sexta-feira, 29 de julho de 2011

Memórias 36

Manteigas
3-2-1972

Manhã Submersa

Li, há poucos dias, a Manhã Submersa de Vergílio Ferreira. Do seu autor nada conhecia, a não ser os títulos e breves referências, que via na Imprensa ou ouvia oralmente. Juízo pessoal não fazê-lo, uma vez que os dados não tinham peso. Agora, porém, o caso é diferente. Li e reli, meditei e senti o que ele escreveu.
Os lugares que descrevem e as pessoas que atingem são do meu conhecimento, pois algumas delas ainda não morreram. Horas más que viveu, momentos angustiosos que o feriram na alma, também eu os senti, nos mesmos lugares. A impressão geral, após a leitura, é que ele, de facto, está dominado por forte obsessão, que o não deixa manter o equilíbrio necessário, para avaliar com justeza e rigor, os homens e os factos.
Frequentei o Seminário quase ao mesmo tempo. Foi até na velha fábrica, onde passei, meu Deus, horas más e ingratas! O autor aludido ficou odiando certas pessoas, atingindo menos as que eram mais amigas. Não acho justo o seu rancor! Pelo menos, condenar o proceder, não atingindo, por modo violento, as que dedicavam bastante afeição.
Faria hoje a mesma coisa?! Há, na verdade, aspectos bem focados, que exigiam, para logo, uma reforma total Entretanto, a mão de Vergílio devia ser mais leve, passageira, aveludada, para salvaguardar a boa intenção.
Adivinha-se ali o escritor do futuro, se bem que, por tratar-se dum ensaio, as figuras actuantes não sejam, de facto, delineadas, a fundo, na sua maior parte Os primeiros passos revelam insegurança, em todos os escritores Tempo viria, em que a mão firme e o juízo sereno deixariam já, para os vindouros, obra capaz.


Manteigas
6—2-1972

LUSÍADAS

O programa dos Lusíadas chegou a seu termo. Tive a impressão de que os alunos vibraram, acordando então para certos ideais. Grande livro para jovens e para toda a gente! Pela minha parte, dei-lhe todo o interesse e ganhei-lhe afeição. Foi propósito firme apresentar claramente a estrutura do poema assim como também a sua filosofia.
Creio piamente não haver perdido tempo, visto que os alunos assim o revelaram, ma última prova. O mesmo se diga, quanto à redacção. Fiquei satisfeito, já se deixa ver, pois foi meu intento fazê-lo palpável, sentido, eficiente. Assim, por exemplo: este ano, maneira de ver, um tanto diferente, no tocante ao herói, quer dizer, o protagonista, melhor ainda: o realizador da acção
Distinguimos nítido: poema épico e acção central. É que, na verdade, a Epopeia Nacional ficou entretecida de várias acções, o que intento expor, lá mais adiante. Em razão disto, é conveniente arranjar protagonistas que levem a cabo as referidas acções.
As palavras do poema “ Que eu canto o peito ilustre lusitano”referem-se, bem entendido. ao povo português, incluindo assim todos os factos notáveis, sem exclusão da acção central, levada a efeito por Vasco da Gama. Entretanto, como o descobrimento do caminho marítimo para a a remota índia tem mais importância, por ser um facto de projecção internacional, considera-se àparte.
Dividiremos, pois, este belo poema em acção central e acções satélites, as quais em conjunto formam um todo: a Epopeia Nacional. Herói da Epopeia -- o povo português.

Herói da Acção Central -- Vasco da Gama.


Manteigas
7-2-1972

Retomando, para já, o fio da meada, achamo-nos inquirindo, sobre o herói dos Lusíadas. Encontramos nos Lusíadas várias acções, todas elas, afinal, igualmente notáveis e de suma importância . Não sucede o mesmo com a Eneida de Vergílio , em que o poeta latino apresenta, de facto, um só protagonista: “Arma virumque cano” ( eu canto as armas e o herói ).Está Eneias em causa. É ele, pois, o herói do poema.
Comparando este passo com os dizeres do nosso Camões, a respeitp do assunto, ressalta visível a diferença entre os dois. A acção central dos :viagem do Restelo rumo à Índia, sob comando Gama; viagem de Tróia, rumo ao Lácio, sob comando de Eneias.
No poema lusitano, além da central, há outras acções de alta importância: a dos heróis da Índia, apresentada no Canto X e narrada por uma ninfa a Vasco da Gama, na Ilha dos Amores; a dos heróis do nosso Continente, exposta, no Canto VIII e relatada por Paulo da Gama, ao Catual da cidade, na Armada Portuguesa, em frente de Calecute; a dos reis da primeira dinastia, historiada por Vasco da Gama ao rei de Melinde e exposta no Canto III; a dos reis da 2ª Dinastia, no Canto IV e exposta por Vasco da Gama.


Manteigas
8-2-1972

Que deve entender-se por “ acção do poema”? É o facto heróico, ao ser exaltado. Sabemos da História que o povo português realizou, no passado, feitos grandiosos, que lhe dão lugar àparte no concerto das nações. Como se vê daqui, nem a própria estrutura do poema nacional é cabalmente imitada. como era de preceito, na época de Quinhentos.
Já nem aludo à forma do verso, que nada tem a ver com a de Vergilio. Este recorreu à quantidade; Camões ao número de sílabas, acentuação e rima, como se vê, nos poetas italianos -- Ariosto e Torquato. As semelhanças quadram-lhe bem, pois que, sendo obra do Renascimento, era obrigatório como lei da Escola, cingir-se aos ditames que a mesma impunha aos Artistas do tempo.
Notamos, pois, que a métrica de Homero e bem assim a de Vergílio se baseia sempre na quantidade , (tempo gasto, ao pronunciar as vogais, breves e longas)e no número de pés ( agrupamentos de sílabas). A da nossa Epopeia diverge totalmente, uma vez que se baseia no número de sílabas, acentuação rítmica e rima como adorno.
Mesmo quando imita, por imposição da Escola seguida, o vate é original. O seu génio criador e a beleza da Língua proporcionaram-lhe meios, para subir alto e assim evidenciar-se. A imagem viva, a comparação, bem ajustada, aliterações e harmonia são trunfos de primeira , na sua pena adestrada.
Que dizer, por exemplo, se comparamos alguma vez a Vénus dos Lusíadas com aqueloutra da Eneida? Dia e noite, calor e gelo A Vénus de Camões fala-nos à alma; a outra nada nos diz!


Manteigas
9-2-1972

Voltando agora os olhos para os elementos da Epopeia Nacional, esclareço, a propósito, que juntei mais um aos que eram tradicionais. De facto, a um poema único, sem precedentes, na História Universal, o qual em tudo é grande, não podem convir e, muito menos ajustar-se os elementos tradicionais.
Assim, portanto, aos 4 já sabidos ( acção, personagem, maravilhoso e forma ) sobrepõe-se outro, que é o assunto. A acção é múltipla; a personagem, múltipla; o maravilhoso, misto. Quanto à forma, conferem-lhe, desde logo, individualidade os primores da nossa Língua. Quanto ao assunto, cabe agora dizer que é múltiplo também. Não é tal poema a glorificação de um grande povo?!
Mas dentre as acções levadas a efeito por uma raça, deveras gloriosa, algumas ali há que o poeta seleccionou, para não afastar-se completamente da linha tradicional. Preferiu ele e tomou para assunto a história gloriosa de Portugal, no mar; Portugal missionário e também guerreiro.
É este, portanto, o assunto do poema, quer dizer, as acções incomparáveis que implicam denodo, esforço notável; grande sacrifício e alta doação, desprendimento da vida e amor intenso da glória perene
“Epos” vem do grego: significa ‘narrativa’ É já dos velhos tempos receber unicamente como assunto de epopeia acções gloriosas. Esta linha foi mantida , sem nenhum desvio, mas o poeta luso acrescentou-lhe um dado único também: não memtir! É este, sem dúvida, um cunho inconfundível. Ao passo que outros poemas recorrem à fantasia, para engrandecer os seus heróis preferidos, Camões parte sempre da verdade, “ Não mentir no que disser”.

Encaremos agora as narrativas belas dos nossos Lusíadas. Podemos contar 5:

1. Acção nodal - Descobrimento do caminho marítimo para a índia;
2. breve referência aos heróis da Índia ( II Canto) feita a Vénus por Júpiter, no Monte Olimpo;
3. feitos gloriosos,ljevados a cabo pelos reis da 1ª e 2ª dinastia (III e IV cantos) relatados em Melinde ao rei da cidade, pelo comandante da nossa armada – o ousado Gama, que também relata a longa viagem, de Lisboa a Melinde ;
4. os heróis do Continente (canto VIII), apresentada por Vasco da Gama ao Catual da cidade, na própria armada, em frente de Calecute;
5. a dos heróis da Índia,(canto X) feita ao Gama, na Ilha dos Amores por uma ninfa ou sereia,, em forma estrita de canto profético.
Para evitar a monotonia, foi o vate muito hábil, alternando as narrativas com os vários troços da viagem marítima. Assim é que, após a trajectória “Moçambique-Mombaça” (1º canto), vem logo a seguir, a breve narrativa, a que acima aludi ( entre Júpiter e Vénus);
na sequência do percurso Mombaça-Melinde( 2º canto), aparece a narrativa ao rei de Melinde, que assaz interessado pede ao Gama lhe conte, por miúdo , a história gloriosa de um povo tão famoso, destemido e respeitado; depois do trajecto, Melinde-Calecute ( VI canto), surge-nos então a do nosso continente , em frente da cidade;
em seguida ao trajecto de Calecute- Ilha dos Amores, aparece então a dos heróis da Índia.
Acrescentando a isto os vários narradores, a inserção de episódios discursos e descrições, consegue o poeta dar relevo e interesse ao poema imortal.


Manteigas
11-2-1972

Foi incansável o poeta luso em criar no poema vivo interesse, que aumenta de ponto, à medida que avançamos. Além dos meios, que usou, com mestria, outros ainda aplicou, imitando a Ilíada bem como a Eneida.
Começou a narrativa, a muito mais de meio, entre Lisboa e Calecute, à maneira de Vergílio que lhe dá início no mar da Sicília. Recorre também aos deuses pagãos, o que permite, à-vontade jogar com as paixões interesses dos homens, pois os deuses afinal outra coisa não são que os próprios homens, dominados já pela ambição e cegos pela inveja;
utilizou ainda o antropomorfismo ( Baco engenhoso, com vestes sacerdotais, na forma dum velho e amigo do Xeque; serviu-se da profecia, para abranger os feitos posteriores à acção do poema; socorreu-se ainda do processo histórico , a fim de abarcar os anteriores à própria acção criou ao longe tremendos conflitos, já entre deuses (Baco e Vénus)
já entre os homens ( Portugueses e Mouros ; lançou mão da tempestade, o que ele fez, com muita veracidade e vivo realismo; estruturou o poema, à maneira exacta dos poemas clássicos.
Por meio de tudo isto, conseguiu o vate quebrar a monotonia da Epopeia Nacional, conferir-lhe interesse e dar ainda cunho de eternidade, por meio da prosopopeia e também da apóstrofe.
A maior daquelas é realmente, a do Gigante Adamastor; a maior destas vem no Canto VII, em que o poeta invectiva os povos da velha Europa, de terem criado brechas e assim enfraquecido o Continente.
Manteigas .
12-2-1972
O verso utilizado, no poema luso, é o decassílabo de oitava rima. Isto significa, muito simplesmente, que tem 10 sílabas, sendo a rima cruzada, nos primeiros 6 versos, e emparelhada nos últimos dois. Esta disposição é a mais adequada , para manter no ouvido um fio melódico e vincar profundamente um conceito importante.

Serviu-se, pois, da oitava heróica, desdobrando o poema em 10 formosos Cantos. com número variável, no tocante a estrofes. Totalizam estas 1102, ascendendo os versos a 8816.Este dispositivo: 3-2-13-1084 exemplifica as partes do poema nacional.
Nos Lusíadas, a chamada narração começa apenas na estância 19, sendo logo interrompida pelo Concílio dos deuses, no Monte Olimpo.
A acção central distribui-se claramente por 4 Cantos: 1º e 2º 5º e 6º.O final deste apresenta os mareantes já em Calecute, objectivo primário da empresa marítima. Os nautas portugueses arrancam de Calecute, na estância 13 (Canto IX) e chegam a Lisboa, capital do Império, exactamente na estância 144.
As invocações são em número de 4 e justificam-se, pela importância dos factos que vão logo seguir-se.À primeira no Canto 1º, est. 4 e 5, vai seguir-se a Epopeia Nacional; a 2ª, no Canto III, é motivada pela narrativa, feita em Melinde.
A 3ª, n Canto VII, est, 78, precede a narrativa dos heróis do Continente; por fim, a 4ª, no Canto X, est. 9, antepõe-se à narrativa, assaz empolgante, dos heróis da Índia.
Estas invocações dirigem-se às Tágides (1ª); a Calíope (2ª);às simpáticas musas do Tejo e do Mondego ( 3ª); a Calíope (4ª)
Como se deixa ver, precedem todas elas as grandes narrativas. Fica apenas excluída a breve narrativa do Canto II( Júpiter a Vénus), por ser menos importante e haver relação com a do Canto X.


Manteigas
13-2- 1972 Cont.

O sistema rimático da Epopeia Nacional é bastante simples, reduzindo-se a isto: ab ab ab cc.
As intervenções de Baco inimigo, a fim de opor-se à conclusão da acção, totalizam 6, (em 4 Cantos : I IIVI VIII). Ocorre uma delas, em cada canto, à excepção I, que insere 3.
Observando-as agora, cronologicamente, aparece a primeira no Concílio dos deuses. Ali se manifesta violento e agressivo, pois ele nada mais é que o próprio Oriente, personificado, bradando furioso, contra o Ocidente. Demais, estes deuses representam os homens, no seu lidar insano, constante e agitado, com suas paixões e vícios tremendos..
Chefia o Partido , no Concílio glorioso, em frente de Vénus, protectora e aniga da gente lusitana. A segunda intervenção dá-se em Moçambique, onde ele aparece, na forma de mouro, influente e sábio, amigo do Rei e muçulmano, assaz fervoroso.
A terceira ocorre em Mombaça, a cujo Rei aparece também. na forma de outro mouro
. A quarta vem no 2º Canto, onde ele surge a oficiar qual sacerdote do Deus verdadeiro, prestando culto a um Retábulo, que apresentava pintados os Apóstolos e a Virgem bem como o Espírito Santo.
A quinta depara-se no VI Canto. Vendo Baco, indignado, que os Portugueses se aproximavam já do fim da viagem, resolve aniquilá-los de una vez para sempre! Apresenta-se queixoso, ante Neptuno,
o deus do mar e, perante a assembleia das marinhas divindades, expõe miudamente o seu ponto de vista, indignando os deuses contra os portugueses. Em consequência disto, é Eolo encarregado de soltar os ventos, sempre irrequietos, os quais, em grande impaciência, desencadeiam logo medonha tempestade.
A 6ª é no Canto VIII, em que ele aparece, também, disfarçado, como profeta Maomé, a um sacerdote, muito fervoroso. Inspira-lhe ódio e má vontade, o que fora preparado pelos adivinhos, ao sondarem, cuidadosos, as entranhas das vítimas.


Manteigas
14-2-1972 Lusíadas, Poema Épico

Tratar-se, a rigor, de poema épico, é mais que evidente, pois nele se verificam os três quesitos, sempre necessários, para que tal se admita: facto heróico ou melhor ainda, factos heróicos, linguagem elevada e inspiração sublime.
Acções heróicas: descobrimento do caminho marítimo para a índia remota; feitos notáveis dos heróis do Continente; feitos sublimes dos heróis do Oriente;
façanhas gloriosas dos reis portugueses da 1ªdinastia; façanhas aventureiras dos reis da 2ª A linguagem é grandíloqua e densamente recheada de belas figuras, desde os tropos adequados às figuras de gramática e de sintaxe. A inspiração mantém-se a alto nível, desde o princípio ao fim do poema. Resta agora demonstrar que é um poema nacional.
Enquanto a Odisseia do grego Homero narra a volta de Ulisses à Ilha de Ítaca, de que era soberano, e a Eneida de Vergílio exalta Eneias (fingido), os nossos Lusíadas celebram com entono as glórias dum povo.
“Que eu canto o peito ilustre lusitano.” As armas e os barões assinalados… e também as memórias gloriosas daqueles reis… e aqueles…” Trata-se, pois, dos feitos mais razoáveis e HARTO gloriosos dos heróis portugueses.
O nó do poema ou o seu eixo central é o descobrimento do caminho marítimo para a Índia sonhada, mas à volta dele e, em perfeita igualdade, quanto à inportância, no tocante a Portugal, dispõem-se as façanhas, realizadas sempre pelos Portugueses. Até neste aspecto o poema é singular.
É também chamado Bíblia da Pátria, porque ensina os deveres dum lídimo cidadão: desperta e aviva o amor a Portugal; louva os heróis; exalta os guerreiros; censura os poltrões e vergasta os descuidados.
Com razão, pois, lhe dão o nome honroso de Bíblia da Pátria. É um espelho vivo de nobres ideais. Para ser lídimo e bom português, basta conformar-se com o seu espírito.


Manteigas
15-2-1972 Ainda os Lusíadas

Dimensão europeia

Miguel Torga, nome consagrado nas Letras Portuguesas e grande estilista da nossa Língua, afirmou num Diário que a Epopeia nacional tem carácter doméstico e que, embora valiosa, não passa daí.
Quanto a mim, salvo o respeito e a viva admiração que sempre votei ao exímio escritor, afasto-me, no entanto, do seu douto parecer.
Bastaria, sem dúvida, o aspecto artístico, para insinuar a bela Epopeia no espírito culto de todo homem, qualquer que fosse, já se deixa ver, a sua
O III Canto junto com o VII seriam suficientes para documentar aquilo que afirmo.

MEMÓRIAS 36 A Cont.

Não faz ele, no III, a descrição minuciosa do Continente europeu? E por que modo ele age, ao falar da forte gente que ali se criou! No 7ºentão, ocupa-se largamente da sua vida política, religiosa e moral. Censura com vigor a Inglaterra e a Alemanha, a França e a Itália, por não seguirem, ao tempo, a linha de coesão, firmeza e sensatez, que o velho Portugal apresentava ainda.
Apostrofa-as veemente, por haverem rompido a tradição milenária de unidade gloriosa.

Enquanto o rei português se mantinha fiel a Cristo e à Igreja, as nações europeias faziam alianças com os inimigos da fé cristã e, ao mesmo tempo, inventavam novas seitas, perseguindo furiosas os de outros credos .
O ideal propalado, a fim de unir a velha Europa, já Camões o defendia, com insistência. O nosso poema também salienta o esforço de Porugal, para enfraquecer, ao perto e ao longe, os inimigos da nobre Europa: Muçulmanos e Turcos experimentaram, mais de uma vez, o braço duro e forte da gente lusitana.
E que dizer do aspecto económico, humano e científico, após os Descobrimentos?


Manteigas
16-2-1972 Cont.
Dimensão europeia do poema nacional

A terceira aparição do furioso Baco ocorre em Mombaça, a cujo Rei aparece também, na forma doutro mouro. A quarta vem no 2º Canto, onde ele surge a oficiar qual sacerdote do Deus verdadeiro, prestando culto a um Retábulo, que apresentava pintados os Apóstolos e a Virgem bem como o Espírito Santo
A quinta depara-se no VI Canto. Vendo Baco, indignado, que os Portugueses se aproximavam já do fim da viagem, resolve aniquilá-los de una vez para sempre! Apresenta-se queixoso, ante Neptuno, o deus do mar e, perante a assembleia das marinhas divindades, expõe meudamente o seu ponto de vista, indignando os deuses contra os portugueses. Em consequência disto, é Eolo encarregado de soltar os ventos, sempre irrequietos, os quais, em grande impaciência, desencadeiam logo medonha tempestade.
A 6ª é no Canto VIII, em que ele aparece, também, disfarçado como profeta Maomé, a um sacerdote, muito fervoroso. Inspira-lhe ódio e má vontade, o que fora preparado pelos adivinhos, ao sondarem cuidadosos as entranhas das vítimas.


Manteigas
14-2-1972 Lusíadas, Poema Épico

Tratar-se, a rigor, de poema épico, é mais que evidente pois nele se verificam os três quesitos, sempre necessários, para que tal se admita: facto heróico ou melhor ainda, factos heróicos,
linguagem elevada e inspiração sublime. Acções heróicas: descobrimento do caminho marítimo para a índia remota; feitos notáveis dos heróis do Continente; feitos sublimes dos heróis do Oriente;
façanhas gloriosas dos reis portugueses da 1ª dinastia; façanhas aventureiras dos reis da 2ª A linguagem é grandíloqua e densamente recheada de belas figuras, desde os tropos adequados às figuras de gramática e de sintaxe. A inspiração mantém-se a alto nível, desde o pr princípio ao fim do poema. Resta agora demonstrar que é um poema nacional.
Enquanto a Odisseia do grego Homero narra a volta de Ulisses à Ilha de Ítaca, de que era soberano, e a Eneida de Vergílio exalta Eneias (fingido), os nossos Lusíadas celebram com entono as glórias dum povo.
“Que eu canto o peito ilustre lusitano.” As armas e os barões assinalados… e também as memórias gloriosas daqueles reis… e aqueles…” Trata-se, pois, dos feitos mais razoáveis e harto gloriosos dos heróis portugueses.
O nó do poema ou o seu eixo central é o descobrimento do caminho marítimo para a Índia sonhada, mas à volta dele e, em perfeita igualdade, quanto à inportância, no tocante a Portugal, dispõem-se as façanhas, realizadas sempre pelos Portugueses.Até neste aspecto o poema é singular.
É também chamado Bíblia da Pátria, porque ensina os deveres dum lídimo cidadão: desperta e aviva o amor a Portugal; louva os heróis; exalta os guerreiros; censura os poltrões e vergasta os descuidados.
Com razão, pois, lhe dão o nome honroso de Bíblia da Pátria. É um espelho vivo de nobres ideais. Para ser lídimo e bom português, basta conformar-se com o seu espírito.


Manteigas

Ainda os Lusíadas
Dimensão

Miguel Torga, nome consagrado nas Letras Portuguesas e grande estilista da nossa Língua, afirmou num Diário que a Epopeia nacional tem carácter doméstico e que, embora valiosa, não passa daí. Quanto a mim, salvo o respeito e a viva admiração que sempre votei ao exímio escritor, afasto-me, no Bastaria, sem dúvida, o aspecto artístico, para insinuar a bela Epopeia no espírito culto de todo homem, qualquer que fosse, já se deixa O III Canto junto com o VII seriam suficientes para documentar aquilo que afiMEMÓRIAS 36 A Cont.
Não faz ele, no III, a descrição minuciosa do Continente europeu? E por que modo ele age, ao falar da forte gente que ali se criou! No 7ºentão, ocupa-se largamente da sua vida política, religiosa e moral. Censura com vigor a Inglaterra e a Alemanha, a França e a Itália, por não seguirem, ao tempo, a linha de coesão, firmeza e sensatez, que o velho Portugal apresentava ainda.
Apostrofa-as veemente, por haverem rompido a tradição milenária de unidade gloriosa. Enquanto o rei português se mantinha fiel a Cristo e à Igreja,, as nações europeias faziam alianças com os inimigos da fé cristã e, ao mesmo tempo, inventavam novas seitas, perseguindo furiosas os de outros credos .

O ideal propalado, a fim de unir a velha Europa, já Camões o defendia, com insistência. O nosso poema também salienta o esforço de Portugal, para enfraquecer, ao perto e ao longe, os inimigos da nobre Europa: Muçulmanos e Turcos experimentaram, mais de uma vez, o braço duro e forte da gente lusitana.
E que dizer do aspecto económico, humano e científico, após os Descobrimentos?


Manteigas
16-2-1972 Cont. Dimensão europeia do poema nacional

A terceira ocorre em Mombaça, a cujo Rei aparece? t na forma doutro mouro. A quarta vem no 2º Canto, onde ele surge a oficiar qualquer sacerdote do Deus verdadeiro, prestando culto a um Retábulo, que apresentava pintados os Apóstolos e a Virgem bem como o Espírito Santo
A quinta depara-se no VI Canto. Vendo Baco, indignado, que os Poaproximavam já do fim da viagem, resolveaniquilá-los de una vez para sempre! Apresenta-se queixoso, ante Neptuno, o deus do mar e, do mar e, perante a assembleia das marinhas divindades, expõe meudamente o seu ponto de vista,
indignando os deuses contra os portugueses. Em consequência disto, é Eolo encarregado de soltar os ventos, sempre irrequietos, os quais, em grande impaciência, desencadeiam logo medonha tempestade.
A 6ª é no Canto VIII, em que ele aparece, também, disfarçado como profeta Maomé, a um sacerdote, muito fervoroso. Inspira-lhe ódio e má vontade, o que fora preparado pelos adivinhos, ao sondarem cuidadosos as entranhas das vítimas.


Manteigas
14-2-1972 Lusíadas, Poema Épico

Tratar-se, a rigor, de poema épico, é mais que evidente, pois nele se verificam os três quesitos, sempre necessários, para que tal se admita: facto heróico ou melhor ainda, factos heróicos, linguagem elevada e inspiração sublime. Acções heróicas: descobrimento do caminho marítimo para a índia remota; feitos notáveis dos heróis do Continente; feitos sublimes dos heróis do Oriente;
façanhas gloriosas dos reis portugueses da 1ªdinastia; façanhas aventureiras dos reis da 2ª A linguagem é grandíloqua e densamente recheada de belas figuras, desde os tropos adequados às figuras de gramática e de sintaxe. A inspiração mantém-se a alto nível, desde o priprincípio ao fim do poema. Resta agora demonstrar que é um poema nacional.
Enquanto a Odisseia do grego Homero narra a volta de Ulisses à Ilha de Ítaca, de que era soberano, e a Eneida de Vergílio exalta Eneias (fingido), os nossos Lusíadas celebram com entono as glórias dum povo.
“Que eu canto o peito ilustre lusitano.” As armas e os barões assinalados… e também as memórias gloriosas daqueles reis… e aqueles…” Trata-se, pois, dos feitos mais razoáveis e harto gloriosos dos heróis portugueses.
O nó do poema ou o seu eixo central é o descobrimento do caminho marítimo para a Índia sonhada, mas à volta dele e, em perfeita igualdade, quanto à inportância, no tocante a Portugal, dispõem-se as façanhas, realizadas sempre pelos Portugueses. Até neste aspecto o poema é singular.
É também chamado Bíblia da Pátria, porque ensina os deveres dum lídimo cidadão: desperta e aviva o amor a Portugal; louva os heróis; exalta os guerreiros; censura os poltrões e vergasta os descuidados.
Com razão, pois, lhe dão o nome honroso de Bíblia da Pátria. É um espelho vivo de nobres ideais. Para ser lídimo e bom português, basta conformar-se com o seu espírito.


Manteigas
15-2-1972 Ainda os Lusíadas

Dimensão europeia

Miguel Torga, nome consagrado nas Letras Portuguesas e grande estilista da nossa Língua, afirmou num Diário que a Epopeia nacional tem carácter doméstico e que, embora valiosa, não passa daí.
Quanto a mim, salvo o respeito e a viva admiração que sempre votei ao exímio escritor, afasto-me, no entanto, do seu douto parecer.
Bastaria, sem dúvida, o aspecto artístico, para insinuar a bela Epopeia no espírito culto de todo homem, qualquer que fosse, já se deixa ver, a sua
O III Canto junto com o VII seriam suficientes para documento daquilo que afirmo. Não faz ele, no III, a descrição minuciosa do Continente europeu? E por que modo ele age, ao falar da forte gente que ali se criou! No 7ºentão, ocupa-se largamente da sua vida política, religiosa e moral. Censura com vigor a Inglaterra e a Alemanha, a França e a Itália, por não seguirem, ao tempo, a linha de coesão, firmeza e sensatez, que o velho Portugal apresentava ainda.
Apostrofa-as veemente, por haverem rompido a tradição milenária de unidade gloriosa. Enquanto o rei português se mantinha fiel a Cristo e à Igreja,, as nações europeias faziam alianças com os inimigos da fé cristã e, ao mesmo tempo, inventavam novas seitas, perseguindo furiosas os de outros credos .
,O ideal propalado, a fim de unir a velha Europa, já Camões o defendia, com insistência. O nosso poema também salienta o esforço de Portugal , para enfraquecer, ao perto e ao longe, os inimigos da nobre Europa: Muçulmanos e Turcos experimentara, mais de uma vez, o braço duro e forte da gente lusitana.
E que dizer do aspecto económico, humano e científico, após os Descobrimentos?


Manteigas
16-2-1972 Cont. Dimensão europeia do poema nacional

Após o feito do Gama, passa o eixo do Comércio da terra para o mar. Eram os Portugueses quem trazia do Oriente as mais cobiçadas coisas, entre as quais emergiam as especiarias. A nossa Europa, habituada como estava, jamais ia prescindir de tal mercadoria, custasse embora os olhos da cara!
Ora, o plano dos inimigos era comerciar, a troco de ouro, depauperando assim o velho Continente. Isto, de facto, ser-lhe-ia fatal! Militarmente, nem Turcos nem Árabes conseguiram dominá-lo, segundo o plano que haviam traçado.
Experimentariam outro modo capaz. Depois de empobrecido, jogariam o salto. Quem foi, pois, tirar-lhes o comércio, essa arma terrível, que estavam ensaiando, contra a Europa? Coube a Portugal essa glória incomparável!
Um artigo qualquer de 100 cruzeiros, antes que chegasse à velha Europa, ficava por 30, na cidade Lisboa. Não foi isto benéfico, em relação ao nosso continente?! Quem foi que o salvou?! Por outro lado, qual dentre todos, mais esforço des- pendeu, com a mira ufanante de europeizar a Terra?!
Era diminuta a população portuguesa, *a data precisa dos Descobrimentos – 1200 ooo almas! Também os Gregos eram poucos, afinal, e chegaram para os Persas que derrotaram em Maratona! Dir-se-á, após isto, que não interessa â velha Europa?! Que mais razões poderíamos achar?! As que aí deixo talvez já cheguem!
A cruzada nacional, efectuada contra os Árabes, e os combates frequentes, em terra e no mar e em paragens longínquas, falam alto e bom som, do papel relevante, em relação à nossa Europa!
Por outro lado, o descobrimento, realizado pelo Gama é um facto relevante, de cunho internacional. Por meio dele se prova que o Homem se impõe à própria Natureza e, ao mesmo tempo, que a Civilização. dita cristã, foi levada por nós a todos os povos do Orbe terrestre.


Manteigas
17-2-1972 Que é ser” Artista?

A esta pergunta deu Rodin, escultor francês, a resposta
seguinte: “ C’est celui qui prend plaisir à tout ce qu’il fait” Artista, pois, é quem sente prazer em tudo o que faz: portanto, sentir prazer em tudo o que faz.
Segundo a famosa e rica definição, qualquer trabalhador pode ser artista, visto que, também ele é susceptível de experimentar o referido prazer naquilo que faz.
As vantagens disto são evidentes, pois em tal caso é a vida mais fagueira, despertando interesse; tudo já é feito com mais amor e perfeição. O nosso trabalho rende bem mais e a sociedade vem a dar satisfação a seus ideais.
Que é ser útil? Quando se diz que uma coisa é útil? Sempre que a tal proporciona ventura. Efectivamente, nem só o que é matéria e se destina a dar satisfação âs necessidades físicas tem utilidade.
Pão material acarreta felicidade? O Desenho causa também igual sensação! A Pintura, a Música, a própria Escultura ficam, realmente, em pé de igualdade? Então, são úteis. A piedade a Religião, o amor genuíno são transmissores de felicidade? Nada mais é preciso para serem úteis! Estes dois pensamentos constituem base sólida para qualquer sociedade.
Da sua realização dependerá certamente o bem-estar e a paz, entre todos os homens. Com efeito, se o cantor e o pedreiro sentirem prazer em seu mister, a nada mais se consagram: vivem totalmente para o seu trabalho, executam-no a primor e são felizes. Deliciam-se eles no próprio ofício, são +úteis a outrem e proporcionam ao público grande soma de prazer, pois a sua obra vai logo marcada com forma do ideal.
Que maravilha! Tudo seria feito com grande perfeição e muito bom gosto! Não seria ideal a sociedade?! De igual modo o ouiives. o marceneiro, o ferreiro e o funileiro, o ferrador, o alfaiate, o canalizador e todos os artífices. Saciavam-se todos e todos lucravam com esta aplicação!
Seria a Terra, em que agora vivemos, um mundo de arte e fina beleza, onde espírito e matéria encontrariam pasto para se nutrirem, segundo o capricho. Vingariam então os grandes ideais: Beleza, Verdade e Bem.
Que é que impede a realização deste grande sonho? A ingerência de estranhos no destino do homem!


Manteigas
18-2-1972 Policiamento

Hoc opus! Hic labor est! Aqui, realmente, é que a porca torce o rabo! Vigilância tão assídua jamais encontrei! Ainda hoje estremeço, longe no espaço e mais no tempo! Janelas e desvãos, corredores e sacadas, postigos e colunas, tudo o que me cercava expelia um prefeito! E não se julgue que era pai amoroso!
Às duas por três, assentava as mãos, que era um gosto sentir! Daria prazer imergir no ambiente?! Por isso, jamais voltei a certos lugares, que detestava fundo, a partir do inicio!
Incompleto

Belém/Lisboa/Vide-Entre-Vinhas

Não sei devidamente, ignoro a rigor o que é falar hoje da minha terra natal! Algo como sonho a esfumar-se ao longe, no largo horizonte! Há quanto a não vejo! Creio haver sido, em 1972 que eu a visitei, pela última vez, durante as férias grandes.
Acabavam os exames, no Liceu da Covlhã e eu dispunha-me já a deixar Manteigas, em cujo Externato leccionara 15 anos. Iria ver novas terras, um império glorioso, 500 anos Luso, onde a alma lusitana derramara sangue, luz, vida e amor! Entrava português: sairia, depois, já estrangeiro!
Vicissitudes da vida !
Pois antes da abalada enviara â minha aldeia um adeus melancólico, feito de carinho, ternura e paixão! Ao chegar lá abaixo, à estrada nacional. volvi para sempre um olhar saudoso, mergulhado em lágrimas, suspiros e ais. Recolhido em mim, fez-se luz diamantina e pude contemplar o fulgor do meu berço. Em espírito, embora, fui logo percorrendo as ruas contorcidas, onde as giestas, no Inverno, se curtiam, fermentando.
No mês de Março, fazia-se a limpeza, transportando-o para as leiras, que exultavam, de o ver! Concentrado em mim, via as casas humildes, parecendo cochichar, em diálogo sem fim. Lembravam, desde logo, figuras do passado, que a morte levara, deixando no peito amargura e saudade!
Atravessava a Portela, com a bica de água (corrente) não longe, ao passo que lembrava, todo enleado, os jogos animados, que ali se efectuavam. à beira da Páscoa. Era assim a péla (jogo) que vinha renascer, gerando em nossas almas alegria sem par.
Descia um pouco mais, deixando para trás o velho presbitério, onde padres virtuosos fizeram assento: José Maria Martins ( quem me baptizou); José António Baptista; José Antunes Duarte, e Carlos Pina Paula, (actual Prior), que mudou para o Terreiro, onde levantara uma bela igreja e novo presbitério, anexo a ela.
Seguia depois a Escola primitiva e a taberna do Nunes, causa de tantos ralhos, pranto e discórdia.
Agora, a Fonte do Cão, que era de mergulho e dava boa água para as casas vizinhas. Pela Rua da Oliveira, chegava-se por fim à casa saudosa, onde vi, deslumbrado, a primeira luz. Ali me detive, quase arroubado! Oh! Casa da Portela, que olhas para o Terreiro, fala-me ainda, conta em pormenor o que guardas sobre mim! Diz-me, te peço, relata por meúdo o que os pais saudosos lá fizeram por mim! Esse amor, esse encanto, esses beijos sem fim, esse mundo sorridente, que o tempo me levou!


Belém/Lisboa
18-4-1986 Cont.

Aih! Casa da Portela, na Rua da Oliveira, quão longe estou agora! É que, , na verdade, eu sofro muito, de ver-te indiferente! Informaram, há pouco, mas custa aceitá-lo! Sempre é verdade que ameaças ruína)! Quanto sofro com isso! És o símbolo perfeito do lento desabar de todos
os sonhos e doces ilusões!
Tudo vai ficando, junto com a vida, que perdeu o seu impulso. Mas ó casa amiga, retém firme o perfil, denegrida embora pela mão do tempo! É que, realmente, se fazes como digo, ainda o sonho não morre, insuflando-me alento.
Deixa primeiro que largue deste mundo! Guarda firmemente os segredos que sabes! Acautela as memórias, para alento de meus anos, já conturbados, pelo muito voltear da roda fatal! Não permitas a estranhos que profanem teus muros ou invadam os recantos, onde fui tão feliz!
Sala e salita, quarto do fundo, onde vi, ao certo, a primeira luz! e tu, quarto escuro, fazei-me companhia, no final da existência! Deixai-me ser feliz, fixando embevecido vosso rosto avelhado. Permiti, sim, me apoie em vossas taipas, onde eu. tantas vezes, com passo ainda incerto, me encostava, em menino!
Falai-me calorosos, desses entes que adorei, com amor acendrado! Já possivelmente a terra os comeu? Seu espírito, porém, goza no Paraíso o prémio sem igual, que o Céu generoso oferta aos bons. Esses corpos, no entanto, agora mirrados, hão-de vê-los meus olhos mais formosos ainda do que eram neste mundo! O bom Pai do Céu, mediante seu poder, há-de transformá.los em corpos gloriosos
É por tudo isto que eu te acarinho, velha casa da Portela, onde fui tão amado, nesses anos de infância. E tu igualmente, ó cozinha empedrada, sê alento e conforto para o meu coração! Eras tão fumenta, em anos recuados! Sem a tua chaminé, foste, na verdade, o martírio de todos! Aquela que mais sofreu foi a mãe adorada!
Penetrávamos em ti, curvados e chorosos, quase rastejando. Mais tarde, viraste, com a tua chaminé, feita de granito! Mesmo assim feia, estreita e fummarenta, quero-te a valer, pois foi no teu seio que passei de facto, os melhores tempos, ao longo da infância, como da puerícia.
E de ti, sótão escasso, que posso eu dizer? Há também recordações, para aqui registar!


Belém
19-4-1976

Deixa então, ó sótão amigo, que eu suba ainda, pela escada portátil e dê, uma vez mais um giro amoroso, pelo teu seio. Rentinho ao telhado, sempre de cócoras, evitava contusões na cabeça e nos braços .
Ia a ti por cebolas, batatas e maçãs ou então levava panelas, asados e caldeiros, para se deterem imobilizados. Quando vinha chuva ou fazia vento, surgia o problema que se punha a todos. As telhas partidas , no telhado, quase plano deixavam infiltrar grossas Pingas de água. Era logo um afã remediar esse mal, tocasse ainda a cabeça nas traves do telhado.
E tu, longo balcão do exterior, em que ouvia ressoar os passos conhecidos de entes amados! Sobretudo, à noitinha ou já por noite velha, quando o pai adorado voltava da estação, alagado em água! Tudo isto e o mais que não teria fim, me deixa a alma doente, vergada pela saudade. Também a ti não esqueço, funda loja da Portela, com paredes tão grossas, que figuram fortaleza!
Recebeste gado, provisões e lenha, nesses anos, já remotos, Depois, sofreste algum arranjo, destinando-te a usos, que não desdissessem. Guardo lembranças desses anos que passaram e me falam de ti.
Nesta hora de saudade, avivam-se na alma outros belos amores. Do outro lado da rua, erguia-se também uma velha habitação, que não posso olvidar. A simpática velhinha, a doce Ana Rosa, que me embalou em criança, era a alma dessa rua e o constante anelo da minha alma..
O coração repartia-se igualmente por essa casa humilde. Partia a mãe adorada para as fainas do campo? Deixava-me entregue à querida vizinha. Quanto eu lhe queria não posso exprimi-o em meras palavras Que saudade imensa me está dilacerando os seios de alma! Deixa, pois. ó casa amiga , que penetre ainda agora no seio de teus muros! És qual santuário, aonde me dirijo como romeiro, levando no meu peito o fascínio de criança! Abro a porta da varanda que dá para a sala? Que vejo eu logo? Dois olhos afagantes que me falam amorosos, dardejando prestesmente afagos e carícias.


Belém/Lisboa
30-3-1986 Idioma Luso em sério risco

Não foi há muito ainda que eu ouvi o disparate! Aqui o deixo para memória. Chegou-me o caso pela televisão. Foi o seguinte: ”Vão haver muitos caos”. Escusado é dizer que se trata aqui dum erro palmar! e, como tal, há-de ser eliminado! Caso contrário, ao fim de alguns anos, faz-se irreconhecível esta Língua formosa! Ora bom. Sendo a mais espalhada, pelo mundo além, iria alguém reconhecê-la, passados 100 anos?!
Vamos, pois, eliminar estas chagas purulentas, antes que seja tarde! Como introdução, convém indicar o motivo exacto. pelo qual muita gente desliza para o erro. Se eu não me engano, situa-se a causa no intento necessário de fazer a concordância, entre o verbo e o sujeito. Pois não diz a Gramática: o verbo concorda com o sujeito em número e pessoa?! Ninguém dirá: ‘o livro são bonitos!’Ou ainda: os livros é bonito!”
Ora bem. Quando verbo haver significa existir, acontecer, ocorrer, emprega-se, por cá, na terceira pessoa do número singular: há homens perversos; há casos delicados; há pessoas incorrigíveis; há tantos dissabores, nesta vida atribulada! Se tiver um auxiliar, a construção é igual: vai haver muitos casos para lamentar! Vai haver tantos perigos, que receio falar deles! Usa-se, pois, no singular e nunca no plural!
Não me apraz entrar agora na análise sintáctica! Apesar de tudo, farei breves referências, a respeito do caso. A análise habitual todos a conhecem. Predicado: há; sujeito inexistente; complemento directo: homens perversos.
Isto é, de facto, o que temos ouvido, em nossas Escolas, ao longo do tempo. Consideram este verbo como impessoal, naquelas frases ou outras semelhantes. A mim repugna-me que haja uma acção, referência ou qualidade, sem um sujeito de qualquer natureza Seria uma casa sem alicerces! Uma planta sem raiz nem tronco Tanto assim é que as outras Línguas arranjam um termo que represente o sujeito ou faça as suas vezes
É o caso de: it, es, il, etc Se entroncamos no Latim a construção” há homens”, encontraremos: sunt homines. Portanto. o sujeito é”homines”.


Belém
14-4-1986

Tentei esquecer, mas não consegui. Dificilmente olvidamos o bem que nos fazem; mais difícil se torna esquecer o mal. Ocorreu o facto, por fins de Fevereiro, lá para a Graça, caso não erre. Bem clama o povo: “ Desta água não beberei!”Em tantas voltas e reviravoltas, acontece ainda o que menos esperamos!
A propósito, recordei uma história, que um dia li, na África do Sul, em língua africânder e que passo a expor, usando uma síntese. Havia muito calor e uma seca terrível. Por esta razão, exauriram-se as fontes, ficando somente um poço com água, à disposição de todos os animais. Estava cheio, bem entendido, mas o bravo leão não saía dali, impedindo os outros de matar a sede.
Chegou até ao ponto de erguer um muro alto, em volta do poço, para afastar assim os pobres sedentos. Não contente com isso, estava sempre deitado, ali junto da linfa. Um belo dia, a lebre passou por lá e, notando o facto, concebeu um plano, que bem resolveu o magno problema. Que havia de ser?! Percorreu toda a zona, com grande brevidade e convidou todos os animais para um largo encontro, pondo-os ao corrente do que havia projectado.
Meu dito, meu feito! Traçadas as linhas e expostas a todos, esperaram bastante que o leão adormecesse. Depois, ergueram, a toda a pressa, um muro bem alto, em volta dele. Ao acordar, notando o sucedido, formou, desde logo um salto resoluto, mas nada conseguiu.
“ Estou tramado!”- murmurou surpreso, para os seus botões. Entretanto, rugiu fortemente : “ Deixai-me sair daqui!”
-- “Não!”- responderam os bichos. Tu foste malandro! Por isso mesmo, é que foste enjaulado!” Passados três dias, estava quase morto, por causa da sede!
--“ Deixai-me sair daqui - rogava ele então, já bastante mansinho! Não voltarei a ser malandro!”Perante a mudança, os bichos não hesitam: dão-lhe a liberdade. Agora, é já delicado e não diz jamais ser aquele o seu poço! Serviu-lhe de lição!


1986
Mais uma pincelada sobre Vide-Entre-Vinhas.

Junto â Casa da Portela, onde vi primeiro a luz, surge a velha moradia, habitada por alguém que trago no coração: Ana Rosa e seu marido, A minha história, desde pequenino, correu paralela à deste casal, que perdeu a filha única, em 1918.Revivamos, no presente, o que houve no passado. Abeiremo-nos, pois, da casa humilde e velhinha, onde mora gente honrada, que eu adorava, desde bebé.
Ei-la que aparece, em primeiro lugar e vem logo beijar-me, estendendo seus braços, que me cingem diligentes. Eu deixo enredar-me, porque sinto prazer… quase arroubamento! Entretanto, olho para a esquerda e, lá no interior, já um tanto escuro, diviso a extremidade a um velho tear, que funciona amiúde.
À direita da sala, abre-se uma porta, que me deixa passar, rumo à cozinha, lá mesmo ao fundo. Antes de chegar, atravesso uma quadra, escura também, que serve de corredor, algo estrangulado e bastante irregular, sendo aproveitado para arrumações. Era a cozinha, o lugar ideal para o menino, que eu era então.
Entre as várias cenas que ali decorreram, há duas sobretudo. que mantêm bem viva toda a poesia do meu tempo de criança: a ceia com o pobre que nos batia à porta; o picar do queijo, que forneci o “borrego” Era este, bem entendido, um pedaço do queijo, já espremido. Tanto me sabia, nesse tempo inesquecível!
Junto à pilheira, ardiam, os cavacos, e ao centro da lareira erguia-se a banca, mesinha redonda com breve tripé. Servia para tudo: caçoula comum, donde todos comíamos; francela perfurada, para o acincho, e tudo o mais. Quanto eu gostava de passar no local as horas de menino!
Sendo o primeiro filho, não tinha ninguém com quem brincar. Em tal caso, era a ti Ana a maior aspiração que eu podia alimentar. De sua casa, entesto para a horta, deixando a loja térrea, onde as 4 cabrinhas levam toda a noite, remoendo o pasto. São elas de nome: a negra e a nogueira; segue a laranja e, por fim, o rouxinol .
Tão meigas cabrinhas parecem entender! Como sentem prazer em dar seu leite àqueles velhinhos! Com ele, faz a ti Ana belos quejinhos, que serão depois vendidos, em Celorico da Beira. O soro restante comíamo- lo nós.
Pois a horta referida é outro lugar que me aviva a saudade.Tinha figos em Junho, mas o mel delicioso, que o velhote extraía, já no Outono, não pode esquecer! Ao longo da parede, abrigados de Nascente, lá se erguiam os cortços, que me faziam cismar!
Entrando no recinto, divisava-se à esquerda, logo a meia altura da parede lateral, a cheirosa hortelã. Do lado contrário, surgia a oliveira, que dá o nome à rua antiga. Em frente da porta, junto do couval, avultava um monte, feito de esterco, que o bom António Cândido ia aumentando, com pazadas sucessivas do que ele encontrava , ao longo dos caminhos.


Belém \ 21-4-1986

Agora, volto já costas à Rua da Oliveira. endireitando para o Terreiro. Antes de chegar, passo pela igreja, â casa antiga do velho Cabral, alma negra das crianças, que invadiam o adro ou roubavam as maçãs, no Chão da Dona Maria. No templo velhinho, recebi o Baptismo, sendo ali preparado, alguns anos mais tarde, para a Comunhão.
Que momentos deliciosos ali não passei, já pelo Natal, contemplando o Presépio, já no tempo da Páscoa ou em dias festivos , quando o velho templo se enchia de fiéis! O caduco Santo Amaro, com o longo ‘cajado’ é que chamava a atenção! Vendo-o tão sisudo, fazia-me pensar! Os outros santos, em tamanho inferior, não me eam suspeitos! Aquele, porém, trazia-me intrigado!
Recordo também a reza do Terço, que se fazia ali, à boca da noite, culminando em geral, com a Bênção do Santíssimo. Por via de regra, crianças e velhotes aproveitavam logo este belo ensejo para dormir um pouco, encostando-se às paredes. Eu, porém, não podia fazê-lo, que dois olhos vigilantes se cravavam em mim, para eu rezar!
Às vezes, para distrair-me, tentava penetrar no vão da sacristia, mas o velho Cabra levava-se prestes de todos os diabos, não dando luz verde! Ele, afinal, que deleitava as crianças, no forno da Aldeia, em noites de Inverno, era na sacristia o terror dos miúdos. Enfim, viragens da sorte! Recomendação, talvez, do velho Prior, o padre José Maria?
Continuando a romagem, chego ao Terreiro. Lugar de encontros, para velhos e novos, era sempre agradável passar por ali e deter-me um pouco. Havia bons encontros para segredinhos, jogos em barda e correrias loucas. Lembra-me, a propósito, o jogo da péla, a salsa-verde, o perdi-saco e o escondedor, para não falar já do agitado salti-vão e do pilha-três. Uma série de lembranças que se diluem fundo na poeira dos tempos., mas ainda conservam muito fascínio!
Falta só memoriar a fogueira do Natal, para a qual se trazia largo combustível , em que primava um tronco enorme de velho castanheiro. Movimentá-lo era o cabo dos trabalhos !
Da casa da Portela, eu via deslumbrado as faúlhas doidejantes, pairando no ar, como abelhas desavindas.


Belém
22-4-1986 Cont.

Do Terreiro antigo, esse Largo memorável, onde todos se encontravam, já para a conversa, dando livre curso à leve fantasia, já para o ingresso em bailados domingueiros. a fim de ter ocasião de falar em suas penas, mágoas e dores, volvo uma vez mais um olhar retrospectivo, recordando lugares, personagens e factos, que ficaram vincados para todo o sempre.
Ficava à beira da rua a baiúca do Nunes, onde os inveterados passavam, em delícia, horas esquecidas, moendo ali a substância para as despesas da casa. Não longe da taberna, mostrava-se ufana a velha Escola do povo, que era sombreada por nogueira vultuosa, em cujos ramos, flexíveis e bamboleamtes, tantas vezes bifurcado, passava eu as horas mais gratas.
Já mais abaixo, na mesma rua e à beira dela, na vizinhança da velha igreja, ergue-se a casa do velho Cabral, zeloso sacristão desta paróquia. Lembro aqui também o mordaz Carriço, que nos últimos anos levava o garotio a medir em público forças e coragem, na dura calçada!
Quem passasse por ali, a dadas horas, encontrava decerto a velha Tomásia, que toda se alegrava, inquirindo alguém, sobre o filho Mateus, residente, ao que julgo, nos Estados Unidos. Também não faltava, já exausto da vida e labutas que impõe, o enfermiço, Zé do Adro, apertando o estômago, que o fazia penar
Em frente do Largo, no lugar de honra e sala de visitas de Vide-Entre –vinhas, avista-se logo a casa dos Portugais, que passavam, noutras eras, por gente abastada, se é que não eram tidos pelos ‘ricos da Aldeia’. A- gora, deixo o local, rumando ao Outeiro, onde foi inaugurada, em 1931,, a Escola Masculina. que ali frequentei, par fazer a 4ª Classe, no ano seguinte. Exercia então cargo o professor Ribeiro, enquanto Dona Clementina, sua jovem esposa, continuava presidindo à Feminina., lá na Portela.
Foi um ano agitado s cheio de problemas. Não tínhamos bases e era necessário aparecer alguém nos exames de Julho. Por isso a’férula’ fervia , sem direito a folga. Ao todo, levei uma reguada, por ter sido moderado , a bater no Joaquim. “ Carrega nesses diabos”, dizia ele animoso, querendo levar a cabo a tarefa entre mãos!
Deste sítio, inflectindo para a Laja, chego apressado ao termo da aldeia, em cuja última casa vivia uma velhinha toda bondade, que era minha vó. Ceguinha já, exultava de alegria, quando a visitava. Ouço ainda o ressoar vibrante da sua voz.
--Ó minha avó!
-- Entra cá,mê netinho!


Belém
23-4-1986 Cont.

Nas idas à Laja, encontrava colegas, que me divertiam. Era, na verdade, o Joaquim Martins e o António Ferreiro, De vez em quando, se eu lhes tardava, subiam â Portela, para novo encontro. Já Deus chamou esses companheiros, de quem guardo, saudoso, gratas recordações. Uma delas é a que segue.
Encontrando-me na Laja, diz afogueado o Tonho Ferreiro: Ó Pedro hás-de ir connosco à poça do Barreiro! Toma-se lá banho! Aquilo é bom, como vais ver! Está abasbadinha, a mais não poder!
-- Oh! Eu não sei nadar! Tenho medo!
--Por esta razão, escusas de ter medo! Anda daí!
Assegurada já a minha protecção e livre de perigo, (assim o julgava) lá vou com eles, pois era, na verdade, uma grata experiência. Chegado à borda, noto desde logp que a linfa espelhada está rasante! Uma tentação, para os rapazes treinados! Bom!
Já desnudados, atiram-se os dois, imergindo no líquido, ao passo que eu, preparado igualmente, estava acocorado no largo bordo. Vendo-me hesitante, a meter o dedo no seio da água, a fim de saber a temperatura, encorajam-me outra vez, com muita insistência e palavras de apoio.
Eu, porém, é que não decidia. A superfície líquida, espelhada e cristalina, infundia-me receio. Nunca o fizera! A presa era grande, alta em excesso e desconhecida. Que haveria lá dentro? Pedras, calhaus, silvas e urtigas? Animalejos, harto peçonhentos?! Era um bico-de-obra!
Nisto, o Tonho Ferreiro, vendo sem efeito pedido e conselhos, empurra-me logo, sem qualquer aviso, para dentro da água! Era o meu baptismo! Coisa excitante e, por isso mesmo, indescritível! Esvaíra-se o temor! Abrindo a boca, engoli um pouco de água, mas não prejudicou! Um banho forçado. mas proveitoso! Valeu a pena! Entretanto, os dois companheiros riam a bom rir, enquanto eu, algo atrapalhado vinha ao de cima, ganhando coragem.
Os ensaios da vida, por vezes dolorosos, trazem benefícios de natureza vária. Minha mãe guardava-me sem tréguas, impedindo a convivência, fosse com quem fosse! Só às fugidas e com raridade eu podia escapar-lhe! Foram eles, como vemos, quem tirou do meu peito o receio de nadar!


Belém
24-4-1986 Cont.

Já que re trata de ensaios, aí vai mais um , que me foi proveitoso. Até aos 12 anos, era sempre humilhado, se me obrigava alguém a medir as forças com outro companheiro. Faltava a experiência, Não convivendo, que podia fazer?! Entretanto, se outros desafiavam, por aquelas palavras que todos conhecemos “queres alguma coisa comigo?”, eu não fugia, mas vinha a catástrofe!
Caía no chão, ficando envergonhado, enquanto os outros se riam de mim! Grave problema que eu, realmente, não sabia resolver!
Um dia, porém, diz o Manuel Diego, que era nosso criado. “ Olha, Pedro, quando passares ^`a casa do Zé Lopes, vais ali desafiar o temido Zé ‘Catrino!’
Volvo eu logo, decidido e pronto: isso é que não! Tem mais três anos! Além disso, todos fogem dele! Não quero desafiá-lo! Ele deita-me abaixo!
Anda até aqui – atalha logo ele - vou-te ensinar como hás-de fazer! Tu és valente, mas não sabes lutar! Pões-te direito e não fazes força! Claro! Desse jeito, cais logo no chão! Repara bem no que vou dizer-te: Primeiro que tudo, alargas as pernas, firmando bem os pés; em seguida, curvas o tronco, cinges o parceiro pela cintura e enclavinhas os dedos, atrás das costas. Percebes?
-- Sim, claro!
Uma vez assim, ele fará esforço, para atirar-te ao chão, mas tu não cedes e fazes-lhe a ele o que intenta fazer-te! Está esclarecido? Bom. Então, quando formos daqui (estávamos, à data, na Tapada Ribeira!) desafias logo o Zé ‘Catrino’.
Tentei de novo esquivar-me à luta, alegando razões. Ele, porém,
é que não desistia. Vendo-me hesitar e ficar pensativo, aduz incentivos que resolvem as dúvidas. Repara, diz ele, cheio de importância: não tenhas medo, porque eu estou lá, ao pé de ti, quando lutares. Se houver alguma coisa, deixa isso comigo! Eu acompanho-te e não deixo abusar!
Esta saída confortou-me bastante, levando-me então preferir o ‘sim’. Era uma aventura, um caso excepcional, ao menos para mim. Durante o caminho que é muito subido e algo tortuoso, veio-me sempre animando, para não desistir do propósito formado. Chegados à Lavandeira, solto um ai fundo que ele nota, de súbito.
“ Confiança! Tu és forte! Caías sempre, de não teres prática! Vais ver agora como tudo se altera!”
Estávamos já, por baixo da latada. Espreitando para o pátio, desfecho eu logo: queres hoje alguma coisa?!


Belém
25-4-1985 Cont.

Ele, então, sai desembridado, capaz de me engolir! Ao primeiro safanão, atiro-o logo para a calçada, onde fica estatelado! Acto contínuo. levanta-se logo e tenta desforrar-se! À segunda arremetida, sucede-lhe o mesmo! Agora, pergunto eu: queres outra vez? “ Não! Já não quero mais!”
Começa nova etapa, na minha existência! Jamais esquecerei o ensino valioso do Manuel Diego!
Seguidamente, lembrando o passado, endireito ao Pisão! Vou decidido pela Quinta do Crucho, que é melhor caminho e me traz à memória cenas de outro tempo. Vivia no local uma tia-avó, que dava pelo nome de Maria José. Era, de facto, irmã de minha avó, mãe de meu pai.
Em dia de Janeiras, lá estava caído! Nessa data, havia bela fruta, sedução e engodo para o rapazio! Bom! Entesto depois, ao chamado Corgo e breve penetro no Soito dos Ferrinhos. Nessa altura, havia ali belos castanheiros, que levavam fartura à casa de meus pais!
Descida a barreira, avistava-se logo a palheira do Pisão que. não sendo extensa, dava para tudo: gado e provisões, acomodando-se estas no exíguo combarro. Por que vem o Pisão em primeiro lugar? Era a propriedade que meu pai distinguia, entre as demais. Fora ali criado: os tempos de menino como de adolescente não esquecem jamais!
Pois o querido pai, nas horas disponíveis, encontrava-se ali, necessariamente. Sempre labutando assim melhorava a terra de regadio. Ao longo dos arretos, passava um ribeiro que, em tempo de trovoada constituía um perigo. Extravasando, penetrava no lameiro, empurrando o solo arável, com fúria inaudita. Novos cuidados para o pai infatigável! Limpar a barroca, erguer novas defesas, alinhar o terreno, desviar o curso de água! Enfim, mil tarefas diferentes que a furiosa tempestade originava sempre!
Quantas vezes se privava do almoço ou então comia tarde, já quase ao pôr-do-Sol, mercê de trabalhos que intentava realizar. Isso, porém. não era obstáculo! Já tardiamente, surgia minha mãe, com um pouco de comida, a fim de alimentar-se! As suas ocupações, no serviço doméstico, absorviam-lhe as horas.
Não obstante o facto, ele sorria, cheio de paciência e boa disposição. Um marido ideal! Um pai admirável! Sentava-se então para refazer-se, mas notava, desde logo, que faltava a colher! Não se enervava! A mesma calma! Igual serenidade! O mesmo bem-estar!
Ai! Pisão, situado no fundo, alenta-me agora com memórias antigas dos tempos de criança! Verte em meu peito essa grata poesia, encanto e maravilha, que me vinham de ti! Anos encantados, em que os pais amorosos centravam em mim todo o seu afecto, sendo eu, na verdade , a razão cabal da sua existência.


Belém
26-4-1986

Falei do Pisão, que era, na verdade, a leira mais amada por aquele pai tão maravilhoso. Para baixo, era fácil deslocar-se: no regresso, porém, havia dificuldades, sobretudo vindo com fardos! Tornava-se premente aliviar o corpo, descansando um tanto, com o peso no, chão! Para isso, escolhia lugares acomodados ao fim: geralmente, uma pedra, com tamanho vultuoso ou ainda uma parede que se prestasse ao caso.
Enquanto ele pôde, fazia-o com presteza e grande prazer. Depois, trazia fardos leves e, finalmente, vinha já sem nada! Nos últimos anos, renunciou, por inteiro, à ida ao Pisão. Subir a vertente já não era com ele, mesmo sem nada a carregar-lhe nos ombros.
Entretanto, génio empreendedor que hábitos de longe, não toleravam ficasse inactivo, começou a pender, sensivelmente, para o meu Carvalhal, pequena propriedade, a meio quilómetro de Vide –Entre- Vinhas.
Psicologicamente, dizia-lhe pouco, uma vez que a herdara da primeira esposa, com a qual habitara, durante escasso tempo. Efectivamente, a dita senhora morreu de parto. Como porém, a referida quintinha ficava à mão e tinha acesso que a tornava aceitável para qualquer veículo, endireitou para ali, fazendo agora as vezes do longínquo Pisão.
Perdido ou achado, era lá que se encontrava. Em breve tempo, com mínimo esforço, alcançava o Carvalhal. Não havia subidas nem sequer mau piso!
Uma vez ali, melhorava, dia a dia o terreno de cultivo, donde tirava carradas sem conta de pedra miúda. Arroteava anualmente um pequeno troço. Se o achava duro, insistia ainda, só desistindo, a muito custo. ’.
Esta propriedade tinha, a princípio. cabana de colmo, lá mesmo ao fundo, situada a Norte. Como era lavrador, não queria a fazenda sem cabanal, adequado às tarefas da premente lavoura. Construiu, depois, uma casa com loja, espaçosa e direita, para ali resguardar quanto fosse preciso. Ainda hoje existe, um pouco melhorada.
Pois o Carvalhal conquistou-me o afecto, por causa disso! Minha mãe frequentava igualmente este solo fértil, extraindo hortaliças que levava para casa. Estava, pois, destinado a ficar o património que hoje me pertence! A tamanha distància, no tempo e no espaço, figuro os velhinhos curvados sobre a terra, para dela tirarem o sustento dos filhos.


27-4-1986
Belém Cont.

Apeguei-me a valer, ao dito Carvalhal. As fainas começadas que meu pai largara, por não ter recursos de ordem financeira ou por débil saúde, resolvera eu melhorá-las um dia, assim que pudesse. Como o pensara assim o realizei. Durante as férias grandes, tinha ali vasto campo, onde me distraísse! Sendo professor de Ensino Secundário, dispunha realmente dos meses de Verão, que eu aproveitava, para levar a cabo a melhoria do solo.
Metendo ombros à dura empresa, comecei pelo fundo: reforçar o muro ou reconstruí-lo, quando não erguê-lo, desde os fundamentos, onde o não havia. Sendo grande o desnível, cada vez que ruía, perdia-se o terreno, que logo se esgueirava para os vizinhos!
Ao longo deste muro, havia, desde há muito, um renque de ginjeiras, que sugavam a terra com enorme prejuízo para toda a cultura. Ora, lançando as raízes, a toda a extensão, pelo solo arável, impediam o renovo de bem produzir. A terra melhor quase nada prometia. Além disto, havia uma agravante:
no tempo das ginjas, o garotio ousado saltava para ali, amarrotando as batateiras viçosas e partindo as árvores, para colherem os frutos. Prejuízos a dobrar
Concebi então uma ideia luminosa, com bastante proveito: mandar abrir valas, a um metro de fundo, arrancando, sem piedade, as raízes gulosas, que ficaram ao sol, para todo o sempre! Então, sim! Com a terra livre e um muro sólido, já eu descansava! Terminada esta fase, que foi morosa, voltei o olhar para o arreto do meio. Era estreito e exíguo! Desloquei por isso a parede protectora , alargando-o bastante e continuando o labor porfioso, que meu pai largara, por ser muito árduo!
Na extremidade, cavava-se um poço de pequenas dimensões, embora o querido pai tentasse alargá-lo, por várias vezes. Também ali me esforcei por dar-lhe amplitude. Ficou então enorme o poço da figueira! Em seguida, plantei várias árvores, que regava com amor e assiduidade.
Estes sítios saudosos, ligados à infância, continuados na puerícia e depois na adolescência constituem o mundo, em que fui tão feliz! Tempo inesquecível, que jamais olvidarei! Época de ouro, na minha existência, que se volveu, mais tarde, após a morte dos pais, em fase desamada e tempestuosa.


Belém
28-4-1986

Nesta romagem que fiz em espírito, recordei e vivi o tempo mais belo da minha existência. Agora, ao findar, quero ainda insistir em alguns pormenores, que me foram escapando, já que vêm ao de cima, a cores deslumbrantes. Hei-de começar pela casa da Portela, em Vide-Entre-Vinhas,
pois foi ali que vi a primeira luz e recebi também os primeiros beijos. Aludirei igualmente à zona circundante, onde ensaiei os meus primeiros passos, já sem amparo ou realizei meus jogos inocentes, durante a puerícia.
Quero distinguir o átrio da casa, onde jazi, por largos dias, abrasado em febre. Minha mãe, angustiada, passava rentinho, com as lágrimas nos olhos, ante a perspectiva de perder para sempre o único filho.
Eu, embora criança. apercebi-me do facto e, com ânsia veemente, inundada de carinho,, afecto e paixão, irrompi uma vez: “minha mãe, não chore! Olhe que eu não morro!”
De facto, não morri, que Deus me preservou!
Vem agora a pêlo a zona do pátio da querida Ana Rosa, logo em frente da casa paterna. António Cândido havia preparado todos os objectos, para ali fazer a aguardente. Tirara já o vinho, guardando o mosto na dorna grande,, que pusera em acção. Como p pátio é extenso, havia muito lugar: tudo ali cabia!
Os meus 4 anos acompanhavam a cena, com grande atenção! Bem. A operação começa e fico boquiaberto, presenciando ali o grato evoluir daquela tarefa.
Eis senão. quando vejo correr um fio branquinho, para dentro de um asado. Nisto, abeiro-me tanto, que António Cândido fez logo reparo e disse em voz alta: “ Queres disso, meu filho? Espera aí, que eu já te dou!”
Então, foi buscar um copinho, dando-me a beber. Resultado? Fiquei logo borracho, caindo no chão, sem poder levantar-me! Recordo muito bem o que veio em seguida!
Andava tudo à roda e, tentando erguer-me, não consegui! Entrementes, chega minha mãe, que olha estupefacta, quando eu lhe digo: minha mãe, dê-me uns pauzinhos. que não posso levantar-me!
Do mais que houve, não me lembro já! Foi esta borracheira um caso único. em toda a minha vida!


Belém
29-4-1986 Cont.

Uma coisa puxa outra. A sombra da nogueira traz-me à lembrança outra similar, que se erguia, a poucos metros, no Chão da Fonte, mesmo juntinho à velha Escola. No Verão, era delicioso ficar por ali. ouvindo as conversas da gente idosa. Foi o caso que um dia se encontrava dialogando a vizinha Ana Rosa com Dona Raquel, professora Oficial de Vide-Entre-Vinhas.
Os meus anos inocentes prendiam-me à velhinha, que sempre me acarinhava, tratando-me qual filho. Ora, sucedia amiúde que eu ouvia mal.
Calculo, pois, que a finada Ana Rosa lhe falasse de mim, lastimando, com certeza, a minha enfermidade, em anos tão verdes. Não prestava atenção, que a idade era pouca. Apesar de tudo, em dada altura, interpela-me a propósito, a Dona Raquel, do modo seguinte: “ Tu ouves, menino?
-- Ovo, ovo – disparo eu logo!
Sem que eu o soubesse, apliquei prontamente a lei da analogia. Não sei como foi a reacção da Mestra, mas acho que nada fez, para me corrigi! À velha professora, que Deus lhe perdoe, pois nunca lutou pela instrução, com lucros visíveis.
Ao longo de vários anos que ali permaneceu, ninguém jamais conseguiu diploma da 4ª classe ou então da 3ª. Ninguém foi a exame! Tempos, lastimáveis! E pagava a gente, para viver na ignorância! Desta vez, é a cozinha de Ana Rosa. Tenho para mim haver-me já referido às cenas principais: a do ‘borrego’, ao fazer do queijo, e a da ceia ‘democrática’, em que todos, incluindo o mendigo, comíamos juntos, da bacia comum.
Na zona da cozinha, havia um buraco, não muito largo, que dava passagem à candeia de petróleo. Em tempo de Verão, não era necessário mas, no Inverno, o vento apagava-a, não podendo o ti Cândido levá-la na mão, para a loja das cabras, onde se encontrava a dorna das uvas
O caso, porém, resolvia-se fácil: a Ti Ana metia-a prestes, no orifício, aparando-a o ti Cândido, no interior da loja. Aqui, dois belos quadros observava eu, com grande interesse:
o mungir das cabrinhas e assim também o verificar da fermentação. Dava isto que pensar à pobre criança, que nada percebia do que estava ocorrendo, no interior da pipa.


30-4-1986 Cont.

A cena da ordenha era vulgar, não me dando quezília. Apesar de tudo, gostava de assistir, sem nunca faltar, quando pela noite, o facto ocorria. Queria muito à ti Ana Rosa, mas chegado o momento, deixava a cozinha, para fazer companhia ao velho ti Cândido.
As 4 cabrinhas eram modelares. Pareciam entender, mostrando bonomia, ao verem o dono com um grande ferrado suspenso da mão. Remoendo o pasto, elas próprias se abeiravam, transluzindo nos olhos o gosto de ser úteis! Com que paciência voltavam a traseira, ajeitando-se elas mesmas, em volta do ferrado!
Agora, o ti Cândido, pondo-se de cócoras, começava a mungi-las A primeira que vinha é que era atendida. O pastor, de sua parte, lidava com elas, como se, realmente, fossem pessoas. Falava com brandura , tocava-lhes manso, ao que elas acediam, obedecendo ali, com a máxima presteza!
Agora, és tu, Laranja, monologava ele, com voz embrandecida e cheio de carinho. Logo ela se aproximava, dispondo-se habilmente, para verter no fundo o leite precioso. “É a tua vez, ó Rouxinol!”! Vinha logo sem demora a amável cabrinha, para junto do dono, com igual finalidade.
És tu, Negra! Anda cá também! Não me esqueço de ti! Finalizada esta operação, dirigia-se à Riscada, que fazia a mesma coisa, mostrando satisfação de ser aliviada e alegrar o seu dono!
Eu, então, gozava a delícia, empoleirado na vizinha adega, onde havia palha, sobre a qual me recostava. Ao meio da loja, erguia-se a barreira, feita de canas. O gado respeitava-a, jamais saltando para o interior.
Após a vindima, que o vizinho Cândido fazia sozinho, cortando ele os cachos e trazendo-os à noite, juntamente com as cabras, metia as uvas na dorna, para ali fermentarem. Havia-a preparado, à Fonte do cão. Cheiinha de água, embuchava toda. Uma vez em condições, toca de levá-la para a loja da casa. onde era atestada de cachos maduros, que trouxera do Chão, da vizinha Tapada,Demoacho e da Ladeira.
Tudo isto que digo me era familiar e compreendia muitíssimo bem. Entretanto, a cena da candeia punha-me confuso. Acabada a ordenha, ripava da luz, suspensa num prego, metendo o objecto no interior da dorna.
Verificado o efeito na própria luz, falava sozinho, quase em surdina: ‘Inda num stá!’ Ao outro dia, a mesma operação! A candeia, porém, mantinha-se acesa. Finalmente, chegava o dia, em que ela se apagava! Nascia-lhe logo uma alma jubilosa, descarregando a alegria em palavras repuxadas:” Ó Ana, amanhã tirar o vinho, para fazermos, depois, a aguardente!”.


1-5-1986 Cont.

A cena anterior deixava-me suspenso e boquiaberto! A princípio, a candeia mantinha-se; depois, já não! Apagava-se porquê?! Bem eu perguntava, mas a resposta é que não vinha! Intrigado sempre, dirigia-me a outrem, mas nem palavra! Que grande azar nascer uma pessoa em meios ignorantes!
O tempo foi correndo, até que um dia, já bastante mais tarde, noutro meio diferente, obtive a resposta. nos livros de Química. Afinal, o processo dava certo, embora o ti Cândido, não soubesse explicar cientificamente o desenrolar dos factos habituais.
O que apagava a luz era, realmente o óxido de carbono, em que o açúcar se tinha decomposto. O álcool ficava e o dito óxido era libertado, espalhando-se no ar. É certo e sabido que o dito óxido produz efeito contrário ao do útil oxigénio.
Julgo encontrar-me no bom caminho, embora nesta data, em que passo o texto a computador e corrija defeitos, eu cavalgue já os 93 anos.

Cabe também a vez à escapadela através da cozinha! O ti Cândido era pastor. Só de vez em quando ia a ti Ana acompanhar as cabrinhas.
Ora, sendo assim, comecei a alimentar a ideia sedutora de ir acompanhá-la, passando o tempo no campo. Fazendo saber isso à mãe, Margarida, obtive uma resposta que não me satisfez.
Minha mãe, deixa-me ir com o ti Cândido guardar as cabras, no Carvalhal?
-- Não vais, não! – diz ela prontamente, Está muito frio! Não sais de casa!”
Bom! Estava barrado este grande anseio! No entanto, não desisti! Pensei a valer e meditei a sério, resolvendo o caso de outra maneira.
Comunicado o projecto aos meus vizinhos, foi logo aprovado. Da cozinha da ti Ana, através da janela, que dava para a Rua, podia esgueirar-me, sem ninguém me ver. Era alta, bem entendido, mas junto da parede, na Rua da Portela, avultava uma cabana, feita de colmo.
Foi a salvação! O ti Cândido sustentou-me da janela, até eu me apoiar no topo da cortelha! Depois, escorreguei de mansinho, pelas giestas abaixo. até chegar à rocha. Estava salvo! Era uma estreia. Que dia maravilhoso, embora com frio!
O ti Cândido acendeu uma fogueira e tudo correu bem!


1986 A Tecla Mártir

Custa-me sempre fazer tal coisa! Entretanto, não posso evitá-lo! Efectivamente, se o erro continua, impõe-se realmente que o protesto se mantenha! Quem cala consente! Ora, é isso que eu não quero! De que é que se trata? De certos disparates que ouço na Televisão, o que bastante me indispõe, uma vez que é semente, lançada à terra, onde fica para sempre!
O assunto agora é de carácter linguístico: não doutrinal! Váriados casos registaram, mas não vou decerto ocupar-me de todos. Apenas, já se vê, dos mais inaceitáveis, que me lembrem, de momento. Ouve-se amiúde este arranjo sintáctico: ‘não levem os vossos livros sem os pagar.
A construção que uso e se deve utilizar é a seguinte: não levem os seus livros sem os pagar. Há outra construção que também está certa; não leveis os vossos livros sem os pagar!
Qualquer outro arranjo é inaceitável, por ser disparatado. Vou mostrar isso, ainda uma vez mais. Se perguntarmos ao verbo quem leva os livros ( o sujeito da oração) vem a resposta: os senhores, as senhoras; os meninos, as meninas; Vossas Excelências. A forma verbal ‘levem’ está na 3ª pessoa, o que é indicativo de tratamento ‘cortês’
‘Não leveis os vossos livros’ também está correcta: verbo na 2ª, pronome (vós) na 2ª, Aqui tratamos por ‘tu’.


Belém
2-3-1986 Compressão

A pretexto da palavra, surgem logo outras, com semelhança. É mera questão de fazer mudanças, Ao que vemos, trata-se apenas de mudar o prefixo, jogando sempre com o termo ‘pressão’
São, pois, derivadas por prefixação as seguintes palavras, que me vêm à ideia: compressão e repressão; depressão e impressão. Temos em jogo os seguintes prefixos: com, re, de, im (n), que vão alterando, por modo, parcial, o sentido rigoroso da palavra primitiva.
O prefixo ‘com’ significa actuação de elemento exterior (agente), com o fim de reforçar a acção de premir (calcar). Foi isto, exactamente, o que eu observei, na Rua de Alcântara, aqui em Lisboa.
Nas belas Ciências da Natureza, de que fui professor, quando estive em Manteigas, falava-se muito em pressão atmosférica( peso que o ar exerce na superfície dos corpos.
Se a memória não falha, é essa pressão de 1033 gramas. por centímetro quadrado. Quantas arrobas não pesam sobre nós! Como podemos aguentar centenas delas?! O Grande Arquitecto previu tudo isto e criou resistências que aguentassem tal pressão.
Não interessa agora o que faz variar a mesma pressão, que não vem a propósito. O que intento pôr em foco é o que pode reforçar a dita pressão. e seja constituído por agentes externos, de carácter diferente dos que vêm nos livros.
Neste passo, recordo um facto, ocorrido há anos, em certo lugar. Eu mesmo observei o decorrer da cena. Acabava de chegar, da minha aldeia, onde passara belas férias, para retomar as lidas no Colégio, onde era professor. Descendo uma rua, avisto em baixo um vulto de homem , a certa distância, fazendo limpeza às fossas nasais, sem se curvar.
A prática de anos e o grande à-vontade permitiam-lhe agir, sem grande curvatura. Mera inconsciência? Irresponsabilidade? Javardice em causa? Não sei exactamente. O que sei, na verdade, é que ele então, com certo movimento, levou o indicador à superfície externa do pobre nariz, arremessando para longe, mucosidades e imundície, aglomeradas lá.
Cá de cima, anotei o sucedido e fiquei enjoado! Por muito pouco não ia vomitando! Lá me aguentei conforme pude e tomei precauções, não fosse caso que viesse a acontecer-me coisa pior! O que eu tinha imaginado estava-se preparando - um aperto de mão, na minha pessoa!
Eu que sou tão nojento! Podia lá ser! Bom! Homem prevenido vale por dois! Ouvi isto muitas vezes, ao longo da vida! Por isso mesmo, preveni-me a tempo!
Sabia de antemão que ele iria cumprimentar-me, segundo era hábito. Eu, por minha parte, sentia repulsa em tocar-lhe na imundície. Que podia fazer? Recuar? Era solução, mas não me convinha! Devia seguir, naquela direcção, Bem! Aventurei-me!
Avanço resoluto e meto no bolso a mão direita! Ao chegar junto dele, esboçou leve jeito, com vista ao acto, mas logo desistiu, vendo ali bem a minha posição.
Estava salvo, ao menos daquela vez!


Belém
12-3-1986 Deserções

Chama-se desertor aquele que abandona a carreira encetada, por não corresponder à sua expectativa, haver sido imposto ou sugerido e não lhe dar prazer. Anda associado tal proceder ao facto vergonhoso de trair uma causa ou então um ideal. Entretanto, nem sempre acontece.
Se alguém, por ventura, se não sente realizado, num dado sector, que não foi de sua escolha, e podia ter sido,( para não dizer “devia ter sido”) por que razão é que há-de manter-se contra vontade?! Ficar acorrentado, mantendo sempre a frustração?! Que interesse tem isso?! Cà por mim, entendo que não deve hesitar-se um momento sequer!
Escravizado aos homens, quando o Céu nos deixa livres?! Como é isso?! Não percebo, não!
Quando a Igreja Católica estudou a fundo o caso especial dos padres celibatários, que desejavam romper o compromisso tomado, na verdura dos anos, apareceram logo uns 80.000, a pedir a d!ispensa!
Foi assombroso! Em 400.000! Nada menos de um 5º, para começar! Tenho para mim que não estava em causa a sua vocação! “Perderam-na!” – asseguram alguns! Como podiam perdê-la, se eles a não tinham?! Quem a tem não a perde, com tanta facilidade, embora se admitam casos do género.
Entretanto, por via de regra, não é isso que sucede! Muitos deles queriam o sacerdócio, mas fora do celibato, dando-se o caso, assim o julgo eu, de terem vocação. Como porém, a Igreja Católica não transige ainda, (fá-lo-á no futuro), diremos sem base, que não têm vocação, se não admite o celibato eclesiástico.
Chegámos a um ponto, deveras importante, no campo educativo Aqueles 80.000, logo de entrada, causaram espanto! E quantos ficaram que não tiveram coragem?! Quantos ainda que estavam decididos, mas não arriscaram o nome que tinham?! Não aplico restrições a todos os elementos Um número reduzido ( 10% ? ) manter-se-ia fiel ao antigo celibato, mas acho que não mais!
As dificuldades são de facto, enormes ,em todos os campos. Quanto mais se avança, pela vida fora, mais elas se acumulam! Bom! Mas eu intento agora uma coisa diferente! Projecto nada menos que investigar a causa de tanta deserção! Se não me engano, vou descobri-la, ao menos em parte, no sistema educativo com o nome de ‘síntese’. Era tudo imposto, dogmaticamente.
Mão se discutia nem se objectava! Mesmo já na Guarda, no Curso Teológico, os professores, de modo geral ( não abarco a todos), não aceitavam, pelo menos de bom grado, objecções à matéria e, muito menos, sérias discordâncias Um dentre eles até levava a mal!
Bem. Tal sistema é o que há de pior! Apenas engollr, sem digerir! As razões pessoais não interessavam! “O mestre disse: basta isso!” A quantos erros ‘ o mestre disse’ não está sujeito! Além disso o estudante pode ter, no momento, diversa posição.
Lembro-me agora dum facto assombroso, ocorrido em Roma, numa aula de Dogma. Era aluno, então, o urso dos estudantes, um distinto português, que chamavam Agostinho. Foi mais tarde bispo do Porto. O professor era, ao tempo, o cardeal Billot, considerado grande, entre os maiores.
Havia para tema “A Santíssima Trindade” Em dado momento, o famoso Agostinho apresenta, sem delongas , tremenda objecção, que faz suar o grande professor. Fica taciturno, pensa, aprofunda, sem dizer palavra, até findar a aula. Ouvindo o sinal, para os alunos saírem, diz ele então:” Nunca pensei que pudesse erguer-se tal objecção! Não sei responder! Peço oito dias para estudar o assunto e dar a resposta.
Não se deve proceder com intransigência, autoritarismo e dogmatismo! Seja o próprio aluno a achar o caminho! Partamos sempre do menos para o mais, do que é simples para o complexo. Guiemos, sim, mas não empurremos.Que seja o próprio a compreender, abraçar e deduzir!


Belém
13-3-1986 Cont.

Voltando uma vez mais ao assunto em causa, faz-nos impressão o número vultuoso, 1ue logo desertou. Seriam traidores à causa da Igteja? Não os tenho por isso! Seriam imprudentes, inconsiderados ou então levianos? Julgo que não! Até porque muitos deles perdiam bons lugares, sem terem a certeza, quanto aos do futuro. No entanto, lançaram-se de cabeça, aguentando firmes as consequências!
Seriam apóstatas? Muito longe disso! Quantos eu conheço que ficaram fiéis às práticas de piedade, executando-as regularmente, como por exemplo: a Missa, ao Domingo, a reza do Terço e prestação de serviços, no templo do Senhor, como simples leigos!
Tenho para mim que foram antes vítimas do velho sistema, utilizado ainda, no Seminário: engolir sempre, sem digerir! Aceitar, por norma, sem digerir! Aceitar, sem discutir! Avançar puxado! Que podia esperar-se da chamada síntese, aplicada a preceito na educação? Obedecer cegamente, como se fora autómato!
Justificando o processo, iam os Mestres dizendo, com muita frequência:” Quem obedece nunca se engana! Entretanto, o Superior está sujeito a isso! Hoje, penso diferente: não aceito o primcípio. Quem se engana prejudica outrem, sendo obrigado a fazer recuos. Quem é que já os fez, dando em seguida a mão à palmatória?!
Desdizer-se ou recuar houve pouco, no mundo, quem o fizesse ou utilizasse! Lembro-me apenas de Santo Agostinho! Houve mais? É natural! Apesar de tudo, contam-se bem! A propósito do assunto, vem à memória o Papa Paulo VI, que disse uma vez ao velho patriarca de Constantinopla:”Se fomos nós que tivemos a culpa, pedimos humildemente perdão aos nossos irmãos!”
Foi admirável essa atitude, embora ela não tenha o vigor e a beleza sem par de uma falta pessoal, que se confessa e logo repudia!
Aceitar, pois, deixar-se levar como pobre jumento que o dono conduz, puxando a arreata, dá péssimo efeito! Decorar apenas, receber opiniões e guardá-las sempre como arcanos celestes, é outro disparate! Não foi Descartes o autor famoso do Discurso do Método? Duvidar inicialmente e chegar à verdade, por esforço pessoal! Assim, conhecemos as razões, procedendo ali como seres racionais.
Abusar da memória, com dano grave para a inteligência, é outro fiasco. Entibia-se prestes o nosso raciocínio; debilita-se ainda a capacidade; afrouxa o critério. Engolir apenas, fazer montões, isso não chega e é perigoso. O que vamos decorando é fruto alheio que se vai empilhando, para logo esquecer-se. volvido algum tempo! O que interessa não é empilhar! Isso é de outrem!
Se o não entendemos, assimilando os conceitos, e estendendo o nosso campo de acção, nada aproveita! Fazer retiros em barda e rezar sem fim, por serem impostos, nada aproveitam, uma vez que não penetram o cerne da alma. Imposições, ordens peremptórias, maneiras sacudidas e gestos ameaçadores fazem a tragédia que o amanhã nos dará.
É preciso, na verdade, que o pupilo raciocine, conheça as razões do seu agir quotidiano; seja consultado, para dar opinião; ouvido sempre, nos casos pessoais; atendido e ajudado, nos seus problemas; Numa palavra, ser tratado como gente e não como peça de grande maquinismo! Por caminho errado, obtém-se um manequim, um boneco animado ou um fantoche.
Agirá toda a vida como simples máquina. Se um dia raciocina e cai na razão, fica decepcionado e resolve o problema pela deserção! Volta costas ao fardo que lhe puseram nos ombros e, livre já de peias, faz rumo a seu mundo, onde pensa realizar-se.
Não contrafeito, mas sereno e confiado, inicia a caminhada, pelo trilho escolhido. A ninguém pede aviso e corre para a meta. Sente pena imensa de ter sido ingénuo e decide afoitamente não prestar seus ouvidos a contos de fadas! Quer vivas realidades: não fantasias a povoar-lhe o cérebro
Sendo tão perniciosos estes males que expus, urge combatê-los, com viva energia e pronta decisão. Reparar no aforismo: “Todos os conselhos tu ouvirás: só o teu tomarás!”
Ouvir, sim, mas sempre ficar no que parece melhor!


Belém
1986 Igualdade de Classes

É este o alvo do Socialismo. Não me cabe a mim fazer as leis nem criar sistemas de tal natureza. Entretanto, posso dar opinião e expressar o que julgo, acerca do assunto. Antes de mais, ponho desde já as seguintes perguntas: 1. seria bom?; 2. seria possível?
A partir daqui, aparece já matéria que dá pano para mangas.
Bom era, certamente, que os bens deste mundo ficassem distribuídos, com equidade, evitando assim, dois graves extremos que nos enchem de pasmo, surpresa e desânimo: o amontoar de riqueza, nas mãos de poucos; a fome e a miséria atingindo a grande massa da pobre Humanidade. Haveria para todos o que fosse bastante, banindo da Terra tantas injustiças.
Como seria o mundo, se houvesse pão e tudo o mais, em todos os lares, para cada um viver decentemente! Capitalistas duros, açambarcadores, usurários crus e vis exploradores passariam à História, levando consigo o ferrete da ignomínia, como única lembrança, degradante e abominável.
2. Seria possível? Hoc opus hic labor est (aqui é que está o busílis). ou aqui é que a porca torce o rabo! Ouso afirmar que não é possível! Portanto, é vão qualquer esforço, em tal sentido! Claro! Resta provar a minha afirmação. Não é difícil! Começo já!
Por incapacidade? Nâo é por isso! Apenas por falta de honestidade; por ambição desmedida, rancor e inveja. O resultado, na fatal inversão, era o que vinha em seguida: criaria decerto uma situação bem pior ainda que a primeira referida! Guerra civil, destruição e até inversões: não é de facto o que interessa!
Dizer que é possível é mentir abertamente, já por maldade, já por miopia. Apear somente os que estão em cima e abrir um fosso maior ainda, criando assim maiores desigualdades, seria o resultado, havendo para isso boa intenção, equidade e sensatez!
Mas não! É ver o que sucede, nos países socialistas (radicais). Os da cúpula é que têm tudo! São, a rigor, os novos capitalistas! Os do Partido creio terem o bastante: os opositores são os novos escravos do século XX. É esta, assim, a igualdade de classes?! Por tais razões, fundadas no que vejo, ouso então afirmar que é utopia a situação invejada!


Belém
31-3-1986 Parábola do Filho Pródigo

Dentre as coisas belas que nos dão os Livros Santos, esta é, sem dúvida, uma das melhores. Encontra-se exarada no Evangelho de S, Lucas e mostra à evidência a grande misericórdia do Senhor nosso Deus, para com o pecador, quando ele se arrepende e volta aos braços do Pai amoroso.
Abandonado o lar, para viver livremente, vai dissipando bens e saúde Por fim, isolado e triste, reconsidera e chora. Ao longe, dois olhos se projectam, pelo vasto horizonte, aguardando o momento de vê-lo chegar. Sabe com certeza que dor e privações, desengano e logros irão trazê-lo à casa paterna.
Regressa o infeliz que é o pecador, e seu pai, angustiado, é o primeiro a vê-lo, ainda à distância. Vem já desiludido, sem bens nem esperança. Entretanto, seu pai aguarda ansioso que ele se abeire, para acarinhá-lo e dar-lhe incentivo. Corre, pois, ao seu encontro, desfazendo-se em mostras que lhe saem do peito.
Está perdoado. Em presença do pai, amoroso, indulgente, reencontra a felicidade. Por tratar-se agora dum quadro tão belo, vou apresentar a narrativa em línguas diferentes: Francês, Inglês. Alemão e Português.
Vale a pena mergulhar nesta luz diamantina e ficar inundado.
Le fils perdu et retrouvé. The lost son. Der Vater und seine zwei Sohne. O filho perdido. 11 Jésus dit encore : Un home avait deux fils. 12 Le plus jeune dit à son père: Mon père, donne-moi la part de notre fortune qui doit me revenir. Alors le père partagea la fortune entre ses deux fils.
11 Jesus went on to say: There was a man who had two sons.
12 The younger one said to him: Give me now my share of hue property. So the man divided the property between his two sons .
11 Jesus erzahlte weiter: Ein Mann hatte zwei Sohne,12
Der jungere sagte zu seinem Vater: Gib mir den Teil der Herbschaftder zu mir zustent. Da teilte der Vater seinen Besitz unter die beiden auf.
11 Jesus disse ainda: Um homem tinha dois filhos. 12 O mais novo disse ao pai: Dá-me a parte dos bens que me corresponde, E o pai repartiu os bens entre os dois.


Belém \ 1-4-1986 \ Cont.

13 Peu de jours après, le plus jeune fils vendit sa part de la properté et partit avec son argent. pour un pays éloigné. . Là, il vécut dans le désordre et dissipa aussi sa fortune.
13 After a few days, the younger son sold his part of tee property and left home. with the money, He went to a country, far away. whee he wasted his money in reckless living
13 Nach ein paar Tagen, machte der jungere Sohn seinen ganzen Anteil zu Geld und zog in die Fremde. Dort, lebte er in saus und Braus und verubelte alles,
13 Poucos dias depois, o filho mais novo, foi juntando tudo e partiu para uma terra lomgínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía., vivendo dissolutamente.
14 Quand il eu tout dépensé, une grande famine survint dans ce pays, il commença à manquer du nécessaire.
14 He spent everythng he had.Then a severe famine spread over that country and he was left without a thing.
14 Als er nicht mehr hatte, brach in jene land eine grosse Hungersnot aus; da ging es him schlecht.
14 Tendo gasto tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passer privações.
15 Il alla donc se mettre au service d’un des habitants du pays qui l’envoya dans ses champs garder les cochons.
15 So he went to work for one of the citizens of th at country who sent him out to his farm, to take care of the pigs.
15 Er fand schliesslich Arbeit by einem Burgerjenes Landes der schickte ihn zum Schweinehutten aufs Feld.
15 Então foi servir a um dos habitantes daquela terra,, que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Belém
16 Il aurait bien voulu se nourir des fruits du carcubier, mais personne ne lui en donnait
16 He wished he could fill himself with the bean pods the pigs ate, but no one gave him anything to eat.
16 Er war so hungrich dass er auch mit dem Schweie-futter zufrieden gewesen ware, aber selbst dass verwehrte man ihm.
16 Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
17 Alors, se mit à réléchir, sur sa situation et il se dit: Tous lles ouvriers de mon pére ont plus de nourriture quils n’en peuvent manger, tandis que moi, ici, je meurs de faim.
17 At last, he came to his senses and said: All my father’s hired workers have more than they can eat and here I am about to starve.
17 Endlich, ging er in sich und sagte sich: Die Arbeiter meines Vaters bekomen mehr als sie essen konnen und ich werde hier noch vor Hunger umkommen
17 Caindo em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui morro de fome!
18 Je vais partir, pour retourner chez mon père et je lui dirai: Mon père, j’ai péché contre Dieu et contre toi
18 I will get up and go to my father and say: father,I have sinned against God and against you .
18 Ich will zu meinem Vater gehem und ihm sagen: Vater, Ich bin vor Gott und vor dir schuldich geworden.
18 Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei:: Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
19 Je ne suis plus digne que tu me regardes comme ton fils Traite-moi comme l’un de tes ouvriers.
19 I am no longer fit to be called your son! Treat me as one uf your hired workers.
19 Ich verdiene es nicht mehrdein Sohn zu sein. Lass mich als einfachen Arbeiter bei dir blieben.
19 Já não sou digno dr ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus jornaleiros


Belém
8-4-1986 Para reflectir

A formosa Parábola do Filho Pródigo, a que falta ainda a última parte, é certamente a mais bela de todas e o quadro mais eloquente. de qualquer Literatura, constitui um vasto campo, onde vamos deleitar-nos espiritualmente. É trágico descaminho, por levar ao infortúnio, à própria destruição, física e moral.
Entretanto, quando o pai do infeliz é todo perturbação, desassossego e inquietação, pela sorte de seu filho, enchemo-nos de coragem, admiração e ternura. A figura simbólica do Evangelho de S. Lucas é muito conhecida. Ao vermos o “Touro”, vem-nos logo à mente a misericórdia do nosso bom Deus!
É, na verdade, o formoso Evangelho da misericórdia. As entranhas belas do Pai do Céu revelam-se ali cheias de compaixão, interesse e caridade, no tocante ao pecador. Ainda atolado no vergonhoso vício, , esbanjando a riqueza e caindo no lodo, o Pai do Céu não sente repulsa. Espera dia e noite, olhando atento e estende os seus braços, para cingir o perdulário.
Quem antes de todos alcança o outro é o Pai de bondade. Seus olhos inquiridores, perscrutavam o horizonte, a toda a extensão, na mira de alcançá-lo.
Esse momento chega, por fim, correndo logo em sua ajuda. O insensato , que partira para longe, carregando seus haveres, volta agora desmedrado, pobre e infeliz. Entende, na dele, que o pai tem razão, para dar-lhe outro nome que não o de filho. Entretanto, sabendo que ele é bom, pensa que o aceita, à semelhança exacta dum Jornaleiro.
Já não era mau! Neste quadro vivo, humano e expressivo, é figurado o pobre pecador – o jovem licencioso, que dá livre curso às suas paixões, Para satisfazê-las, abandona o lar amigo, onde seus pais se enchem de amargura. Cada dia que passa é mais um espinho a cravar- se na alma. O filho desnaturado, insensato e lascivo a tudo renuncia, para viver à larga, em terras distantes.


Belém
9-4-1986 Cont.

O simbolismo desta parábola é sempre actual, expressivo e real.A história do Pródigo é o quadro vivo da alma pecadora. Que faz, realmente o que volta costas ao Pai do Céu, repelindo seus braçps, carinhos e afagos?! Postergando seu amor, solicitações e crebros avisos?! Entregue a si mesmo, sem a protecção que recusara firme, resvala, noite e dia para o terrível abismo!
Que é o homem, sem Deus?! Pobre verme da Terra, sujeito a ser calcado. Tudo quanto faz é já conducente à destruição! Aborrece o que é eterno, fechando seus olhos às grandes realidades: apenas se abrem para o que é passageiro, falso, ilusório! Os problemas do Além, a que não pode fugir, quase entenebrecem!
Tem olhos, sim, mas nada vêem; ouvidos, e não ouve ou então se ouve,m nada escutam! É um infeliz, de olhos vendados para as grandes realidades! Esta é, realmente, a via do pecador! Bem digno se torna da nossa compaixão! O que nos vale é Deus ser paciente e esperar bondoso até que chegue a hora da séria reflexão, que leve sem tardança ao arrependimento. As várias carências, decepções e amarguras contribuem para isso.
Amigos e amigas todos eles se afastam, ao vê-lo sem meios. É a hora de Deus, que nunca nos rejeita! Na história do Pródigo, que é, afinal, a grande trajectória do homem pecador, há um pormenor, que é digno de atenção: lançado na miséria, havendo já dissipado todos os seus bens, precisa trabalho para subsistir.
Surge-lhe então um senhor abastado, que o envia logo para os seus campos, dando-lhe por missão a guarda de porcos. Mais realismo não consigo encontrar! A imundície moral contacta ao vivo com outra imundície O porco, em geral, sugere porcaria: imundície vasta de toda a ordem: no corpo e no cheiro e no próprio local. Não é impressionante?!
Pobre rapaz! É tanta a fome, a necessidade e a mesma carência( a ânsia de Deus na alma pecadora!), que até lhe sabia bem a comida dos suínos. Entretanto, nem isso mesmo lhe era permitido! Ao que pode levar a sensualidade, o vício da luxúria! Derrube total de corpo e alma!
Somente em Deus podemos achar abundância em tudo quanto é delicioso. Importa sumamente caminhar a seu lado, neste vale de lágrimas!


Lisboa
1-8-1981 O nosso Carlitos

Acaba de chegar, da cidade invicta. Os seus 22 caíram a 30 do mês passado, razão poderosa que o levou, de facto, a marcar presença. nesse mesmo dia, pela manhã. Vinte e duas primaveras; os pais ainda vivos, embora achacados; segundo ano da Faculdade, em circunstâncias indesejáveis e quase impossíveis, criadas e mantidas pelo Abril-25 a este jovem angolano, são razões forçosas , para celebrarmos juntos, a sua vitória.
O alvo aproxima.se: faltam só três anos! Aos 25, Engenheiro, electro-técnico! Um belo ‘canudo, mas universitário! Dura caminhada, com termo glorioso! Este objectivo move-nos a todos! É um sobrinho que honra a família, pelas suas , qualidades: tenacidade, amor a Deus e à família, espírito nobre de caridade, amor ao trabalho, modelo a imitar como cristão e como cidadão..
Entretanto, avultam e crescem as dificuldades: doença do pai; falta de recursos; vida assaz ingrata trouxe para eles o 25 de Abril.
Para ultrapassar obstáculos assim, esmera-se em extremo e tudo ele arrusca. Por estas razões, vem escaveirado, magrinho e pálido, Vai ele recuperar?! O mês de Agosto será decisivo, pois nos seguintes há trabalho a fazer: cadeiras em atraso. para o mês de Outubro.
Que o Céu o proteja e cubra de bênçãos, para conseguir o que tanto deseja! Será motivo de gáudio o dia venturoso, em que ele ponha o ramo.


Vide-Entre-Vinhas
1-1-1971

Por favor do Céu, mais um ano desconto, no rol da existência. Não é longa, não, bem entendido, mas foi mais extensa que a de muitos nascidos. Por isto, exactamente, Vos rendo graças, meu Deus e Senhor, pedindo ansioso, no limiar do novo ano, que me ajudeis com vossa graça. para que o passo em frente venha determinado a servir e amar-Vos, sem a mínima reserva!
Após estas palavras, endereçadas, com todo o fervor, ao Senhor meu Deus, dirijo-me a ti, Diário amigo, pois foste na vida fiel companheiro, em horas de alegria como de tristeza! Pronto, a cada hora, jamais rancoroso, a ti devo. sem dúvida, as horas mais gratas. Em tempo algum te vi fazer o jogo dos hipócrtas: bem ao contrário, a tua singeleza tem-me edificado!
Amigos falsos e harto dolosos, hà muito se postaram nas veredas que eu trilho, sendo tu, nessas horas, leal e risonho, acolhedor e assaz benfazejo! Recebendo generoso os queixumes da minha alma e guardando avaramente a confissão generosa dos meus segredos, foi em ti somente que eu pude repousar, descansando tranquilo meu peito amargurado.
Por certas razões que seria longo expor de momento, assim como por outras, confesso-me gato a esse bom amigo, que nunca usou astúcia nen foi fraudulento. Sempre igual e sempre franco, amigo lhano e sincero, que prezo sem limites, continuarei fervoroso a render-lhe meu culto, no mais íntimo do peito. Aqui tens, doce amigo, um altar deslumbrante, adornado com flores que a minha alm te oferece.


Vide-Entre-Vinhas
2-1-1971

Diz o povo, com razão, que deve ser bom o princípio de tudo. Desta vez, porém, verifica-se o contrário: o início do ano foi de tempestade! Que dia horrível o de ontem já! Neve sem medida! Frio penetrante, agudo e álgido! Vento sempre inquieto e deveras molesto! Sair â rua ? Nem pensar em tal! A gente arrepia-se, até dentro de casa! Não havia decerto lume que bastasse! Desolação e grande incerteza!
Que aspecto sorumbático mostrava, já ontem a abóbada celeste! Carregada e cinzenta, de escuro intenso e harto inconsolável, pôs desde logo alvoroço no peito e funda inquietação na alma dorida! A noite fora horrível! Envolto em cobertores, nem podia revirar-me! Entalava a roupa , esfregava os pés, um contra o outro, encolhia-me em seguida, para logo distender-me! Tudo sempre em vão! Um frigorífico este braço da serra!
Não me lembrava de coisa no género! Levanto-me já tarde, assomando â janela! Um deslumbramento! A serra imensa, o vasto horizonte, montes e vales, vilas e aldeias, tudo amortalhado em branco lençol! Nem vivalma, ao longo das ruas! O silêncio da morte? É provável que sim! Tudo emudeceu, recolhido em seus lares! Só um cão exrraviado contemplava surpreso o grane estendal!
Quanto ao mais, a quietação tumular! Avultavam apenas, aqui e além, desmesuradas cristas de altos rochedos, aconchegadinhos e harto inclinados, para assim resistirem ao frio glacial! As plantas constrangidas tentavam equilibrar-se, num esforço hercúleo, para não soçobrarem.
E a neve caía, rolando às mãos cheias, em flocos doidejantes, que infundiam tristeza e geravam desalento!


Vide-Entre-Vinhas
3-1-1972

“Não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature!”
Chegou a isto, exactamente, a sabedoria de povos e nações. Não vou eu desdizê-lo, que tenho em muito a experiência das gentes. Se o passado tem sombras, apresenta igualmente belas páginas de luz. Aconteceu ontem.
Após um dia horrível, que jamais olvidarei, visita-nos hoje um sol quentinho e deveras radioso, qual doce primavera! As crianças buliçosas invadem a rua e, às abrigadas, lá se encontram velhinhos, aquecendo gostosos seus membros transidos. A neve, porém, mantém-se ainda, figurando dormir em leito de arminho. Dormirá ela, por arte de Deus?! Bem parece que sim, mas o Sol , com seu ardor, vai fazê-la acordar.
Lentamente, é verdade, mas ei-la a despertar, espreguiçando-se breve, nas encostas declivosas, por onde vai escorregando, para mudar seu estado. Grandioso quadro, lição maravilhosa dos estados da matéria! Como o Sol é grande, benfazejo e protector, sendo causa eficiente, ao operar tais coisas!
Vem das nuvens a água e, por baixa sensível de temperatura, ao descer na atmosfera, solidifica um pouco lentamente. Ei-la assim agora, pondo tudo branquinho e sendo para os novos prazer inolvidável! Vem logo, já se vê, a batalha da neve, os bonecos pitorescos e outras diversões que alegram as crianças e as fazem cismar!
Desceu mais ainda a temperatura, pela noite demorada. Aclarou o céu, qual espelho de cristal, arrefecendo tudo, à superfície da Terra. É a geada bem como o gelo, que matizam já tudo, criando aspectos novos que deleitam as crianças. Congelou-se a água e gelou a neve, aguardando pacientes o advento do Sol, para despertarem do sono profundo, em que haviam mergulhado.


Manteigas
5-1-1972

Deixei hoje a minha aldeia, encontrando-me a postos, no lugar do trabalho. Fazia-o no passado, com grande euforia, por ser muito rendosa esta quadra escolar. Hoje, porém, retomo o labor, já sem interesse! Custa muito ensinar quem não quer aprender! E quem se prende a valer a dadas extravagâncias, que nada têm a ver com assuntos escolares?! Por isso, não vibro nesta hora, em que reinicio o meu duro trabalho.
Cumprirei o meu dever, tendo plena certeza de que é vão o meu esforço., inútil, sim, o meu lidar! Motivação forte, para deixar o ensino! Que é que me prende que o não faça já?! Desilusões amargas, a cada passo que dou! Decepções, a toda a hora! A medida está cheia e, quando isso acontece, nada vale tentar!
Esforçar-me-ei, no entanto, para que algo renda o meu cuidado, a fim de que as turmas lucrem o possível. Acabado este ano, outro mais avançarei, mas não quero repetir esta angústia inquietante!
Deixei neve em Celorico, acho neve aqui também! Dentro e fora, é só gelo! Ambiente insuportável! Treme sempre a alma, sofre o corpo também! Mergulho eu todo em grande frieza! Nada aquece a minha vida, que se arrasta ingloriamente! Onde falta incentivo, nada importa o lidar: é a morte que se move: não a vida que estagnou!
Ouvi dizer há pouco a certo pai jovem que , ao entrar em sua casa, logo foge a tristeza e os cuidados se apartam!. Ao regressar do trabalho, que é, por vezes, doloroso, leva a alma atribulada e o seu coração em ânsias fundas! Entretanto, vem prestes o milagre: o garrular da filhinha, que só conta 8 meses, é logo panaceia para todos os males, angústias e dores!


Manteigas
6-1-1972

A mulher que se admira e pela qual o homem vibra será prestimosa em quaisquer circunstâncias? É ponto sério a considerar, razão pela qual exige atenção. Sendo ela, na verdade, companheira desejável, complemento do homem e apoio na vida, nem sempre acha estímulo. para ajudar o sexo forte.
Unicamente em família, com os filhos que estremece e o esposo que ama é capaz de revelar-se, em toda a grandeza. Fora deste caso, não fio muito dela ou então quase nada, à excepção, claro está, da Religiosa, chamada por Deus ( não pelos homens). Vocação espontânea, madura e preferida, vive plenamente um ideal superior. Ainda aqui, fica decerto em plano inferior, tirando o caso de santidade autêntica.
Mas isto que digo, verifica-se apenas em casos singulares, enquanto na mãe, é facto universal. A nível das primeiras, acompanhando-as de perto , situam-se também as que amam no silêncio, constrangidas talvez por ditames sociais ou costumes venerandos de seus maiores que não ousam infringir. É um caso de simpatia ou amor assolapado que, para o efeito, age decidido.
À margem do exposto, não esperemos de seu peito egoísta esse belo tesouro que muito invejamos. É mais fria que o homem, indiferente e injusta, arrogante e ousada. Exige adoração, e ambiciona o mando; é déspota e vil, em extremo grau; sobremodo antipática. E quando já passante verdadeira tia que a ninguém interessa!
Aí tendes vós o modelo acabado que se diz “alcoviteira”, mas encartada! Tudo ela sabe, tudo inventa e cria , modifica tudo.


Manteigas
7-1-1972

Aos pés do Ginjeiral, ergue-se humilhada, ia até dizer, enterrada, uma casa antiga, com visos de solar. Fica em Vide-Entre-Vinhas. Foi Escola Oficial, durante longos anos, a que se prende, ao de leve, a minha adolescência. Apresenta cornija para Norte e Poente, sendo a fachada Norte lavrada em cantaria. Sul não existe: a propriedade contígua nivela-se ao telhado
A nascente, o barranco da Portela ou melhor diria, o ribeiro da Bica!.
De qualquer lado que a procuremos, não tem vista nenhuma, ignorando-se o motivo por que ali a construíram. É velha tradição que pertencera, em tempos, a um capitão, chefe de ladrões. Que haverá de verdade, em tal afirmação?! Certo é, ninguém duvida, fazer parte integrante do Casal Valente. No tocante ao mais, tudo são conjecturas!
Pois a Casa tão falada rendeu agora a bela soma de 150 contos! Bem mal empregados! Dinheiro tão mal gasto jamais eu vi! Sepultura mais perfeita será raro encontrar! Que lhe falta para isso ?! Humidade tem que baste, pois ressumbra das lojas e da fachada que dá para Sul. Simulacro de lojas, isso é que é! Escuridão também não falta! Não lhe vedaram o Sul?!
Donde vem a luz e bem assim o próprio calor?!


Manteigas
13-2-1972

Quanto mais conheço os homens e estudo o seu viver, mais detesto e abomino a sua perversão. É exacto afinal o que lá diz a Imitação de Cristo, a este respeito:”Quanto mais conheço os homens, menos homem me sinto”. De facto, à medida que roda o tempo da existência, mais e mais se avoluma o cinismo e a doblez.
Devia ser ao contrário, pois a tumba aproxima-se e com ela também o ajuste de contas! Infelizmente, porém, não é deste modo! A malícia agiganta-se , aumenta a falsidade e a hipocrisia medra e viceja. Que fazer então? Endireitar o mundo? Isso não me é dado, que nem Deus mo pediu, mas, em boa verdade, fico apreensivo, de ver trafulhice e mil desconcertos! Não é de facto gostoso viver num mundo aparente, em que a doblez é rainha universal!
Prender-se a quê?! Falar para quem e acerca de quê?! Será grato alguma vez ouvir, sem interesse, conversas chochas, que não podem jamais aliciar alguém?! Não vale muito mais encontrar-me sozinho do que mal acompanhado?! Mas como é desolador olhar sempre à minha roda e não ver senão paredes?! Se elas falassem, podendo sentir! Impossível! Ficam mudas, estáticas, perante a minha dor!


Manteigas
14-1-1972

Levanto-me prestes e assomo à janela, a fim de inquirir, acerca do tempo. Há coisas pendentes: calçado e guarda- chuva, peças de vestuário… Conto, às vezes, com chuva frequente; no tocante à neve, sou menos atreito! Talvez seja, meu Deus, por eu a não querer, que me faz pirraça? É que ela, de facto, cobre totalmente a face da Terra!
Não fora eu avesso, deveria espera-la, visto que a morada é na Serra da Estrela, mas intento conseguir, por meio da repulsa, que ela se afaste. Insensível, porém, e sempre desdenhosa, nada lhe importando que gele o meu corpo ou fique desconsolado, ei-la pressurosa, caindo em farfalhas. à volta de mim! Como ampla mortalha, resguarda ciosamente o corpo inerte da terra adormecida.
É tudo branquinho: os telhados das casas, pontes e caminhos, hortas e devesas, vales e montanhas. Lembra o maná que os Judeus utilizavam, no seu longo caminho, para a terra formosa da Promissão. Mas isto aqui é de outro modo. Enregelado, tremo, angustio-me. Nada ouço em redor. Emudeceram já os belos passarinhos e também as crianças. Os próprios velhinhos, tiritando e gemendo acolheram-se logo na lareira amga…
Ouço apenas, lá no fundo vale os protestos assanhados do rio Zèzere. contra as margens rochosas e outros obstáculos . Emudeço também, e a frieza da neve infiltra-se em mim, fazendo assim gelar todo o meu ser..Que martírio este, Senhor meu Deus! Durante o ano inteiro, so neve e sempre neve :já perto, já longe, está ela ao alcance de meus olhos tristonhos!


Manteigas
15-1-1972

Dizem ser a neve motivo de inspiração. Não ouso negá-lo, que respeito muito a sabedoria: aprecio igualmente a opinião do meu semelhante. Por outro lado, eu sinto a beleza, quando ela me fala e convida logo a reflectir. Entretanto, sepultado em vida, neste fundo covão, onde o Sol é encoberto e o luar furtivo, terei efectivamente alguma disposição para sentir?!
Ao longe, assim julgo, seria belo talvez, debruçar-me contemplando e, se o caso impelisse, abeirar-me ainda um pouco mais. Viria até de Lisboa ou zona mais distante, embeber-me neste mundo , que aborreço e detesto.
Ver sempre neve, calcá-la amiúde, sentir-lhe os efeitos, esfriando-me o corpo, é deveras triste e muito desolador! Dir-se-á que não sinto?! Não é isso! Fico inibido, quando tal acontece! Ainda em Novembro, quando não em Outubro, apresenta-se logo, na encosta da serra! Uma vez ali, vai ganhando terreno, jamais se afastando, para torturar-nos aqui em baixo.
Como anel cruciante, que nos oprime e constrange, lá se vê a toda a hora, mofando de nós! Levantando os olhos, nada eu vejo senão a ela! Poderei, realmente, sentir algum frémito, na alma gelada?! Não me digam que é bela, vista assim noite e dia! Bastava a monotonia, para quebrar-lhe o encanto.
Saturação e tédio é o fruto constante, que a neve me oferta, durante o Inverno!


Em Viagem
16-1-1972

Abundante em casos e muito variada foi esta viagem, a caminho de Manteigas. Ao partir, já nevava, erguendo-se às vezes rajadas violentas, que punham em pé os cabelos todos. Ora neve ore chuva, quando não lufadas grandes de vento ameaçador! Estando em casa é fácil observar o decurso dos fenómenos, entretanto, mudam as coisas, se é que nos encontramos fora de abrigo.
Foi o caso de ontem, ao subir para a Guarda, que goza há muito de fama e proveito, no tocante à neve. Acelero diligente e sempre a fundo, para furtar-me a perigos vários. O certo, porém, é que era já tarde! Deveria, julgo eu, haver partido bastante mais cedo, mas quem é que adivinha o que sucede, por vezes, aí no mundo?!
Bem exacto o provérbio: “Ninguém diga - desta água não beberei!” Eu que tanto me acautelo, fugindo por norma a viagens, pela noite, aconteceu-me agora desdizer, na prática, o que tinha afirmado por via oral.
O caso foi o seguinte: após o chafariz, que chamam ‘do Bispo’, na vertente alongada, que leva à Guarda, a minha viatura começou a resvalar, porque a faixa da estrada volveu-se em breve num espelho reluzente!
A neve caía, tornando-se ali harto perigosa. Às vezes, parecia um inferno! Água e neve, vento em fúria, uma tristeza quase infinita para quem vai só! Isto de conduzir, em más condições, iguais às de ontem! Só visto e observado, para descrever-se! E, no fim de tudo, o receio apavorante de ficar uma noite enregelado e só, não tendo assistência! Quem passa ali não se detém! A noite – o grande espectro!


Manteigas
17-1-1972 Momentos dolorosos

Conservo permanente a imagem de horror que ontem me prostrou. O Taunus 17, resvalando pela neve, atravessa-se na estrada, com rumo à valeta. Que desespero! Acelero fortemente, quase em delírio, havendo engatado logo em primeira.
Ao perto e ao longe, deslizam veículos, enquanto eu, agindo com inépcia, fico retido no mesmo lugar! Penso até numa avaria! Suplico humilde que alguém se condoa, na triste conjuntura! Mas quem atende o triste condutor, que tem o carro a fugir-lhe?!
É noite. Urge ganhar tempo! Os outros passam e eu é que não! Fico na estrada. Habilidosamente, os outros lá se esgueiram, utilizando as bermas e eu quedo-me nervoso, olhando tristemente para o alvo lençol Tenteio o calçado: escorrega e amedronta! Parece-me vidro a faixa de rodagem!
Engato novamente e acelero o motor. É tudo em vão! A valeta! É este o perigo! Após ela, a ribanceira! A traseira do carro já roça de perto! Que fazer? Manter a calma? Mas se é noite, em breve espaço e corro perigo de ficar no estendal?! Nem povoado nem alma caridosa!
Encomendo-me a Deus e também aos Santos, que os homens não me valem! Não poderão talvez! Como é dura a vida! Viajar sozinho e não ter ninguém que me acompanhasse, para ajudar no duro transe! O vento agora é já furioso, arremessando-me ao rosto, em crebros torvelinhos, neve gelada que não acaba!


Manteigas
18-1-1972 Sacralização

Fazer do rapaz, candidato ao sacerdócio, um ente àparte, era ideia primária, no seminarista. Ele era diferente de todos os mais, por isso mesmo devia assumir atitudes diferentes. “ Segregatus a populo”, ( separado do povo), este era o sentido, mas agora dão-lhe outro ( tirado dentre o povo. Bem parece, afinal, que a segunda versão é mais de aceitar.
Por motivos, já se vê, de erradas concepções, o rapaz sugestionava-se, pensando, na verdade, que formava casta! Vestia de outro modo, sendo escravo da cor; as suas palavras, harto pesadas e sempre graves, serão edificantes; o seu olhar, em regra furtivo ; os modos habituais comedidos por força e temperados; a maneira se viver, em completo isolamento, constituindo excepção apenas aqueles actos que exigissem presença.
Sendo outro Cristo, devia falar d’Ele: por isso a existência havia de ser um testemunho vivo. Fumar, nem por sombras! Quanto ao beber, a máxima cautela ainda era pouca!Escusado afirmar que tudo isto foi vão ou ainda melhor, que deu fruto negativo! Efectivamente, a sociedade em geral repele e rejeita quem se apresenta com hábitos diferentes e, quando o não faz, afivela breve a máscara de recurso, aparentando algum tempo aquilo que não é. Sendo isto assim, era tudo fachada.
Jamais o candidato, de batina aos 12 e cabeção aos 15, podia ser benquisto, no meio da sociedade! Fazia por hábito e faz ainda figura diferente: os outros fumam e ele não; os outros bebem, e ele receia; os outros riem, mas ele então assume, para logo, ares de gravidade.
É um ser estranho! Alheio a tudo, ninguém o tolera ou então só de máscara!


Manteigas
19-1-1972 “Matou-se o padre Caio”

Como dobre a finados, soaram dolentes as palavras sinistras! Seria verdade?! As ovas deprimentes, por mal de pecados, nem sempre enganam! Que grande tristeza! Que motivos fortes o haviam de levar a tal desfecho?! Dizia-se, por aí, que era mal tratado pela consorte!
Porquê?! Não seria o infeliz já bem desventurado ?! Atirar-se abaixo dum 4º andar, para acabar seus dias, por modo tão cruel?! Que mulher foi aquela, raça de víbora, peçonha diabólica, para causar tamanha desgraça?! Por que não aqueceria ao inditoso padre o Sol benfazejo?!
Tal remate de vida supõe, com efeito, se eu bem aquilato, um abismo enorme de negridão E ninguém o libertou daquele desatino! Escassearam, neste mundo, almas generosas, que ajudassem pronto aquele desgraçado?! Vi-o só uma vez, quando ele exercia! Foi, realmente, na linha da Beira Alta. Ofereceu-me então uma bela estampa, que guardei longo tempo.
Viajava eu, pela primeira vez, rumo ao Fundão, onde iniciaria os primeiros estudos. Quem tal diria, nessa ocasião?! O diabo tece-as: é bem verdade! Como eu te lastimo, pobre colega! Que Deus tenha pena e jamais tome em conta o final desgraçado da tua existência, que foi atribulado e carente de razão! Foi loucura, certamente que tu não eras capaz!
Oxalá que o Senhor, rico de misericórdia, não faça como nós! Vendo lá do Céu, tua enorme desventura, queira em breve receber-te nas eternas moradas!


Manteigas
20-1-1972 Irresponsabilidade?

Será crime o suicídio? Considerado em abstracto, quer isto dizer, desligado inteiramente de circunstâncias várias, que neutralizam, às vezes, ou pelo menos, atenuam bastante a sua gravidade, é reputado falta muito grave., pois viola direitos, que só a Deus pertencem, como autor e Senhor da vida humana. Ele é, de facto, único proprietário de quanto lhe pertence, e nós administradores.
Entretanto, se atendermos ao caso, em seus pormenores, encontramos quase sempre motivos fortíssimos, que lhe tiram, na verdade, o aspecto condenável. Quem vai atentar, contra aquilo que mais ama?”Que não faz alguém, para defender e conservar a sua existência? Recurso a Médicos, ingestão de remédios, e sei lá que mais?!
Se alguém actua diferentemente, fá-lo por loucura: pode não tratar-se de loucura persistente ou ainda habitual, mas actua de igual modo. No momento fatídico, a paixão absorvente sobreleva de tal maneira ao próprio raciocínio, que o impede ou ofusca.
Dominado o homem por ideia forte, qual mola pertinaz, que o força e constrange, é levado à deriva em todos os sentidos. Motivos os mais sagrados, razões as mais santas, fica tudo obscurecido, face ao impulso, que arrasta e domina, sem barreira a opor-se.
Que fará o nosso Deus, em casos desta ordem? Tenho para mim que Ele olha ao passado e nele se estriba.


Manteigas
21-1-1972 O Futuro das Memórias

Que destino o teu, Diário amoroso, a que eu não auguro uma existência feliz?! Vives encoberto, há longos anos, sempre velado, mudo, silencioso, com vista a impedir olhares indiscretos. Vegetas paciente, envolvido em sombras, abstendo-te ao máximo de aparecer à luz. Para que usas de tamanho cuidado)! Não sabes, por ventura, que assuntos delicados, humanos, prementes já hoje se tratam em plena luz?!
Apesar de tudo, nada há resolvido, sobre o teu porvir! Terás por ventura, direito de nascer ou serás condenado a eterno silêncio?! Vou alindar-te, corrigindo paciente os originais, para que o teu advento não seja vaiado! Desejo vivamente que a forma exterior não manche a tua origem nem desdiga excessivamente de quem te gerou!
Ostentarás, sim, roupagem humilde, mas airosa e limpa! Gostaria imenso que não fosses apenas conduta de sentimentos e foco de ideias que é preciso rever, mas trajasses ainda num estilo harmonioso, com algo de pureza, para assim honrares, de algum modo aceitável, a língua de Camões.
Infelizmente, porém, não tenho envergadura, que a tanto me habilite, embora sobeje vontade e esforço e não falte ambição! Ficasse tudo à mão! Que a roupagem não desdiga nem ela me sujeite a censuras merecidas. Zoilos e críticos não os temo, por certo. Apesar de tudo, receio e temo que algumas vezes a razão maior esteja do seu lado, ficando então eu de quinhão indesejado!
Exaltar a minha língua, dominá-la e servi-la, realizando um propósito, é a minha ambição.


Vide Entre Vinhas
22-1-1972 Saudade?

Aquela franguita dá-me voltas ao miolo! Nunca mais apareceu, escondendo-se em buracos e, quando fora deles, é raro demorar-se! A sua voz emudeceu. Ninguém mais a ouviu! Cabisbaixa e vergada, nem se lembra de comer! Espevitada e alegre, anteriormente, mudou por completo!
Chamada com insistência, alonga um tanto o magro pescoço, voltando em seguida à tristeza habitua. Aqueles olhos apagaram-se também e não vêem quase nada. Pôr ovos é coisa rara! Doença talvez?! Nada que se pareça! Perguntando ao Manuel qual seria a razão daquele abatimento, apressou-se então a justificá-lo, embora a tristeza se lhe visse no rosto.
Era, na verdade, uma franga linda, que fazia inveja a todas as pessoas. Cacarejava muito e punha tais ovos, que era um regalo! Sempre jovial, acorria à chamada e, ao luzir do buraco, já ela estava a pé. Agora, porém, tudo o vento levara! Mudança radical! O reverso da medalha!
A companheira ausente é que faz tudo isto! Ah!, atalhei eu logo, compenetrado! Ela não era só?!
Pois não! É isso que a mata! De pequenina, sempre com a irmã! Tão amigas eram, que anda agora inconsolável.
-- Que foi feito da outra?
-- Levaram-na há dias, para Lisboa ou melhor ainda para Porto Salvo.
-- Essa agora! Não devíeis ter feito isso! É um caso de saudade, que impressiona a valer! Afinal, há também amizade, entre as aves de capoeira! Por que não mandais vir a companheira adorável?
--Oh!, volve ele compungido, a outra levaram-na, para a Leninha ter ovos, Fica mais forte a papinha de bebé!
--Pois sim! Coitadinha da franga que morre, de tristeza!


Manteigas
23-1-1972 Alargar os Horizontes

Após longo castigo, é belo sumamente arrancar do Covão, indo por aí fora, em demanda persistente de novos horizontes. Foi o que sucedeu. Pelas 10 e pouco, largo açodado, para lançar-me em paragens de sol. Faço logo caras à vila do Fundão. Havia já muito que tal desejava, mas a neve e o tempo vinham pôr veto. Hoje, porém, não foi assim!
O sol dourado, batendo amoroso na crista dos montes, parecia acarinhá-los, ao passo que os olhava, com extrema bondade. Era o despertar do sono hibernal, que tinha seus visos de não acabar. Um sol de ouro, risonho, quase estonteante!
Parto seguidamente e vou de longada, volteando célere, pela velha estrada, em fartos ziguezagues. Há, naturalmente, algo a espevitar-me. O meu veículo, entorpecido ainda, mal podia avançar, devido ao nevão, que dias antes o havia colhido. A desforra é bela, em casos destes.
Enlevado e preso nos meus pensamentos, depara-se-me um quadro, assaz horripilante: em banco largo, baixo e sólido, jazia impotente gordo suíno, já branquinho de neve! À sua volta, braços musculosos iam dando já os últimos retoques.
A violência, a tortura, a maior crueldade e a insensibilidade haviam feito do animal perfeito cadáver!

Manteigas
25-1-1972 Saturação

Acabo de chegar do 4º ano de Inglês. Que desolação e incrível horror! Aquilo só visto! Coisas repetidas e já repisadas são para os alunos outra novidade! Já não dá gosto exercer a profissão! Fugir para longe é que seria mais desejado. Nunca mais ouvir falar, esquecer a matéria, olvidar tais alunos! Chego a ter pena de tais nulidades. Melhor diria, talvez, cábulas de marca!
Que é que pensam da vida?! Como intentam vivê-la?! A expensas de alguém, extorquindo o que outrem ganha, de maneira honrada, à custa de seus braços?! Roubando, às escâncaras e ferrando o cão, à maneira de gatunos ou vigaristas?!
Que sociedade, afinal, será esta depois, em que os pobres mortais se esfolam e devoram, quais lobos famintos?! Marimbam-se muitos para esta juventude! Só chuva de fogo , com dilúvio de coriscos meteriam a direito a gente de agora! Respeito, é claro, as excepções.
Não há capricho nem brio nenhum, que estão fora de moda!
Estou deveras enjoado com tal proceder! Atirar a lombeiros as pérolas do saber é mais que idiotice! É crime nefando! Estupidez rematada! Quem me dera brevemente esquecer e debandar! Aposentado ficaria tranquilo: comendo em paz, viveria mais tempo!
Que vem, afinal, de aulas forçadas, em que reina o descuro, alastra a preguiça, junto com apatia?! Que me presta repetir, esmerando-me em processos?! Riem-se de mim, sem que possa obstar!´


Manteigas
26-1-1972 Incutir um Destino

Talhar o destino ao ser racional! Meu Deus do Céu, como é possível? Pegar em alguém, amordaçar-lhe a vontade, como se fora uma coisa banal! Deitar às sortes o futuro do homem! Obrigá-lo a gostar do que ele não gosta! Enganá-lo sem pejo, dizendo ser Deus que assim o quer! É preciso ter bossa e agir sem vergonha! Quem garantiu que Deus assim o quer?! Por que arrogarem-se poderes de excepção?!
Iriam jurar que assim é, de facto?! Que vai ser de uma criança, que envolveram, tenrinha, em longa camisa de 7 varas?! Mandaram-na olhar em sentido único, proibindo qualquer outro. Mais: asseveraram-lhe, amiúde não haver mais caminhos e que, tomando outros, seria desditosa!
Não será loucura?! Insensatez mais pedante creio desde já não ser possível .Forjar, levianamente, o destino de alguém! Ousar sem rubor, distorcer a natureza, usando para tanto, de argúcia e cálculo! A criança infeliz, entroncada e segura, crê fielmente ser aquele o seu destino! Imbuíram-na, sem pejo, de conceitos humanos, encheram-na de espanto, fizeram dela uma coisa vil!
Retorcida, amesquinhada, ei-la trilhando o chão pedregoso e inseguro que Deus, por certo, vai desaprovar! Onde a liberdade e o poder realizar-se?! Será, no porvir, aquilo que não quer! Um fantasma de pessoa, infeliz como tantas!
Cada um seja livre na escolha do seu trilho! Aqueles que se atravessam no caminho de alguém, a impor desvios, seja isso ainda com fim honesto, são criminosos e, como tais, devem ser punidos. pelo abuso grave da liberdade.


Manteigas
27-1-1972 “ Odeia os erros: ama os homens”

Foi Santo Agostinho que lançou no papel este belo conselho. A síntese profunda do famoso dito põe logo a claro o seu talento, deveras peregrino. Ao mesmo tempo, é norma segura, que elucida e guia. Odiar os homens não é de cristãos, como bem se presume, em face do Evangelho.
O ensino persistente de Jesus Cristo não admite jamais qualquer pequena dúvida. “ Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”
O Mestre assim fala e a sua palavra é fonte de vida. Os erros, porém, não proíbe detestá-los: consentir neles desvirtua a existência. Concretizando: não me conformo, de modo nenhum, com o processo na educação. Embora tardiamente e quase a título póstumo, levanto o meu clamor! Sempre a mesma linha, em porfia contínua, para fazerem mais ma vítima!
Cercado então de mil cuidados, embalado geralmente por música celeste, deixei-me levar - coisa bem fácil , na minha idade.
Quanto ao meu lar, embora rejeite a maneira utilizada, não me atrevo agora a culpar os pais, assacando violento a responsabilidade! Prior e professor, em meios humildes e analfabetos, são oráculos vivos.
De maneira especial, o pároco de aldeia que, afinal, era um homem são e bem intencionado. Mas, segundo o povo, só ele conhecia o mundo e falava de Deus como um profeta! Quem duvidaria da palavra sincera, a que juntava, habitualmente, o exemplo incitante da sua vida privada?!


Manteigas
28-1-1972

O que é não ter lar! Viver neste mundo, sem carinho nem arrimo, à maneira de escravo, que a sensibilidade tortura e deprime! Por outro lado, sem uma voz, algo estremecida, uma palavra doce, um olhar de meiguice, para afastar cruezas e, ao mesmo tempo dispersar nuvens densas, que impendem sobre mim.
Que digo eu, meu Deus?! Queixar-me por dores e rirem de mim! Pedir atenção à comida usual e fazerem sempre a mesma coisa! Quando não dói, a voz é indiferente, o grito uma aragem, um gemido cansado, que o vento arrebata, deixando de soar, ao transpor dos umbrais! Quem se rala comigo?!
Dói-me o corpo todo e sinto febre na alma! Insónias constantes! Indisposições ! Lamentos perdidos! Tudo isto, afinal, por causa do alimento, que é muito danoso para o organismo! Que vida a minha! Onde mora a caridade?!Relegada para o Céu?! No mundo em que vivo é flor que não encontro?! Egoísmo, sim, por todos os cantos! Esse abunda, com certeza! Não posso já com tal indiferença!
Moldado noutra forma, estranho profundamente o que vejo fazer! A formosa virtude é somente aparência! De facto, heroísmo é apenas a casca! De santidade nada mais resta que o nome soante! E que dizer, se falamos de pronto em mortifcação?! Comem que se desunham, cevando por este modo, corpos disformes e pondo em seu bojo, repleto e nédio, o fruto da ambição bem como da gula!
Aos outros míseros aconselham uma lei: a eles então apiicam já outra! Seria fácil medrar qualquer sociedade, feita de glutões. Infelizes, sim, os pobres doentes ou vítimas imbeles da sua jurisdição! Refiro-me sempre aos bem instalados e grandes burgueses!


Manteigas
29-1-1972
ANÁLISE (dos efeitos para a causa)

Segue a análise o caminho inverso, pois busca no agir a via natural: vai seguramente do efeito para a causa. Assim, a criança, ao corrente das razões, que a levam a agir, escolhe, por si , continuando então guiada, mas não levada; assistida, mas não forçada. É exactamente o caminho inverso da chamada síntese que vai como sabemos, da causa para o efeito.
Impõe com autoridade, actuando sempre dogmaticamente. A vontade alheia é lei suprema. Nem se discute nem se pões em causa., para reflectir! Vamos, pois, seguindo o caminho da análise via natural e defensável ,na educação.
No Diário de ontem, apontei como alvo as práticas religiosas e bem assim a obediência aos pais. Retomemos hoje os ditos assuntos , aplicando a análise. 1º Aspecto religioso: Missa e confissão, comunhão e catequese; 2º obediência aos pais, começando pela mãe.

1º Aspecto religioso
-- Olha, meu filho, sabes, por ventura, quem nos deu o ser e mantém a vida? Quem vela por nós, a todo momento, concedendo-nos favores que nunca pagamos? Quem morreu por nós, expirando numa cruz, para livrar-nos do inferno? Quem é Providência, a tudo recorrendo, para que nada nos falte?
-- Quem é, mãezinha? Deve ser muito bom e um grande amigo, para fazer tanto bem! Gostaria também de fazer alguma coisa, a fim de mostrar a minha gratidão! Que poderei fazer?
-- Meu filhinho, por seres agradecido, Ele com certeza vai gpstar de ti! Procura agradar-lhe e fazer o que Ele manda, para que finalmente ganhes o Céu
-- Que é o Céu, mãezinha?
-- Um lugar maravilhoso, onde vive o Senhor cpm a Corte Celeste. Todp ser humano ali tem um lugar, que Jesus nos ganhou , pela sua morte, deveras horrorosa, no madeiro da Cruz. E como sabemos o que é que Ele quer?
-- Os Mandamentos constituem um resumo do que Ele impõe a todos nós. Para sabermos, em pormenor, basta ler e meditar os Evangelhos.
--Se Ele é teu amigo, quero amá-lO também e dar-lhe muito gosto. Praticamente, como devo orientar-me? Quem nos diz, se for preciso, o que Ele nos quer?
--Assistir à Missa, tanto nos Domingos como nos dias santos ; ir à catequese, para O conhecermos; recorrer à confissão, pelo menos uma vez, ao longo do ano; comungar algumas vezes.
-- Mas isso da Missa não é coisa enfadonha?
-- Sabendo que é não se torna enfadonha! Bem ao contrário! Tu não sabes, meu filho? A Missa é a actualização do Sacrifício da Cruz, de maneira incruenta, por não haver derramamento de sangue.
-- Mas nada nos diz que ali há morte!
-- Não é isso! A separação do corpo, em ordem ao sangue, dá-nos pronto a ideia de morte! Corpo a um lado; sangue fora do corpo! Se assistisses à morte de teu bom pai, assim com maus tratos, que é que farias?!
-- Tinha muita pena e ficava muito triste!
-- Pois aí tens! Por outro lado, Jesus Cristo fica ali presente, pela conversão da matéria oferecida, no corpo e no sangue do Senhor Jesus.
-- Por que é que ficou em pão?
-- Para nós O recebermos e servir-nos de alimento. Para isso, purificamos a nossa consciência, declarando os pecados, cheios de confusão e arrependimento.
-- Agora já sei por que hei-de ir à Missa , igualmente à confissão e também à Comunhão. Vou gostar muito. Jesus é meu amigo! A Ele devo tudo. Por isso, quero também amá-lO e dar-lhe muito gosto. Vou fazer tudo o que Ele deseja.


Belém \ 11-3-1986 Cont.

2.º Obediência aos pais
Com esta virtude ou outra qualquer, dá-se o mesmo caso. A sujeição a outrem acarreta problemas. E então nos primeiros anos! Quem obedece renega-se a si mesmo, contraria seus hábitos, mortifica a vontade e logo renuncia ao que lhe dá prazer. Daqui ressalta claro que não é fácil tarefa. Só motivada a criança obedece. Impor secamente, por forma arbitrária,e jeito dogmático seja o que for, não surte efeito.
Só por ideal, escolhido por alguém e deveras amado! Seja como for, para que e dignifique, é necessário que seja a mesma pessoa a querê-la também, me cê de razões, que ela própria descobre ou alguém lhe indica e ela aprova também.
O caso apresentado noutro Diário é o que volta de novo. Postas as coisas como já se encontravam, ao chegar o pai, que se impunha ali que este fizesse? Desautorizar a mãe não era aconselhável. Entretanto, igualmente o não era a atitude que assumiu. Modos autoritários, num educador, são condenáveis. É o triste famoso “posso, quero e mando”, que faz a ruína de muitas existências.
Que devia fazer o referido pai, naquelas circunstâncias? Muito simplesmente : falar à inteligência e mais ao coração daquele seu filho. Para o motivar, dir-lhe-ia assim: meu filho, anda cá. Dá-me um beijinho! Olha: eu gosto de ti! e da tua mãezinha! Ela é muito nossa amiga! Foi ela e eu quem contribuiu para que tu existisses. A Deus do Céu deves tu mais,, que é Ele de facto, o autor da vida.
Nós somos instrumentos que Ele afeiçoou, para fazermos as suas vezes. Entretanto, depois d’Ele , é a nós que mais deves.
Se, na verdade, fiz muito por ti, alguém neste mundo, fez mais do que eu! Ainda antes de vires à luz, encontrando-te junto do seu coração, era ela,sim, a tua querida mãe, que te embalava, com imensa ternura, distribuindo por ti o oxigénio do ar irradiando já para o teu corpo uma parte do seu sangue , numa palavra, cedendo-te alimento do seu próprio sustento. Durante a gravidez, rogava ao Senhor te fizesse feliz e nenhum descaminho sofresse a tua vida.
Quem mais te amou, cá neste mundo e quem mais sofreu foi ela também. Recordo-me bem do que ela dizia, antes de nasceres ! Construía para ti um mundo de sonho!. Falava de ti a quem se aproximava. Tudo suportava, por amor de ti! Para dar-te à luz, quanto ela sofreu! Passado esse transe, era toda carinho para o seu bebé! Longas noites velou, junto do teu berço. Ao menor movimento, esboçado por ti, logo estava a pino, a fim de servir-te.
Ainda tu, de facto, não sabias pedir, já ela se abeirava, trazendo logo quanto precisavas. E se, alta noite, gritavas com dores?! Então sofria igualmente, procurando investigar a causa do teu mal, dando-lhe remédio ou chamando o Médico, a fim de curar-te. Sem que lho pedisses, fazia ela tudo, com grande carinho e imenso desvelo. É, na verdade, a pessoa mais amiga, que tens, neste mundo.
Quantos beijos te deu que não retribuíste! Quem te amamentou, recusando leite estranho e cuidados mercenários?! Quem te limpava, ao sujares a roupa, na tua incontinência?! Quem mais sofreu com os teus problemas?! Como vês, é um ser adorável a tua mãezinha! Levanta os olhos para o seu rosto.
Vê como chora e deseja beijar-te, perdoando tuas faltas! Nisto, o pequeno, seja embora refilão, muito imperial e insubordinado, sente logo ânsia de reparar o mal feito. É ele mesmo que abraça e beija a mãe adorada, por um acto voluntário, consciente e amoroso. Escolhe o seu caminho. Sabidas agora as justas razões por que deve obedecer, já não hesita. Não precisa, depois, que o mande, de novo! Aquilo que o irritava dá-lhe agora prazer.
Aplicação da análise: recusa da síntese!


Belém/Lisboa/Vide-Entre-Vinhas

Não sei devidamente, ignoro a rigor o que é falar hoje da minha terra natal! Algo como sonho a esfumar-se ao longe, no largo horizonte! Há quanto a não vejo! Creio haver sido, em 1972 que eu a visitei, pela última vez, durante as férias grandes.
Acabavam os exames, no Liceu da Covlhã e eu dispunha-me já a deixar Manteigas, em cujo Externato leccionara 15 anos. Iria ver novas terras, um império glorioso, 500 anos Luso, onde a alma lusitana derramara sangue, luz, vida e amor! Entrava português: sairia, depois, já estrangeiro!
Vicissitudes da vida !
Pois antes da abalada enviara â minha aldeia um adeus melancólico, feito de carinho, ternura e paixão! Ao chegar lá abaixo, à estrada nacional. volvi para sempre um olhar saudoso, mergulhado em lágrimas, suspiros e ais. Recolhido em mim, fez-se luz diamantina e pude contemplar o fulgor do meu berço. Em espírito, embora, fui logo percorrendo as ruas contorcidas, onde as giestas, no Inverno, se curtiam, fermentando.
No mês de Março, fazia-se a limpeza, transportando-o para as leiras, que exultavam, de o ver! Concentrado em mim, via as casas humildes, parecendo cochichar, em diálogo sem fim. Lembravam, desde logo, figuras do passado, que a morte levara, deixando no peito amargura e saudade!
Atravessava a Portela, com a bica água (corrente) não longe, ao passo que lembrava, todo enleado, os jogos animados, que ali se efectuavam. à beira da Páscoa. Era assim a péla (jogo) que vinha renascer, gerando em nossas almas alegria sem par.
Descia um pouco mais, deixando para trás o velho presbitério, onde padres virtuosos fizeram assento: José Maria Martins ( quem me baptizou); José António Baptista; José Antunes Duarte, e Carlos Pina Paula, (actual Prior), que mudou para o Terreiro, onde levantara uma bela igreja e novo presbitério, anexo a ela.
Seguia depois a Escola primitiva e a taberna do Nunes, causa de tantos ralhos, pranto e discórdia.
Agora, a Fonte do Cão, que era de mergulho e dava boa água para as casas vizinhas. Pela Rua da Oliveira, chegava-se por fim à casa saudosa, onde vi, deslumbrado a primeira luz. Ali me detive, quase arroubado! Oh! Casa da Portela que olhas para o Terreiro, fala-me ainda, conta em pormenor o que guardas sobre mim! Diz-me, te peço, relata poor meúdo o que os pais saudosos lá fizeram por mim! Esse amor, esse encanto, esses beijos sem fim, e sse mundo sorridente, que o tempo me levou!


Belém/Lisboa
18-4-1986 Cont.

Aih! Casa da Portela, na Rua da Oliveira, quão longe estou agora de teu vulto formoso! É que, eu, ns verdadem sofro imenso, de ver-te indiferente! Informaram, há pouco, mas custa aceitá-lo! Sempre é verdade que ameaças ruína)! Quanto sofro com isso! És o símbolo perfeito do lento desabar de todos os sonhos e doces ilusões!
Tudo vai ficando, junto com a vida, que perdeu o seu impulso. Mas ó casa amiga, retém firme o perfil, denegrida embora pela mão do tempo! É que, realmente, se fazes como digo, ainda o sonho não morre, insuflando-me alento.
Deixa primeiro que largue deste mundo! Guarda firmemente os segredos que sabes! Acautela as memórias, para alento de meus anos, já conturbados , pelo muito voltear da roda fatal! Não permitas a estranhos que profanem teus muros ou invadam os recantos, onde fui tão feliz!
Sala e salita, quarto do fundo, onde vi, ao certo, a primeira luz! e tu, quarto escuro, fazei-me companhia, no final da existência! Deixai-me ser feliz, fixando embevecido vosso rosto avelhado. Permiti, sim, me apoie em vossas taipas, onde eu. tantas vezes, com passo ainda incerto, me encostava, em menino!
Falai-me calorosos, desses entes que adorei, com amor acendrado! Já possivelmente a terra os comeu? Seu espírito, porém, goza no Paraíso o prémio sem igual, que o Céu generoso oferta aos bons. Esses corpos, no entanto, agora já mirrados, hei-de vê-los um dia, mais formosos ainda do que eram neste mundo! O bom Pai do Céu, mediante seu poder, há-de transformá.los em corpos gloriosos
É por tudo isto que eu te acarinho, velha casa da Portela, onde fui tão amado, nesses anos de infância. E tu igualmente, ó cozinha empedrada, sê alento e conforto para o meu coração! Eras tão fumenta, em anos recuados! Sem a tua chaminé, foste, na verdade, o martírio de todos! Aquela que mais sofreu foi a mãe adorada!
Penetrávamos em ti, curvados e chorosos, quase rastejando. Mais tarde, viraste, com a tua chaminé, feita de granito! Mesmo assim feia, estreita e fummarenta, quero-te a valer, pois foi no teu seio que passei de facto. os melhores tempos, ao longo da infância, como da puerícia.
E de ti, sótão escasso, que posso eu dizer? Há também recordações, para aqui registar!


Belém Cont.
19-4-1976

Deixa então, ó sótão amigo, que eu suba ainda, pela escada portátil e dê, uma vez mais um giro amoroso, pelo teu seio. Rentinho ao telhado, sempre de cócoras, evitava contusões na cabeça e nos braços .
Ia a ti por cebolas, batatas e maçãs ou então levava panelas, asados e caldeiros, para se deterem imobilizados. Quando vinha chuva ou fazia vento, surgia o problema que se punha a todos. As telhas partidas , no telhado, quase plano deixavam infiltrar grossas Pingas de água. Era logo ujum afã remediar esse mal, tocasse ainda a cabeça nas traves do telhado.
E tu, longo balcão do exterior, em que ouvia ressoar os passos conhecidos de entes amados! Sobretudo, à noitinha ou já por noite velha, quando o pai adorado voltava da estação, alagado em água! Tudo isto e o mais que não teria fim, me deixa a alma doente, vergada pela saudade. Também a ti não esqueço, funda loja da Portela, com paredes tão grossas, que figuram fortaleza!
Recebeste gado provisões e lenha, nesses anos, já remotos, Depois, sofreste algum arranjo, destinando-te a usos, que não desdissessem. Guardo lembranças desses anos que passaram e me falam de ti.
Nesta hora de saudade, avivam-se na alma outros belos amores. Do outro lado da rua, erguia-se também uma velha habitação, que não posso olvidar. A simpática velhinha, a doce Ana Rosa, que me embalou em criança, era a alma dessa rua e o constante anelo da minha alma..
O coração repartia-se igualmente por essa casa humilde. Partia a mãe adorada para as fainas do campo? Deixava-me entregue à querida vizinha. Quanto eu lhe queria não posso exprimi-o em meras palavras Que saudade imensa me está dilacerando os seios de alma!
Deixa, pois. ó casa amiga , que penetre ainda agora no seio de teus muros! És qual santuário, aonde me dirijo como romeiro, levando no meu peito o fascínio de criança! Abro a porta da varanda que dá para a sala? Que vejo eu logo? Dois olhos afagantes que me falam amorosos, dardejando prestesmente afagos e carícias.


Belém/Lisboa
30-3-1986 Idioma Luso em sério risco

Não foi há muito ainda que eu ouvi o disparate! Aqui o deixo para memória. Chegou-me o caso pela televisão. Foi o seguinte: :”Vão haver muitos caos”. Escusado é dizer que se trata aqui dum erro palmar! e, como tal, há-de ser eliminado! Caso contrário, ao fim de alguns anos, faz-se irreconhecível esta Língua formosa! Ora bom. Sendo a mais espalhada, pelo mundo além, iria alguém reconhecê-la, passados 100 anos?!
Vamos, pois, eliminar estas chagas purulentas, antes que seja tarde! Como introdução, convém indicar o motivo exacto. pelo qual muita gente desliza para o erro. Se eu não me engano, situa-se a causa no intento necessário de fazer a concordância, entre o verbo e o sujeito. Pois não diz a Gramática: o verbo concorda com o sujeito em número e pessoa?! Ninguém dirá: ‘o livro são bonitos!’Ou ainda: os livros é bonito!
Ora bem. Quando verbo haver significa existir, acontecer, ocorrer, emprega-se, porca, na terceira pessoa do número singular: há homens perversos; há casos delicados; há pessoas incorrigíveis; há tantos dissabores, nesta vida atribulada! Se tiver um auxiliar, a construção é igual: vai haver muitos casos para lamentar! Vai haver tantos perigos, que receio falar deles! Usa-se, pois, no singular e nunca no plural!
Não me apraz entrar agora na análise sintáctica! Apesar de tudo, farei breves referências, a respeito do caso. A análise habitual todos a conhecem. Predicado: há; sujeito inexistente; complemento directo: homens perversos.
Isto é, de facto, o que temos ouvido, em nossas Escolas, ao longo do tempo. Consideram este verbo como impessoal, naquelas frases ou outras semelhantes. A mim repugna-me que haja uma acção, referência ou qualidade, sem um sujeito de qualquer natureza Seria uma casa sem alicerces! Uma planta sem raiz nem tronco Tanto assim é que as outras Línguas arranjam um termo que represente o sujeito ou faça as suas vezes
É o caso de: it, es, il, etc Se entroncamos no Latim a construção” há homens”, encontraremos: sunt homines. Portanto. o sujeito é”homines”


Belém
14-4-1986

Tentei esquecer, mas não consegui. Dificilmente olvidamos o bem que nos fazem; mais difícil se torna esquecer o mal. Ocorreu o facto, por fins de Fevereiro, lá para a Graça, caso não erre. Bem clama o povo: “ Desta água não beberei!”Em tantas voltas e reviravoltas, acontece ainda o que menos esperamos!
A propósito, recordei uma história, que um dia li, na África do Sul, em língua africânder e que passo a expor, usando uma síntese. Havia muito calor e uma seca terrível. Por esta razão, exauriram-se as fontes, ficando somente um poço com água, à disposição de todos os animais. Estava cheio, bem entendido, mas o bravo leão não saía dali, impedindo os outros de matar a sede.
Chegou até ao ponto de erguer um muro alto, em volta do poço, para afastar assim os pobres sedentos. Não contente com isso, estava sempre deitado, ali junto da linfa. Um belo dia, a lebre passou por lá e, notando o facto, concebeu um plano, que bem resolveu o magno problema. Que havia de ser?! Percorreu toda a zona, com grande brevidade e convidou todos os animais para um largo encontro, pondo-os ao corrente do que havia projectado.
Meu dito, meu feito! Traçadas as linhas e expostas a todos, esperaram bastante que o leão adormecesse. Depois, ergueram, a toda a pressa, um muro bem alto, em volta dele. Ao acordar, notando o sucedido, formou, desde logo um salto resoluto, mas nada conseguiu.
“ Estou tramado!”- murmurou surpreso, para os seus botões. Entretanto, rugiu fortemente : “ Deixai-me sair daqui!”
-- “Não!”- responderam os bichos. Tu foste malandro! Por isso mesmo, é que foste enjaulado!” Passados três dias, estava quase morto, por causa da sede!
--“ Deixai-me sair daqui - rogava ele então, já bastante mansinho! Não voltarei a ser malandro!”Perante a mudança, os bichos não hesitam: dão-lhe a liberdade. Agora, é já delicado e não diz jamais ser aquele o se poço! Serviu-lhe de lição!
1986 Mais uma pincelada sobre Vide-Entre-Vinhas
Junto â Casa da Portela, onde vi primeiro a luz, surge a velha moradia, habitada por alguém que trago no coração: Ana Rosa e seu marido, A minha história, desde pequenino, correu paralela à deste casal, que perdeu a filha única, em 1918.Revivamos, no presente, o que houve no passado. Abeiremo-nos, pois, da casa humilde e velhinha, onde mora gente honrada , que eu adorava, desde bebé.
Ei-la que aparece, em primeiro lugar e vem logo beijar-me, estendendo seus braços, que me cingem diligentes. Eu deixo enredar-me, porque sinto prazer… quase arroubamento! Entretanto, olho para a esquerda e lá no interior, já um tanto escuro, diviso a extremidade a um velho tear, que funciona amiúde.
À direita da sala, abre-se uma porta, que me deixa passar, rumo à cozinha, lá mesmo ao fundo. Antes de chegar, atravesso uma quadra, escura também, que serve de corredor, algo estrangulado e bastante irregular, sendo aproveitado para arrumações. Era a cozinha, o lugar ideal para o menino, que eu era então
Entre as várias cenas que ali decorreram, há duas sobretudo. que mantêm bem viva toda a poesia do meu tempo de criança: a ceia com o pobre que nos batia à porta; o picar do queijo, que forneci o “borrego” Era este, bem entendido, um pedaço do queijo, já espremido. Tanto me sabia, nesse tempo inesquecível!
Junto à pilheira, ardiam, os cavacos, e ao centro da lareira erguia-se a banca, mesinha redonda com breve tripé. Servia para tudo: caçoula comum, donde todos comíamos; francela perfurada, para o acincho, e tudo o mais. Quanto eu gostava de passar no local as horas de menino!
Sendo o primeiro filho, não tinha ninguém com quem brincar. Em tal caso, era a ti Ana a maior aspiração que eu podia alimentar. De sua casa, entesto para a horta, deixando a loja térrea, onde as 4 cabrinhas levam toda a noite, remoendo o pasto. São elas de nome: a negra e a nogueira; segue a laranja e, por fim, o rouxinol .
Tão meigas cabrinhas parecem entender! Como sentem prazer em dar seu leite àqueles velhinhos! Com ele, faz a ti Ana belos quejinhos, que serão depois vendidos, em Celorico da Beira. O soro restante comíamo- lo nós.
Pois a horta referida é outro lugar que me aviva a saudade.Tinha figos em Junho, mas o mel delicioso, que o velhote extraía, já no Outono, não pode esquecer! Ao longo da parede, abrigados de Nascente, lá se erguiam os cortços, que me faziam cismar!
Entrando no recinto, divisava-se à esquerda, logo a meia altura da parede lateral, a cheirosa hortelã. Do lado contrário, surgia a oliveira, que dá o nome à rua antiga. Em frente da porta, junto do couval, avultava um monte, feito de esterco, que o bom António Cândido ia aumentando, com pazadas sucessivas do que ele encontrava , ao longo dos caminhos.


Belém \ 21-4-1986

Agora, volto já costas à Rua da Oliveira. endireitando para o Terreiro. Antes de chegar, passo pela igreja, â casa antiga do velho Cabral, alma negra das crianças, que invadiam o adro ou roubavam as maçãs, no Cão da Dona Maria. No templo velhinho, recebi o Baptismo, sendo ali preparado, alguns anos mais tarde, para a Comunhão.
Que momentos deliciosos ali não passei, já pelo Natal, contemplando o Presépio, já no tempo da Páscoa ou em dias festivos , quando o velho templo se enchia de fiéis! O caduco Santo Amaro, com o longo ‘cajado’ é que chamava a atenção! Vendo-o tão sisudo, fazia-me pensar! Os outros santos, em tamanho inferior, não me eam suspeitos! Aquele, porém, trazia-me intrigado!
Recordo também a reza do Terço, que se fazia ali, à boca da noite, culminando em geral, com a Bênção do Santíssimo. Por via de regra, crianças e velhotes aproveitavam log este belo ensejo para dormir um pouco, encostando-se às paredes. Eu, porém, não podia fazê-lo, que dois olhos vigilantes se cravavam em mim, para eu rezar!
Às vezes, para distrair-me, tentava penetrar no vão da sacristia, mas o velho Cabra levava-se prestes de todos os diabos, não dando luz verde! Ele, afinal, que deleitava as crianças, no forno da Aldeia, em noites de Inverno, era na sacristia o terror dos miúdos. Enfim, viragens da sorte! Recomendação, talvez, do velho Prior, o padre José Maria?
Continuando a romagem, chego ao Terreiro. Lugar de encontros, para velhos e novos, era sempre agradável passar por ali e deter-me um pouco. Havia bons encontros para segredinhos, jogos em barda e correrias loucas. Lembra-me, a propósito, o jogo da péla, a salsa-verde, o perdi-saco e o escondedor, para não falar já do agitado salti-vão e do pilha-três. Uma série de lembranças que se diluem fundo na poeira dos tempos., mas ainda conservam muito fascínio!
Falta só memoriar a fogueira do Natal, para a qual se trazia largo combustível , em que primava um tronco enorme de velho castanheiro. Movimentá-lo era o cabo dos trabalhos !
Da casa da Portela, eu via deslumbrado as faúlhas doidejantes, pairando no ar,, como abelhas desavindas.


Belém
22-4-1986 Cont.

Do Terreiro antigo, esse Largo memorável, onde todos se encontravam, já para a conversa, dando livre curso à leve fantasia, já para o ingresso em bailados domingueiros. a fim de ter ocasião de falar em suas penas, mágoas e dores, volvo uma vez mais um olhar retrospectivo, recordando lugares, personagens e factos, que ficaram vincados para todo o sempre.
Ficava à beira da rua a baiúca do Nunes, onde os inveterados passavam, em delícia, horas esquecidas, moendo ali a substância para as despesas da casa. Não longe da taberna, mostrava-se ufana a velha Escola do povo, que era sombreada por nogueira vultuosa, em cujos ramos, flexíveis e bamboleamtes, tantas vezes bifurcado, passava eu as horas mais gratas.
Já mais abaixo, na mesma rua e à beira dela, na vizinhança da velha igreja, ergue-se a casa do velho Cabral, zeloso sacristão desta paróquia. Lembro aqui também o mordaz Carriço, que nos últimos anos levava o garotio a medir em público forças e coragem, na dura calçada!
Quem passasse por ali, a dadas horas, encontrava decerto a velha Tomásia, que toda se alegrava, inquirindo alguém, sobre o filho Mateus, residente, ao que julgo, nos Estados Unidos. Também não faltava, já exausto da vida e labutas que impõe, o enfermiço, José do Adro, apertando o estômago, que o fazia penar
Em frente do Largo, no lugar de honra e sala de visitas de Vide-Entre –vinhas, avista-se logo a casa dos Portugais, que passavam, noutras eras, por gente abastada, se é que não eram tidos pelos ‘ricos da Aldeia’. A- gora, deixo o local, rumando ao Outeiro, onde foi inaugurada, em 1931,, a Escola Masculina. que ali frequentei, par fazer a 4ª Classe, no ano seguinte. Exercia então cargo o professor Ribeiro, enquanto Dona Clementina, sua jovem esposa, continuava presidindo à Feminina., lá na Portela.
Foi um ano agitado s cheio de problemas. Não tínhamos bases e era necessário aparecer alguém nos exames de Julho. Por isso a’férula’ fervia , sem direito a folga. Ao todo, levei uma reguada, por ter sido moderado , a bater no Joaquim. “ Carrega nesses diabos”, dizia ele animoso, querendo levar a cabo a tarefa entre mãos!
Deste sítio, inflectindo para a Laja, chego apressado ao termo da aldeia, em cuja última casa vivia uma velhinha toda bondade, que era minha vó. Ceguinha já, exultava de alegria, quando a visitava. Ouço ainda o ressoar vibrante da sua voz.
--Ó minha avó!
-- Entra cá,mê netinho!


Belém
23-4-1986 Cont.

Nas idas à Laja, encontrava colegas, que me divertiam. Era, na verdade, o Joaquim Martins e o António Ferreiro. De vez em quando, se eu lhes tardava, subiam â Portela, para novo encontro. Já Deus chamou esses companheiros, de quem guardo, saudoso, gratas recordações. Uma delas é a que segue.
Encontrando-me na Laja, diz afogueado o Tonho Ferreiro: Ó Pedro. hás-de ir connosco à poça do Barreiro! Toma-se lá banho! Aquilo é bom, como vais ver! Está abasbadinha, a mais não poder!
-- Oh! Eu não sei nadar! Tenho medo!
--Por esta razão, escusas de ter medo! Anda daí!
Assegurada já a minha protecção e livre de perigo, (assim o julgava) lá vou com eles, pois era, na verdade, uma grata experiência. Chegado à borda, noto desde logp que a linfa espelhada está rasante! Uma tentação, para os rapazes treinados! Bom!
Já desnudados, atiram-se os dois, imergindo no líquido, ao passo que eu, preparado igualmente, estava acocorado no largo bordo. Vendo-me hesitante, a meter o dedo no seio da água, a fim de saber a temperatura, encorajam-me outra vez, com muita insistência e palavras de apoio.
Eu, porém, é que não decidia. A superfície líquida, espelhada e cristalina, infundia-me receio. Nunca o fizera! A presa era grande, alta em excesso e desconhecida. Que haveria lá dentro? Pedras, calhaus, silvas e urtigas? Animalejos, harto peçonhentos?! Era um bico de obra!
Nisto, o Tonho Ferreiro, vendo rem efeito pedidos e conselhos, empurra-me logo, sem qualquer aviso, para dentro da água! Era o meu baptismo! Coisa excitante e, por isso mesmo indescritível! Esvaíra-se o temor! Abrindo a boca, engoli um pouco de água, mas não prejudicou! Um banho forçado. mas proveitoso! Valeu a pena! Entretanto, os dois companheiros riam a bom rir, enquanto eu, algo atrapalhado vinha ao de cima, ganhando coragem.
Os ensaios da vida, por vezes dolorosos, trazem benefícios de natureza vária. Minha mãe guardava-me sem tréguas, impedindo a convivência, fosse com quem fosse! Só às fugidas e com raridade eu podia escapar-lhe! Foram eles, como vemos, quem tirou do meu peito o receio de nadar!


Belém
24-4-1986 Cont.

Já que re trata de ensaios, aí vai mais um , que me foi proveitoso. Até aos 12 anos, era sempre humilhado, se me obrigava alguém a medir as forças com outro companheiro. Faltava a experiência, Não convivendo, que podia fazer?! Entretanto, se outros desafiavam, por aquelas palavras que todos conhecemos “queres alguma coisa comigo?”, eu não fugia, mas vinha a catástrofe!
Caía no chão, ficando envergonhado, enquanto os outros se riam de mim! Grave problema que eu, realmente, não sabia resolver!
Um dia, porém, diz o Manuel Diego, que era nosso criado. “ Olha, Pedro, quando passares ^`a casa do Zé Lopes, vais ali desafiar o temido Zé ‘Catrino!’
Volvo eu logo, decidido e pronto: isso é que não! Tem mais três anos! Além disso, todos fogem dele! Não quero desafiá-lo! Ele deita-me abaixo!
Anda até aqui – atalha logo ele - vou-te ensinar como hás-de fazer! Tu és valente, mas não sabes lutar! Pões-te direito e não fazes força! Claro! Desse jeito, cais logo no chão! Repara bem no que vou dizer-te: Primeiro que tudo, alargas as pernas, firmando bem os pés; em se Guida, curvas o tronco, cinges o parceiro pela cintura e enclavinhas os dedos, atrás das costas. Percebes?
-- Sim, claro!
Uma vez assim, ele fará esforço, para atirar-te ao chão, mas tu não cedes e fazes-lhe a ele o que intenta fazer-te!.Está esclarecido? Bom. Então, quando formos daqui ( estávamos, à data, na Tapada Ribeira!) desafias logo o Zé ‘Catrino’.
Tentei de novo esquivar-me à luta, alegando razões. Ele, porém,
e´que não desistia. Vendo-me hesitar e ficar pensativo, aduz incentivos que resolvem as dúvidas. Repara, diz ele, cheio de importância: não tenhas medo, porque eu estou lá, ao pé de ti, quando lutares. Se houver alguma coisa, deixa isso comigo! Eu acompanho-te e não deixo abusar!
Esta saída confortou-me bastante, levando-me então preferir o ‘sim’. Era uma aventura, um caso excepcional, ao menos para mim. Durante o caminho que é muito subido e algo tortuoso, veio-me sempre animando, para não desistir do propósito formado. Chegados à Lavandeira, solto um ai fundo que ele nota, de súbito.
“ Confiança! Tu és forte! Caías sempre, de não teres prática! Vais ver agora como tudo se altera!”
Estávamos já, por baixo da latada. Espreitando para o pátio, desfecho eu logo: queres hoje alguma coisa?!


Belém
25-4-1985 Cont.

Ele, então, sai desembridado, capaz de me engolir! Ao primeiro safanão, atiro-o logo para a calçada, onde fica estatelado! Acto contínuo. levanta-se logo e tenta desforrar-se! À segunda arremetida, sucede-lhe o mesmo! Agora, pergunto eu: queres outra vez? “ Não! Já não quero mais!”
Começa nova etapa, na minha existência! Jamais esquecerei o ensino valioso do Manuel Diego!
Seguidamente, lembrando o passado, endireito ao Pisão! Vou decidido pela Quinta do Crucho, que é melhor caminho e me tra< à memória cenas de outro tempo. Vivia no local uma tia-avó, que dava pelo nome de Maria José. Era, de facto, irmã de minha avó, mãe de meu pai.
Em dia de Janeiras, lá estava caído! Nessa data, havia bela fruta, sedução e engodo para o rapazio! Bom! Entesto depois, ao chamado Corgo e breve penetro no Soito dos Ferrinhos. Nessa altura, havia ali belos castanheiros, que levavam fartura à casa de meus pais!
Descida a barreira, avistava-se logo a palheira do Pisão que. não sendo extensa, dava para tudo: gado e provisões, acomodando-se estas no exíguo combarro. Por que vem o Pisão em primeiro lugar? Era a propriedade que meu pai distinguia, entre as demais. Fora ali criado: os tempos de menino como de adolescente não esque cem jamais!
Pois o querido pai, nas horas disponíveis, encontrava-se ali, necessariamente. Sempre labutando assim melhorava a terra de regadio. Ao longo dos arretos, passava um ribeiro que, em tempo de trovoada constituía um perigo. Extravasando, penetrava no lameiro, empurrando o solo arável, com fúria inaudita. Novos cuidados para o pai infatigável! Limpar a barroca, erguer novas defesas, alinhar o terreno, desviar o curso de água! Enfim, mil tarefas diferentes que a furiosa tempestade originava sempre!
Quantas vezes se privava do almoço ou então comia tarde, já quase ao pôr do Sol, mercê de trabalhos que intentava realizar. Isso, porém. não era obstáculo! Já tardiamente, surgia minha mãe, com um pouco de comida, a fim de alimentar-se! As suas ocupações, no serviço doméstico, absorviam-lhe as horas.
Não obstante o facto, ele sorria, cheio de paciência e boa disposição. Um marido ideal! Um pai admirável! Sentava-se então para refazer-se, mas notava, desde logo, que faltava a colher! Não se enervava! A mesma calma! Igual serenidade! O mesmo bem-estar!
Ai! Pisão, situado no fundo, alenta-me agora com memórias antigas dos tempos de criança! Verte em meu peito essa grata poesia, encanto e maravilha , que me vinham de ti! Anos belos , em que os pais amorosos centravam em todo o seu afecto, sendo eu, na verdade, a razão cabal da sua existência.


Belém
26-4-1986

Falei do Pisão, que era, na verdade, a leira mais amada por aquele pai tão maravilhoso. Para baixo, era fácil deslocar-se: no regresso, porém, havia dificuldades, sobretudo vindo com fardos! Tornava-se premente aliviar o corpo, descansando um tanto, com o peso chão! Para isso, escolhia lugares, acomodados ao fim: geralmente, uma pedra , com tamanho vultuoso ou ainda uma parede que se prestasse ao caso.
Enquanto ele pôde, fazia-o com presteza e grande prazer. Depois, trazia fardos leves e, finalmente, vinha já sem nada! Nos últimos anos, renunciou, por inteiro, à ida ao Pisão. Subir a vertente já não era com ele,.mesmo sem nada a carregar-lhe nos ombros.
Entretanto, génio empreendedor q hábitos de longe, não toleravam ficasse inactivo. Começou então a pender, sensivelmente para o meu Carvlhal, pequena propriedade, a meio quilómetro de Vide –Entre- Vinhas.
Psicologicamente, dizia-lhe pouco, uma vez que a herdara da primeira esposa, com a qual habitara, durante escasso tempo. Efectivamente, a dita senhora morreu de parto. Como porém, a referida quintinha ficava à mão e tinha acesso que a tornava aceitável para qualquer veículo, endireitou para ali, fazendo agora as vezes do longínquo Pisão
Perdido ou achado, e ra lá que se encontrava. Em breve tempo, com mínimo esforço, alcançava o Carvalhal. Não havia subidas nem sequer mau piso! Era, portanto ideal para os anos derradeiros!. Assaz laborioso, tentava melhorar o terreno de cultivo, donde tirava carradas sem conta de pedra miúda. Arroteava anualmente um pequeno troço. Se o achava duro, insistia ainda, só desistindo, a muito custo.
Esta propriedade tinha, a princípio. uma cabana de colmo, lá mesmo ao fundo, situada a Norte. Como era lavrador, não queria a fazenda sem um cabanal, adequado às tarefas da premente lavoura. Construiu, depois, uma casa com loja, espaçosa e direita, para ali resguardar quanto fosse preciso. Ainda hoje existe, um pouco melhorada.
Pois o Carvalhal conquistou-me o afecto, por causa disso! Minha mãe frequentava igualmente este solo fértil, extraindo hortaliças que levava para casa. Estava, pois, destinado a ficar o património que hoje me pertence! A tamanha distància, no tempo e no espaço, figuro os velhinhos curvados sobre a terra, para dela tirarem o sustento dos filhos.


27-4-1986
Belém Cont.

Apeguei-me a valer, ao dito Carvalhal. As fainas começadas que meu pai largara, por não ter recursos de ordem financeira ou por débil saúde, resolvera eu prossegui-las um dia, assim que pudesse. Como o pensara assim o realizei. Durante as férias grandes, tinha ali vasto campo, onde me distraísse! Sendo professor de Ensino Secundário, dispunha realmente dos meses de Verão, que eu aproveitava, para levar a cabo a melhoria do solo.
Metendo ombros à dura empresa, comecei pelo fundo: reforçar o muro ou reconstruí-lo, quando não erguê-lo, desde os fundamentos. onde o não havia. Sendo grande o desnível, cada vez que ruía, perdia-se o terreno, que logo se esgueirava para os vizinhos!
Ao longo deste muro, havia desde há muito, um renque de ginjeiras, que sugavam a terra com enorme prejuízo para toda a cultura. Ora, lançando as raízes, a toda a extensão, pelo solo arável, impediam o renovo de bem produzir. A terra melhor quase nada prometia. Além disto, havia uma agravante: no tempo das ginjas, o garotio ousado saltava para ali, amarrotando as batateiras viçosas e partindo as árvores, para colherem os frutos. Prejuízos a dobrar
Concebi então uma ideia luminosa, com bastante proveito: mandar abrir valas, a um metro de fundo, arrancando, sem piedade, as raízes gulosas, que ficaram ao sol, para todo o sempre! Então, sim! Com a terra livre e um muro sólido, já eu descansava! Terminada esta fase, que foi morosa, voltei o olhar para o arreto do meio. Era estreito e exíguo! Desloquei por isso a parede protectora , alargando-o bastante e continuando o labor porfioso, que meu pai largara, por ser muito árduo!
Na extremidade, cavava-se um poço de pequenas dimensões, embora o querido pai tentasse alargá-lo, por várias vezes. Também ali me esforcei por dar-lhe amplitude. Ficou então enorme o poço da figueira! Em seguida, plantei várias árvores, que regava com amor e assiduidade.
Estes sítios saudosos, ligados à infância, continuados na puerícia e depois na adolescência constituem mundo, em que fui tão feliz! Tempo inesquecível, que jamais olvidarei! Época de ouro, na minha existência, que se volveu, mais tarde, após a morte dos pais, em fase desamada e tempestuosa.


Belém
28-4-1986

Nesta romagem que fiz em espírito, recordei e vivi o tempo mais belo da minha existência. Agora, ao findar, quero ainda insistir em alguns pormenores, que me foram escapando, já que vêm ao de cima, a cores deslumbrantes. Hei-de começar pela casa da Portela, em Vide-Entre-Vinhas, pois foi ali que vi a primeira luz e recebi também os primeiros beijos. Aludirei igualmente à zona circundante, onde ensaiei os meus primeiros passos, já sem amparo ou realizei meus jogos inocentes, durante a puerícia.
Quero distinguir o átrio da casa, onde jazi, por largos dias, abrasado em febre. Minha mãe, angustiada, passava rentinho, com as lágrimas nos olhos, ante a perspectiva de perder para sempre o .único filho . Eu, embora criança. apercebi-me do facto e, com ânsia veemente, inundada de carinho,, afecto e paixão, irrompi uma vez: “minha mãe, não chore! Olhe que eu não morro!”
De facto, não morri, que Deus me preservou!
Vem agora a pêlo a zona do pátio da querida Ana Rosa, logo em frente da casa paterna. António Cândido havia preparado todos os objectos, para ali fazer a aguardente. Tirara já o vinho, guardando o mosto na dorna grande , que pusera em acção. Como p pátio é extenso, havia muito lugar: tudo ali cabia!
Os meus 4 anos acompanhavam a cena, com grande atenção! Bem. A operação começa e fico boquiaberto, presenciando ali o grato evoluir daquela tarefa. Eis senão. quando vejo correr um fio branquinho, para dentro de um asado. Nisto, abeiro-me tanto, que António Cândido fez logo reparo e disse em voz alta: “ Queres disso, meu filho? Espera aí, que eu já te dou!”
Então, foi buscar um copinho, dando-me a beber. Resultado? Fiquei logo borracho, caindo no chão, sem poder levantar-me! Recordo muito bem o que veio em seguida! Andava tudo à roda e, tentando erguer-me, não consegui! Entrementes, chega minha mãe, que olha estupefacta, quando eu lhe digo: minha mãe, dê-me uns pauzinhos. que não posso levantar-me!
Do mais que houve, não me lembro já! Foi esta borracheira um caso único. em toda a minha vida!


Belém
29-4-1986 Cont.

Uma coisa puxa outra. A sombra da nogueira traz-me à lembrança outra similar, que se erguia, a poucos metros, no Chão da Fonte, mesmo juntinho à velha Escola. No Verão, era delicioso ficar por ali. ouvindo as conversas da gente idosa. Foi o caso que um dia se encontrava dialogando a vizinha Ana Rosa com Dona Raquel, professora Oficial de Vide-Entre-Vinhas.
Os meus anos inocentes prendiam-me à velhinha, que sempre me acarinhava, tratando-me qual filho. Ora, sucedia amiúde que eu ouvia mal. Calculo, pois, que a finada Ana Rosa lhe falasse de mim, lastimando, com certeza, a minha enfermidade, em anos tão verdes. Não prestava atenção, que a idade era pouca. Apesar de tudo, em dada altura, interpela-me a propósito, a Dona Raquel, do modo seguinte: “ Tu ouves, menino?
-- Ovo, ovo – disparo eu logo!
Sem que eu o soubesse, apliquei prontamente a lei da analogia. Não sei como foi a reacção da Mestra, mas acho que nada fez, para me corrigi! À velha professora, que Deus lhe perdoe, pois nunca lutou pela instrução, com lucros visíveis. Ao longo de vários anos que ali permaneceu, ninguém jamais conseguiu diploma da 4ª classe ou então da 3ª. Ninguém foi a exame! Tempos, lastimáveis! E pagava gente, para viver na ignorância!

Desta vez, é a cozinha de Ana Rosa. Tenho para mim haver-me já referido às cenas principais: a do ‘borrego’, ao fazer do queijo e a da ceia ‘democrática’, em que todos, incluindo o mendigos comíamos juntos, da baci comum.
Na zona da cozinha, havia um buraco, não muito largo, que dava passagem à candeia de petróleo. Em tempo de Verão, não era necessário mas, no Inverno, o vento apagava-a , não podendo o ti Cândido levá-la na mão, para a loja das cabras, onde se encontrava a dorna das uvas
O caso, porém, resolvia-se fácil: a Ti Ana metia-a prestes, no orifício, aparando-a o ti Cândido, no interior da loja. Aqui, dois belos quadros observava eu, com grande interesse: o mungir das cabrinhas e assim também o verificar da fermentação. Dava isto que pensar à pobre criança, que nada percebia do que estava ocorrendo, no interior da pipa.


30-4-1986 Cont.

A cena da ordenha era vulgar, não me dando quezília. Apesar de tudo, gostava de assistir, sem nunca faltar, quando pela noite, o facto ocorria. Queria muito à ti Ana Rosa, mas chegado o momento, deixava a cozinha, para fazer companhia ao velho ti Cândido.
As 4 cabrinhas eram modelares. Pareciam entender, mostrando bonomia, ao verem o dono com um grande ferrado suspenso da mão. Remoendo o pasto, elas próprias se se abeiravam, transluzindo nos olhos o gosto de ser úteis! Com que paciência voltavam a traseira . ajeitando-se elas mesmas, em volta do ferrado!
Agora, o ti Cândido, pondo-se de cócoras, começava a mungi-las A primeira que vinha é que era atendida. O pastor, de sua parte, lidava com elas, como se, realmente, fossem pessoas. Falava com brandura , tocava-lhes manso, ao que elas acediam, obedecendo ali, com a máxima presteza!
Agora, és tu, Laranja, monologava ele, com voz embrandecida e cheio de carinho. Logo ela se aproximava, dispondo-se habilmente, para verter no fundo o leite precioso. “É a tua vez, ó Rouxinol!”!Vinha logo sem demora a amável cabrinha, para junto do dono, com igual finalidade.
És tu, Negra! Anda cá também! Não me esqueço de t Finalizada esta operação, dirigia-se à Riscada, que fazia a mesma coisa, mostrando satisfação de ser aliviada e alegrar o seu dono!
Eu, então, gozava a delícia, empoleirado na vizinha adega, onde havia palha, sobre a qual me recostava. Ao meio da loja, erguia-se a barreira, feita de canas. O gado respeitava-a, jamais saltando para o interior.
Após a vindima, que o vizinho Cândido fazia sozinho, cortando ele os cachos e trazendo-os à noite, juntamente com as cabras, metia as uvas na dorna, para ali fermentarem. Havia-a preparado, à Fonte do cão Cheiinha de água, embuchava toda. Uma vez em condições, toca de levá-la para aloja da casa. onde era atestada de cachos maduros, que trouxera do Chão, da vizinha Tapada., Demoacho e da Ladeira.
Tudo isto que digo me era familiar e compreendia muitíssimo bem. Entretanto, a cena da candeia punha-me confuso. Acabada a ordenha, ripava da luz, suspensa num prego, metendo o objecto no interior da dorna.
Verificado o efeito na própria luz, falava sozinho, quase em surdina: ‘Inda num stá!’ Ao outro dia, a mesma operação! A candeia, porém, mantinha-se acesa. Finalmente, chegava o dia, em que ela se apagava! Nascia-lhe logo uma alma jubilosa, descarregando a alegria em palavras repuxadas:” Ó Ana, amanhã tirar o vinho, para fazermos, depois, a aguardente!”


1-5-1986 Cont.

A cena anterior deixava-me suspenso e boquiaberto! A princípio, a candeia mantinha-se; De pois, já não! Apagava-se porquê?! Bem eu perguntava, mas a resposta é que não vinha! Intrigado sempre, dirigia-me a outrem,mas nem palavra! Que grande azar nascer uma pessoa em meios ignorantes!
O tempo foi correndo, até que um dia, já bastante mais tarde, noutro meio diferente, obtive a resposta. nos livros de Química. Afinal, o processo dava certo, embora o ti Cândido, não soubesse explicar cientificamente o desenrolar dos factos habituais. O que apagava a luz era, realmente o óxido de carbono, em que o açúcar se tinha decomposto. O álcool ficava e o dito óxido era libertado, espalhando-se no ar. É certo e sabido que o dito óxido produz efeito contrário ao do útil oxigénio.
Julgo encontrar-me no bom caminho, embora nesta data, em que passo o texto a computador e corrija defeitos, eu cavalgue já os 93 anos.

Cabe também a vez à escapadela através da cozinha! O ti Cândido era pastor. Só de vez em quando ia a ti Ana acompanhar as cabrinhas. Ora, sendo assim, comecei a alimentar a ideia sedutora de ir acompanhá-la, passando o tempo no campo. Fazendo saber isso à mãe, Margarida, obtive uma resposta que não me satisfez.
Minha mãe, deixa-me ir com o ti Cândido guardar as cabras, no Carvalhal?
-- Não vais, não! – duz ela prontamente, Está muito frio! Não sais de casa!”
Bom! Estava barrado este grande anseio! No entanto, não desisti! Pensei a valer e meditei a sério, resolvendo caso de outra maneira. Comunicado o projecto aos meus vizinhos, foi logo aprovado. Da cozinha da ti Ana, através da janela, que dava para a Rua, podia esgueirar-me, sem ninguém me ver. Era alta, bem entendido, mas junto da parede, na Rua da Portela, avultava uma cabana, feita de colmo.
Foi a salvação! O ti Cândido sustentou-me da janela, até eu me apoiar no topo da cortelha! Depois, escorreguei de mansinho, pelas giestas abaixo. até chegar à rocha. Estava salvo! Era uma estreia. Que dia maravilhoso, embora com frio!
O ti Cândido acendeu uma fogueira e tudo correu bem!


1986 A Tecla Mártir

Custa-me sempre fazer tal coisa! Entretanto, não posso evitá-lo! Efectivamente, se o erro continua, impõe-se realmente que o protesto se mantenha! Quem cala consente! Ora, é isso que eu não quero! De que é que se trata? De certos disparates que ouço na Televisão, o que bastante me indispõe, uma vez que é semente, lançada à terra, onde fica para sempre!
O assunto agora é de carácter linguístico: não doutrinal! Vários casos registaram, mas não vou decerto ocupar-me de todos. Apenas, já se vê, dos mais inaceitáveis, que me lembrem, de momento. Ouve-se amiúde este arranjo sintáctico: ‘não levem os vossos livros sem os pagar.
A construção que uso e se deve utilizar é a seguinte: não levem os seus livros sem os pagar. Há outra construção que também está certa; não leveis os vossos livros sem os pagar!
Qualquer outro arranjo é inaceitável, por ser disparatado. Vou mostrar isso, ainda uma vez mais. Se perguntarmos ao verbo quem leva os livros
( o sujeito da oração) vem a resposta: os senhores, as senhoras; os meninos, as meninas; Vossas Excelências. A forma verbal ‘levem’ está na 3ª pessoa, o que é indicativo de tratamento ‘cortês’
‘Não leveis os vossos livros’ também está correcta: verbo na 2ª, pronome(vós) na 2ª, Aqui tratamos por ‘tu’.


Belém
2-3-1986 Compressão

A pretexto da palavra, surgem logo outras, com semelhança. É mera questão de fazer mudanças, Ao que vemos, trata-se apenas de mudar o prefixo, jogando sempre com o termo ‘pressão’ São, pois, derivadas por prefixação as seguintes palavras, que me vêm à ideia: compressão e repressão; depressão e impressão. Temos em jogo os seguintes prefixos: com, re, de, im (n), que vão alterando, por modo, parcial, o sentido rigoroso da palavra primitiva.
O prefixo ‘com’ significa actuação de elemento exterior (agente), com o fim de reforçar a acção de premir (calcar). Foi isto, exactamente, o que eu observei, na Rua de Alcântara, aqui em Lisboa. Nas belas Ciências da Natureza, de que fui professor, quando estive em Manteigas, falava-se muito em pressão atmosférica( peso que o ar exerce na superfície dos corpos.
Se a memória não falha, é essa pressão de 1033 gramas. por centímetro quadrado. Quantas arrobas não pesam sobre nós! Como podemos aguentar centenas delas?! O Grande Arquitecto previu tudo isto e criou resistências que aguentassem tal pressão.
Não interessa agora o que faz variar a mesma pressão, que não vem a propósito. O que intento pôr em foco é o que pode reforçar a dita pressão. e seja constituído por agentes externos, de carácter diferente dos que m nos livros.
Neste passo, recordo um facto, ocorrido há anos, em certo lugar. Eu mesmo observei o decorrer da cena. Acabava de chegar, da minha aldeia, onde passara belas férias, para retomar as lidas no Colégio, onde era professor. Descendo uma rua, avisto em baixo um vulto de homem , a certa distância, fazendo limpeza às fossas nasais, sem se curvar.
A prática de anos e o grande à-vontade permitiam-lhe agir, sem grande curvatura. Mera inconsciência? Irresponsabilidade? Javardice em causa? Não sei exactamente. O que sei, na verdade, é que ele então, com certo movimento, levou o indicador `s superfície externa do pobre nariz, arremessando para longe, mucosidades e imundície, aglomeradas lá.
Cá de cima, anotei o sucedido e fiquei enjoado! Por muito pouco não ia vomitando! Lá me aguentei conforme pude e tomei precauções, não fosse caso que viesse a acontecer-me coisa pior! O que eu tinha imaginado estava-se preparando - um aperto de mão, na minha pessoa! Eu que sou tão nojento! Podia lá ser! Bom! Homem prevenido vale por dois! Ouvi isto muitas vezes, ao longo da vida! Por isso mesmo, preveni-me a tempo!
Sabia de antemão que ele iria cumprimentar-me, segundo era hábito. Eu, por minha parte, sentia repulsa em tocar-lhe na imundície. Que podia fazer? Recuar? Era solução, mas não me convinha! Devia seguir, naquela direcção, Bem! Aventurei-me! Avanço resoluto e meto no bolso a mão direita! Ao chegar junto dele, esboçou leve jeito, com vista ao acto, mas logo desistiu, vendo ali bem a minha posição.
Estava salvo, ao menos daquela vez!


Belém
12-3-1986 Deserções

Chama-se desertor aquele que abandona a carreira encetada, por não corresponder à sua expectativa., haver sido imposto ou sugerido e não lhe dar prazer. Anda associado tal proceder ao facto vergonhoso de trair uma causa ou então um ideal. Entretanto, nem sempre acontece.
Se alguém, por ventura, se não sente realizado, num dado sector, que não foi de sua escolha, e podia ter sido,( para não dizer “devia ter sido”) por que razão «e que há-de manter-se contra vontade?! Ficar acorrentado, mantendo sempre a frustração?! Que interesse tem isso?! Cà por mim, entendo que não deve hesitar-se um momento sequer!
Escravizado aos homens, quando Céu nos deixa livres?! Como é isso?! Não percebo, não!
Quando a Igreja Católica estudou a fundo o caso especial dos padres celibatários, que desejavam romper o compromisso tomado, na verdura dos anos, apareceram logo uns 80.000, a pedir a d!ispensa! Foi assombroso! Em 400.000! Nada menos de um 5º, para começar! Tenho para mim que não estava em causa a sua vocação! “Perderam-na!” – asseguram alguns! Como podiam perdê-la, se eles a não tinham?! Quem a a tem não a perde, com tanta facilidade, embora se admitam casos do género.
Entretanto, por via de regra, não é isso que sucede! Muitos deles queriam o sacerdócio, mas fora do celibato, dando-se o caso, assim o julgo eu, de terem vocação. Como porém, a Igreja Católica não transige ainda, (fá-lo-á no futuro), diremos sem base, que não têm vocação, se não admite o celibato eclesiástico.
Chegámos a um ponto, deveras importante, no campo educativo Aqueles 80.000, logo de entrada, causaram espanto! E quantos ficaram que não tiveram coragem?! Quantos ainda que estavam decididos, mas não arriscaram o nome que tinham?! Não aplico restrições a todos os elementos Um número reduzido ( 10% ? ) manter-se-ia fiel ao antigo celibato, mas acho que não mais!
As dificuldades são de facto, enormes , em todos os campos. Quanto mais se avança, pela vida fora, mais elas se acumulam! Bom! Mas eu intento agora uma coisa diferente! Projecto nada menos que investigar a causa de tanta deserção! Se não me engano, vou descobri-la, ao menos em parte, no sistema educativo com o nome de ‘síntese’. Era tudo imposto, dogmaticamente.
Mão se discutia nem se objectava! Mesmo já na Guarda, no Curso Teológico, os professores, de modo geral ( não abarco a todos), não aceitavam, pelo menos de bom grado, objecções à matéria e, muito menos, sérias discordâncias Um dentre eles até levava a mal!
Bem. Tal sistema é o que há de pior! Apenas engollr, sem digerir! As razões pessoais não interessavam! “O mestre disse: basta isso!” A quantos erros ‘ o mestre disse’ não está sujeito! Além disso o estudante pode ter, no momento, diversa posição.
Lembro-me agora dum facto assombroso, ocorrido em Roma, numa aula de Dogma . Era aluno, então, o urso dos estudantes, um distinto português, que chamavam Agostinho. Foi mais tarde bispo do Porto. O professor era, ao tempo, o cardeal Billot, considerado grande, entre os maiores.
Havia para tema “A Santíssima Trindade. Em dado momento, o famoso Agostinho apresenta, sem delongas , tremenda objecção, que faz suar o grande professor. Fica taciturno, pensa, aprofunda, sem dizer palavra, até findar a aula. Ouvindo o sinal, para os alunos saírem, diz ele então:” Nunca pensei que pudesse erguer-se tal objecção! Não sei responder! Peço oito dias para estudar o assunto e dar a resposta.
Não se deve proceder com intransigência, autoritarismo e dogmatismo! Se já o próprio aluno a achar o caminho! Partamos sempre do menos para o mais, do que é simples para o complexo. Guiemos, sim, mas não empurremos.Que seja o próprio a compreender, abraçar e deduzir!


Belém
13-3-1986 Cont.

Voltando uma vez mais ao assunto em em causa, faz-nos impressão o número vultuoso, 1ue logo desertou. Seriam traidores à causa da Igteja? Não os tenho por isso! Seriam imprudentes, inconsiderados ou então levianos? Julgo que não! Até porque muitos deles perdiam bons lugares, sem terem a certeza, quanto aos do futuro. No entanto, lançaram-se de cabeça, aguentando firmes as consequências!
Seriam apóstatas? Muito longe disso! Quantos eu conheço que ficaram fiéis às práticas de piedade, executando-as regularmente, como por exemplo: a Missa, ao Domingo, a reza do Terço e prestação de serviços, no templo do Senhor, como simples leigos.
Tenho para mim que foram antes vítimas do velho sistema, utilizado ainda, no Seminário: engolir sempre, sem digerir! Aceitar, por norma, sem digerir! Aceitar por norma, sem discutir! Avançar puxado! Que podia esperar-se da chamada síntese, aplicada a preceito na educação? Obedecer cegamente, como se fora autómato!
Justificando o processo, iam os Mestres dizendo, com muita frequência:” Quem obedece nunca se engana! Entretanto, o Superior está sujeito a isso! Hoje, penso diferente: não aceito o primcípio. Quem se engana prejudica outrem, sendo obrigado a fazer recuos. Quem é que já os fez, dando em seguida a mão à palmatória?!
Desdizer-se ou recuar houve pouco, no mundo, quem o fizesse ou utilizasse! Lembro-me apenas de Santo Agostinho! Houve mais? É natural! Apesar de tudo, contam-se bem! A propósito do assunto, vem à memória o Papa Paulo VI, que disse uma vez ao velho patriarca de Constantinopla:”Se fomos nós que tivemos a culpa, pedimos humildemente perdão aos nossos irmãos!”
Foi admirável essa atitude, embora ela não tenha o vigor e a beleza sem par de uma falta pessoal, que se confessa e logo repudia!
Aceitar, pois, deixar-se levar como pobre jumento que o dono conduz, puxando a arreata, dá péssimo efeito! Decorar apenas, receber opiniões e guardá-las sempre como arcanos celestes, é outro disparate! Não foi Descartes o autor famoso do Discurso do Método? Duvidar inicialmente e chegar à verdade, por esforço pessoal! Assim, conhecemos as razões, procedendo ali como seres racionais.
Abusar da memória, com dano grave para a inteligência, é outro fiasco. Entibia-se prestes o nosso raciocínio; debilita-se ainda a capacidade; afrouxa o critério. Engolir apenas, fazer montões, isso não chega e é perigoso. O que vamos decorando é fruto alheio que se vai empilhando, para logo esquecer-se. volvido algum tempo! O que interessa não é empilhar! Isso é de outrem!
Se o não entendemos, assimilando os conceitos, e estendendo o nosso campo de acção, nada aproveita! Fazer retiros em barda e rezar sem fim, por ser em impostos, nada aproveitam, uma vez que não penetram o cerne da alma. Imposições, ordens peremptórias, maneiras sacudidas e gestos ameaçadores fazem a tragédia que o amanhã nos dará.
É preciso, na verdade, que o pupilo raciocine, conheça as razões do seu agir quotidiano; seja consultado, para dar opinião; ouvido sempre, nos casos pessoais; atendido e ajudado, nos seus problemas; Numa palavra, ser tratado como gente e não como peça de grande maquinismo! Por caminho errado, obtém-se um manequim, um boneco animado ou um fantoche.
Agirá toda a vida como simples máquina. Se um dia raciocina e cai na razão, fica decepcionado e resolve o problema pela deserção! Volta costas ao fardo que lhe puseram nos ombros e, livre já de peias, faz rumo a seu mundo, onde pensa realizar-se
Não contrafeito, mas sereno e confiado, inicia a caminhada, pelo trilho escolhido. A ninguém pede aviso e corre para a meta. Sente pena imensa de ter sido ingénuo e de cide afoitamente não prestar deus ouvidos a contos de fadas! Quer vivas realidades: não fantasias a povoar-lhe o cérebro
Sendo tão perniciosos estes males que expus, urge combatê-los, com viva energia e pronta decisão. Reparar no aforismo: “Todos os conselhos tu ouvirás: só o teu tomarás!”
Ouvir, sim, mas sempre ficar no que parece melhor!


Belém
1986 Igualdade de Classes

É este o alvo do Socialismo. Não me cabe a mim fazer as leis nem criar sistemas de tal natureza. Entretanto, posso dar opinião e expressar o que julgo, acerca do assunto. Antes de mais, ponho desde já as seguintes perguntas: 1 .seria bom?; 2 .seria possível?
A partir daqui, aparece já matéria que dá pano para mangas.
Bom era, certamente, que os bens deste mundo ficassem distribuídos, com equidade, evitando assim, dois graves extremos que nos enchem de pasmo, surpresa e desânimo: o amontoar de riqueza, nas mãos de poucos; a fome e a miséria atingindo a grande massa da pobre Humanidade. Haveria para todos o que fosse bastante, banindo da Terra tantas injustiças.
Como seria o mundo, se houvesse pão e tudo o mais, em todos os lares, para cada um viver decentemente! Capitalistas duros, açambarcadores, usurários crus e vis exploradores passariam à História, levando consigo o ferrete da ignomínia, como única lembrança, degradante e abominável.
2 . Seria possível? Hoc opus hic labor ert (aqui é que está o busílis). ou aqui é que a porca torce o rabo! Ouso afirmar que não é possível! Portanto, é vão qualquer esforço, em tal sentido! Claro! Resta provar a minha afirmação. Não é difícil! Começo já!
Por incapacidade? Nâo é por isso! Apenas por falta de honestidade; por ambição desmedida, rancor e inveja. O resultado, na fatal inversão, era o que vinha em seguida: criaria decerto uma situação bem pior ainda que a primeira referida! Guerra civil, destruição e até inversões: n~ Dizer que é possível é mentir abertamente, já por maldade, já por miopia. Apear somente os que estão em cima e abrir um fosso maior ainda, criando assim maiores desigualdades, seria o resultado! Havendo para isso boa intenção, equidade e sensatez!
Mas não! É ver o que sucede, nos países socialistas (radicais). Os da cúpula é que têm tudo! São, a rigor, os novos capitalistas! Os do Partido creio terem o bastante: os opositores são os novos escravos do século XX. É esta, assim, a igualdade de classes?! Por tais razões, fundadas np que vejo, ouso então afyrmar que é utopia a situação invejada!


Belém
31-3-1986 Parábola do Filho Pródigo

Dentre as coisas belas que nos dão os Livros Santos, esta é, sem dúvida, uma das melhores. Encontra-se exarada no Evangelho de S, Lucas e mostra à evidência a grande misericórdia do Senhor nosso Deus, para com o pecador, quando ele se arrepende e volta aos braços do Pai amoroso.
Abandonado o lar, para viver livremente, vai dissipando bens e saúde Por fim, isolado e triste, reconsidera e chora. Ao longe, dois olhos se projectam, pelo vasto horizonte, aguardando o momento de vê-lo chegar. Sabe com certeza que dor e privações, desengano e logros irão trazê-lo à casa paterna.
Regressa o infeliz que é o pecador, e seu pai, angustiado, é o primeiro a vê-lo, ainda à distância. Vem já desiludido, sem bens nem esperança. Entretanto, seu p aguarda ansioso que ele se abeire, para acarinhá-lo e dar-lhe incentivo. Corre, pois, ao seu encontro, desfazendo-se em mostras que lhe saem do peito.
Está perdoado. Em presença do pai, amoroso, indulgente, reencontra a felicidade. Por tratar-se agora dum quadro tão belo, vou apresentar a narrativa em línguas diferentes: Francês, Inglês. Alemão e Português.
Vale a pena mergulhar nesta luz diamantina e ficar inundado.
Le fils perdu et retrouvé. The lost son. Der Vater und seine zwei Sohne. O filho perdido. 11 Jésus dit encore : Un home avait deux fils. 12 Le plus jeune dit à son père: Mon père, donne-moi la part de notre fortune qui doit me revenir. Alors le père partagea la fortune entre ses deux fils.
11 Jesus went on to say: There was a man who had two sons.
12 The younger one said to him: Give me now my share of hue property. So the nan divided the property between his two sons .
11 Jesus erzahlte weiter: Ein Mann hatte zwei Sohne,12
Der jungere sagte zu seinem Vater: Gib mir den Teil der Herbschaftder zu mir zustent. Da teilte der Vater seinen Besitz unter die beiden auf.
11 Jesus disse aunda: Um homem tinha dois filhos. 12 O mais novo disse ao pai: Dá-me a parte dos bens que me corresponde, E o pai repartiu os bens entre os dois
Belém \ 1-4-1986 \ ont.
13 Peu de jours après, le plus jeune fils vendit sa part de la properté et partit avec son argent. pour un pays éloigné. . Là, il vécut dans le désordre et dissipa aussi sa fortune.
13 After a few days, the younger son sold his part of tee property and left home. with the money, He went to a country, far away. whe re he wasted his money in reckless living
13 Nach ein paar Tagen, machte der jungere Sohn seinen ganzen Anteil zu Geld und zog in die Fremde. Dort, lebte er in saus und Braus und verubelte alles,
13 Poucos dias depois, o filho mais novo, juntando tudo e por partiu para uma terra lomgínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía., vivendo dissolutamente.
14 Quand il eu tout dépensé, une grande famine survint dans ce pays, es il commença à manquer du nécessaire.
14 He spent everythng he had.Then a senere famine spread over that country ans he was left without a thing.
14 Als er nicht mehr hatte, brach in jene land eine grosse Hungersnot aus; da ging es him schlecht.
14 Tendo gasto tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passer privações.
15 Il alla donc se mettre au service d’un des habitants du pays qui l’envoya dans ses champs garder les cochons.
15 So he went to work for one of the citizens of th at country who sent him out to his farm, to take care of the pigs.
15 Er fand schliesslich Arbeit by einem Burgerjenes Landes der schickte ihn zum Schweinehutten aufs Feld.
15 Então foi server a um dos haytantes daquela terra -, que o mandou para os seus campos guardar oorcos.
Belém
16 Il aurait bien voulu se nourir des fruits du carcubier, mais personne ne lui en donnait
16 He wished he could fill himself with the bean pods the pigs ate, but no one gave him anything to eat.
16 Er war so hungrich dass er auch mit dem Schweie-futter zufrieden gewesen ware, aber selbst dass verwehrte man ihm.
16 Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
17 Alors, se mit à réléchir, sur sa situation et il se dit: Tous lles ouvriers de mon pére ont plus de nourriture quils n’en peuvent manger, tandis que moi, ici, je meurs de faim.
17 At last, he came to his senses and said: All my father’s hired workers have more than they can eat and here I am about to starve.
17 Endlich, ging er in sich und sagte sich: Die Arbeiter meines Vaters bekomen mehr als sie essen konnen und ich werde hier noch vor Hunger umkommen
17 Caindo em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui morro de fome!
18 Je vais partir, pour retourner chez mon père et je lui dirai: Mon père, j’ai péché contre Dieu et contre toi
18 I will get up and go to my father and say: father,I have sinned against God and against you .
18 Ich will zu meinem Vater gehem und ihm sagen: Vater, Ich bin vor Gott und vor dir schuldich geworden.
18 Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei:: Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
19 Je ne suis plus digne que tu me regardes comme ton fils Traite-moi comme l’un de tes ouvriers.
19 I am no longer fit to be called your son! Treat me as one uf your hired workers.
19 Ich verdiene es nicht mehrdein Sohn zu sein. Lass mich als einfachen Arbeiter bei dir blieben.
19 Já não sou digno dr ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus jornaleiros


Belém
8-4-1986 Para reflectir

A formosa Parábola do Filho Pródigo, a que falta ainda a última parte, é certamente a mais bela de todas e o quadro mais eloquente. de qualquer Literatura, constitui um vasto campo, onde vamos deleitar-nos espiritualmente. É trágico descaminho, por levar ao infortúnio, à própria destruição, física e moral.
Entretanto, quando o pai do infeliz é todo perturbação, desassossego e inquietação, pela sorte de seu filho, enchemo-nos de coragem, admiração e ternura. A figura simbólica do Evangelho de S. Lucas é muito conhecida. Ao vermos o “Touro”, vem-nos logo à mente a misericórdia do nosso bom Deus!
É, na verdade, o formoso Evangelho da misericórdia. As entranhas belas do Pai do Céu revelam-se ali cheias de compaixão, interesse e caridade, no tocante ao pecador. Ainda atolado no vergonhoso vício, , esbanjando a riqueza e caindo no lodo, o Pai do Céu não sente repulsa. Espera dia e noite, olhando atento e estende os seus braços, para cingir o perdulário.
Quem antes de todos alcança o outro é o Pai de bondade. Seus olhos inquiridores, perscrutavam o horizonte, a toda a extensão, na mira de alcançá-lo.
Esse momento chega, por fim, correndo logo em sua ajuda. O insensato , que partira para longe, carregando seus haveres, volta agora desmedrado, pobre e infeliz. Entende, na dele, que o pai tem razão, para dar-lhe outro nome que não o de filho. Entretanto, sabendo que ele é bom, pensa que o aceita, à semelhança exacta dum Jornaleiro.
Já não era mau! Neste quadro vivo, humano e expressivo, é figurado o pobre pecador – o jovem licencioso, que dá livre curso
às suas paixões, Para satisfazê-las, abandona o lar amigo, onde seus pais se enchem de amargura. Cada dia que passa é mais um espinho a cravar- se na alma. O filho desnaturado, insensato e lascivo a tudo renuncia, para viver à larga, em terras distantes.


Belém
9-4-1986 Cont.

O simbolismo desta parábola é sempre actual, expressivo e real. A história do Pródigo é o quadro vivo da alma pecadora. Que faz, realmente o que volta costas ao Pai do Céu, repelindo seus braçps, carinhos e afagos?! Postergando seu amor, solicitações e crebros avisos?! Entregue a si mesmo, sem a protecção que recusara firme, resvala, noite e dia para o terrível abismo!
Que é o homem, sem Deus?! Pobre verme da Terra, sujeito a ser calcado. Tudo quanto faz é já conducente à destruição! Aborrece o que é eterno, fechando seus olhos às grandes realidades.: apenas se abrem para o que é passageiro, falso, ilusório! Os problemas do Além, a que não pode fugir, quase entenebrecem!
Tem olhos, sim, mas nada vêem; ouvidos, e não ouve ou então se ouve, nada escuta! É um infeliz, de olhos vendados para as grandes realidades! Esta é, realmente a via do pecador! Bem digno se torna da nossa compaixão! O que nos vale é Deus ser paciente e esperar bondoso até que chegue a hora da séria reflexão, que leve sem tardança ao arrependimento. As várias carências, decepções e amarguras contribuem para isso.
Amigos e amigas todos eles se afastam, ao vê-lo sem meios. É a hora de Deus, que nunca nos rejeita! Na história do Pródigo, que é, afinal, a grande trajectória do homem pecador, há um pormenor, que é digno de atenção: lançado na miséria, havendo já dissipado todos os seus bens, precisa trabalho para subsistir.
Surge-lhe então um senhor abastado, que o envia logo para os seus campos, dando-lhe por missão a guarda de porcos. Mais realismo não consigo encontrar! A imundície moral contacta ao vivo com outra imundície O porco, em geral, sugere porcaria: imundície vasta de toda a ordem: no corpo e no cheiro e no próprio local. Não é impressionante?!
Pobre rapaz! É tanta a fom, a necessidade e a mesma carência( a ânsia de Deus na alma pecadora!), qe até lhe sabia bem a comida dos suínos. Entretanto, nem isso mesmo lhe era permitido! Ao que pode levar a sensualidade,, o vício da luxúria! Derrube total de corpo e alma!
Somente em Deus podemos achar abundância em tudo quanto é delicioso. Importa sumamente caminhar a seu lado, neste vale de lágrimas!


Lisboa
1-8-1981 O nosso Carlitos

Acaba de chegar, da cidade invicta. Os seus 22 caíram a 30 do mês passado, razão poderosa que o levou, de facto, a marcar presença. nesse mesmo dia, pela manhã. Vinte e duas primaveras; os pais ainda vivos, embora achacados; segundo ano da Faculdade, em circunstâncias indesejáveis e quase impossíveis, criadas e mantidas pelo Abril-25 a este jovem angolano, são razões forçosas , para celebrarmos juntos, a sua vitória.
O alvo aproxima.se: faltam só três anos! Aos 25, Engenheiro, electro-técnico! Um belo ‘canudo, mas universitário! Dura caminhada, com termo glorioso! Este objectivo move-nos a todos! É um sobrinho que honra a família, pelas suas , qualidades: tenacidade, amor a Deus e à família, espírito nobre de caridade, amor ao trabalho, modelo a imitar como cristão e como cidadão e como cristão.
Entretanto, avultam e crescem as dificuldades: doença do pai; falta de recursos; vida assaz ingrata trouxe para eles o 25 de Abril.
Para ultrapassar obstáculos assim, esmera-se em extremo e tudo ele arrusca. Por estas razões, vem escaveirado, magrinho e pálido, Vai ele recuperar?! O mês de Agosto será decisivo, pois nos seguintes há trabalho a fazer: cadeiras em atraso. para o mês de Outubro.
Que o Céu o proteja e cubra de bênçãos, para conseguir o que tanto deseja! Será motivo de gáudio o dia venturoso, em que ele ponha o ramo.


Vide-Entre-Vinhas
1-1-1971

Por favor do Céu, mais um ano desconto, no rol da existência. Não é longa, não, bem entendido, mas foi mais extensa que a de muitos nascidos. Por isto, exactamente, Vos rendo graças, meu Deus e Senhor, pedindo ansioso, no limiar do novo ano, que me ajudeis com vossa graºa. para que o passo em frente venha determinado a servir e amar.Vos ,sem a mínima reserva!
Após estas palavras, endereçadas, com todo o fervor, ao Senhor meu Deus, dirijo-me a ti, Diário amigo, pois foste na vida fiel companheiro, em horas de alegria como de tristeza! Pronto, a cada hora, jamais rancoroso, a ti devo. sem dúvida, as horas mais gratas. Em tempo algum te vi fazer o jogo dos hipócrtas: bem ao contrário, a tua singeleza tem-me edificado!
Amigos falsos e harto dolosos, hà muito se postaram nas veredas que eu trilho, sendo tu, nessas horas, leal e risonho, acolhedor e assaz benfazejo! Recebendo generoso os queixumes da minha alma e guardando avaramente a confissão generosa dos meus segredos, foi em ti somente que eu pude repousar, descansando tranquilo meu peito amargurado.
Por certas razões que seria longo expor de momento, assim como por outras, confesso-me gato a esse bom amigo, que nunca usou astúcia nen foi fraudulento. Sempre igual e sempre franco, amigo lhano e sincero, que prezo sem limites, continuarei fervoroso a render-lhe meu culto, no mais íntimo do peito. Aqui tens, doce amigo, um altar deslumbrante, adornado com flores que a minha am te oferece.


Vide-Entre-Vinhas
2-1-1971

Diz o povo, com razão, que deve ser bom o princípio de tudo. Desta vez, porém, verifica-se o contrário: o início do ano foi de tempestade! Que dia horrível o de ontem já! Neve sem medida! Frio penetrante, agudo e álgido! Vento sempre ihquieto e deveras molesto! Sair â rua ? Nem pensar em tal! A gente arrepia-se, até dentro de casa! Não havia decerto lume que bastasse! Desolação e grande incerteza!
Que aspecto sorumbático mostrava, já ontem a abóbada celeste! Carregada e cinzenta, de escuro intenso e harto inconsolável, pôs desde logo alvoroço no peito e funda inquietação na alma dorida! A noite fora horrível! Envolto em cobertores, nem podia revirar-me! Entalava a roupa, esfregava os pés, um contra o outro, encolhia-me em seguida, para logo distender-me! Tudo sempre em vão! Um frigorífico este braço da serra!
Não me lembrava de coisa no género! Levanto-me já tarde, assomando â janela! Um deslumbramento! A serra imensa, o vasto horizonte, montes e vales, vilas e aldeias, tudo amortalhado em branco lençol! Nem vivalma, ao longo das ruas! O silêncio da morte? É provável que sim! Tudo emudeceu, recolhido em seus lares! Só um cão exrraviado contemplava surpreso o grane estendal!
Quanto ao mais, a quietação tumular! Avultavam apenas, aqui e além, desmesuradas cristas de altos rochedos, aconchegadinhos e harto inclinados, para assim resistirem ao frio glacial! As plantas constrangidas tentavam equilibrar-se, num esforço hercúleo, para não soçobrarem.
E a neve caía, rolando às mãos cheias, em flocos doidejantes, que infundiam tristeza e geravam desalento!


Vide-Entre-Vinhas
3-1-1972

“Não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature!”
Chegou a isto, exactamente, a sabedoria de povos e nações. Não vou eu desdizê-lo, que tenho em muito a experiência das gentes. Se o passado tem sombras, apresenta igualmente belas páginas de luz. Aconteceu ontem.
Após um dia horrível, que jamais olvidarei, visita-nos hoje um sol quentinho e deveras radioso, qual doce primavera! As crianças buliçosas invadem a rua e, às abrigadas, lá se encontram velhinhos, aquecendo gostosos seus membros transidos. A neve, porém, mantém-se ainda, figurando dormir em leito de arminho. Dormirá ela, por arte de Deus?! Bem parece que sim, mas o Sol , com seu ardor, vai fazê-la acordar.
Lentamente, é verdade, mas ei-la a despertar, espreguiçando-se breve, nas encostas declivosas, por onde vai escorregando , para mudar seu estado. Grandioso quadro, lição maravilhosa dos estados da matéria! Como o Sol é grande, benfazejo e protector, sendo causa eficiente, ao operar tais coisas!
Vem das nuvens a água e, por baixa sensível de temperatura, ao descer na atmosfera, solidifica um pouco lentamente. Ei-la assim agora, pondo tudo branquinho e sendo para os novos prazer inolvidável! Vem logo, já se vê, a batalha da neve, os bonecos pitorescos e outras diversões que alegram as crianças e as fazem cismar!
Desceu mais ainda a temperatura, pela noite demorada. Aclarou o céu, qual espelho de cristal, arrefecendo tudo, à superfície da Terra. É a geada bem como o gelo, que matizam já tudo, criando aspectos novos que deleitam as crianças. Congelou-se a água e gelou a neve, aguardando pacientes o advento do Sol, para despertarem do sono profundo, em que haviam mergulhado.


Manteigas
5-1-1972

Deixei hoje a minha aldeia, encontrando-me a postos, no lugar do trabalho. Fazia-o no passado, com grande euforia, por ser muito rendosa esta quadra escolar. Hoje, porém, retomo o labor, já sem interesse! Custa muito ensinar quem não quer aprender! E quem se prende a valer a dadas extravagâncias, que nada têm a ver com assuntos escolares?! Por isso, não vibro nesta hora, em que reinicio o meu duro trabalho.
Cumprirei o meu dever, tendo plena certeza de que é vão o meu esforço., inútil, sim, o meu lidar! Motivação forte, para deixar o ensino. Que é que me prende que o não faça já?! Desilusões amargas, a cada passo que dou! Decepções, a toda a hora! A medida está cheia e, quando isso acontece, nada vale tentar!
Esforçar-me-ei, no entanto, para que algo renda o meu cuidado, a fim de que as turmas lucrem o possível. Acabado este ano, outro mais avançarei, mas não quero repetir esta angústia inquietante!
Deixei neve em Celorico, acho neve aqui também! Dentro e fora, é só gelo! Ambiente insuportável! Treme sempre a alma, sofre o corpo também! Mergulho eu todo em grande frieza! Nada aquece a minha vida, que se arrasta ingloriamente! Onde falta incentivo, nada importa o lidar: é a morte que se move: não a vida que estagnou!
Ouvi dizer há pouco a certo pai jovem que , ao entrar em sua casa, logo foge a tristeza e os cuidados se apartam!. Ao regressar do trabalho, que é, por vezes, doloroso, leva a alma atribulada e o seu coração em ânsias fundas! Entretanto, vem prestes o milagre: o garrular da filhinha, que só conta 8 meses, é logo panaceia para todos os males, angústias e dores!


Manteigas
6-1-1972

A mulher que se admira e pela qual o homem vibra será prestimosa em quaisquer circunstâncias? É ponto sério a considerar, razão pela qual exige atenção. Sendo ela, na verdade, companheira desejável, complemento do homem e apoio na vida, nem sempre acha estímulo. para ajudar o sexo forte.
Unicamente em família, com os filhos que estremece e o esposo que ama é capaz de revelar-se, em toda a grandeza. Fora deste caso, não fio muito dela ou então quase nada, à excepção, claro está, da Religiosa, chamada por Deus ( não pelos homens). Vocação espontânea, madura e preferida, vive plenamente um ideal superior. Ainda aqui, fica decerto em plano inferior, tirando o caso de santidade autêntica.
Mas isto que digo, verifica-se apenas em casos singulares, enquanto na mãe, é facto universal. A nível das primeiras, acompanhando-as de perto , situam-se também as que amam no silêncio. constrangidas talvez por ditames sociais ou costumes venerandos de seus maiores que não ousam infringir. É um caso de simpatia ou amor assolapado que, para o efeito, age decidido.
À margem do exposto, não esperemos de seu peito egoísta esse belo tesouro que muito invejamos. É mais fria que o homem, indiferente e injusta, arrogante e ousada. Exige adoração, e ambiciona o mando; é déspota e vil, em extremo grau; sobremodo antipática. E quando já passante verdadeira tia que a ninguém interessa!
Aí tendes vós o modelo acabado que se diz “alcoviteira”, mas encartada! Tudo ela sabe, tudo inventa e cria , modifica tudo.


Manteigas
7-1-1972

Aos pés do Ginjeiral, ergue-se humilhada, ia até dizer enterrada uma casa antiga, com visos de solar. Fica em Vide-Entre-Vinhas. Foi Escola Oficial, durante longos anos, a que se prende, ao de leve, a minha adolescência. Apresenta cornija para Norte e Poente, sendo a fachada Norte lavrada em cantaria. Sul não existe: a propriedade contígua nivela-se ao telhado
A nascente, o barranco da Portela ou melhor diria, o ribeiro da Bica.
De qualquer lado que a procuremos, não tem vista nenhuma, ignorando-se o motivo por que ali a construíram. É velha tradição que pertencera, em tempos , a um capitão, chefe de ladrões. Que haverá de verdade, em tal afirmação?! Certo é, ninguém duvida, fazer parte integrante do Casal Valente. No tocante ao mais, tudo são conjecturas!
Pois a Casa tão falada rendeu agora a bela soma de 150 contos! Bem mal empregados! Dinheiro tão mal gasto jamais eu vi! Sepultura mais perfeita será raro encontrar! Que lhe falta para isso ?! Humidade tem que baste, pois ressumbra das lojas e da fachada que dá para Sul. Simulacro de lojas, isso é que é! Escuridão também não falta! Não lhe vedaram u Sul?!
Donde vem a luz e bem assim o próprio calor?!


Manteigas
13-2-1972

Quanto mais conheço os homens e estudo o seu viver, mais detesto e abomino a sua perversão. É exacto afinal o que lá diz a Imitação de Cristo, a este respeito:”Quanto mais conheço os homens, menos homem me sinto”. De facto, à medida que roda o tempo da existência, mais e mais se avoluma o cinismo e a doblez.
Devia ser ao contrário, pois tumba aproxima-se e com ela também o ajuste de contas! Infelizmente, porém, não é deste modo! A malícia agiganta-se , aumenta a falsidade e a hipocrisia medra e viceja. Que fazer então? Endireitar o mundo? Isso não me é dado, que nem Deus mo pediu, mas, em boa verdade, fico apreensivo, de ver trafulhice e mil desconcertos! Não é de facto gostoso viver num mundo aparente, em que a doblez é rainha universal!
Prender-se a quê?! Falar para quem e acerca de quê?! Será grato alguma vez ouvir, sem interesse, conversas chochas, que não podem jamais aliciar alguém?! Não vale muito mais encontrar-me sozinho do que mal acompanhado?! Mas como é desolador olhar sempre à minha roda e não ver senão paredes?! Se elas falassem, podendo sentir! Impossível! Ficam mudas, estáticas, perante a minha dor!


Manteigas
14-1-1972

Levanto-me prestes e assomo à janela, a fim de inquirir, acerca do tempo. Há coisas pendentes: calçado e guarda- chuva, peças de vestuário… Conto, às vezes, com chuva frequente; no tocante à neve, sou menos atreito! Talvez seja, meu Deus, por eu a não querer, que me faz pirraça? É que ela, de facto, cobre totalmente a face da Terra!
Não fora eu avesso, deveria espera-la, visto que a morada é na Serra da Estrela, mas intento conseguir, por meio da repulsa, que ela se afaste. Insensível, porém, e sempre desdenhosa, nada lhe importando que gele o meu corpo ou fique desconsolado, ei-la pressurosa, caindo em farfalhas. à volta de mim! Como ampla mortalha, resguarda ciosamente o corpo inerte da terra adormecida.
É tudo branquinho: os telhados das casas, pontes e caminhos, hortas e devesas, vales e montanhas. Lembra o maná que os Judeus utilizavam, no seu longo caminho, para a terra formosa da Promissão. Mas isto aqui é de outro modo. Enregelado, tremo, angustio-me. Nada ouço em redor. Emudeceram já os belos passarinhos e também as crianças. Os próprios velhinhos, tiritando e gemendo acolheram-se logo na lareira amga…
Ouço apenas, lá no fundo vale os protestos assanhados do rio Zèzere. contra as margens rochosas e outros obstáculos . Emudeço também, e a frieza da neve infiltra-se em mim , fazendo assim gelar todo o meu ser.. Que martírio este, Senhor meu Deus! Durante o ano inteiro, so neve e sempre neve :já perto, já longe, está ela ao alcance de meus olhos tristonhos!


Manteigas
15-1-1972

Dizem ser a neve motivo de inspiração. Não ouso negá-lo, que respeito muito a sabedoria: aprecio igualmente a opinião do meu semelhante. Por outro lado, eu sinto a beleza, quando ela me fala e convida logo a reflectir. Entretanto, sepultado em vida, neste fundo covão, onde o Sol é encoberto e o luar furtivo, terei efectivamente alguma disposição para sentir?!
Ao longe, assim julgo, seria belo talvez, debruçar-me contemplando e, se o cso impelisse, abeirar-me ainda um pouco mais. Viria até de Lisboa ou zona mais distante, embeber-me neste mundo , que aborreço e detesto
Ver sempre neve, calcá-la amiúde, sentir-lhe os efeitos, esfriando-me o corpo, é deveras triste e muito desolador! Dir-se-á que não sinto?! Não é isso! Fico inibido, quando tal acontece! Ainda em Novembro, quando não em Outubro, apresenta-se logo, na encosta da serra! Uma vez ali, vai ganhando terreno, jamais se afastando, para torturar-nos aqui em baixo.
Cono anel cruciante, que nos oprime e constrange, lá se vê a toda a hora, nofando de nós! Levantando os olhos, nada eu vejo senão a ela! Poderei, realmente sentir algum frémito, na alma gelada?!Não me digam que é bela, vista assim noite e dia! Bastava a monotonia, para quebrar-lhe o encanto.
Saturação e tédio é o fruto constante, que a neve me oferta, durante o Inverno!


Em Viagem
16-1-1972

Abundante em casos e muito variada foi esta viagem, a caminho de Manteigas. Ao partir, já nevava, erguendo-se às vezes rajadas violentas, que punham em pé os cabelos todos, Ora neve ore chuva, quando não lufadas grandes de vento ameaçador! Estando em casa é fácil observar o decurso dos fenómenos, entretanto, mudam as coisas, se é que nos encontramos fora de abrigo.
Foi o caso de ontem, ao subir para a Guarda, que goza há muito de fama e proveito, no tocante â neve. Acelero diligente e sempre a fundo, para furtar-me a perigos vários. O certo, porém, é que era já tarde! Deveria, julgo eu, haver partido bastante mais cedo , mas quem é que adivinha o que sucede, por vezes, aí no mundo?!
Bem exacto o provérbio: “Ninguém diga - desta água não beberei!” Eu que tanto me acautelo, fugindo por norma a viagens, pela noite, aconteceu-me agora desdizer, na prática o que tinha afirmado por via oral.
O caso foi o seguinte: após o chafariz, que chamam ‘do Bispo’, na vertente alongada, que leva à Guarda, a minha viatura começou a resvalar, porque a faixa da estrada volveu-se em breve num espelho reluzente!
A neve caía, tornando-se ali harto perigosa. Às vezes, parecia um inferno! Água e neve, vento em fúria, uma tristeza quase infinita para quem vai só! Isto de conduzir, em más condições, iguais às de ontem! Só visto w observado, para descrever-se! E, no fim de tudo, o receio apavorante de ficar uma noite enregelado e só, não tendo assistência! Quem passa ali não se detém! A noite – o grande espectro!


Manteigas
17-1-1972 Momentos dolorosos

Conservo permanente a imagem de horror que ontem me prostrou. O Taunus 17, resvalando pela neve, atravessa-se na estrada, com rumo à valeta. Que desespero! Acelero fortemente, quase em delírio, havendo engatado logo em primeira
Ao perto e ao longe, deslizam veículos, enquanto eu, agindo com inépcia, fico retido no mesmo lugar! Penso até numa avaria! Suplico humilde que alguém se condoa, na triste conjuntura! Mas quem atende o triste condutor, que tem o carro a fugir-lhe?!
É noite. Urge ganhar tempo! Os outros passam e eu é que não! Fico na estrada. Habilidosamente, os outros lá se esgueiram, utilizando as bermas e eu quedo-me nervoso, olhando tristemente para o alvo lençol Tenteio o calçado: escorrega e amedronta! Parece-me vidro a faixa de rodagem!
Engato novamente e acelero o motor. É tudo em vão! A valeta! É este o perigo! Após ela, a ribanceira! A traseira do carro já roça de perto! Que fazer? Manter a calma? Mas se é noite, em breve espaço e corro perigo de ficar no estendal’ Nem povoado nem alma caridosa!
Encomendo-me a Deus e também aos Santos, que od homens não me valem!Não poderão talvez! Como é dura a vida! Viajar sozinho e não ter ninguém que me acompanhasse, para ajudar no duro transe! O vento agora é já furioso, arremessando-me ao rosto, em crebros torvelinhos, neve gelada que não acaba!


Manteigas
18-1-1972 Sacralização

Fazer do rapaz, candidato ao sacerdócio, um ente àparte, era ideia primária, no seminarista. Ele era diferente de todos os mais, por isso mesmo devia assumir atitudes diferentes. “ Segregatus a populo”, ( separado do povo), este era o sentido, mas agora dão-lhe outro ( tirado dentre o povo. Bem parece, afinal, que a segunda versão é mais de aceitar.
Por motivos, já se vê, de erradas concepções, o rapaz sugestionava-se, pensando, na verdade, que formava casta! Vestia de outro modo, sendo escravo da cor; as suas palavras, harto pesadas e sempre graves, serão edificantes; o seu olhar, em regra furtivo, ; os modos habituais comedidos por força e temperados; a maneira se viver, em completo isolamento, constituindo excepção apenas aqueles actos que exigissem presença.
Sendo outro Cristo, devia falar d’Ele: por isso a existência havia de ser um testemunho vivo. Fumar, nem or sombras! Quanto ao beber, a máima cautela ainda era pouca!
Escusado afirmar que tudo isto foi vão ou ainda melhor, que deu fruto negativo! Efectivamente, a sociedade em geral repele e rejeita quem se apresenta com hábitos diferentes e, quando o não faz, afivela breve a máscara de recurso, aparentando algum tempo aquilo que não é. Sendo isto assim, era tudo fachada
Jamais o candidato, de batina aos 12 e cabeção aos 15, podia ser benquisto, no meio da sociedade! Fazia por hábito e faz ainda figura diferente: os outros fumam e ele não; os outros bebem, e ele receia; os outros riem, mas ele então assume, para logo, ares de gravidade.
É um ser estranho! Alheio a tudo, ninguém o tolera ou então só de máscara!


Manteigas
19-1-1972 “Matou-se o padre Caio”

Como dobre a finados, soaram dolentes as palavras sinistras! Seria verdade?! As ovas deprimentes, por mal de pecados, nem sempre enganam! Que grande tristeza! Que motivos fortes o haviam de levar a tal desfecho?! Dizia-se, por aí, que era mal tratado pela consorte!
Porquê?! Não seria o infeliz já bem desventurado ?! Atirar-se abaixo dum 4º andar, para acabar seus dias, por modo tão cruel?! Que mulher foi aquela, raça de víbora, peçonha diabólica, para causar tamanha desgraça?! Por que não aqueceria ao inditoso padre o Sol benfazejo?!
Tal remate de vida supõe, com efeito, se eu bem aquilato, um abismo enorme de negridão E ninguém o libertou daquele desatino! Escassearam, neste mundo, almas generosas, que ajudassem pronto aquele desgraçado?! Vi-o só uma vez, quando ele exercia! Foi, realmente, na linha da Beira Alta. Ofereceu-me então uma bela estampa, que guardei longo tempo.
Viajava eu, pela primeira vez, rumo ao Fundão, onde iniciaria os primeiros estudos. Quem tal diria, nessa ocasião?! O diabo tece-as: é bem verdade! Como eu te lastimo, pobre colega! Que Deus tenha pena e jamais tome em conta o final desgraçado da tua existência, que foi atribulado e carente de razão! Foi loucura certamente que tu não eras capaz!
Oxalá que o Senhor, rico de misericórdia, não faça como nós! Vendo lá do Céu, tua enorme desventura, queira em breve receber-te nas eternas moradas!


Manteigas
20-1-1972 Irresponsabilidade?

Será crime o suicídio? Considerado em abstracto, quer isto dizer, desligado inteiramente de circunstâncias várias, que neutralizam, às vezes, ou pelo menos, atenuam bastante a sua gravidade, é reputado falta muito grave., pois viola direitos, que só a Deus per t encem., como autor e Senhor da vida humana. Ele é, de facto, único proprietário de quanto lhe pertence e nós administradores.
Entretanto, se atendermos ao caso, em seus pormenores, encontramos quase sempre motivos fortíssimos, que lhe tiram, na verdade, o aspecto condenável. Quem vai atentar, contra aquilo que mais ama?”Que não faz alguém, para defender e conservar a sua existência? Recurso a Médicos, ingestão de remédios, e sei lá que mais?!
Se alguém actua diferentemente, fá-lo por loucura: pode não tratar-se de loucura persistente ou ainda habitual, mas actua de igual modo. No momento fatídico, a paixão absorvente sobreleva de tal maneira ao próprio raciocínio, que o impede ou ofusca.
Dominado o homem por ideia forte, qual mola pertinaz, que o força e constrange, é levado à deriva em todos os sentidos. Motivos os mais sagrados, razões as mais santas, fica tudo obscurecido, face ao impulso, que arrasta e domina, sem barreira a opor-se.
Que fará o nosso Deus, em casos desta ordem? Tenho para mim que Ele olha ao passado e nele se estriba.


Manteigas
21-1-1972 O Futuro das Memórias

Que destino o teu, Diário amoroso, a que eu não auguro uma existência feliz?! Vives encoberto, há longos anos, sempre velado. mudo, silencioso, com vista a impedir olhares indiscretos. Vegetas paciente, envolvido em sombras, abstendo-te ao máximo de aparecer à luz. Para que usas de tamanho cuidado)! Não sabes, por ventura, que assuntos delicados, humanos, prementes já hoje se tratam em plena luz?!
Apesar de tudo, nada há resolvido, sobre o teu porvir! Terás por ventura, direito de nascer ou serás condenado a eterno silêncio?! Vou alindar-te, corrigindo paciente os originais, para que o teu advento não seja vaiado! Desejo vivamente que a forma exterior não manche a tua origem nem desdiga excessivamente de quem te gerou!
Ostentarás, sim, roupagem humilde, mas airosa e limpa! Gostaria imenso que não fosses apenas conduta de sentimentos e foco de ideias que é preciso rever, mas trajasses ainda num estilo harmonioso, co algo de pureza, para assim honrares, de algum modo aceitável, a língua de Camões.
Infelizmente, porém, não tenho envergadura, que a tanto me habilite, embora sobeje vontade e esforço e não falte ambição! Ficasse tudo à mão! Que a roupagem não desdiga nem ela me sujeite a censuras merecidas. Zoilos e críticos não os temo, por certo. Apesar de tudo, receio e temo que algumas vezes a razão maior esteja do seu ladu, ficando então eu de quinhão indesejado!
Exaltar a minha língua, dominá-la e servi-la, realizando um propósito, é a minha ambição.


Vide Entre Vinhas
22-1-1972 Saudade?

Aquela franguita dá-me voltas ao miolo! Nunca mais apareceu, escondendo-se em buracos e, quando fora deles, é raro demorar-se! A sua voz emudeceu. Ninguém mais a ouviu! Cabisbaixa e vergada, nem se lembra de comer! Espevitada e alegre, anteriormente, mudou por completo!
Chamada com insistência, alonga um tanto o magro pescoço, voltando em seguida à tristeza habitua. Aqueles olhos apagaram-se também e não vêem quase nada. Pôr ovos é coisa rara! Doença talvez?! Nada que se pareça! Perguntando ao Manuel qual seria a razão daquele abatimento, apressou-se então a justificá-lo, embora a tristeza se lhe visse no rosto.
Era, na verdade, uma franga linda, que fazia inveja a todas as pessoas. Cacarejava muito e punha tais ovos, que era um regalo! Sempre jovial, acorria à chamada e, ao luzir do buraco, já ela estava a pé. Agora, porém, tudo o vento levara! Mudança radical! O reverso da medalha!
A companheira ausente é que faz tudo isto! Ah!, atalhei eu logo, compenetrado! Ela não era só?!
Pois não! É isso que a mata! De pequenina, sempre com a irmã! Tão amigas eram, que anda agora inconsolável.
-- Que foi feito da outra?
-- Levaram-na há dias, para Lisboa ou melhor ainda, para Porto Salvo.
-- Essa agora! Não devíeis ter feito isso! É um caso de saudade, que impressiona a valer! Afinal, há também amizade, entre as vês de capoeira! Por que não mandais vir a companheira adorável?
--Oh!, volve ele compungido, a outra levaram-na, para a Leninha ter ovos, Fica mais forte a papinha de bebé!
--Pois sim! Coitadinha da franga que morre, de tristeza!


Manteigas
23-1-1972 Alargar os Horizontes

Após longo castigo, é belo sumamente arrancar do Covão, indo por aí fora, em demanda persistente de novos horizontes. Foi o que sucedeu. Pelas 10 e pouco, largo açodado, para lançar-me em paragens de sol. Faço logo caras à vila do Fundão. Havia já muito que tal desejava, mas a neve e o tempo vinham pôr veto. Hoje, porém, não foi assim!
O sul dourado, batendo amoroso na crista dos montes, parecia acarinhá-los, ao passo que os olhava, com extrema bondade. Era o despertar do sono hibernal, que tinha seus visos de não acabar. Um sol de ouro, risonho, quase estonteante!
Parto seguidamente e vou de longada, volteando célere, pela velha estrada, em fartos ziguezagues. Há, naturalmente, algo a espevitar-me. O meu veículo, entorpecido ainda, mal podia avançar, devido ao nevão, que dias antes o havia colhido. A desforra é bela, em casos destes.
Enlevado e preso nos meus pensamentos, depara-se-me um quadro, assaz horripilante: em banco largo, baixo e sólido, jazia impotente gordo suíno, já branquinho de neve! À sua volta, braços musculosos iam dando já os últimos retoques.
A violência, a tortura, a maior crueldade e a insensibilidade haviam feito do animal perfeito cadáver!


Manteigas
25-1-1972 Saturação

Acabo de chegar do 4º ano de Inglês. Que desolação e incrível horror! Aquilo só visto! Coisas repetidas e já repisadas são para os alunos outra novidade! Já não dá gosto exercer a profissão! Fugir para longe é que seria mais desejado. Nunca mais ouvir falar, esquecer a matéria, olvidar tais alunos! Chego a ter pena de tais nulidades. Melhor diria, talvez, cábulas de marca!
Que é que pensam da vida?! Como intentam vivê-la?! A expensas de alguém, extorquindo o que outrem ganha, de maneira honrada, à custa d e de seus braços?! Roubando, às escâncaras e ferrando o cão, à maneira de gatunos ou vigaristas?!
Que sociedade, afinal, será esta depois, em que os pobres mortais se esfolam e devoram, quais lobos famintos?! Marimbam-se muitos para esta juventude! Só chuva de fogo , com dilúvio de coriscos meteriam a direito a gente de agora! Respeito, é claro, as excepções.
Não há capricho nem brio nenhum, que estão fora de moda!
Estou deveras enjoado com tal proceder! Atirar a lombeiros as pérolas do saber é mais que idiotice! É crime nefando! Estupidez rematada! Quem me dera brevemente esquecer e debandar! Aposentado ficaria tranquilo: comendo em paz, viveria mais tempo!
Que vem, afinal, de aulas forçadas, em que reina o descuro, alastra a preguiça, junto com apatia?! Que me presta repetir, esmerando-me em processos?! Riem-se de mim, sem que possa obstar!


Manteigas
26-1-1972 Incutir um Destino

Talhar o destino ao ser racional! Meu Deus do Céu, como é possível? Pegar em alguém, amordaçar-lhe a vontade, como se fora uma coisa banal! Deitar às sortes o futuro do homem! Obrigá-lo a gostar do que ele não gosta! Enganá-lo sem pejo, dizendo ser Deus que assim o quer! É preciso ter bossa e agir sem vergonha! Quem garantiu que Deus assim o quer?! Por que arrogarem-se poderes de de excepção?!
Iriam jurar que assim é, de facto?! Que vai ser de uma criança, que envolveram, tenrinha, em longa camisa de 7 varas?! Mandaram-na olhar em sentido único, proibindo qualquer outro. Mais: asseveraram-lhe, amiúde não haver mais caminhos e que, tomando outros, seria desditosa!
Não será loucura?! Insensatez mais pedante creio desde já não ser possível Forjar, levianamente, o destino de alguém! Ousar sem rubor, distorcer a natureza, usando para tanto, de argúcia e cálculo! A criança infeliz, entroncada e segura, crê fielmente ser aquele o seu destino! Imbuíram-na, sem pejo, de conceitos humanos, encheram-na de espanto, fizeram dela uma coisa vil!
Retorcida, amesquinhada, ei-la trilhando o chão pedregoso e inseguro que Deus, por certo, vai desaprovar! Onde a liberdade e o poder realizar-se?! Será, no porvir, aquilo que não quer! Um fantasma de pessoa, infeliz como tantas!
Cada un seja livre na escolha do seu trilho! Aqueles que se atravessam no caminho de alguém, a impor desvios, seja isso ainda com fim honesto, são criminosos e, como tais devem ser punidos. pelo abuso grave da liberdade.


Manteigas
27-1-1972 “ Odeia os erros: ama os homens”

Foi Santo Agostinho que lançou no papel este belo conselho. A síntese profunda do famoso dito põe logo a claro o seu talento, deveras peregrino. Ao mesmo tempo, é norma segura, que elucida e guia. Odiar os homens não é de cristãos, como bem se presume, em face do Evangelho..
O ensino persistente de Jesus Cristo não admite jamais qualquer pequena dúvida. “ Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”
O Mestre assim fala e a sua palavra é fonte de vida. Os erros, porém, não proíbe detestá-los: consentir neles desvirtua a existência. Concretizando: não me conformo, de modo nenhum, com o processo na educação. Embora tardiamente e quase a título póstumo, levanto o meu clamor! Sempre a mesma linha, em porfia contínua, para fazerem mais ma vítima!
Cercado então de mil cuidados, embalado geralmente por música celeste, deixei-me levar - coisa bem fácil , na minha idade.
Quanto ao meu lar, embora rejeite a maneira utilizada, não me atrevo agora a culpar os pais, assacando violento a responsabilidade! Prior e professor, em meios humildes e analfabetos, são oráculos vivos.
De maneira especial, o pároco de aldeia que, afinal, era um homem são e bem intencionado. Mas, segundo o povo, só ele conhecia o mundo e falava de Deus como um profeta! Quem duvidaria da palavra sincera, a que juntava, habitualmente, o exemplo incitante da sua vida privada?!


Manteigas
28-1-1972

O que é não ter lar! Viver neste mundo, sem carinho nem arrimo, à maneira de escravo, que a sensibilidade tortura e deprime! Por outro lado, sem uma voz, algo estremecida, uma palavra doce, um olhar de meiguice, para afastar cruezas e, ao mesmo tempo dispersar nuvens densas, que impendem sobre mim.
Que digo eu, meu Deus?! Queixar-me por dores e rirem de mim! Pedir atenção à comida usual e fazerem sempre a mesma coisa! Quando não dói, a voz é indiferente, o grito uma aragem, um gemido cansado, que o vento arrebata, deixando de soar, ao transpor dos umbrais! Quem se rala comigo?!
Dói-me o corpo todo e sinto febre na alma! Insónias constantes! Indisposições ! Lamentos perdidos! Tudo isto, afinal, por causa do alimento, que é muito danoso para o organismo! Que vida a minha! Onde mora a caridade?!Relegada para o Céu?! No mundo em que vivo é flor que não encontro?! Egoísmo, sim, por todos os cantos! Esse abunda, com certeza! Não posso já com tal indiferença!
Moldado noutra forma, estranho profundamente o que vejo fazer! A formosa virtude é somente aparência! De facto, heroísmo é apenas a casca! De santidade nada mais resta que o nome soante! E que dizer, se falamos de pronto em mortifcação?! Comem que se desunham, cevando por este modo, corpos disformes e pondo em seu bojo, repleto e nédio, o fruto da ambição bem como da gula!
Aos outros míseros aconselham uma lei: a eles então apiicam já outra! Seria fácil medrar qualquer sociedade, feita de glutões. Infelizes, sim, os pobres doentes ou vítimas imbeles da sua jurisdição! Refiro-me sempre aos bem instalados e grandes burgueses!


29-1-1972
A hipocrisia foi, desde sempre, uma chaga social


Manteigas
5-2-1972 Desertores?

Aparentemente, é exacta a palavra. Não vou dizer agora se fazem bem ou não. O que eu reprovo, assaz indignado, é o modo como o fazem. Efectivamente, se a Igreja, de facto, lhes abre as portas, o que é já um favor, olhando à tradição, não devem menosprezá-la, actuando como cínicos. Fugir alguém ou então esconder-se, fingir alguma vez ou tapar o jogo nem é leal nem de aprovar. Mais alta a dignidade, mais deve respeitar-se!
Se realmente não quisermos venerá-la em nossa pessoa, atendamos então a quem nos circunda. Talvez outros muitos , para serem fiéis, façam da vida luta constante , e da existência verdadeiro martírio Não atiremos, pois, à cara dos heróis, côa a lama da vileza! Sou há muito de opinião que ninguém esteja inconformado nas fileiras eclesiásticas. Quem não tem vocação, entrando pela porta que a Igreja elaborou só tem um caminho e deve trilhá-lo, no prazo mais curto.
Não fazendo assim, é na verdade, refalsado ladrão de uma causa santa e vive entalado em molesta camisa de 7 varas. Que diríamos dum peixe, estando fora da água?) Se conseguisse acaso viver algum tempo, fá-lo-ia, decerto, com a máxima tortura! Fora, pois, das fileiras, onde só devem ficar aqueles que Deus chama e sentem no peito a chama do zelo! Fariseus e ineptos, arranjistas e burgueses ou outros ainda que podem eles fazer por uma causa santa?! Qual é o seu zelo?!
Em que pousa o seu espírito?! Que é o que os move, sempre que actuam? Segurá-los para quê?! Seria meritório ajudá-los a sair e imprimir-lhes marcha veloz. Nem eles actuam nem deixam actuar!


Manteigas
6-2-1972 Noite de Temporal

O vento do sul empurrava-me a janela, sendo necessário calçá-la e rigor. De outra maneira, faria de matraca, para eu não dormir! Nisso, fui prudente. Simples mola da roupa… tudo sanado! É uma janela idosa, com ares de cansaço. A exposição gastou-a já toda, corroendo-lhe as formas, e tornou-a logo desengraçada, triste e lastimável. Fendas e buracos espreitam por todo lado, havendo também falta de aderências.
Isto facilita a ventilação, que pode ser agradável, no mês de Julho, mas deveras molesta, nos outros meses. Com um metro de altura e 90 de largo, representa a vida, no quarto humilde por mim habitado. Antes de mim, fora já ele da própria criada, que o largou de vez, por a ‘negra’ a chamar. Daqui, assisto, pois, ao banquete da vida que, embora seja lauto, assume, por vezes, exíguas proporções, em razão da estreiteza que o horizonte apresenta.
Bem escassos metros e eis-me logo na base da grande escarpa. Tudo, com efeito, aqui vem morrer! Sendo alta e baça, tolhe do mesmo passo, a luz e o horizonte! Este obriga-me pois a introverter-me. Bem olho eu para a cerrada escarpa, lançando a vista pela íngreme vertente, em busca anelante de luz e calor, mas
sempre em vão! Lá bem no alto, com assomos indignados, espesso nevoeiro, que investe façanhudo, contra os nossos
Manteigas \ 25-2-1972 Progresso fantástico do Século XX
A princípio, engraçava com ele e quase o admirei. Hoje, porém, estou algo mudado! Aspectos oferece, que bastante me quadram , entretanto no geral, deixa muito a desejar. Aberto às ideias, colorido e arejado, traja à moderna, sem ligar a costumes. A tradição não conta nem sequer o passado! Atribui-se ideias, que diz originais, mas já muito antes haviam. realmente, sido apresentadas.
Segue, passo a passo, a doutrina protestante e, nalguns lugares, ultrapassou-a! Irrompeu em tolices e vários despsutérios que, de modo nenhum, irei apadrinhar! A tradição não importa, por mais veneranda: o que eles dizem tem foros de cidade! Derrogar e nada mais! Demolir e calcar! Um lema dos diabos!
O que vejo não é espírito! Exteriormente, agitação, sexto destruidor, sem nada a compensar! É muito pouco! Qual é o seu programa?! Aspectos construtivos?!
Admirei os cabouqueiros da nova modalidade , não vendo logo que me iludia, com falsas aparências! Gosto, sim, de actualizar-me e admito sempre ideias úteis que podem substituir aspectos obsoletos . Entretanto, se algo apresentam contra o Evangelho ou o Reino de Deus, vomito-o prontamente! Alguns negam tanto que a sua insensatezos leva a negar o próprio Cristo .
O carácter é falho: só tem de grande a própria mentira, a doblez e a fachada.. Eu renego do passado, em muitíssimas coisas, mas quero um substituto, algo de humano, razoável e belo, sempre de harmonia com a Boa Nova.


Manteigas
26-2-1972

Tiveram hoje início as aulas suplementares. Com surpresa minha é também Ingglès 5º, embora o professor seja o padre Gomes Neves. Perfaz-se agora um total de 39, por toda a semana. Quem já deu 59, não estranha tal número. Melhor diria quem já deu 77, pois àquelas 50 acresciam 27, em lições particulares. Isto que digo só pode ocorrer, em Colégios de província, onde os professores, ganhando pouco, sevalem do número, para compensar.
No entanto, é desumano, assaz brutal e desaconselhável. A saúde e o rendimento hão-de ressentir-se! Valia-me a pr ática e o desejo enorme de trabalhar. Recomeço agora tarefa em aperto, já que o ano lectivo caminha apressado.
Estranhou o meu colega que eu desse Inglês, sendo ele o professor. Na verdade, assiste-lhe razão, pois nada lhe disseram. No lugar dele, também eu estranharia. É assim que esmorece o espírito do homem, soçobrando no caminho, por falta grave de compreensão ou algo de gentileza. Juntávamo-nos ambos, na aula de Inglès, espectáculo ridículo, para ser observado! Mofavam os alunos, pondo assim em xeque o seu professor, quando eu, a rigor, não tenho interesse em que isto se dê!
Após um encontro, planificámos o assunto em causa. Havia 13 anos que dava eu o 5º. Só a pleurisia impediu realmente a continuação. Para o ano que vem, é duvidoso que fique, pois trago em mente arrancar de uma vez!


Manteigas
28-2-1972

Dinheiro e santidade, metade de metade! Quem fez o provérbio não dormia, por certo! Ao longo dos séculos, como fruto maduro de observação, apareceram os rifões que tanto admiramos. Em poucas palavras condensam os tais , por via de regra, imensos caudais de grande saber. Ora, como realmente, o fruto da experiência é o mais categorizado, essa a razão por que tanto nos prendem anexins e provérbios. No caso apresentado jorra intensa luz, sobre um grande problema da nossa existência
A raiz de todo o mal é, sem dúvida a soberba. Ora, que nos impõe ou aconselha? Vaidade, hipocrisia, mera aparência! “Fazer figura”, para avantajar-se a todos os demais, ficando os outros na sombra. Dentre o que é humano e chama a atenção, de modo especial, há duas realidades, que a todas sobrelevam: dinheiro e santidade, para efeito de captar a atenção e assim conquistar admiradores.
A santidade esmaga, pelo que tem de extraordinário. Quem não ama o santo?! Esmagador, sem dúvida o seu testemunho, surpreendente o seu agir! Ultrapassa o herói: este vence os outros, mas aquele vai além, vencendo e dominando as suas paixões. De tal maneira se impoõe à consideração de todas as pessoas, que há sempre uma urdidura, à volta da sua vida. Dizem-se mil coisas: às vezes, fala-se até de espantosos milagres, favores especiais, dotes maravilhosos que assombram o próximo
A vaidade e a ambição impelem outros muitos a quererem parecer aquilo que não são, na realidade. Não sendo, a rigor, tentam impor-se pela mentira. ou figurar bastante mais do que são na verdade! E quanto a dinheiro? O caminho é paralelo. Quem já o tem ~e considerado. Olham para ele com certo respeito e admiração, fazem-se mesuras, vai-se lhe ao encontro, dispensam cortesias. Daí a tendência não só para fingir senão também para aumentar!


Manteigas
29-2-1972

Foi há dias, no comboio. Rumava a Lisboa, prestando atenção a quanto me rodeava e se oferecia à vista inquiridora. Viagem longa e morosa, impõe alguma coisa que sirva ali, para distrair, caso contrário, volve-se em fastio. Estou frente a quem me fala, sem fazer-se rogado! É um casal de meia idade: ambos avantajados! Ela, um pouco tímida! Ao lado, um rapazola a tender para gorducho, o qual pelo volume, não envergonhava os progenitores.
Quem falava era o pai. Pela sua conversa, trabalhava na C P e achava-se em férias. Aparentava um certo bem-estar, mostrando claro alguns conhecimentos. o que chamava logo a atenção dos presemtes. A esposa, obsequiosa, ia confirmando atentamente, já com acenos da rópria cabeça, já oralmente. Independência e personalidade creio não ter ou, possivelmente, adora o marido em grau t~qo alto que o julga um ás!
Gosto imenso de ver união e boa harmonia, mas irrita-me m extremo, a falta de gosto e personalidade: abdicação de si mesmo! Fiquei, pois julgando tratar-se dum apêndice, objecto de luxo, talvez ou então uma serva, autêntica escrava! Nem 8 nem 80, pois no meio é que está a virtude . A meio da conversa que tinha enveredado pelas comidas, volveu prestesmente a esposa extremosa: : “ Meu marido não gosra!”Ficou lisonjeado, mas não se impressionou!. Seriaa urgente e obrigatório esse loivor
Como planeta de segunda ordem, girava, por força, em volta do astro, não tirando proveit, mas servindo apenas. Onde se encontra a personalidade? Onde a liberdade?!


Manteigas
1-3-1972

Doze e trinta. O ar é frio e húmido, cortante e pesado. Nevou além, acima e houve, de igyal passo, amostras cá em baixo. Se o nosso desejo visasse realidade, vinham agora tempos bons, que já estamos saturados de chuva e granizo, de vento e neve! Esta grande aspiração é de facto comum a todos os seresm, que o Inverno foi duro e muito prolongado. Viver assim, na ansiedade, esperando noite e dia aquilo que não vem é realmente desanimador! Um dia e outro dia! Uma hora e outra hora!
Afinal, sempre o mesmo cariz! De Verão só amostras breves. Apenas Julho! Tudo o mais é Inverno ou coisa semelhante! Logo de manhãzinha é de ouvir ao passarito cantando jubiloso, em sinal de regozijo. Eles sabem as razões! Há no ar alguma coisa que lhes fala de bom tempo? Ao menos, um pouco de melhoria! Sem uso de aparelhos, conhecem por instinto se vamos para melhor. Olhando paea eles, fiquei na expectativa, perguntando aos meus botões: terão eles razão?! Após isso, já esteve a nevar, o que não colocou mal as belas avezinhas!
Será na verdade o instinto da criação que lhes fala de ninhos, transbordando nesta data, em canções maviosas’ Existe, penso eu, algo misterioso que Deus pôs na Natureza e clama pela vida?! Tudo fala disso e o dado que a garante não pode esconder-se. Por isso, canções, afecto, gregarismo.


Manteigas
2-3-1972

Por que olhavas sucumbido, com lágrimas nos olhos?! Passei por ti, na capital do Império. Tu não me viste, mas eu fixei-te e fiquei angustiado. Avenida buliçosa, Almirante Reis, ao sair exactamente, d Rua da Palma. Eu passava então, olhando para as montras, absorvido a ler preços, comparando-os com outros. Nisto, pois, sem que eu o previsse, depara-se o teu rosto, compungido, obnubilado, em contorções inestéticas, onde lia o desespero e, ao mesmo tempo avultava a saudade. Mas que foi então o que assim te prostrou?!
Se eu vi tão só uma pobre criança, pura, inocente, que poderia ser?! Bonequinha de três anos, .pouco mais ou menos! Entrara pressurosa, numa pastelaria, seguindo no encalço de alguém enfeitiçado e preso dela, Ria, titubeava, ostentando nos gestos a sua indecisão. Foi nessa hora que te surpreendi. O teu olhar cravou-se na miúda que te não pertencia, masão pertencia, masa tudo para teus olhos, famintos de amor.
Qual íman poderoso que te houvesse dominado, seguias-lhe no encalço. Interroguei então os meus botões: que será o que eu vejo? Devo acreditar no que dizem os meus olhos?! Que mistério se apresenta, assim de improviso?! Dramas de almas que, realmente, não é dado conhecerem se nenhum!
Bem quis eu penetrar no grande segredo, mas consegui-lo?!


Manteigas
3-3-1972

É na sala de aula do 3º ano. Logo no primeiro tempo, um belo exercício de Portuguès! A- proximam-se as férias e não posso olhar atrás! Em 15 dias, termina já o 2º período e eis-nos a gozar o merecido repouso! Jamais, que eu me lembre, foram tão necessárias!
Evidentemente, quem eu foco, nesta hora, são os professores! Os nossos discípulos já não fazem nada, razão pela qual não precisam descanso!
Vão soar em breve as 9 da manhã e os alunos atarefam-se, deixando entrever alguma apreensão. Já sabiam, há tempos, a colecção a estudar, motivo suficiente, para virem descansados. Entretanto, como esforço e labor não são agradáveis, tanto farão deste modo cimo de outro qualquer!
Faltam só dois: Leitão e Eugénia. Esta, infelizmente, já tem , decerto mais faltas que presenças. Ano perdido! Que importam, realmente, as aprovações, não sabendo o programa?!
O ensino particular, como se tem praticado, em certos casos, enferma de grande mal. Não há seriedade, sacrificando amiúde, nos altares de Mamona! O dinheiro é tudo! Para ele se vive, e tudo lhe obedece! Sendo isto assim, como não falhar?!
Que dizer do liceal? Também este não é sério,, sendo embora mais são e adequado ao futuro.. O ensino particular só pode aceitar-se, quando os professores forem especializados, no ramo respectivo. Além disso, os novos directores devem ter as Pedagógicas.
Quanto ao 3º ano, que posso esperar, se os alunos são tudo, menos estudantes?!
nosso Luís é honrosa excepção! Por isso exactamente, lhe dei eu 18, pelo Carnaval! Se trabalhassem como ele, fazia-se um bom curso. É uma turma de 30, mas são em minoria os mais bem dotados . A Zé L, é estudiosa. Quanto a outros, não posso dizer a mesma coisa! O pobre Godinho, cada palavra, dois erros! O Abílio, então, não conhece o mínimo! E o João André?!


Manteigas
6-3-1972 Mudança Iminente!

Resolvi agora, com pronta decisão, abandonar a vila. onde me gasto, há bons 15 anos. É meia geração e foi, na verdade, o melhor da existência, a parte mais válida. A Manteigas dê, pois, aquilo que eu tinha de maior valia, já no coração, já na inteligência.
Este ambiente, porém, não é para mim. Os invernos são duríssimos, e a minha saúde, já bastante abalada, mais e mais se debilita, a cada novo inverno que tenho de aguentar. E o desgaste não é leve, que eu bem o sinto, à medida que avanço.
É brutal e carregado, lançando firmemente suas garras aduncas no meu s er arruinado e em pronto declínio. Jamais eu gostei de tal ambiente, mesmo antes disto. Causou-me arrepios, logo de princípio. Pouco lembro do passado, mas não me esqueceu o pedido materno, já no fim da vida. “ Meu filho, não fiques aqui: vai-te embora de cá, logo que seja possível”
Tentarei pôr em prática esse gosto revelado e procurar noutra parte acabar os meus dias. Após a sua morte, quis logo sair, mas tais dificuldades me foram levantadas, que acabei por adiar esse íntimo projecto. Agora, julgo ser tempo deveras oportuno. Por modo nenhum deixarei passá-lo.


Manteigas
7-3-1972

Aposentar-me já, deixando as aulas? Melhor dito: consagrar-me, desde agora, a lições particulares, abandonando prestes o regime seguido, ao longo dos anos? Seria, talvez. o id eal para mim, devido a razões que devo tpmar em conra: doenças e idade, jeito dos alunos, desinteresse de muitos e as sim por diante.
O que traria repouso seria, pois largar e ter vida mais calma. O ambiente escolar já não satisfaz e tornou-se odioso. Sem hábitos de trabalho, a nossa juventude, salvas excepções. é uma cruz para os pais e um calvário igual para os professores que sejam meticulosos. Gasta-se a vida a protestar sempre, ingloriamente.
Até aos 40 ou 45, há muita energia, chegando para tudo. Após esse marco, é já imprudente, se não insensato, qieimar a existência, num ambiente hostil, em que não haja de facto, boa educação nem honestidade. Se eles nada temem, e fazem, no geral, o que lhes apetece, vou eu ter mão?!
Que o façam na minha vez os que foram culpadps de tal situação. Ainda que eu lutasse por tal objectivo, seria inútil decerto o esforço dispendido!
Pode ser que os povos, com outra preparação, consigam dos jovens o que eu não sou capaz. Segundo me informaram, havia uma colega. no Liceu de Silva Porto que tudo levava a cabo, sem o mínimo esforço e era adorada por todos os slunos. Segredos da profissão?! Não sei o que é!
Ao chegara Angola, procurei encontrá-la, para troca de impressões, a respeito do caso, mas infelizmente, sendo embora jovem, partiu de vez para a eternidade,
Prova isto, afinal, que há de facto um caminho. Eu, porém, ignoro-o! Sou de outra época: penso de outro modo Não amo, talvez, o que outros adoram!
Importa renascer. Em tal caso, já não é para mim! Renascerei, talvez, mas para Deus.


Manteigas
9-3-72

Decorre, nesta hora, o Ponto de Francès, relativo ao 5º ano. O P. em sinal de desagrado e má preparação, abriu logo a boca, o que assaz me chocou. São à data 28 os alunos da turma, distribuindo-se agora por 5 filas de carteiras novas. .
Todos eles, em geral, procuram resolver, o melhor possível, esta prova de Francês.
A nossa Guilhermina vai puxando o cabelo; o jovem Nuno coça o nariz; o Narcos do canto estadia no rosto a imagem da incerteza, colocando-o brevemente na postura de aflição. É para as notas da Páscoa a classificação, que será enviada para o Liceu. Razão é esta pela qual o assunto merece atenção.
O Zé Tomás actua com denodo, atirando â folha o produto sazonado que o saber lhe proporciona; o Pina do centro , alheado de si mesmo, vai coçando a cabeça; a Teresa do Sameiro já tem mais sorte, pois ficando-lhe à frente a Maria Armanda, não consigo divisá-la, estudanao os movimentos.
A Maria Fernanda absorveu-se inteiramente, deixando ver no rosto as impressões do momento, no seu espírito, já desvairado. Quanto ao Balau, não parece bem seguro, se é que avalio acertadamente. Esboça, na verdade, esgares descomunais, em que vai misturada uma tristeza de grau infinito.
A Maraia Isabel roçou mesmo agora o dedo pelo nariz , levando nesse impulso uma gota de líquido, pendente e mal seguro. . Serena e absorta, a Maria Amélia vai cismando e olhando, sem nenhum temor ou ainda inquietação. É que tem a certeza do que está fazendo,
Na sua inconsciência, vislumbro a Prazeres, que se vau esmerando na apresentação E o Z+e Eduardo?
Causa-me pena! Que poderá fazer, com tão má preoaração, que vem já de longe?! Por esta razão, ele está inquieto e deveras pensativo!


Manteigas
10-3-1972

Vai passando a 4ª aula desta linda manhã. Como estou livre, aproveito o ensejo para ir fazendo o meu pobre Diário! Hoje, corre a sexta- feira que, no dizer do povo. é dia de bruxas. Ocorre-me por isso a nota de Garrete, nas belas “Viagens na Minha Terra”, onde verbera a superstição e a reprova, com entono.
Na verdade, opõe ele judiciosamente, “ Foi esse o dia da Paixão de Cristo! De bom cariz é ele, após a morte do Senhor Jesus! Para mom também, não é desagradável! Além do exposto, marca o fim das aulas, em cada semana. Extenuado já pela fadiga, espero com ânsia o dia libertador.
Que me traz, afina!? O sossego e a paz, o desenfado e a alegria. Viver sem aulas! Não estar presente a certos elementos que harto enervam e assaz angustiam! Gostei de o fazer, quando o mundo era outro. Agora, porém, que não há freio nem regime firme, impossível se torna exercer tal ofício!
Cada um, a seu modo, faz p que quer! Sanções não se usam Repressões não existem! Sou contra a violência, mas amo a disciplina! Para a chamada anarquia, nada mais é preciso Estou saturado! Imbecis e parasitas não encantam nem atraem! Que espera a nação de lombeirões assim?!
Felizmente, digo eu, que nem todos são assim!


Manteigas
11-3-1972

Chamava-se juventude, com bastante acerto! Este nome exprime e concretiza uma pessoa jovem, em todo o seu lidar. Algo de belo, possante e forte, esperançoso e fagueiro! O conceito, porém, foi chão que deu uvas. Dissipou-se com o tempo e, segundo parece, outro nome lhe convém, para traduzir rigorosamente a situação actual.
É pelos frutos que reconhecemos qualquer vegetal. Sendo eles bons, temos boa planta! Ora, quais são os frutos dessas árvores mirradas, em que o pêlo avulta e cresce tapando? Estão à vista do mundo e qualquer pessoa, míope embora, é capaz de apontá-los: doblez e mentira, indolência e. preguiça.
Jamais acabaria, se quisesse enumerar as grandes mazelas! Enoja-me fazè-lo e mais ainda reflectir sobre o caso. Sensualidade e sexo elementos são de primeira ordem! Efeminação é dado geral! Vestem de meninas e até deixam crescer o pêlo imundo; usam conjuntos e pintam o… Disfarçam o sexo, não sei para quê!
Elas virilizam-se! Fumam e votam! Concorrem ousadas aos mesmos lugares, sejam eles quais forem ! Que se está esboçando? O domínio do homem pela mulher de hoje?! Não será difícil dado que estes jovens não tèm virilidade!
Zeros à esquerda, não me enganarei ,afirmando para já que são dispensáveis e prescindíveis.Elementos inúteis só fazem peso!
Império português? Portugal metropolitano? Nada conta já no seu viver amorfo! Um dia futuro cuspi- rão em tudo, vendendo sem pudor a herança bela, de seus maiores! E é pena! Levou 8 séculos para se fazer e consolidar. Foi muitas vezes regada com sangue e selada ainda com martírio cruento!
Essa rica herança é solo sagrado, onde os nossos pais sofreram e amaram!


Manteigas
12-3-1972

Que está preparando a geração de hoje?
Simplesmente o caos! Estou quase certo ou. pelo menos, esperançado em que não é igual, por toda a parte! , já que, se o fosse, o pobre Portugal, ia desaparecer! Riscado do mapa e do grande concerto de povos e nações, seria, desde logo, integrado noutra área, como simples província ou mero apèndice.
E podia assim morrer uma nação gloriosa, com tão belo passado?! Perguntemo-lo aos novos do jaez que eu sei. Eles não trabalham nem sentem vontade! Ora, sendo assim, que podemos esperar?! Roubos e atentados, espancamentos, assaltos e rapinas! Uma sociedade anárquica! Outra coisa diferente não é de imaginar!
Quem pode viver então descansado e feliz?! Habituados a vícios, tèm de mantè-los e, como nada ganham e ninguém lhes dá labor, enveredam pelo roubo. Irá subsistir qualquer sociedade como esta é?! Haverá gosto em alguém, de nela se integrar?! Merecerá confiança a gente de agora, sem honra nem vergonha?!
Dizem hoje uma coisa, para negá-la, no dia seguinte. Prometem e não cumprem; vegetam e não vivem! Que promana da mentira ou que frutos valiosos deu jamais a preguiça?! Diga-o a História, que é mestra da vida!
Não querem exames, repelem os castigos, repudiam também qualquer autoridade; contestam ainda a velha tradição, sem poupar uma alínea!
Que é o que desejam, afinal de contas?! Qual é o seu programa?! Destruição e nada mais?!


Manteigas
13-3-1972

Apesar do céu nublado e também da humidade que nos penetra o ser, as meigas avezinhas cantam alegres, chamando o bom tempo.
Há trinados e chilreios, por todo o lugar. Um concerto de mil vozes ergue-se vibrante, do fundo Covão, mas não vence as barreiras, que as escarpas originam.
Primavera, neste ermo, jamais a encontrei. Que move, pois, estas aves a chamar em alta voz? Que lhes desperta a alegria, se tudo é sombra aqui nesta cova?! O magro céu que nos cobre … até esse está velado! Denso nevoeiro serve de cobertura , ficando sempre vão o esforço dos olhos, para atingir o céu maravilhoso!
Voltamos, pois, à Terra, imergindo logo na escuridão, sem ver nem enxergar o que tanto desejamos; luz e sol! Por estas razões, vacila-nos o passo!
Por que é que não fugis, avezinhas inocentes, procurando noutra parte o que não achais aqui?! É a voz do mundo novo que já se desentranha em amor e delírio e vos escalda o sangue?! Este clima é rigoroso e não quadra aos vossos lares?
Que é que vos prende e mantém algemadas? Lançai-vos, desde já, no espaço infinito e não façais como eu! Tivesse asas como vós e então vos diria! Mas, já decepado e retido em grilhetas , sem meios, ao alcance, para alongar-me, aonde irei eu?!
O espaço é todo vosso, mas o mundo não é meu! Fazei-vos, pois, de longada, pelo espaço infinito, onde a luz é de prata, e o sol de ouro puro!


Manteigas
14-3-1972

O Dinheiro faz tudo?

Parece falso, mas às vezes não é! Em viagem curta, para Lisboa, por volta do Carnaval, contava um Engenheiro, deixando-nos surpresos: “O tal amigo revolve tudo”! Como, atalhei eu, inclinado a restrições!
Meu caro, dizia sorrindo, ouça então o que vou dizer-lhe. Eu não invento, que não tenho hábito e não primo também pela fantasia! Conheço o caso pessoalmente e agora se não desço a pormenores, é por ser desnecessário. Certo rapaz ficou apurado e, naturalmente, devia seguir a tropa, indo talvez servir no Ultramar
Apreensões de um lado, inquietações do outro, moveram-se influências, e o caso deu de si, como era de esperar. O assunto em causa foi tão bem orientado, que o belo efeito não tardou muito!
O rapazinho em questão ficou tranquí-lo, no seu amado lar, enquanto os pais , gostosamente, largaram de vez 40 contos, quantia exacta de libertação.
Ouvi interessado aquela voz clamorosa, registando o facto, nos arcanos da memória. Verdade? Aquele senhor parecia-me honesto e, se era Engenheiro, tinha de facto responsabilidades, um tanto maiores que o simples vulgo.
Acreditar? Tudo é possível, onde haja homens. Por onde estes passam vai a cobiça e esta, por vezes, opõe-se ao dever!
É de condenar um caso assim, em tempo de guerra!

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