modos agressivos, tornam o cavalheiro altamente indesejável. Quem ali vai precisa de auxílio e o seu coração estremece no peito. Leva nos ombros o fardo incomportável da negra fatalidade
A amargura é, tantas vezes, o pão de cada hora: marido e filhos com enormes carências, por motivos alheios e inexplicáveis!
Trabalhar duro, uma vida inteira, granjeando o pão que serviria, ao longo da velhice e daria conforto ao grupo familiar… para tudo sumir-se na voragem do tempo!
Devido a razões que todos conhecem, foi pelos ares todo o granjeio!
Esta situação há-de ser estudada e muito acarinhada!
O citado cavalheiro é um homem duro, que vem agravar os males alheios!
Lx.
Alcântara
1981-01-20 Cont.
Ao chegar ali, entestamos logo com o sujeito que nem olho levanta! Na selva africana, onde já vivi, nunca eu vira, se bem me lembro, um caso parecido! As mesmas feras, bem a seu modo, são mais afáveis e muito amigas, quando em presença. O instinto gregário, fazendo-lhes ver que é sempre eficaz a boa união, leva-as a unir-se, prestando auxílio.
Surge o caçador, manso e arguto, de arma aperrada? Logo uma delas o chamado ‘guia’, as põe alerta, para se esconderem, fugindo ao perigo. Presenciei, ao vivo. cenas desta ordem, com muita frequência. Ora, foi isto que me trouxe amargura.
Serão os homens, realmente, empedernidos e até cruéis, acima das feras?!
Chegados que fomos à chamada Recepção, emerge um cavalheiro, que põe estremeções no peito das gentes! Mal-humorado, olhos no chão, palavras ferinas, pergunta, seco: O nome! Fá-lo com entono, e a voz empolada sai-lhe das entranhas, escaldante, viperina.
Eu estremeço e tento dominar-me. Não posso admitir tamanha grosseria. Que modos são aqueles, agravando situações, já de si tãoamargas?! Todo eu fervo ali! Aquilo, realmente, precisa correctivo!
Endireitar o mundo inteiro é coisa que não posso! Um homem, porém, não o julgo impossível! Ninguém reagiu, até ao presente, dando-lhe eu motivo para ser ferino e bastante mal criado?! Pois irá saber que nem sempre é grato verificar os efeitos do seu destempero!
Diz em seguida para a mana Agusta: “ Entre aí para dentro!”
As suas palavras são agora de chumbo: pesadas e amaras!
Eu, então, como ia acompanhá-la, ensaio-me logo para ir também.
Começa o duelo! Irrompe o sujeito, em ditos selvagens: “Saia daí, que não pode entrar!”
Estaciono breve e aceito os urros do homem selvagem, Tenha modos, cavalheiro, que eu não faço mal! “ São leis”
Está bem, mas seja educado!
Remata ele, um pouco mais brando: “ Espere na rua”
Lx.
Alcântara
1981-01-21 A caminho da Caritas
Padre José Lobo, natural da Madeira, e velho amigo dos tempos de Pinhel, havia dado instruções: “ Apeia-se ao Chile, recua um pouco,
demandando em seguida a igreja de Arroios. Avistará logo algumas arcadas, vendo prestes alguém que possa elucidá-lo.
Antes de mais, pergunte, já se vê, pela menina Maria Luísa.
Informado então entra no ascensor e dirige-se ao local.
Conforme as instruções, assim procedi. Ao chegar lá, vem ao meu encontro uma menina gentil, a fim de inquirir.
-- Sou um velho amigo de Padre Lobo e pretendo falar com a menina Maria Luísa. Há saudações, apresentando, a mana Agusta.
-- É o senhor Padre que veio de África?
-- Pois sou.
-- Aguarde um momento, que eu chamo já. Queiram sentar-se!
Aproveito eu logo, que as pernas refilam. Demais, andava constipado:
Mal-estar em todo o corpo, dor na cabeça! Faltava-me tudo, mas tinha de ser! Era de facto, um dia especial, na dura existência dos retornados!
Devia aproveitar. A fé abundava. Havia a certeza de que tudo iria bem.
As pessoas bondosas, de generoso espírito não foram desterradas!
Uma vez interrogado, esperando a encarregada, surge pela frente a anunciada menina, Maria Luísa, com ar gentil e vivo desejo de bem-fazer! Há cumprimentos. Após isto, convida-nos ela a visitar a igreja e suas dependências, que atestam o valor e forte dinamismo do Padre José de Freitas, pároco de Arroios.
Lx.
Alcântara
1981-01.22
Após a visita, breve e de enlevo, seguimos para o templo. Verdadeiro colosso! Catorze mil contos foi o seu custo! Há 6 anos apenas! Um espaço largo e desafogado, revestindo condições para os fiéis orarem! Amplo e majestoso, em linhas modernas, sóbrias e firmes, convida-nos logo a pensar noutro mundo : um mundo pacífico de amor e bem-estar, ventura e perdão.
“Anda por ali pairando talvez o espírito de Deus! Belo edifício, vinca a propósito, a guia que nos leva.
Embora tão grande, enche-se e transborda, em dias de oração! Note ainda, se agrada fazê-lo, as belas condições de natureza acústica”.
Com vários andares e potentes ascensores, ostenta-se ao lado um belo prédio. Como o ser humano tem corpo e alma, Jesus encarnou, para resgatá-los. Cuidar só da alma é obra imperfeita, sempre inacabada. Impossível, na verdade, separar alguém estas duas realidades, ligadas entre si por elos fortíssimos! Nem só corpo, seria
animalesco; nem só alma, que se agita e opera, dentro da matéria e precisa dela.
Por esta razão, vemos o templo que atende ao espírito e o leva prestes para as alturas; logo em seguida, quanto seja necessário, para corpos em penúria.
Começa, pois, a enumeração de quadras sem fim: teatro e cinema;
Bar e cozinha; sala de repasto; Liceu gratuito, abrangendo o 5º ano;
sala de festas; residência dos Padres; escritórios diversos e fortes armazéns.
A nossa guia, amável em extremo, fornece pormenores, acerca de tudo. Põe a sua alma em tudo o que diz, faz e observa.
Nota-se claro haver ali dentro algo subtil que não existe cá fora: ideal de bem servir a Deus e ao próximo.
Lx.
Alcântara
1981-o1- 23 S. Jorge de Arroios
Assim terminou a visita à igreja e obras anexas, sendo elucidados pela menina gentil. Ficava para sempre gravada no espírito esta acçãobeneficente, gratuita, humanitária. Só tenho grande pena das graves circunstâncias, em que eu me encontrava, naquele dia 20: constipado e miserando!
Quanto havia no corpo tudo me doía! Cabeça e pernas, de modo especial! Desta maneira, andava arrastado, quase sempre à força, pois não suportava qualquer fadiga! Entretanto, para ser gentil e menos desairoso, fiz das tripas coração e lá fui aguentando!
Interiormente, porém, sentia-me feliz, por ver gentileza, distinção e aprumo em todo o pessoal! Isto assim, calou bem fundo, no meu coração!
Admira o facto? É caso para tanto, mercê do contraste, flagrante, inesperado, entre o que vejo, aí por fora e o que vi lá dentro! Qualquer realidade como luz diamantina, a opor-se à treva, que nos circunda!
Num tempo de egoísmo, refalsado e hipócrita, assim duro e cruel, faz imenso bem imergir num ambiente, com alto ideal: servir a todos.
À treva densa opõe-se breve a luz refulgente; ao egoísmo feroz, a meiga caridade; à carranca animal , o mavioso sorrir; à crua avareza, a liberalidade; à luxúria, a castidade; à ira, a paciência; à gula, a temperança; à inveja, a doação; à preguiça, a diligência.
S. Jorge de Arroios é um mundo novo, que deve ser conhecido, amado e prezado, pela obra cristã social e humanitária, que está realizando. Todo o serviço é prestado grátis.
Finalmente, chegámos, depois ao Grande Armazém, Verdadeiro assombro! Quantos retornados, ao longo de 5 anos, acharam ali agasalho e pão! Fardos enormes de roupa e vestuário se encontram empilhados, enquanto o balcão ostenta e oferece modelos variados que levam a luz a almas em trevas.
Lx.
Alcântara.
1981-01-24 Cont.
Perante a magnitude, variedade e singeleza do que vemos e ouvimos, acode uma pergunta que faço curioso à menina gentil: donde vem apoio de carácter material, para esta obra assim portentosa?
É talvez o Estado?
-- Não, corta ela, no preciso momento, são os bons católicos de S. Jorge de Arroios. Eles, na verdade é que são generosos! À sua caridade e compreensão é que tudo se deve!
Formoso exemplo. A ser imitado – remato eu prestes!
Bom! Intentando avançar, ainda mais um pouco, lanço receoso nova pergunta: já faço ideia de que há bons católicos nesta paróquia! Aí nacidade pode haver igual, mas não melhor! Entretanto, houve mais alguém que foi alma e suporte para este conjunto!
Sim, com certeza! O primeiro lugar como inspirador e grande animador cabe decerto ao pároco. O seu nome todo é José de Freitas.
Em seguida, um grupo devotado, que se ofereceu, harto generoso, a fim de ajudar, muito de perto, colaborando. Não podemos esquecer os outros sacerdotes que trabalham aqui.
Todos apreciam, tenho para mim, o Prior de Arroios?
-- Sem dúvida que sim. É um padre humano, compreensivo e muito generoso. Orienta, sim, mas deixa caminho à nossa iniciativa. Não intenta sobrepor-se nem substituir-nos!
É, de facto, excelente! Por este modo, trabalhamos de gosto.
Isto e o mais ouvi eu, com agrado! A mana Agusta ficou deslumbrada! Como isto é belo, no século XX! No meio do egoísmo que alastra e corrompe, surgem baluartes, como este de Arroios, onde é impossível que ele penetre!
Lx.
Alcântara
1981-01-25
Ao bom Amigo, Padre José de Freitas, pároco de Arroios, criador duma obra, que a todos se impõe, falando bem alto, em tempo de egoísmo.
Bom Colega e amigo, Padre José de Freitas:
Tem esta por fim agradecer e louvar, tributando homenagem e fazendo justiça. Visitei há pouco S .Jorge de Arroios, essa igreja falante, que atesta ao mundo a existência nela da excelsa caridade.
Por vezes, em andanças que fiz, através do planeta, julguei-a desterrada, por aqui e por além, mas graças a Deus, há grandes testemunhos a falar-nos dela.
Junto a minha irmã, que é retornada e veio desse mundo que o diabo perverteu – a África portentosa e cheia de mistério – apanhei em cheio o embate fortíssimo da obra maravilhosa, pelo que tem de cristão, grandioso e chocante!
Bela manhã, essa de 20, Que grande surpresa! Lisboa, afinal, tem coisas excelentes, que ultrapassam o ouro e as pedras preciosas!
Corações generosos, devotados e amigos! Espíritos nobres, com lucidez e altos projectos! O seu coração bem como o espírito retratam-se aí, prezado amigo, com brilho sem igual!
Os meus parabéns, pelo templo soberbo, que ergueu ao Senhor e pela obra grandiosa, social, humana e cristã, agregada ao templo.
Bom amigo: não é com bem-haja que cerro esta carta: sim, com promessa de orações fervorosas ao Senhor de tudo, para que Ele fecunde o nobre apostolado e lhe dê energia, valor e constância, para levar a cabo outros projectos de igual natureza!
Lx.
Alcântara
1981-01-26 Licença das Ruas
Faz imenso nojo e causa revolta o cenário abjecto, que oferece a rua. Se atendo a isso, não faço destrinça entre cães e pessoas. Refiro-me, é claro, a certos jovens, que abdicam do senso, para levar a existência ao sabor dos sentidos. Simbolicamente, faz-se tudo à vista, com dano acentuado para a gente pudica, sensata e honesta.
Que direi então, se falo em crianças?!
As altas esferas é que devem impor-se, fazendo respeitar a decência nos costumes. É que, por este andar, esbarramos num porvir, que só traz drogados, sexuais e inúteis.
Para que servirão elementos do género?! Não é isto paganismo, corrupção e vileza?! Sociedades assim, que baniram o respeito, já devido a si próprias já devido aos outros, estão para afundar-se, não deixando memória. Faz-me tanta pena que tudo corra assim! Entretanto, não fico em lamentos!
Aqui deixo o meu protesto, veemente e sacudido, contra essas liberdades, que não podem estadiar-se. Acabou o impudor?! Já não tem barreiras a vileza, o indecoro?| Entrou em demência a cabeça de alguns jovens?!
Se foi assim, é preciso, desde já, metê-los na ordem, para não intoxicarem o resto da sociedade, que prima em dignidade, honra e vergonha! Pertencemos, de facto, a um povo excelente, que já foi cristão, honesto, apostólico.
Não se trata de beatério e muito menos de puro fanatismo; sim, de honradez, pundenor e dignidade.
Fora, pois, e já, com cenas do género que, a terem de ocorrer, devem realizar-se no escuro das alcovas! Ao menos assim não contaminam os que têm vergonha!
Lx.
Alcântara
1981-01-27 Barbeiros
Quase tive dó! Não é crível? Pois a verdade fala por si! Quem pode negá-la?! Se eu, em pessoa fui sacudido por forte abalo!
Comoção e tremuras ou lá o que fosse ninguém o desdiga, que lhe chamo atrevido e sem coração!
O caso passou-se, onde havia muita gente, para garanti-lo e dar-lhe apoio: Caixa G. de Depósitos, sita em Alcântara. Portanto, não fui só eu a dar testemunho!
Quantos e quantos, nesse dia e nos outros, não viram o que eu vi!
Terão eles sentido o que eu próprio vivi?! Já será mais difícil garantir este dado mas, se têm coração, brando e piedoso, há-de ter-lhes sucedido a mesma coisa. Vamos por miúdos, sendo mais claros.
Ainda recentemente, juntei economias (bem poucas são elas) e fui depositá-las, em sítio seguro. Todos fazem assim. Não foi, para imitar, que seria simiesco, mas tão-somente, para andar tranquilo, numa época destas!
Lx.
Alcântara
1981-01- 28 Cont.
Nada como ir sem dinheiro! Pode haver apertões, mas roubos é que não! Lá me dirigi, confiado e resoluto. Uma vez no interior, olho para as gentes, que ali trabalham e noto, com surpresa, que todos são barbudos. Lindas barbas, sem dúvida! Asseadas, claro, pretas e sedosas! Quanto a isso, tudo muito bem! Ah! Agora me lembro: algumas pessoas não tinham barba! Eram as senhoras!
Peço desculpa! Se algum cavalheiro a não tinha também, rogo me excuse desta ousadia! Uma vez assim, quedei-me aparvalhado, olhando sem despego. Não fiz em vão, que os olhos me doíam! Não haja descrença nem falta de fé no que eu revelo!
Com sinceridade: um dos senhores que fazia excepção, deixou crescer a barba, Ora bem. Como antes a não tinha, vi-me e desejei-me, para ter a certeza. Mesmo assim, não estou seguro, seja embora excelente pessoa!
Pelo que já disse, fica bem a nu quanto vai de transtorno, incerteza e angústia, em certos lugares. Vejamos ainda um caso mais.
O facto em causa deu-se comigo. Admitamos coisa igual, em centenas de pessoas, que dia-a-dia, entram na Caixa. Aguardemos a sequência, no próximo Diário.
Lx.
Alcântara
1981-01-29 Cont
É grande a azáfama e, às vezes também a perturbação! Montões de pesquisas! Milhares de incertezas! Que vamos fazer, una vez em apuros? Gasta-se o tempo, mói-se a paciência, não sei até se o gosto da vida correrá seu perigo!
Tudo isto, afinal, por causa das barbas! É que elas, na verdade, são façanhudas, espessas e negras, densas e longas!
Perde-se um homem, no meio de labirintos de tal natureza!
Para dizermos a outrem:” identifique-se já, por grande favor”Serão favoráveis ao nosso pedido? Haveria reacções, temperadas em vinagre! Nunca sabemos o que esvurma célere o peito humano!
Assim acontece, no meio de barbudos! Pena me faz, por mim e por outrem! É que, por entre os barbudos muito boa gente podemos encontrar! Mas distingui-los?! Não foi o meu caso?!
Nestes apuros, acode-me ao espírito novo pensamento… Não era só eu e tantos pacientes que estávamos sofrendo. De quem, nessa hora, havia de lembrar-me? Ninguém adivinha? Então aí vai. Não quero que se aleijem, fazendo pesquisas! São os barbeiros que tenho em mente! Vejam bem. Corre já perigo a sua existência! Pois não é?! Uma classe honrada que tanto pêlo cortou! Alguns arrancou-os!
Um mister acreditado que, ao longo dos séculos, tanta barba despovoou! Em nossos dias, dum momento para o outro, só por mero capricho, vê-se em apuros! Não arranja clientes! Ninguém já procura os infelizes barbeiros!
Castigo provável de arrancarem a barba, em vez de a cortar?
Não sei, não! A verdade incontestável é que a sua extinção vai-se delineando! Que fará o mundo, sem estes elementos, sempre ali à espreita, cheios de bom humor?!
Lx.
Alcântara
1981-2-01
O rifão é exacto e aplica-se a rigor. Entretanto, deparam-se, às vezes, belas excepções. Nem isso admira! Tenho presente aqueloutra máxima: Não há regra sem excepção. Foi o caso de manhã.
Descia da igreja, rumo ao Calvário, quando sucedeu o que muito admirei. Vindo um tanto alheado e entregue a pensamentos, feriu-me ao vivo um quadro patente.
Em lugar adequado, batido pelo Sol, estadeava um homem os seus apetrechos, na própria calçada, onde havia um pano.
De quem se trata? É engraxador o cavalheiro visado. Sentado numa caixa, aguardava contente que alguém desse as ordens. Estava sem trabalho. Se não viesse com pressa, teria desejo de fazer-lhe a vontade, levando bem-estar a seu coração.
Tudo ali, convidava a ficar: engraxador, com figura distinta, paciente e amável; os seus apetrechos, dispostos em ordem, com grande simetria; o lugar escolhido, bem ensoalhado e cheio de luz; as fachadas vizinhas a servir de encosto.
Que pena me fez haver de afastar-me, sem graxa nos botins! Para outra vez, isso há- de ser!
Até aqui, pouco mais de usual! Aquilo que realmente chamou a atenção, foram os sapatos, que o homem calçava. Imundos talvez e já coçados? Avessos a graxa e em mísero estado? Aqui se encontra o erro!
Bem tratadinhos e até reluzentes! Parecia espelho de fino cristal, onde os raios solares vinham concentrar-se, para formar, em seguida, ondas de luz, fogo e ouro. Aquilo só visto!
Ficou assim desmentido o célebre aforismo:”Em casa de ferreiro,
espeto de pau”
São estas surpresas fonte de interesse e causa de alegria, pois quebram, de momento, o que sempre nos envolve. Fora tudo assim, apresentava a existência motivos de interesse, emprestando à vida relevo e cor, graça e harmonia!
Alcântara……..?
1981-02-02
Não sucedera, ao longo da vida. Ainda agora, com alta surpresa e dor no meu peito, não sou objecto da mínima atenção, devida aos anos.
Gaiatos sentados, em idas e vindas, já no eléctrico, no auto-carro, ali se mantêm, sem um vislumbre de amor e civismo.
No meu tempo de rapaz, o caso era outro. Cedíamos o banco às pessoas mais velhas. Um ponto de honra! Quem o não fizesse era apontado e repreendido.
Hoje, infelizmente, não ligam a isso, ainda que se trate de casos melindrosos que surgem, por vezes, nos meios de transporte: gravidez notória, extrema velhice, doenças várias, aleijões terríveis e outros casos mais. Fazem que não vêem. Chama-se egoísmo a este desamor que afecta os espiritos. Sinais dos tempos que muito verbero, lamento e detesto! É falta de senso, carência grave de humanidade, sintoma evidente de baixos sentimentos. Para onde é que foi a rica gentileza?
Onde mora a piedade? E aquilo que chamamos caridade cristã?! O homem comodista fez para ele um segundo Evangelho, para ser, na verdade, bem mais lisonjeiro, cómodo e útil que o do Mestre Divino.
Cegueira completa!
Há dias, porém, fiquei surpreendido! Em viaturas diferentes, cederam-me o lugar! Res mirabilis! Fiquei desvanecido e muito satisfeito!
Livraram-me, assim, de balanços molestos, alguns dos quais bastante Incómodos!
Alcântara
1981-02-03 Fumar e cuspir, no Campo Sagrado
Salas Mortuárias
Quem vela um cadáver, seja a que hora for, ou vai acompanhá-lo à jazida final, tem por objectivo honrar a pessoa, prestar-lhe homenagem e rezar ao Senhor pela sua ventura. Tal posição revela aderência a grandes verdades, como sejam, por exemplo: alma imortal e existência de Deus, que um dia vai julgar as nossas acções.
Esta séria atitude, ante o nobre destino, que nos espera, além-campa, exige respeito, muita decência e grande compostura.
Agora pergunto; respeitará o finado quem puxa do cigarro, junto do cadáver? E aquele que vai cuspindo, ao longo das campas?
Fumar, afinal. é gozar a existência e dar-se em pleno grau a extravagâncias danosas, confiar-se à droga! Precisamente o contrário do que pedem os mortos. Estes, a rigor, para serem honrados e verem suas penas bastante aliviadas, no lugar da expiação, requerem sacrifícios: deleites, para longe! Oração é que vale; mortificação; esmola e penitência!
É, pois, condenável a atitude assumida por certos cavalheiros e até donzelas, que fumam à vontade, alheios à cena, quando velam cadáveres ou vão às jazidas. Essa atitude é inexplicável e inadmissível!
Nem cristã nem humana! Abuso autêntico! Alienação! Demais, o cemitério é lugar de reflexão, pois jazem ali os corpos de irmãos!
As sepulturas têm bênção própria, o que torna o lugar ainda mais respeitável, Seja, pois, extirpado esse abuso em voga!
Alcântara
1981-02-04
Foi há pouco tempo, aqui mesmo em Alcântara. Certa dama, ainda conservada, entra pressurosa, na sacristia, inquirindo miudamente, acerca de tudo. Pessoas e objectos, lugares e o mais, nada escapava à longa devassa. Fez-me aquilo espécie, julgando outra coisa.
Alguém suspeito?! Há tantos assaltos, pelo mundo além! Cenas tremendas, em que a pilhagem vai de mãos dadas com a mesma rapina! Seria talvez um caso igual, em franco preparo? Quem sabia dizê-lo?! Verdadeira incógnita a dita senhora! No entanto, pelo trajar não desmerecia! Reinava o equilíbrio, simetria e bom gosto!
Olho-a, pois, com maior atenção, indo prestesmente ao seu encontro.
Posso ajudá-la minha senhora?
-- Não sei! O que eu procuro já o não encontro, ao menos em parte. Poderá, talvez, dar informações!...
-- Com todo o prazer, caso seja possível!
-- Gostava de saudar quem já não vejo aqui: o Prior do tempo e o sacristão, ainda em serviço, quando eu casei, neste mesmo lugar!
--Quando foi isso?
--Há 35 anos. Estive no Brasil e agora, de regresso, venho aqui expressamente, matar saudades! Meu marido era protestante, razão pela qual pediu o baptismo, aqui nesta igreja!
Minha senhora, há 35 anos, devia ser, ceio eu, Monsenhor Botelho, que já faleceu. Quanto ao sacristão, não posso informá-la.
Neste passo, uma nuvem de tristeza velou o seu olhar!
Alcântara…….?
1981-02-09
Oito menos vinte! Às oito e meia, serviço lá em cima. Chamam à Rua “Calçada da Tapada.” Hoje, é uma bela via, todas asfaltadas que devemos ao Progresso. Portanto, do passado, nada já consta senão a Tapada. Mudança notável para melhor, o que nem sempre aconteceu.
Movidos por egoísmo, inveja e ambição, entregam-se os homens a quanto lisonjeia os 5 sentidos. Só alegam direitos: deveres não existem ou então, sendo ao invés respeitam aos outros! Para os tais, só regalias! O mundo cifra-se todo à volta deles! Mais nada existe que mereça atenção!
Tal maneira de pensar é causa de lutas, desaires e guerras. Admira-se a gente de que haja lutas? Se até as há, entre famílias!
Deus criou o homem e tornou-o feliz, colocando ao seu dispor o formoso Éden. A ambição, porém, veio trazer-lhe a infelicidade e o próprio inferno, já neste mundo. Saiba eu aproveitá-lo, para ganhar um prémio que dure eternamente, a fim de compensar-me de tanta vileza, maldade e cinismo!
Alcântara
1981-02-10
Hoje, exactamente, ia para Belém, já de manhãzinha, quando vejo no eléctrico, uma pequena sentada, juntinho à mãe. Ao lado e em frente, velhinhos de pé, balançando o corpo, ao ritmo do carro! Suas almas aflitas, olhando à negligência, incúria e desprezo, revolviam-se em dor e jaziam na amargura.
Eu, por minha parte, sofria também, presenciando o facto. No meu coração, travava-se um diálogo, mudo e sentido que visava a mãe, a quem eu dirigia, no silêncio do peito, grave reprimenda! Não disse palavra, mas falaram os olhos, gemeu o coração, chorou o meu ser!
Mãe desnaturada, alheia à vida, ser imperfeito, nocivo, repelente!
Não censuro a miúda, que é fruto necessário da tua educação!
Anda gordinha, traja a rigor e parece feliz. O que tu fazes, mãe incapaz, fazem-no também cadelas e gatas! Precisamente o mesmo!
Cuidam extremosas do corpo de seus filhos que nutrem e preservam, a fim de subsistir. Que destrinça vejo eu, entre ti e as gatas? Nenhuma! Por isso, verbero com veemência teu feio proceder! Que vai ser a tua filha, no mundo a vir? Um ser egoísta, pesado e ruinoso para a sociedade!
Que devias ter feito, mãe assim alheada, leve de cabeça e juízo suspeito? Dizer à tua filha, em termos convincentes, humanos, calorosos: “ Minha filha, como és saudável, bondosa e gentil, dá o teu lugar a pessoas doentes ou já velhinhas! É nosso dever ajudar quem precisa e levar conforto às almas desditosas Deus premiará a tua caridade e grande gentileza!
Alcântara
1981-02-13 Onde se encontra a felicidade
Coisas banais para este e aquele são logo diferentes para outras pessoas. “Os gostos não se discutem,” reza a sentença de todos conhecida.
Geralmente, o que faz enjoar uma parte do mundo causa deleite à parte restante. Por estas razões não podem censurar seja quem for, já que paixões, preferências e gostos variam com as gentes.
Vem o presente facto, a propósito do Quim.
Ontem, ao jantar, andava macambúzio e quase não comeu! Apenas a sopa! Não basta, já se vê, para trabalhar!
“ Onde estão os meus selos? À volta de 50! Uma bela colecção, atribuindo a cada um mais de 100$00! Posso eu com isto?! Lamentos e ais, queixumes… silêncio! O nosso miúdo vai fazer 17 anos, mas é infantil, em muitíssimas coisas! Deseja o rapazinho que todos em casa sintonizem com ele. Fica deprimido, se vê desinteresse.
Ainda mais: perde o incentivo, já para comer, já para trabalhar! Filatelia e futebol eis os seus amores! Brotam-lhe da alma! Quem vai desarreigá-los)!
Seria lutar contra o impossível! Era destruir-lhe a própria essência! Aquilo, realmente, nasceu com ele! Nutre-se já da própria substância: vive paredes-meias! É o seu objectivo, o fulcro central de seu agir e pensar! Numa palavra: está ali, com certeza, a sua felicidade!
Compreende-se bem: é muito bom haver incentivos: à maneira de molas, seguram e prendem, vão cativando, saciam a alma!
Vivamos o momento! Comunguemos na dor e tentemos o possível, para alívio do Quim.
Alcântara
1981-02-14 Racha ao meio
Vai bastante frio este mês em curso. Dizem até ser pior que Janeiro. Áspero e seco, mal-humorado, embora, por vezes, se mostre risonho, durante o dia! É deleitoso sentar-me em sofá, juntinho à janela, quando o Sol a inunda, entrando em caudais, no seio da quadra.
Lá, no exterior, assaz desagradável; de portas a dentro, oceanos de luz, que também me aquece! Apesar disto, não se livra ele de apodos e injúrias! Que devia ser mais quente, pois os dias são maiores! Que devia ser chuvoso, pois o ano é seco. Enfim, mil enxovalhos, ditos grosseiros, nenhum respeito nem atenção!
Perante as reacções, quase sinto pena! Chego, na verdade, a lamentar, por vezes, a sorte do agredido! Será dele a culpa? Que fazem, então, os agentes climatéricos? Neste passo, julgo logo ouvir: “Falas assim, mas és suspeito!”
Eu, suspeito?! Não sei porquê! Por tomar a defesa de quem estremeço e não é culpado?!
E a voz agressiva, imperiosa e ferina continua sempre, vociferando:
-- Sim, porque é o teu mês! Não foi em Fevereiro que viste , deslumbrado, a luz deste mundo?! Defende-te, agora!
--Lá isso é verdade! Quero-lhe bem, prezo este mês e terço minhas armas, pelo seu bom nome! E não desisto! Para mais, vê-lo a meio, dá-me esperança. Agora, pois, na segunda metade, é sempre a caminhar! Pelo menos, fica já livre de maus servidores!
Alcântara
1981-02-15 Atrás dos Portões
Há coisas no mundo, que parecem incríveis! Apesar de tudo são elas reais. Há sinal que se veja, podendo alguém obter garantias, com os próprios olhos. Fazendo assim, evita-se o “dizem”, que é sempre duvidoso e sujeito a reparos. Se alguém afirma: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer!”ninguém duvida. Todos aceitam.
Está o caso passando: é, pois, actual, podendo verificá-lo seja quem for. Se não vejamos.
Até sinto repulsa de falar no assunto, pois se trata de Lisboa, capital formosa, entre as mais belas que há no planeta. Mas há obrigação e descargo de consciência. Caso repelente, sujo, atrevido! Facto inadmissível, desonroso, indecente!
Quem é que se atreve a fazer tal coisa?! Só um demente! Chamado à razão, deve ser punido, sabendo o que faz! Já não é criança, olhando às proporções, que os dejectos apresentam. Isto, uma noite, duas e sempre!
Vão lavar a imundície, fechando os olhos e tapando o nariz? Ao outro dia, aparece o local de novo conspurcado! Crível o facto? Lá está ele, para ser observado! Não há direito que tal suceda! Em Belém,
século XX! Rua do Embaixador, atrás de portões que são de ferro, na ida para a Capela. Pode tolerar-se? Vejam e digam!
Foi este caso dos mais repelentes que já verifiquei, no decurso da vida!
Alcântara
1981-02-16 Loucura dos Saldos
Por toda a parte originam sensação. Tudo olha interessado os números sedutores, esses mágicos dísticos, ocultando, afinal, a triste realidade! Chega-se a descontos de 60%! Umas vezes, lê-se apenas: Saldos! Outras, porém, alvoroçam os ânimos, utilizando palavras que fazem cismar: “Saldíssimos;”Saldos fabulosos;” Saldos incríveis;
“Super-Saldos.”
Esmera-se alguém por dar sumiço ao que foi rejeitado ou não pôde vender. É natural! O que acho fraudulento é o processo utilizado. Verdade seja que essa mentira não é total! Ainda assim, que fantasia,
cenário, ilusão!
O povo, no entanto, de modo especial os que têm menos, acodem pressurosos ao chamo das montras ! Uma vez em contacto, vemos as gentes fazer desvios, já decepcionadas, tristes, abatidas!
Apreciei o caso há poucos dias. Entrada em alvoroço! Olhar inquiridor! Comparações! Àpartes! Por fim, voltavam desiludidas, cabisbaixas, mortiças! Mudara o cenário! Apaga-se a luz, nos olhos de todos, afrouxa a vontade que ali arrastara; caem por terra, planos e acções
Porquê? Não encontraram o objecto do sonho! Bom e barato!
Encontraram algo com 60%, mas não interessava! Ninguém o queria!
Perfeitos monos a quem dão gosto?! Artigos de jeito, até mil escudos ou então dois mil apresentam somente diferença de 100! Isto é que é saldo?!
Valha-nos Deus! A tristeza, o desalento vão logo destruir fantasias e sonhos.
Lx.
Alcântara
1981-02-17 Um bom profissional
Estive no Dentista, ontem de tarde. Avistei-me com ele, por volta das 5 (17) . Foi um longo espaço, que se prologou, até perfazer duas horas e um quarto, não incluindo a parte, consagrada aos dentes.
Razões de tal demora? Conversa demorada, viva e cativante, que todo me enlevou!
O Dr. Celso Pinto, que sempre me atende com rara gentileza, deu-me o grato prazer me prazer da sua companhia, fornecendo pormenores e dando informações, que muito apreciei.
Foi assaz variado o tema escolhido. Antes de mais, a sua família que é modelar, pela honestidade, qualidades de trabalho e senso prático. A prole em causa, bastante numerosa, já ingressou na vida pública, honrando o lar que prestes a lançou na arena do combate.
São todos amigos e prestam ajuda, mutuamente.
Sente aquele pai imensa alegria, desenrolando a história, sobre cada um, em diversas matérias. Não falta a Electrónica, Medicina Dentária, Agronomia, Farmácia , etc. Dá gosto ouvi-lo, admirando, com razão, as suas convicções, que vive na prática.
Depois, falou-me também da sua terra natal, o seu Cabo Verde, que muito ama e preza. Referiu-se então, a Luís Cabral, Engenheiro Fonseca e outros notáveis do citado Arquipélago.
Pelo entusiasmo que revela e sente, ficou-me na alma o desejo sincero de visitar Cabo Verde. Mostrou-se admirador da Pàtria-Mãe, que é Portugal, acentuando, a propósito: O meu Cabo Verde não
combateu contra Portugal, que sempre amou e preza ainda. Foi contra um regime. Fique bem claro!
Alcântara
1981-02-18 Três Momentos
Por serem curiosos, vale a pena focá-los, demorando algum tempo, no exame a fazer. O primeiro e o terceiro são cheios de dor, envoltos em pranto; o do meio, cheio de promessas, riso, alvoroço.
No primeiro, tomam parte dois seres – mãe e filho, sucedendo por vezes, que ambos se apagam, para a luz da vida. Outras vezes, porém, só um deles sucumbe, desejando-se então que seja o filho.
Se ambos escapam ao transe do parto, vem prestes a alegria, reinando o bem-estar e a consolação. Apesar de tudo, corra isso embora pelo melhor, é sempre uma incógnita. Surgem, não raro, surpresas molestas: hemorragias, seres deficientes e outros imprevistos que são dolorosos.
Seja como for, há sempre uma esperança, não obstante o sofrimento, que o acto implica.
Quanto à morte, não resta esperança. Passado o transe, chega a eternidade, com os seus problemas. Não vale a Ciência nem a habilidade! Debatendo-se ali nas vascas da agonia, o pobre mortal diz breve adeus a tudo que o cerca
Este passo doloroso gera angústia imensa em todos os amigos.
Momento horroroso para corações que deveras se amam! Neste mundo, jamais se verão!
Hora de euforia reside no matrimónio. Essa, realmente, pelo que encerra de brilho e promessa, glória e mistério, apresenta-se bela, dourada, eterna!
Alcântara
1981-02-19 Aniversário
Cessa, neste dia, a volta 64. Não é muito ainda? Alguma coisa, decerto! Quantos e quantos não chegam a nascer! Quantos aí nascem, para logo morrer! Outros, por seu lado, continuam vivendo, mas já nos deixaram, com menos idade. Estas várias razões a que junto muitas mais, já de cunho espiritual, já material, movem-me pronto a dar infindas graças a Deus, meu Pai, autor e Senhor de todos os bens.
Louvado e amado seja Ele para sempre!
Ao acordar, logo pela manhã, expus sinceramente os problemas que trago, havendo agradecido todos os favores, que já me concedeu.
Pedi-lhe perdão de todas as faltas, rogando vivamente me proteja e defenda, até ao final da minha existência. Supliquei-lhe ardoroso sejana minha vida o móbil supremo a que tudo sacrifique.
Sinto-ma feliz, porque Deus está comigo. Tenho a certeza de que Ele me ampara e zela activamente os meus interesses de ordem espiritual, sem descurar também aspectos materiais que não sejam maléficos. É esta a fé que me anima e sustenta.
Recordo, por igual e vivo intensamente a ideia reconfortante que me liga para sempre aos entes queridos, no Céu, onde vivem e são já ditosos. Não me esquecem igualmente. São meus intercessores, junto do Senhor. Hoje, especialmente, os tenho presentes, no meu coração.
Senhor meu Deus, que um dia no Céu, me junte a eles, para todos em coro Vos louvarmos sempre, na grata companhia de quantos amámos.
Alcântara
1981-02-20
Graças a Deus, que é hoje o início da volta 64! Levará, querendo o Céu, mais um ano cumprido, Neste dealbar, rogo ao Senhor me ampare e acarinhe, para dar mais um passo, na via segura. Não quero, de facto, andar às cegas, sendo o Espírito Santo abundante em luz; não vou enfraquecer, havendo no Céu tão forte amparo!
É minha aspiração renunciar ao passado, não apenas em vontade e palavras escritas: sim, concretamente, realizando, por obras, o que intento alcançar. É meu desejo que sejam palpáveis esses resultados,
atribuindo ao Senhor vantagens e êxitos.
Não é minha aspiração gozar esta vida e os bens que apresenta: antes me agrada utilizá-la, sim, honradamente, em justo equilíbrio.
Tenciono ajudar quem precise de mim, colocando-me ao serviço, por meu ideal, sem vistas humanas. Farei alguns trabalhos sem remuneração, cedendo parte do que é minha pertença, em favor dos pobres.
Será este o meio de oferecer sacrifícios, para desconto de minhas próprias faltas. O dinheiro ganho, com o suor do meu rosto, será meio expiatório, grato ao Senhor. Que Ele me dê coragem, infunda energia e mande sua graça, para levar a bom termo a volta 64.
Passar tempo não convém. O que interessa é, de facto. vivê-lo, com nobre intenção, ante Deus e os homens.
Alcântara
1981-02-21
Passaram ontem os anos do Quim, aniversário, dito natalício! Dezassete anos, já bem cumpridos! Esperanças e sonhos que apenas Deus avista e conhece! Em pequenino, deu muitos cuidados, pois grave enfermidade o reteve no leito, julgando seus pais que iriam perdê-lo.
Jamais a saúde esteve com ele! Sempre enfermiço e bastante débil!
Reporto-me ao físico, pois no moral e psíquico não deixa a desejar!
Psicologicamente, não vai a par. Nota-se o facto na própria voz e nas suas referências, no tocante a leituras e pessoas do convívio.
Nestas circunstâncias, apresenta-se o jovem como nebulosa, quanto ao porvir. Vai ele, realmente, recobrar a saúde, atingindo em pleno a maturidade que os anos conferem?! Só Deus o sabe! Seria para os pais e quantos o amam razão bastante para imensa alegria.
Esperemos em Deus que o tempo o favoreça, devolvendo-lhe a saúde e gerando nele o gosto de viver!
Dei-lhe uma lembrança, modesta embora, mas fi-lo com prazer, formulando votos de muita felicidade. O mesmo vou fazer, no próximo Abril, quanto â Leninha, que vive em Talaíde.
Desejo vivamente que a família se imponha, dando provas claras de útil serviço a Deus e â Pátria,
Começou para o Quim a volta 18, que a roda fatal vai executar. Que não haja empecilhos nem grandes barreiras a fazer intransitável o caminho da existência! Deus esteja nos seus actos e sempre o acompanhe! Deste modo, logrará bem-estar, paz e ventura! O Céu o promete aos limpos do coração!
Escute o Senhor meus rogos ardentes, a favor do Quim, o nosso Isaías que todos prezamos!
Alcântara
1981-02-22
Hoje, pelas 20, realiza-se um encontro, que julgo delicioso. Sinto alvoroço, no meu coração, esperando ansioso que chegue o momento.
Há-de ser nos Jerónimos, pelas 19. Sendo quem eu penso, é, na verdade, alguém muito amigo, que não vejo, há muito.
Se não me engano, seria, talvez, em 1948, o derradeiro encontro.
Era eu, então, professor de Português e Canto Coral, no Outeiro de S.Miguel, Colégio diocesano, onde leccionei, durante 5 anos.
Nessa altura, cursava ali o Quim Dinis o 5ºliceal ou mais precisamente o 6º antigo. Assisti com ele às aulas de Alemão, que eram ministradas por um senhor diplomado, exercendo, ao tempo, no Liceu da Guarda.
Decorriam tais aulas em belo convívio: franqueza. interesse e grande à-vontade. Havia gosto e desejo de saber! Fosse agora assim!
Há mais de 30 anos, que deixei o Quim Dinis, em terras da Guarda,
Informaram, há pouco, ser formado em Direito e exercer em Lisboa. Como ele é assíduo, na igreja dos Jerónimos, onde cumpre os seus deveres, é lá também que vou ter o gosto de o ver e saudar, recordando ao mesmo tempo a época remota, que já anda esbatida.
Alcântara
1981-02-23 “Palavra de Rei não volta atrás!”
Meu dito, meu feito!”À hora ajustada, encaminho-me aos Jerónimos ,a fim de avistar-me com um bom amigo, que há muito não vejo - o Doutor Joaquim Dinis, formado em Direito. Passaram bem mais de 3 dezenas de anos, o que é muito já, a pesar na existência. Iria reconhecer-me? E eu a ele?! Alguém o prevenira, sobre o nosso encontro, no fim da Missa, lá nos Jerónimos.
O momento desejado chega, por fim, mas nada feito! Grande estranheza, de parte a parte! É preciso agir, fazendo previamente algumas perguntas. Sou eu o primeiro a tomar a palavra.
-- Estudou, há anos, no Outeiro de S. Miguel?
-- Sim, com certeza!
-- Não é, por ventura, o Doutor Joaquim Dinis?!
-- Pois sou”
A estas palavras, uma réstia de luz se vai infiltrando, no espírito em ânsia. Vendo meus esforços coroados de êxito, ganho confiança e tento prosseguir, lançando mão de vários dados. Vêm a propósito alguns nomes conhecidos: o Soveral, o Capelo. o padre Franco, o padre Pedro…a Dona Palmira!
Não diga mais, que não é preciso! Haja paz, saudações e muita alegria
Alcântara
1981-02-28
O primeiro elo da volta 64 está percorrido. Sendo pequenino o mês de Fevereiro, esvai-se rápido, mal dando tempo de tomar-lhe o gosto. Como tudo o que é bom, excelente e gostoso assim este mês, em que vi deslumbrado a primeira luz e uns olhos de magia, que logo me fascinaram, se foi escoando, sem me aperceber!
Que saudade já tenho! E, no entanto, nada eu posso que logre segurá-lo, impedindo-lhe a marcha!
Ele caminha, diligente e pressuroso, realizando a tarefa que Deus lhe confiou. Não atende à minha dor nem parece comover-se, ante a minha saudade. Para onde vais tu, ó mês de prodígio, qual cego obstinado que não tem coração?! Detém-te um pouco e olha para mim, que te fixo em dor, nutrindo no peito mágoa sem fim – não tornar a ver-te!
Para o ano será, querendo o Senhor, mas já não és tu que me levas então! Outro parecido tomará sobre os ombros a tarefa ingrata de arrastar-me para o fim. Por que não repousas, dando-te a sossego, a fim de aquietares e ser moderado?! Olha, por momentos, na breve caminhada, e dá-me atenção. Não me deixes assim, de olhos mareados, peito em ferida, alma a sangrar! Não tens coração! Não deixas comover-te?! Não podes, talvez?!
Segue, pois, o teu destino: caminhar…caminhar, arrastando-me contigo para os braços da morte, que é, por Deus do Céu, a porta da vida.
Alcântara/ 1981-03-01 Dama belga
Ontem, precisamente, no termo de Fevereiro, chegava aos Jerónimos grave senhora, natural da Bélgica. Vinha em busca de alguém, que não pôde encontrar. Alta e esguia, trajava de preto, ostentando maneiras de senhora polida. Para lá dos 60, seu andar é lépido, e o corpo, todo ele, bastante flexível.
À meia-luz, não pude observá-la como desejava, mas tive a impressão de que era distinta, arguta e penetrante. De facto, vindo ambos à fala, durante minutos, calculei tratar-se
de pessoa fina.
Encontrava-se lá, na capela mortuária, o féretro de alguém, mas abandonado. Fazia aquilo impressão a quem ali passava. Nenhuma pessoa a velar o cadáver! Tanto mais que breve sairia para o lugar da jazida - o cemitério da Ajuda.
Instigada a senhora pela mesma razão dirige-se a mim, para esclarecê-la.
Fala Português, mas atropelado, com má pronúncia, embora se entenda o que deseja exprimir. Mercê do que vai, pergunto-lhe de chofre qual é a sua pátria e Língua respectiva.
Sou belga, volve pronto, e nasci na Holanda.
Neste passo, abandono o Português, exprimindo-me em Francês. Fica radiante esta dama curiosa, que deixa o Português, utilizando a sua Língua, com destreza sem par!
Alcântara
1981-03-02 Cont
Por eu estar ocupado, o nosso diálogo não pôde alongar-se. Ela, apercebendo-se, fez logo menção de travar o encontro, mas eu persisti, durante breve espaço, na mira grata de ser gentil, para a estrangeira. Entretanto, declara a senhora:” Sabe?
Trata-se, afinal, do Embaixador da Holanda. Estou, de facto, assarapantada! Não vejo aqui ninguém, para dar-lhe os pêsames! Podia indicar-me onde seria possível obter alguns dados, a este respeito?”
Lá respondi, mas negativamente, lastimando a sorte de alguém falecido, que está sozinho, nas últimas horas, C’est dé-
plorable!
Neste passo intervém, com fina observação, que levanta em mim profundo interesse.” On est toujours seul, pendant sa vie. Chacun a ses problemes, qu’il doit résoudre par soi meme!”
Argutodesabafo que a longa experiência trouxe então a lume. De facto, é assim! Mais uma prova clara de que realmente, devemos bastar-nos, pois outrem não ajuda!
Só Deus está connosco e se ocupa de nós! Vem o facto confirmar uma triste realidade: o ser humano é egoísta: não
liga aos outros!
Ora, sendo assim, durante a vida, ninguém vai admirar-se de que o seja na morte!
Jamais esquecerei a sagaz observação da senhora belga!
Alcântara
1981-03-03 Se voltasses atrás, que farias então?
Mera fantasia dar uma resposta! Efectivamente, a ninguém é possível recuar um passo na vida. Ela esgotou~se?
Nada mais a fazer! Entretanto, sucede muitas vezes entrarmos a sonhar, ainda acordados! Amamos ser crianças ou lançar-nos em riscos, imaginando lances ou grandes tiradas.
Para quê’ Não sei bem. Convenço-me até de que há fim oculto: dar cumprimento a certos desejos que não pude realizar, já por inépcia, já por incúria. Terei razão?
Volto, pois, àquela pergunta: que faria, realmente, no caso hipotético de tornar ao principio da minha existência. Primeiramente, desenrolava o passado, ante meus olhos.
Já estou desorbitado, pois começando, não tinha passado.
Contudo, imaginemos que sim, podendo eu servir-me das lições proveitosas que ele fornecera.
Vou agora ao lar, onde teve seu inicio a minha existência.
Que poderia fazer, se eu era impotente?! Qual é, na verdade, a atitude habitual duma pobre criança? Inteiramente passiva, deixa outrem agir. A mãe é que actua, pensa, conduz e sente.
O bebé, totalmente receptivo, nada empreende. Melhor: só age chorando, em três circunstâncias: quando tem fome, dor ou incómodo. Ainda então limita-se a queixas, deixando outrem agir por si.
Imaginemos, pois, que ele já pensa e é, realmente capaz de agir, segundo o seu querer. Outro impossível e até absurdo.
Alcântara7
1981-03-04 Cont, Se voltasse atrás…
Durante a infância, nada faria, por ser incapaz. Chegada a razão, na terceira infância, daria conta de que a minha liberdade era muito limitada, se a punha em paralelo com a de outras crianças. Os cuidados maternos dobravam sempre,
abrangendo os meus actos e os próprios lugares, por mim frequentados.
Sequestrado e solitário, viveria triste, por não ser autorizado a conviver com outros, da mesma idade. Ia, pois cismando, dias e noites, enquanto lamentava a minha posição,
ante o próprio mundo. Tentar alguma coisa? Fantasiá-la somente, escondendo-a, a rigor! Qualquer inconfidência podia ser danosa. Assim que afastado e já desoprimido, buscaria trabalho, para sustento. Seria coisa leve! Com 10 ou 11 anos, que podia fazer?! Iam explorar-me!
Sem nada a proteger-me, com falta de experiência, amizade e capital, ficaria à mercê de instintos reprováveis. Dando. porém, com gente bondosa e compreensiva, o meu destino seria diferente.
Tentando sobreviver, havia de lembrar-me, com viva saudade e mágoa sem fim, do lar carinhoso, amigo e protector! Mas a tais amarras jamais voltaria!
Alcântara
1981-03-05 Cont.
Como tinha ambições e era trabalhador, juntaria uns cobres, mercê do meu esforço e hábil gerência da parte disponível. Havia de ganhar muito mais do que gastava!
Deste modo, poderia emancipar-me, quer dizer, montar um negócio, trabalhando para mim. Singrando mal ou ganhando pouco, tentaria outro rumo: emigrar talvez para os Estados Unidos, onde um tio meu, irmão de meu pai, me daria amparo, nos primeiros dias.
Uma vez lá, seria todo esforço, aproveitando o tempo e fazendo economias. Mais tarde já, viria a Portugal, arranjar consorte: uma pequena jeitosa, certa nas voltas, amiga dedicada, inteligente e muito carinhosa, encarnando também ideias semelhantes.
Formado o lar, viveria para ele, realizando os meus sonhos, à luz de Deus, com sua bênção. O meu trabalho, com suor e canseiras nutririam os pimpolhos, a quem daria rumo, diferente do meu, a partir do lar. A sua educação ficaria a meu cargo, livre de beatério e, bem assim, de ambientes deletérios.
Seria, no entanto, baseada no Evangelho, que é para mim o Código Supremo e digno de apreço. Seria um lar amigo, onde a paz e o amor fizessem maravilhas.
Alcântara
1981-03-06 Cont.
Se o caso hipotético, apresentado já, não fosse o meu, quer dizer, não chegando a escapar-me, do lar paterno, após
a 4ª classe, faria saber aos progenitores que era meu desejo ser professor.
O grande problema residia em minha mãe. Deixar-me partir!
Eis a questão! Apegada como estava, havia só um meio: frequentar o Seminário!
Lamentando, esclarecia: “ Não temos posses! Liceu, não!
Querendo ser padre! Alguns rapazinhos até estudam, de graça! A gente, no entanto, pagava alguma coisa! Um poucochinho!
Barrado estava já o caminho a seguir! Entretanto, não havendo outro meio, tinha de aproveitar, como fiz, realmente, em 1933! Lá fui para o Fundão! Encetava deste modo a carreira eclesiástica: melhor diria – a sua preparação, com estudos adequados.
Caprichoso e soberbo, aplicava-me a valer, rendendo o máximo. Bem intencionado e muito sincero, dada a Filosofia, estudava o meu caso, muitíssimo a sério, pedindo opinião a pessoas prudentes e cheias de sensatez.
Continuar os estudos ou deixar o Seminário, ingressando no Liceu, com dinheiro emprestado? Respeitaria, sem dúvida o sentir alheio mas, acima de tudo, se houvesse discordância, havia de seguir a minha opinião.
Verificando, realmente que Deus me não chamava, tomaria a iniciativa, sem olhar a reparos nem ao choro materno.
É estupidez fazer-se lacaio da vontade alheia, seja ela qual for.
Alcântara
1981-03.07 Cont,
Tinha o 6º e 7º em frente de mim. Esperavam-me as Letras, que sempre amei, Provavelmente, seguiria Românicas ou mesmo clássicas. O Conservatório gerava também enorme incentivo, para o cultivo da Música. Neste passo, grande barreira que seria fatal! Ser fadista? Que loucura a minha pela guitarra! Seria um perigo! Talvez impedisse os graus académicos.
Tenho para mim que não era possível cultivar os dois ramos! Sendo capaz, era de facto o meu elemento! Música e
Letras! Sempre a Arte a cativar-me!
Uma vez licenciado, trilharia então o caminho eleito – o magistério, que sempre amei! Não o disse à mãe, quando ela perguntou: Meu filho, que desejas tu ser?”
-- Professor, minha mãe!
Era este o meu caminho! Chegado ao Liceu, para fazer o 7º, podia acontecer que não tivesse dinheiro. Se ninguém mo emprestasse, , daria lições a jovens mais novos.
Sendo bom a Latim, Português e Francês, não teria problemas em obter o necessário, para me formar.
Trabalho a mais? Sobrecarga, talvez? Perigo iminente de tudo ruir? Quem o sabia?! Alimentando-me bem, talvez aguentasse!
Finalmente, já diplomado, encetaria breve a carreira grata de professor. Faria das aulas o meu sacerdócio, ajudando os alunos , em suas dificuldades.
Em seguida, aquele sonho lindo, que empolga a vida: o lar amoroso, com filhos a cantar e uma esposa adorável a tornar mais suave a carreira da vida!
Alcântara
1981-03-08 Cont,
Instalado já, no meu apartamento, faria diligências, para tudo ir bem. Criaria os filhos, sempre na abundância, comendo todos nós alimento igual. Não havia distinções nem feios complexos, reinando entre nós a democracia. Apesar de tudo, sempre respeito e muito juizinho!
E quanto aos escritos?
Não ia renunciar aos gostosos Diários! No entanto, iria ser diferente o ritmo e o som. Se faltasse ambiente, ficaria desgostoso. Embora humildes, são derivativo para almas infelizes. Para quem desabafo? As paredes não ouvem; os muros não entendem! Animais e coisas é tudo frieza, à volta de mim!
Que seria o meu viver, sem estes amigos?! Que vou deixar, cá neste mundo, para contar mágoas, dor e tormento?! Falarão por mim, revelando à sociedade as suas
traficâncias, e o abuso aleivoso , que exerceu na minha vida.
Quando os meus olhos se fecharem já para esta luz, ficará este foco a dizer, no seu brilho, aquilo que o meu esforço realizou penando. Tenho para mim que a via trilhada foi mais favorável à minha inspiração.
Casado e feliz, onde achar incentivo para os meus Diários?! Ficariam em potência! Seria diminuído e falho de cor todo o meu esforço?! Assistem-me dúvidas, mas estou em crer que é mais esperançoso o caminho que levo, em ordem aos escritos.
Foi a solidão, o abuso do poder e a minha repugnância que geraram e ergueram o que fica exarado.
Alcântara
1981 03-09 Uma Legenda
Há dias atrás, passando em Almada, à frente da igreja, fixei, por acaso, os dizeres da fachada, Após Abril de 74, introduziu-se a moda: escrever nas paredes não importa o quê! Para mais, usam-se às vezes, tintas apropriadas e certos caracteres, altamente visíveis.
Ora, sucede em geral que as ditas legendas visam fins políticos ou ainda sociais. Aspecto religioso não é frequente :
o nosso povo, sendo cristão, não ama disparates que ofendam a Deus! Foi por esta razão que fiquei espantado e, ao mesmo tempo, cheio de horror e indignação, ao ver estampadas as seguintes palavras:”Deus é parvo! Eu não! Tu és parvo, Deus!
Ao ler o insulto, vários sentimentos, de natureza diversa, vieram atropelar-se na minha consciência. Desde a piedade à mesma exaltação, tudo foi campo de vivas reacções. Será mente-capto o autor dos insultos?! Será ele estúpido ou satanizado?! Seja como for, aquelas palavras não devem figurar. levantam protestos e ferem desde logo a sensibilidade, beliscando a alma!
Fora dali! Como é possível deixá-las ficar?!
Alcântara
1981-03-10 Cemitérios. Estados Unidos
Nunca lá fui. Por esta razão, não posso garantir seja o que for. Falo do que ouço. Se acaso minto, pesa-me desde já, e renego do que exponho.
Em diálogo franco, sobre a América do Norte, diz o meu parceiro em lenta digressão :”Quanto a cemitérios, aquilo é diferente! Já lá estive, conhecendo por mim próprio o que ali se passa. “
Diferentes em quê, suplico eu, cheio de curiosidade. Não imagino qual seja a diferença! Todos iguais, pela finalidade!
“Sim, é óbvio, mas a vista daqueles diverge inteiramente.
Calcule o seguinte: espaços vedados é coisa que não há! Todo o mundo ali entra!
-- Isso também cá!
-- Atenda um momento! Entram e sentam-se; conversam e dialogam; as mesmas crianças não fazem excepção, pois brincam ali. Comparo aquilo aos nossos jardins. Disfarçam tudo, com belos relvados; há bancos esombras . Ninguém se apercebe de que é cemitério!”
Essa agora” Pode lá ser, volvo indignado!
-- Olhe qu é verdade! Não minto nem aldrabo! Tal qual! Se eu próprio não visse, com os meus olhos!”
Por eu, realmente, não estar habituado, chocou-me a valer tal informação! Será uma diligência, para olvidar problemas momentosos, que hão-de estar presentes?
Se um dia lá for, hei-de averiguar:
Alcântara……..?
1981-03.11 Mamões na Europa
Este fruto suculento, que abunda em Angola, faz-me saudades, pelo muito que lhe devo. Em dias calmosos de sol abrasador, onde a água escasseava, não havendo humidade,
lá vinham em socorro os mamões apetecidos, que matavam a sede e até resolviam problemas graves dos intestinos.
Ao longe e ao perto, erguiam-se os mamoeiros, cheios de bondade, amor e paciência. Ao fim de um ano, estavam já criados, oferecendo a todos serviços prestimosos. Há-os ali, por todo o lugar, É fruto de ricos e mais de pobres. Planta generosa, o bondoso mamoeiro cresce em toda a parte, sem
cuidados especiais. Multiplica-se, além disso, de maneira extraordinária,
aparecendo aos centos, em pequena extensão. Acumula humidade, no tempo da chuva e esta lhe basta, para viver e ser-nos útil.
Deixando a Namíbia, em fins de 79, lá ficaram os mamões, que tanto apreciava e já conhecera, em terra angolana. Teve de ser! A separação daquilo que amamos
é sempre triste e harto dolorosa.
Ainda assim, encontrei-os, na Europa, embora de outra casta. mas de tamanho igual aos maiores de África. Alguns dentre eles, por serem descomunais, geram espanto e causam pavor. Que será de nós, se houver desprendimentos!
O caso é mais sério que podemos julgar!
Na África adusta, não sucedeu, mas por aqui, tenho sérias dúvidas
Alcântara
1981-03-12 Impudor nas Gaiatas
Li, há muito já, o famoso livrinho” A mulher em Portugal”, por Victor de Moigénie. Jamais esquecerei os
rasgados encómios, que tece, na obra, à mulher portuguesa.
As suas virtudes são postas em relevo por modo tal, que seria mulher única, no mundo inteiro.
Fiquei desvanecido, perante a leitura. De facto, era assim.
Entre os belos dotes que a faziam adorável, primava a modéstia, a docilidade, meiguice e bondade, assim como o pundenor, circunspecção e honestidade. Mulher de um só homem, ninguém jamais punha leve suspeita na sua honradez
Orgulhavam-se dela os filhos e o marido, para os quais vivia. Era assim minha mãe, que foi nisso imitada pela irmã que tenho. Hoje, porém, vejo coisas tais, que me causam arrepios!
Será ainda assim a mulher do nosso tempo?! Quem dera isso! O grande mau exemplo, trazido pelo turismo e, em nossos dias aind avivado na televisão, estragou tudo! Que pena me faz!
Estaremos caminhando, a passos alargados, par a a não existência? As nossas gaiatas andam penduradas e vão cochichando, ao mesmo tempo! Já não conhecem outras
posições! Droga no caso? Rebeldia, talvez? Extravio possível?
Imitação deletéria?
Corrompida a mulher, sociedade em declínio!
Para onde embarcou a mulher portuguesa, que veste calças, fuma e se droga, e não quer ser mãe?
Há muitas excepções! Valha-nos isso
Alcântara
1091-03-13 A Palavra “bem”
Os idiomas têm, por vezes, subtilezas tais, que não é fácil destrinçar, logo à primeira vista. Só o uso da Língua, durante longo tempo; agudo espírito de observação; trato do assunto e cultura basilar podem ser úteis, no caso presente.
A propósito, avaliemos agora os seguintes períodos: 1.façamos o bem; 2. João fala bem; 3. eu bem queria; 4.
estamos bem perto.
Os dois primeiros não oferecem qualquer dificuldade:
trata-se meramente de um substantivo e de um advérbio.
Em 3 e 4 já surgem problemas.
Transpiram os Filólogos, talvez melhor, os puristas da Língua, querendo mostrar-nos que são galicismos, por equivalerem à palavra ‘muito’. Dizem os Franceses: bien aimé, merci bien.
Eu, porém, sem pretensões que não sejam a verdade, permito-me discordar. Efectivamente, são frases populares, onde os eruditos não tiveram parte.
É deveras espontâneo o uso popular da palavra ‘bem’, como simples advérbio de intensidade ou quantidade. Nada importa que haja semelhança com a Língua francesa.
Traços comuns entre duas irmãs? Não procedem elas de uma só mãe?! Será desonra?
O que é espontâneo, entre gente do povo, sem comunicações, analfabeto e sem letrados, é nacional e genuíno
Alcântara
1981-03-14 Cont,
Relevem os puristas e críticos zelosos, mas não vou aderir à sua opinião. Em Vide-Entre-Vinhas, um século atrás, alguém verificava influência externa?! Nem estrada havia nem telefone, As mulheres, em geral, não sabiam ler; quanto aos homens bem poucos havia não analfabetos!
Recuando agora 50 anos, orçaria talvez por meia dúzia
os que sabiam ler e escrever . Perante o facto, que aliás não honra nem serve de elogio aos poderes constituídos, como vão
justificar períodos assim: Bem fala o são ao doente”; bem queria ficar, mas não consegui; bem te aconselhei, mas tu não me ouviste!
Não se trata, afinal, de frases esporádicas! São ditos frequentes, comuns a toda a gente, que utiliza os mesmos, com
espontaneidade, Vão decerto e pernicioso lutar contra os factos! Estes aceitam-se: não se discutem. É tempo esbanjado!
Proveito nulo!
Admitamos, pois, o termo em causa na lista já longa de outros advérbios de intensidade ou quantidade! Não fica mal, junto de seus irmãos nem ele se envergonha!
Quem discordar, pois, que lhe preste!
Alcântara
1981-03-15 “Boca fechada não entra Mosquito
Por estas palavras, desconhecia o rifão. Conheço outros, bem entendido, que de perto o seguem: Ouve e cala, viverás vida folgada; Se queres viver em paz, tua porta fecharás, teu vizinho louvarás!
Vinca-se em todos que é muito frutuoso guardar silêncio, deixando aos outros luga para expansoes. De facto, corremos perigo, volteando a língua, dentro da boca. No calor do diálogo, foge algo mais, que depois, lamentamos!
O silêncio é de ouro, diz outro rifão. Os males que gera a língua solta não têm conta! Quantas lágrimas em vão
derramadas! É tarde, porém! Quem muito fala bem pouco acerta!
É incontável o número de anexins que exprimem tal verdade!
O primeiro em questão ouvi-o a brasileiros. À primeira vista, não se julga expressivo! Apesar de tudo, nem toda a gente pensa de modo igual! Por que há discrepância? É devido a factos, que passo a expor.
Vivendo, por algum tempo. na zona torrada, em lugares insalubres, como eu comprovei, junto ao Cubango, nota-se em desânimo haver tantos insectos , que formam nuvens. Ali, realmente, é deveras perigoso abrir a boca. Os terrenos ensopados que ladeiam o Cubango são focos geradores da terrível ‘malária’.
Portanto, é exacto: Boca fechada, não entra mosquito!
Alcântara
1981-03-16 Atlético Clube de Portugal”
Em passeio vespertino, deparou-se-me algures, aqui em Alcântara, Confesso aberto me deixou atordoado, não sabendo, a rigor, se é Língua portuguesa ou Inglês disfarçado.
Na verdade, lá por Inglaterra, é forçoso aquele jeito: colocar o adjectivo, depois o substantivo.
Faça alguém ao contrário, não sei exactamente o que vai acontecerlhe! Por esta razão, fiquei hesitante! Português não é, embora pareça! Efectivamente, a Língua de Vieira coloca o adjectivo, após o substantivo, salvas excepções, que não vêm a propósito: casa alta; esposa gentil; rapaz inteligente.
Dá-se o inverso, em casos raros, quando o adjectivo, pela função que exerce na frase chama a atenção, transportando em si grande carga de sentimento: gentil criatura!
Agir ao contrário da regra geral é falar e e escrever uma Língua estrangeira.
Alcãntara
1091-03-17 “Vou sair Homem!”
Certa dama, algo enfatuada, chamava as atenções, ao
tentar despedir-se, num carro-laranja. Fazia-o, já se vê, com entono marcado, figura expressiva e rosto afogueado.
Começou o desabafo, pela maneira seguinte:”Parece até que já estou velha ou a caminho disso!; aborreço a desordem; não tolero ruídos; tudo me indispõe! Um dia qualquer, é o princípio do fim. No regresso, vou sair homem!”
Desconheço inteiramente o sentido cabalístico, implícito nos termos que pôs em evidência. Será isto código? Nada importa! De tudo isto, uma coisa ficou: desejo manifesto de volver-se em homem! Porquê?! Ignoro-o também! Não está contente?! Pois deve resignar-se. Cada um se apresenta como o Céu designou! Não cabe a nós a escolha do sexo! Excepções aparentes não contam para nada!
Que a mulher se orgulhe de vir a ser mãe e educadora; que o homem se glorie se ser força e protecção para o lar que fundou! Por que razão, empolante linguagem, vinca assaz os últimos dizeres?!
Mulher do auto-carro, que não primas em bom senso, diz-me, te peço: por que motivo, desejas ser homem?! Para fazer asneiras que assim não te é dado? Se é para isso, larga as utopias e conserva o teu sexo!
Alcântara
1981-03-18 “As Doce”
Haverá de tratar-se de grupo selecto. Com isso nada tenho, pois cada um escolhe o caminho que julga ideal e melhor que o dos outros. Nem aprovo nem condeno! Demais, nem é grato vasculhar nem ser alcoviteiro. É coisa feia, abjecta, hedionda! Siga cada um a linha preferida, realizando-se no mundo, a seu bel-prazer!
O que chamou a atenção e me fez deter, foi outra coisa: a
falta de concordância que vejo nas palavras Tenho para mim que seja Português. Sendo outra Língua, retiro a censura, dando o dito por não dito!
Debrucemo-nos então sobre as duas palavras, Vê-se claramente ser a primeira artigo definido, feminino, plural;
igualmente se nota haver na segunda um adjectivo, mas substantivado. Ninguém discordará, ao menos, até aqui.
Diz o nosso povo: o pobre, os pobres; a gata, as gatas; a estudante, as estudantes; a deficiente, as deficientes.
Nem admira! Tem de haver concordância, em número e género. Não vamos dispensar aquele ‘s’do fim, na palavra ‘doce’ .Teriam receio de confundir-se, algum dia, com amêndoas e bolos?! Ou ainda com bolachas ou rebuçados?!
Infundado susto! Ninguém as come, por não haver antropófagos, no meio de nós! Ao menos, que eu saiba!
Alcântara
1981-03-19
“Aqui dormem, cerrados para a vida\ Os olhos de uma mãe abençoada! Que à alma da matéria desprendida Mandou-lhe Deus no Céu fazer morada!
Resta uma lousa, por memória dela\ Pranto nos filhos
pra chorar por ela”
Cemitério da Ajuda
Entrando no campo, destinado aos mortos, depara-se um átrio, de forma irregular, donde partem ruas para os vários talhões, em que ficam jazendo os corpos inertes. Ao longo das bermas, perfilam-se ainda esguios ciprestes ou velhas oliveiras que falam do passado
Mudos e tristes alinham também os monumentos funéreos, ostentando na fachada expressões saudosas.
A que fica ao alto, copiei-a, a rigor, segundo a vi, ao cabo do átrio, pela banda direita. Trata-se, ao que vemos, de uma quadra heróica e um dueto sáfico.
Se é perfeita a rima e a textura dos versos, não é menos elevado o sentido religioso, que ali se descortina. Com efeito, perpassa no quarteto, de maneira vincada, o efémero da vida,
à qual sucede uma vida sem fim, como prémio do Céu, pela vida honesta, crente e piedosa. Também não é estranho o amor familiar.
Na dita quadra avultam, pois as verdades eternas, que todos recebemos: Deus e a nossa alma; imortalidade; sanção e prémio. Só falta ali uma ideia basilar: ressurreição da carne.
Alcântara
1981-03-20 Cont,
Segundo eu julgo, aquele dueto, embora expressivo, não está completo. Encerra até uma ideia derrotista. Só resta uma pedra e pranto a verter ! É isto que eu reprovo.
Às cinzas jacentes, diz-nos a fé, vai seguir-se um dia, um
corpo transfigurado, unindo-se à alma, que na Terra as informara. Creio, sim, na ressurreição da carne!
Se Cristo ressuscitou, como primogénito, dentre os outros mortos e cabeça nobre do corpo místico, também nós próprios havemos de segui-lO. É que os membros de um corpo seguem a cabeça a todos os lugares.
S, Paulo é claro, a este respeito. O Apóstolo S. João, de modo igual! No Velho Testamento, respirava-se já a mesma verdade, no livro de Jó e dos Macabeus.
“ Resta uma pedra por memória dela” Resta, decerto, algo diferente. A que são devidos os grãos de trigo, que vemos na espiga? A um grão já morto e destroçado – a semente. Nem outra coisa era aceitável!
Corpo e alma formam o ser - um todo indivisível. Os dois elementos contribuem, sem dúvida, para a vida moral, em sentido positivo ou negativo. Razoável, pois, ficarem ambos associados, já na humilhação, já na eterna glória. Não é mais confortante a verdade evangélica?
Fora, pois, com tal derrotismo, que leva ao desalento, gerando prostração! Cristo elevou-nos a todos, pela sua vitória sobre a própria morte!
MEMÓRIAS 34
Lx\ ALcântara
1981-03-20
Segundo eu julgo, aquele dueto do Cemitério da Ajuda, embora expressivo, não está completo. Encerra até uma ideia derrotista:”Só resta uma pedra e pranto a verter”.É isto que eu reprovo.
Às cinzas jacentes, diz-nos a fé, vai seguir-se um dia, um corpo transformado, unindo-se à alma, que na Terra as informara. Creio, sim, na ressurreição da carne! Se Cristo ressusctou. como primogénito dentre os outros mortos e cabeça nobre do corpo místico, também nós próprios havemos de segui-lO.
É que os membros dum corpo seguem a cabeça a todos os lugares. S. Paulo é claro, a este respeito. O Apóstolo S.João de modo igual. No Velho Testamento, respirava-se já a mesma verdade, no livro de Jó e dos Macabeus.
“ Resta uma lousa, por memória dela” Resta, decerto, algo diferente. A que são devidos os grãos de trigo, que vemos na espiga? A um grão morto e destroçado – a semente! Nem outra coisa era aceitável! Corpo e alma formam o ser, um todo indivisível.
Os dois elementos contribuem decerto para a vida moral, em sentido positivo ou negativo. Razoável, pois, ficarem ambos associados, já na humilhação, já na eterna glória. Não é mais confortante a verdade evangélica? Fora, pois, com tal derrotismo, que leva ao desalento, gerando prostração. Cristo elevou-nos a todos. pela sua vitória, sobre a própria morte.
Alcântara \ 1981-03-21 “ Salud, Dinero y Amor!”
Dera eu pequena esmola a certa mendiga, quando ouvi, em Madrid, as palavras do título. Nunca mais eu pude esquecê-las! De facto, aquela tarde amena, os meus anos verdes e a astúcia da pedinte, que inflamou os dizeres de calor humano, tudo se irmanou, para gravar em mim a cena que relembro.
Mulher de meia-idade, um tanto sebenta e algo andrajosa, pôs no olhar um requebro tal, que a voz articulada saiu espontânea, qual fruto maduro que se desprega da árvore. Cai este no chão, mas aquelas palavras caíram-me na alma. Que acento na voz e que luz de magia, nos olhos de mendiga!
Foi por esta razão que guardei suas vozes, procurando, mais tarde, arrancar a substância que as mesmas encerram. Salud, dinero y amor! Foi deste modo que ela agradeceu o pequeno óbulo que depus em suas mãos!
Eloquência na voz, fogo no olhar, profundeza na ideia! Vale a pena meditar!
Alcântara \ 1981-03-22 Cont.
Salud! Primeira nota do acorde perfeito! Fica bem assim! A ele cabe decerto, o primeiro lugar e o apodo honroso de “fundamental” Apraz-me agora fazer o paralelo. Imaginemos, pois, o acorde em dó maior, formado como é lei, por três notas apenas: dó, mi, sol. Os seus elementos são os seguintes: tónica, mediante e dominante
Assim como o dó é base e apodo ao acorde referido, assim também a saúde, naqueloutro acorde. Dizemos, em regra que goza de saúde quem trabalha sem dores. É são e escorreito o que não enferma de moléstia. Basilar, pois, a nota deste acorde! Efectivamente, dinheiro e amor, estando ela ausente, para nada serviriam.
Fixemos alguém que seja doente: não tem apetite; dorme a prestações; não pode trabalhar; a nada acha graça; não tem gosto de viver; foge do convívio; mergulha em tristeza; numa palavra, é infeliz!
O dinheiro, se o tem, nada lhe diz: não fala à alma. O amor, embora narcótico, não tem ambiente nem pode cultivar-se, num peito enfermiço. Salud, pois, em primeiro lugar!
Alcântara\1981-03-23 Medalha ao Peito/\ Lenine
/
Ouvindo este nome, fiquei assustado. Seria possível! Que ligava o finado, aqui, em Alcântara, à memória do Russo que o mundo conhece? Fosse como fosse, o nome era exacto. Mandei repeti-lo à mãe do finado. Com toda a unção e afecto maternal, volveu com firmeza:” Lenine, sim ! Era meu filho!
Casado recentemente, deixou esta vida, onde estão agonizando aqueles que o amam. Era tão bom este filho estremecido! Aih que saudade, meu santo Deus! Amigo da família, chefe idolatrado, no lar que fundara, reprovava a injustiça, e falava dos pobres e quaisquer infelizes, com imensa ternura.
Que filho aquele! Que prenda adorada o Céu me ofertou! Mas perdi-a, infelizmente!” Comoveu-me esta mãe! A firmeza acalorada, posta em sua voz; a certeza profunda de que era um filho ideal; o rosto enluta do que as lágrimas sulcavam; tudo isso foi razão para deixar-me na alma um sulco de amargura!
Por fim, retira do peito a grande medalha, que ostenta orgulhosa:” Era este o meu filho! Que belo rapaz! Formoso no corpo e belo na alma!” Em seguida, vira a outra face: “Esta que vê é aquela avó que adorava o netinho!
Para remate do conciso falar vêm pressurosas, quentes e atrevidas, lágrimas de fogo.
Jamais esquecerei esta mãe saudosa, que a fé ilumina, a esperança nutre e o amor estimula.
MEMÓRAS 34
Alcântara
1981-04-11 “Crux”(cruz)
Perdoem os leitores o repisar de matéria que vai seguir-se. Por demais é sabido que “não há bela sem senão”. O nosso povo estilizou a experiência, no célebre adágio, Contra factos, não valem argumentos, o que me leva a aceitar o famoso anexim, não tergiversando.
A Língua portuguesa, pela sua harmonia, doçura e beleza,( não fosse um idioma de líricos egrégios!), enferma também, como é natural, de alguns senões, que devemos limar, com pronta diligência e cuidado extremo. È o caso do s, do x e do z, quanto a pronúncia, um tanto
descuidada. Sendo meticulosos, evitamos o pior, libertando a linguagem de sons desagradáveis, que afeiam e desdouram! Os brasileiros servem de modelo. Há pouco ainda, ouvi pronunciar a palavra crux como sendo ‘cruch’. Fiquei horrorizado, sem pinga de sangue !
É o grande senão da Língua lusa. Curioso notar que forasteiros e assim turistas apanham somente os sons horripilantes! Perguntou-me um alemão, em 1964, se o Portuguès é a Língua do x x x e do ão ão ão.
Como então me senti! Atordoado, não sei já que respondi, mas julgo ser isto: não é essa a pronúncia, utilizando-a somente as camadas populares, ainda ignorantes. Entretanto, aqueci ao rubro. Não havendo cuidado, a partir do lar e da Escola Primária, transforma-se esta Língua,
harmoniosa e sublime, numa chiadeira que faz arrepiar os próprios nacionais! Que farão os estrangeiros! Lutemos, pois, embelezando o nobre instrumento da comunicação, a fim de evitar reparos graves, que melindram e ferem! Não esqueçamos jamais o elogio da nossa Língua, por Rodrigues Lobo e pelo cego, Feliciano de Castilho. o gigante máximo das nossas Letras!
Alcântara-1981-04-12 Professor corrosivo
Situa-se ele, com toda a verdade, entre os flagelos, que assolam a Terra. Minimizar! Fazer pouco de alguém! Destroçar o próximo, invalidar seus próprios dons, tornando-o inepto para os combates que a vida exige. Haverá males aí que excedam este?!
O aluno indefeso é cordeiro submisso, levado ao matadouro. Não diz palavra! Não esboça um gesto! Não assume atitude. Lá vai ele, pois arrastado e ferido pelo duro carrasco, via-destruição! É filho, por vezes, de um lugarejo, em viver primitivo!
Ele, que era nada, pelo meio ambiente do nascimento, vê agora aumentados seus fundos complexos! Um ninguém genuíno que pretende avançar, mas tudo lhe cortam. O seu nervosismo impede o raciocínio, levando o professor a juízos falsos de capacidade, que o matam para sempre! Não és capaz! Umas cabrinhas! Arranja outro ofício! Que farás tu, lá em Matemática?! Pois em Filosofia?! Erraste o caminho! Vai, sem demora, amanhar as leiras, que esperam por ti! São estas, na verdade, as frases assassinas dos grandes malfeitores da nossa juventude, com origem no campo. Reputo isto um crime sem nome, pois destrói as bases da pessoa humana, atirando-a breve para a lixeira-
Alcântara-1981-04-13 Professor doente
Sendo enfermiço, há-de ser faltoso, dando aos alunos grave prejuízo. Interrompe as aulas? O mal é sem remédio. A experiência o demonstra. O aluno destreina-se e perde a embalagem, ficando realmente, sem qualquer incentivo.
Queira ele embora, não consegue jamais, reter de vez o fio da meada! Perdido este, desaparece o gosto, nada lucrando ou muito pouco. Por estas razões, o Mestre em causa não se encontra em circunstâncias de cumprir o seu dever.
Portanto, só tem um caminho: deixar o cargo, tentando viver, mas de outra maneira. Numa sociedade, mal organizada, em que falta a Assistência, procura o docente manter-se no cargo em prejuízo manifesto de seus educandos. Que há-de ele fazer?! Morrer à fome?!
Noutras sociedades que prestam auxílio, o caso é diferente. Recorre ao Seguro, Caixa ou Previdência, que deferem pedidos, verificadas que sejam as razões para tanto,
Assim, tudo concorre para bem de todos. Na verdade, o professor doente só tem um caminho; deixar o Ensino, pondo o seu lugar à disposição de pessoa escorreita.De outra maneira, só calamidades afectarão o mundo
A lcântara\1981-04-14 Ossadas
Perturbo-me sempre, ao vê-las em montes, quer no cemitério, quer em longas valas, abertas a esmo. Mirradas e secas, já carcomidas ou ainda lisas, falam dum passado, que nós não vivemos nem tão pouco sentimos, embrumado em mistério e atreito a perguntas, que fundo nos tocam. Sejam elas embora de animais irracionais, encontra-se nelas a estrutura basilar, que permitiu acção, trabalho e movimento. Ossos de um herói?
Talvez dum Santo? Ossadas veneráveis de pais dedicados? Entes queridos? A alma apartou-se para o lugar destinado. Somente Deus conhece o destino, que ela seguiu.
Embora sem vida, associamos tudo, olhando para os ossos. O arcaboiço firme desmoronou-se já. Desconjuntaram-se nele as articulações? Não há vida nem sorriso? Não há jeitos cativantes, atitudes magoadas ou sinal de euforia?
Já houve de tudo!
Entretanto, nem sempre os ossos falam de modo igual ou infundem respeito. Foi o caso há pouco. Seguia alheado pela berma da estrada, quando ergo os olhos e os fixo num vulto, ossudo e mirrado. Fico perplexo: lívida pele cobria a custo esses ossos emergentes, tão falhos de simetria, elegância e bom gosto!
Alcântara
1981-04-15 Ex-combatente em Moçambique
Ocorreu em Belém o nosso encontro, já perto dos Jerónimos. Conversando por largo, deixei expandir o interlocutor, que abriu seu espírito e gizou em palavras seu próprio retrato. Sendo eu todo ouvidos, intervinha raramente, não perdesse o ensejo de bela motivação, para o meu Diário.
Sentados num banco, à sombra amiga de plantas generosas, decorria a tarde, já um pouco agreste. Diz o meu parceiro, em momento oportuno:”Combati em Moçambique hoje, estou aqui! Foi bem? Foi mal? Uns dizem que sim; outros, que não! Se eu errei, Deus me perdoe! Era bem- intencionado! Que eu acredito. Ele me perdoe faltas e pecados!
É o que me resta. Do mais, já nada espero. Os homens são falsos; amigos não tenho; a própria Religião apresenta deficiências!”
Aqui travei a marcha, impedindo o raciocínio, para corrigir: a Religião não tem deficiências! Foi Jesus Cristo quem nos ensinou, prometendo a assistência do Espírito Santo. Os homens, sim, é que têm deficiências! Não acha?!
-- Concordo, sim, anui de bom grado, o meu expositor! Como o Sol declinava, fizemos despedidas, prometendo encontrar-nos, em tempo favorável
Alcântara\1981-04-16 Professor obstinado
Um género novo de pedagogia, que é também uma chaga de que enferma a sociedade. Era já bastante seu mau proceder e sua incoerência! Obstinar-se, porém, levado por teima, é desgraça maior. Lembra-me um caso, ocorrido em tempos, entre mim e certo amigo, que já partiu deste mundo.
Em conversa amigável, sobre tema olvidado. vieram-lhe ao de cima as palavras seguintes:”Já o tenho ouvisto!”Caiu-me tão mal o particípio passado do verbo ouvir, formado ali por analogia com o verbo ver, que emendei abruptamente: talvez o meu amigo, que é também professor, já o tenha ouvido!
A minha intervenção feriu-o de morte, levando a pessoa quase à fúria incontida e persistindo em seu dislate. Nada mais eu pude fazer senão presenciar uma cena ingrata, em que um homem se aviltava, a seus próprios olhos.
Que fará numa aula um professor deste género? Corrigido, às vezes, pelos alunos, persiste no erro e, sempre teimando, lança o descrédito na matéria em questão. Eu pergunto: que pode ele ensinar? Opiniões avariadas só causam dano à pobre
sociedade!
Alcântara
1981-04-17 “Não há fome aí que não dê em fartura!”
Julgo-me na linha de outros rifões, assaz conhecidos, tais como estes: Nem sempre o diabo está atrás da porta; o tempo tudo leva e tudo traz; atrás de tempos, outros tempos vêm; não há mal que sempre dure nem fome que sempre ature.
O nosso povo, humilde embora, revela, muitas vezes, fina psicologia. Fruto de experiência? Jogo do acaso? Confiança em Deus? As razões serão muitas, segundo as circunstâncias, ma tenho para mim actua mais forte a esperança em Deus. Efectivamente, é Ele quem governa.
Poderia abandonar a sua feitura o Deus bondoso que tudo acarinha? Sendo perfeitíssimo, nada pois exclui. A tudo está presente, com seu poder e sabedoria. È por isso mesmo que o povo cristão, sabendo a valer que Deus é Bom e tudo encaminha, segundo o que é recto, acredita, a fundo. que há-de haver solução para todos os casos, sem excepção.
Deus é Pai de Bondade e Misericórdia! Senhor Justo e Santo. Ora bem. Não fazia sentido que deixasse na desgraça, por tempo ilimitado, os pobres mortais. Age e impera, solicita e impõe, tocando e movendo corações e almas.
Devido a esta acção que eu julgo decisiva, tudo se modifica. Deus-Providência ama o que fez , pensa nele sempre, acompanha-o solícito e nunca o olvida.
Alcântara\1981-04-18 Os anos da Leninha
Passaram a 15 do mês corrente, embora o copo de água fosse a 18, em sábado Santo. Dissera eu antes que não iria talvez a Talaíde, por via das canseiras e vários encargos, na Semana Santa. Apesar de tudo, orientei os afazeres noutro sentido e pude estar presente, embora menos tempo do que realmente seria desejável.
Com esta mira, por volta das 4, havendo almoçado e feito um funeral, apanho o eléctrico e entesto para Algés. Termina aqui o limite do Passe e urge pagar, adquirindo bilhete. De momento, à estação do comboio! É a linha de Cascais. Num simples credo, chego a Paço de Arcos. Há um sério problema, nesta localidade: subir os degraus, a passo acelerado. São eles bastantes e não posso ir de espaço!
A carreira parte em breve, com destino a Talaíde. Importa avançar, custe embora muito. As vistas, porém, são maravilhosas! Primeiramente, a água do Tejo, espelhada e azul, reflectindo o céu. Depois, os campos verdejantes, em larga extensão, a perder de vista! É a Primavera, em sorriso amável, fazendo a nossa vida assaz deleitosa.
Vem Porto Salvo, de prédios novos e cheio de conforto. Dentro em muito breve, depara-se a legenda “Talaíde” 1 quilómetro. Alvoroço-me então e vivo o momento ! Há um ano já, que lá não vou. Afazeres e cuidados não o têm permitido. Agora, pois, ia vê-la de novo e darlhe beijinhos. Levo comigo um livro de contos, por António Boto. Decerto vai gostar.
Alcântara\1981-04-21
“Ontem, fui rei com trono/ Hoje volto à rua/ Restituo o fato ao dono/ E a miséria continua.
A tertúlia de Belém ia já deixando sua longa esteira. Desta feita, veio logo a pelo António Aleixo. Não raramente, oculta-se o talento sob humilde roupagem, que não deixa adivinhá-lo, à primeira vista. É o caso de Aleixo. Segundo referiu um seu admirador, era homem do campo, rude e obscuro.
Um dia, porém, no Sul do país, alguém sugeriu fazer-se um concurso, atribuindo prémios que fossem chamariz. Como era natural, acorreram poetas, já de muita fama e de nome consagrado; vieram outros que tentaram firmar-se; em terceiro lugar, apareceram também Artistas obscuros. Entre eles figurava Aleixo.
Criado, pois, o júri, a fim de avaliar o estro poético, verificaram ali, com grande surpresa e alto espanto ser o vencedor de todo ignorado. Ninguém ali há que não deseje saber quem é o tal poeta. Quem leva então os prémios todos. Anseiam por vê-lo e até falar-lhe. Chamado â tribuna, surge desde logo um ser desmazelado, rude e andrajoso: É António Aleixo.
Mandam vesti-lo, emprestando-lhe então vestuário adequado, para não destoar. No dia seguinte, alguém o encontra, já vestido como outrora. “ Então, Aleixo?!”
Sem hesitar, volve logo a resposta:” Ontem, fui rei sem trono/ ….
Alcântara/ 1981-04-22
“ Se eu alguma coisa digo\ E o hálito à boca puxo\ Sobem as tripas e o bucho\ A escutar se eu mastigo.”
Em amena conversa, lá para Belém, à sombra das árvores, trocamos impressões, de natureza diversa. Tudo vem a pêlo, segundo as preferências. Agora, coube a vez a Bocage, o poeta repentista, que alagou seu estro em álcool e miséria.
Seria já bastante a angústia moral, que vinha certamente de ver-se logrado, em vivos amores. Alguém se atravessara, ocultando para sempre a luz que o guiava. Por outro lado, génio insatisfeito, aspirava a muito mais do que a vida oferta.
Fadado estava assim para beber, um dia, até às próprias fezes, o cális da amargura. Entretanto, como se fora pouco, veio ainda a miséria bater-lhe à porta, o que breve gerou aquele improviso que fica ao alto. Deixo-o exactamente conforme o ouvi.
Estará erra do? Não será de Bocage? Ignoro isso tudo. Quanto à métrica, é aceitável! Por outro lado, acusa repentismo
de carácter realista. Infeliz Bocage! A traição do irmão, roubando-lhe a noiva, fez-lhe da vida um longo inferno! Levado pelo ciúme que fundo o queimava, arrastou a existência em dor e martírio, álcool e farra.
Apesar de tudo, soube morrer bem e não foi tão vil como em geral se aponta!
Alcântara
1981-04- 23 Professor céptico
Eis novo tipo de forte calamidade! Entre as pragas diversas que infestam o planeta, ocupa certamente lugar primacial, na escala de valores, que chamamos negativos. Esta espécie de gente em nada acredita! Retira assentimento a Deus e aos homens ou pelo menos a estes.
A qualquer observação que outrem lhe faça, encolhe seus ombros, rindo escarninho! A dúvida, afinal, é pão quotidiano. Suspeita e desdenha, lançando descrédito, nada poupando. Para adolescentes é veneno corrosivo, que logo actua, desfavoravelmente.
Que será, portanto, dos educandos, entregues à sorte?! Melhor seria, realmente, ficarem ignorantes! Se abrem os olhos. é para duvidar; se entram em diálogo, é só para descrer! Pobre sociedade, em que grassa a descrença e alastra a dúvida!
O cepticismo é como vendaval que nada respeita! Furioso e louco, irrompe de chofre, levando à passagem quanto se oponha!
Na idade generosa, em que nascem, como regra, os nobres ideais, tudo fica amarfanhado, só para crescer e avolumar-se ainda o tremendo cepticismo!
Alcântara/ 1981-04-24 Professor inovador
Inovar é fazer alguma coisa, por maneira diferente, afastando-se, pois, da via habitual. Passando-se o caso na esfera do Ensino, poderá ser útil ou muito nocivo.
Sendo método novo, habilmente elaborado, para uso dos alunos, a coisa vai bem. Entretanto, se dá para o contrário, rebuscando matéria que junta ao programa, porque a sua estimativa a julga necessária, cá temos o mal, ingerindo-se no Ensino.
Manuseiam, a propósito, vários livros, a esmo, fazendo amálgamas que só desorientam a mente dos alunos. De facto, geram para logo enorme confusão, operando no espírito bem sérios distúrbios. Dá-se este caso, nos jovens professores que, falhos de tacto e cheios de ‘peneiras’, aspiram a fazer o que outros não fizeram.’ por não ser capazes’! Bela teoria!
“Os outros não souberam! Não tinham capacidade! Vou-lhes provar que faço melhor, corrigindo seus erros!” Empáfia assim, atinge o grau máximo! Empavonados, pois, atiram-se à conquista de novos troféus, para demonstrar o grau de inteligência e belos resultados.
Pobres alunos, que baralham tudo e nada aproveitam!
Alcântara/ 1981-04-26 Primavera
Eu te saúdo, linda Primavera, que adornas os campos, entornando em meu peito caudais imensos de luz e amor! Em 1972, fui-me de longada para solo africano, onde o clima diferente riscara teu nome. Por longos 8 anos, deixara de ver-te e o meu coração ansiava por ti! Suspiros e lágrimas, soluços e ais erguiam no seio funéreo cortejo e triste cantar!
Também os olhos aguados te andavam procurando, em solo africano, mas sempre em vão! Os últimos 4 anos, em zona semi-desértica do árido Sudoeste, agravaram ainda a triste situação. Não fosse a Namíbia! Poderia encontrar, em terra abrasada, um sorriso dos teus?!
Aih! Primavera florida, graciosa, suspirada, como andava sequioso de ver o teu rosto! Por Deus do Céu, que voltei a Portugal, contemplando agora teu olhar risonho, que entorna em minha alma o bálsamo da paz! Onde quer que me encontre, aí te descubro, olhando com amor o teu rosto fagueiro! Sinto cá dentro a chama reacender-se!
És tu que me alentas, fazendo que eu regresse aos tempos de outrora! És tu que enlevas, nos canteiros dos jardins da nossa capital; nas plantas remoçadas, que embalsamam os ares; nos relvados virentes, que o gado vai tosando; nas boninas humildes que esmaltam os prados; no gorgolejo das fontes, que tu mandas jorrar, para alívio dos homens e prazer dos animais.
Alcântara/ 1981-04-28\ / Venho de Trabalhadores
Ouvi milhares de vezes repetir o estribilho: “Os direitos sagrados dos trabalhadores!” Também eu próprio estou de acordo! Não devo opor-me (não posso fazê-lo) aos direitos dos humildes, que são espezinhados e, tantas vezes, olhados com indiferença. Isto vem já de séculos!
Razões para tanto: por ser injusto, cruel e desumano; por ser, na verdade, contra os meus princípios de homem honesto; porque a minha afinidade protesta e se indigna,
Perante as razões, alinho na fila dos insurrectos. Apesar de tudo, condeno a violência, o ódio, a fúria; detesto e reprovo os meios utilizados; rejeito, por igual, a subordinação a batutas de fora; verbero e repilo soluções colectivistas, de carácter marxista.
Não precisamos de figurino estrangeiro, que nada tem a ver com o nosso caso e encerra veneno para a independência!
Vencimentos e salários devem ser actualizados; há-de haver trabalho; surjam garantias, contra a exploração; encaminhe-se até uma parte dos bens, em favor da cultura, assistência médica, religião e moral, assistência à família , protecção e abrigo para os infelizes e assim por diante. Tudo isto é humano, aceitável e bom.
Entretanto, não vamos loucamente para greves contínuas a capricho de alguém que, tantas vezes, +e comandado de fora! Não podemos igualmente admitir, sem controlo, a subida de salários.
Não se pode tolerar o uso da mentira, como arma e subterfúgio, para enganar o público! É preciso sanar pela moralidade! O ensino das gentes e a prática da moral são necessárias na vida social.
Não que se trate agora de encolher os ombros, pactuando também com a exploração. Há uma série de problemas a que deve atender-se. Ignorar ou omitir é fechar os olhos a sérias realidades.
Queremos um governo que sirva para todos e não proíba ou então descure a iniciativa privada. Igualmente desejamos que não tolha a ninguém a liberdade de culto e outros direitos que são inalienáveis.
Alcântara/ 1981-04-30 Professor ateu
Entre os males horríveis que assolam a Terra, figura o presente, com alto-relevo. De facto, não faz sentido nem se justifica tamanho disparate! Professor ateu. se realmente existe, não serve para nada: falta-lhe a base, para assentar
quaisquer directrizes, colhendo bom fruto. Onde busca ele estabilidade bem como solidez, para aquilo que ensina?! Sem o nosso Deus, é tudo uma incógnita! A vida presente não tem sentido! Os problemas do homem atropelam-se todos e fazem montão!
Digo afoutamente: professor ateu é grande absurdo e, como tal, deve ser recusado! Que argumento serve, para dar incitamento à prática do bem?! Para aconselhar os seus educandos a ser respeitadores, gentis, esforçados ?! Amar o próximo, vida e bens?! Ser diligente, prestável, generoso?! Para o ateu não existe motivo!
Se tiramos Deus, perdemos logo tudo o que pode sustentar os nossos ideais, Sem Ele, de facto, nada subsiste! Sendo, pois. assim, quem entrega seus filhos a um homem como este?! Só danos tremendos pode causar, eliminando as raízes que prendem a nossa alma aos grandes problemas.
Direi mais: o professor ateu é grande malfeitor, fazendo perigar a vida do homem, que é pertença do Alto.
Lx. \ Belém /1986-05-02 Cena da Masseira
Era costume, lá na minha terra, dar o grão a moer. Para tanto, deslocavam-se ali diversos moleiros, cuja missão prezávamos todos: levar o grão de nossas casas e trazê-lo, depois, reduzido a farinha. Serviam-se de azenhas, movidas a água.
O processo em voga era antiquado, mas ia servindo, à falta de melhor. Após a entrega da útil farinha, as donas de casa logo a peneiravam, para dentro da masseira, a fim de extraírem o que não fosse prestável.
De tal operação resultava o farelo, destinado habitualmente à vianda porcina ou ainda âs galinhas, que se desunhavam, para alcançá-lo, em primeiro lugar. Em trabalho de peneira se encontrava Ana Rosa, já dentro de casa.
Eu, criança ainda, ao vê-la ocupada, entrei prestesmente a choramingar, em volta dela, estendendo os bracitos, em direcção à peneira. O velho António Cândido, interpretando errado as minhas pretensões, leva-se dos diabos! Pensava, lá na dele, que eu intentava penetrar na masseira. Ante a minha insistência, arreda-me da esposa, com desenvoltura, falando áspero;”O demoncho do rapaz não quer ele ir para dentro da masseira!
Habituado como estava a ser tratado sempre com muito carinho, tanto em minha casa como ali também, começo a chorar em alta gritaria. A idade era pouca: não falava ainda!
Entretanto, lembro-me bem. Que sucede, em seguida? O que ele não esperava! Surge, de repente, como um raio do céu a solícita mãe, interpretando a rigor as minhas pretensões.
Ao vê-la aparecer, inesperadamente e algo alterada, repete ele as causas, para justificar-se:” O demoncho do rapaz tomou uma Nisto, começa ela a expor o seguinte, com determinação:
”Meu rico filhinho! Não era para masseira que ele queria ir! Era ficar de frente, a ver peneirar! Estava assim habituado, lá em minha casa! Quando peneirava, sentava-o sempre em frente da masseira!
O pobre António Cândido fica fulminado, mas enfim! O mal estava feito! Aguentar e cara alegre!
Como são as mães! Anjos de Deus, enviados lá do Céu, para nos lembrarem que o Senhor é bom! Na verdade, foi Ele decerto, quem no las deu. Que o Céu as recompense, na eterna glória!
Belém \ !986-05-03
Lugar de Encontros.
Os meus jogos inocentes.”Às Pedras”. Designávamos assim uma parte da Rua, situada a meio, entre a casa de Ana Rosa, ( a ti Ana) e a casa paterna. Havia ali umas rochas, já delapidadas pelos agentes de forte erosão, em cima das quais se firmavam as paredes das casas vizinhas: a de minha tia, Conceição Inês e a de Ana Rosa.
Junto da segunda, havia também um canto exíguo, que eu aproveitava, para jogar” às Pedrinhas. Minha mãe privava-me do convívio, exercendo sobre mim rigorosa vigilância.
Receava a fundo que me ferissem ou contagiassem! Não sei. Sucedia, porém, que na Rua da Portela, para a banda do Terreiro, havia um casal de bom comportamento,: o senhor Manuelzinho e a senhora Dosanjinhos. Destes dois, brotara um rebento, que era da minha idade – a saudosa Lestinha.
Por ser sossegada e muito bondosa, minha mãe não punha entraves ao nosso passatempo. Assim, jogávamos ambos horas e horas, até que da janela ou ainda da porta , chamassem os dois, para almoçar. Ali, porém, gastávamos o tempo, que rodava ligeiro, sem que desse mos conta.
De outras vezes, era eu também que me deslocava à sua testada. Ensombravam-na ali velhas oliveiras, talvez já centenárias. Uma delas estendia seus ramos , por cima do barranco. Ora bem. Que havia de lembrar ao senhor Manuelzinho?
Fazer um balancé, para nós folgarmos.
A 60 anos (longa distância) lembro saudoso a minha parceira. Chamou-a o Senhor, em tenra idade, para dar-lhe o Céu. Por esta razão, fiquei eu privado da sua companhia. Coube-lhe, na verdade. melhor sorte que a minha. -100
Do lado contrário ao “Canto das Pedrinhas”, avultavam as rochas, um tanto desagregadas, a que já me referi. Constituíam elas forte chamariz, para se encarrapitarem as buliçosas crianças. O caso, porém, nem sempre ocorria.
Expostas a Poente, começava apenas a dar-lhes o Sol, por volta do meio-dia. Faltando insecticidas, aproveitavam as donas de casa tais facilidades, para caçar as ágeis pulgas. Traziam de casa os velhos cobertores, que usavam nas camas, estendendo-os nas lajas, a todo o comprimemto.
Nessa altura, estava ocupado o lugar predilecto. Divertia-me, no entanto, a ver saltar as lestas pulgas ao sol esbraseante, que ali entestava. Mesmo juntinho, via-se também enorme bacia, cheiinha de água, As pulgas infelizes, após o rebentamento, eram lançadas em banho de imersão
Belém/ 1986-05.-04 A Loucura da Caça
A diferença na idade, entre mim e meu irmão, é só de 4 anos e alguns meses mais. Sucedia, no entanto que, sendo ele bebé, já me encarregavam de tomar sentido, com a mãe ausente. A vida campestre absorvia os pais, que tinham de labutar, para fazer frente às despesas da casa. Por esta razão, dizia minha mãe: “Ficas aqui no pátio e não deixas o menino! Ouviste?”
Bom! Lá ficávamos ambos, esperando ansiosos, que os pais voltassem. Entretanto, vinham da Portela os primos Carrapichanas – António e Manuel. Às vezes, também os acompanhava a mais nova dos três, a prima Céu. As restantes nasceram depois.
Da casa do avô abriam a janela, que dá logo em cheio para o noss pátio, e mostravam desejo de fazer-nos companhia. Por isso, lançavam a pergunta:” Ó Pedro, deixas-nos ir para aí?”
Como se vê, eram delicados, A tanta gentileza não podia resistir! Dizia, no entanto, o irmão do António: “O vosso Manuel bate-nos!” Atalhava eu logo: não bate, que eu não deixo! Passados momentos, lá surgiam eles. Já éramos 5 para a brincadeira! Trocadas impressões, levantavam-se logo inúmeras saídas, para o caso pessoal: andar à raposa; jogar ali ao escondedor e coisas do género.
Acontecia também haver caçadores, no seio da família: os nossos tios dedicavam-se ao desporto. Levados agora por forte desejo de imitação, pergunta o mais velho: Ó Pedro, vamos à caça? O nosso Manuel é o cão! Subimos o Oiteirinho e arranjamos coelhos! Feito o convite e pesadas em breve as consequências do facto, tudo o mais esquecia.
Improvisámos armas, com a máxima urgência, servindo qualquer pau, atado a um baraço, que fazia de
Bandoleira. Neste comenos, arrancamos dali, ficando o bebé, sem qualquer protecção. Recomendações, pedidos e instâncias, ameaças e castigos tudo se olvidava.
O que faz a inocência! O que traz consigo a falta lastimosa de capacidade! Minha mãe foi sempre rigorosa! O que ela mandava devia cumprir-se! Bem eu o sabia! Apesar de tudo, esquecia totalmente as lições do passado! Agora,
Oiteirinho acima, busca daqui, busca dali, batíamos diligentes os esconderijos, levantávamos lousas, pesquisávamos silvados! Nada aparecia, que era muito perto da zona povoada! Contudo, aquilo realmente, enchia-nos de gozo!
Muito ufanos, embora sem caça, voltávamos a casa, já fora de horas, aguardando-me, em tal caso, uma sova-mestra. Chegasse eu primeiro, tudo ia bem, mas não era isso o que sempre acontecia!
Belém / 1986-07-04 O Melro (cont)
A resposta exigida por certas perguntas, que fazia a mim próprio, nem sequer a dava, com receio enorme de vir a acertar. É que eu, na verdade, jamais o enxergara. Bem espreitava, alongando o olhar, por sobre os telhados, para fixar-se na antena mais alta, que se ergue em frente! Era vão o meu esforço! Teria emigrado? Fazia-me impressão que tal ocorresse!
Por vezes, inspeccionava atento a umbrosa figueira, que viceja aqui perto. O mesmo resultado! Coberta de folhagem, que veda o interior, era sítio azado, para o melro descansar. Pois não o sabia, de anos passados?! Entretanto, a figueira embora viçosa, atraente, colorida, permanecia muda, pesada inerte. A visita do melro, que amiúde ali vinha, deixara de ocorrer!
A sua voz, algo entrecortada, que os vizinhos perturbavam, sem prestar atenção, cessara de todo, ficando esta árvore, sem o belo cantor e visitante assíduo.
Bem dava eu tratos à mísera fantasia, para justificar tão amarga situação! Tudo baldado! Não obstante o caso, inquiria sempre, não viesse um dia fazer-me surpresa! De esperanças vivi, até fins de Junho. Certo dia, porém, na segunda quinzena, diz com entono a Maria Regina: “Sabe, padrinho, andam melros novos, ali no quintal! Ainda voam pouco. Até se deixam agarrar!”
A estas palavras, tento decifrar o sentido exacto do que estava ocorrendo. O velho melro teria feito o ninho nas plantas do Quintal? Muito enfolhado e sem visitantes recaíra a preferência no sítio em foco? Não me enganara! O nosso Isaías, irmão da Regina, confirmava, de facto, a minha suspeita! O novo casal tinha ali construído a sua moradia, para a criação
Agora, já eu tenho a chave de quanto sucedera. Nem presença nem voz! Porquê? Quem foi que lhe ensinou tal jeito de viver? A presença e a voz denunciariam, por certo o lar embalador! Por isso, nem tugir nem mugir!
Quem seria o cauteloso, inteligente e assaz calculado a vincar no seu instinto esses grandes cuidados?! Não vejo dificuldades em achar a resposta! Eu não fui, com certeza! Os vizinhos também não! Ninguém foi, decerto, cá neste mundo!
O Supremo Arquitecto, o Deus de nossos pais, criador e Providência, é quem tudo faz, com sabedoria.
Belém / 1986-07-04
As minhas Férias
Fiquei a saber o que elas eram, de facto, no tempo de estudante. Como então as vivia em toda a extensão! Após três meses de vida aperrada, em regime de Internato, sem convivência, no exterior, lá vinha o repouso e o contacto livre com a sociedde! Ainda assim, de portas a dentro, não era livre o nosso contacto, pois havia três grupos, incomunicáveis.
Em tais circunstâncias, olhava as férias como libertação! Oásis suspirado! Zona de alívio, em que podia ser eu e ter à minha volta quem me prezasse: pais e irmãos, vizinhos e amigos, com os quais, na verdade, podia falar, à minha vontade!
Era tão bom dispor de mim! Ser tido em conta! Avaliado como gente! Na verdade, o regime de Internato, lá no Fundão, ficava pesadíssimo! A pessoa não contava! Ficava diluída, na vontade soberana do velho Reitor, cujas prescrições não eram discutíveis.
Bom. Sendo isto assim, como não suspirar por esse tempo fagueiro, em que eu dava conta de ser alguém!
Acabados os estudos, veio seguidamente o exercício do múnus que, sendo modesto, em recursos monetários, não dava margem a que houvesse, realmente, os sobejos necessários, para gozo de férias. Mais tarde já, após a doença, que logo me atingiu aos 26 anos (hemorragia, na zona da retina), houve de trilhar um caminho diferente!
Consagrei-me ao ensino de Línguas vivas: Português e Francês, Inglês e Alemão, a que juntava o Latim, preparando para exame em 5 idiomas. A nova tarefa exigia muito esforço e tempo de sobejo. A fim de poupar os olhos doentes, usava sempre a telefonia, ficando assim ao corrente do que tinha a ensinar.
Dava isto motivo a que não houvesse férias, pois tinha de preparar-me convenientemente. Apesar de tudo, não perdi inteiramente a noção real do termo ‘férias’. Que eram para mim as férias desejadas? Um tempo de labuta, igual a tudo o mais. Fiquei, deste modo, escravo do trabalho, para subsistir!
Belém \1986-07-13
Este dia vai ser apertado. São 8 menos nove. Às 5 da manhã, iniciava eu já os trabalhos diários que, segundo é hábito, não postergo nunca. Perguntar-se-á: mas, para quê madrugar assim tanto?! Para mais, é Domingo! Repousar é, sem dúvida, um direito sagrado, mas, ao longo da vida, nunca eu usei tal privilégio! Umas vezes, não podia: outras mais, não queria!
Agora, às portas da velhice, é que vou alterar esta forma de agir?! Apesar de tudo, há coisas na vida que me dão prazer, logo pela manhã. Parte delas, embora o não dêem, são necessárias, como por exemplo, fazer a barba. O mesmo não digo, se pego, como hoje num Tratado de Harmonia, fixando curioso o circuito das quintas e lendo, a propósito as regras úteis que presidem sempre à modulação.
Também dá prazer um capítulo da Bíblia, em Línguas diferentes. Actualmente, prende-me o Inglês, a que faz companhia a Língua alemã, Depois, vêm funções de carácter religioso, das quais não prescindo. Finalmente, o dejejum, rematando a manhã pelo Diário escrito.
Às 9 horas em ponto, hei-de estar em Alcântara (Lisboa), para a lida habitual. Logo de entrada, há um funeral de serviço completo, seguindo o cortejo para o lugar da Ajuda. Após este, almoço previamente (caso contrário, não tinha tempo), volto de novo para Alcântara.
Às 13 horas, levam-me a Benfica, onde terá início outro serviço fúnebre, para o cemitério local. Ultimado este, vou ter com o Serra. É um encontro marcado, em sua própria casa, lá na Amadora. O objectivo é tratar dum assunto, com certa relevância: trocar impressões, sobre a publicação do meu primeiro livro.
Apreciaria, a valer que saísse este ano, lá para Novembro ou então Dezembro.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
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