sexta-feira, 29 de julho de 2011

Memórias 35

Manteigas
14-1-1972

Levanto-me prestes e assomo à janela, a fim de inquirir, acerca do tempo. Há coisas pendentes: calçado e guarda- chuva, peças de vestuário… Conto, às vezes, com chuva frequente; no tocante à neve, sou menos atreito! Talvez seja, meu Deus, por eu a não querer, que me faz pirraça? É que ela, de facto, cobre totalmen-te a face da Terra!
Não fora eu avesso, deveria espera-la, visto que a morada é na Serra da Estrela, mas intento conseguir, por meio da repulsa, que ela se afaste. Insensível, porém, e sempre desdenho-sa, nada lhe importando que gele o meu corpo ou fique desconso-lado, ei-la pressurosa, caindo em farfalhas. à volta de mim! Como ampla mortalha, resguarda ciosamente o corpo inerte da terra adormecida.
É tudo branquinho: telhados das casas, pontes e caminhos, hortas e devesas, vales e montanhas. Lembra o maná que os Judeus utilizavam, no seu longo caminho, para a terra formosa da Promissão. Mas isto aqui é de outro modo. Enregelado, tremo, angustio-me. Nada ouço em redor. Emudeceram já os belos passa-rinhos e também as crianças. Os próprios velhinhos, tiritando e gemendo acolheram-se logo na lareira amiga…
Ouço apenas, lá no fundo vale os protestos assanhados do rio Zêzere, contra as margens rochosas e outros obstáculos. Emudeço também, e a frieza da neve actua em mim, fazendo assim gelar todo o meu ser. Que martírio este, Senhor meu Deus! Durante o ano inteiro, só neve constante, já perto, já longe, está ela ao alcance de meus olhos tristonhos!

Manteigas
15-1-1972

Dizem ser a neve motivo de inspiração. Não ouso negá-lo, que respeito muito a sabedoria: aprecio igualmente a opinião do meu semelhante. Por outro lado, eu sinto a beleza, quando ela me fala e convida logo a reflectir. Entretanto, sepultado em vida, neste fundo covão, onde o Sol é encoberto e o luar furtivo, terei efectiva-mente alguma disposição para sentir?!
Ao longe, assim julgo, seria belo talvez, debruçar-me contemplando e, se o caso impelisse, abeirar-me ainda um pouco mais. Viria até de Lisboa ou zona mais distante, embeber-me nes-te mundo , que aborreço e detesto.
Ver sempre neve, calcá-la amiúde, sentir-lhe os efeitos, esfriando-me o corpo, é deveras triste e muito desolador! Dir-se-á que não sinto?! Não é isso! Fico inibido, quando tal acontece! Ainda em Novembro, quando não em Outubro, apresenta-se logo, na encosta da serra! Uma vez ali, vai ganhando terreno, jamais se afastando, para torturar-nos aqui em baixo.
Como anel cruciante, que nos oprime e constrange, lá se vê a toda a hora, nofando de nós! Levantando os olhos, nada eu vejo senão a ela! Poderei, realmente sentir algum frémito, na alma gelada?! Não me digam que é bela, vista assim, noite e dia! Basta-va a monotonia, para tirar-lhe o encanto.
Saturação e tédio é o fruto constante, que a neve me oferta, durante o Inverno!

Em Viagem
16-1-1972

Abundante em casos e muito variada foi esta viagem, a caminho de Manteigas. Ao partir, já nevava, erguendo-se às vezes rajadas violentas, que punham em pé os cabelos todos, Ora neve ore chuva, quando não lufadas grandes de vento ameaçador! Estando em casa é fácil observar o decurso dos fenómenos, entre-tanto, mudam as coisas, se é que nos encontramos fora de abrigo.
Foi o caso de ontem, ao subir para a Guarda, que goza há muito de fama e proveito, no tocante â neve. Acelero diligente e sempre a fundo, para furtar-me a perigos vários. O certo, porém, é que era já tarde! Deveria, julgo eu, haver partido bastante mais cedo , mas quem é que adivinha o que sucede, por vezes, aí no mundo?!
Bem exacto o provérbio: “Ninguém diga - desta água não beberei!” Eu que tanto me acautelo, fugindo por norma a via-gens, pela noite, aconteceu-me agora desdizer, na prática o que tinha afirmado por via oral.
O caso foi o seguinte: após o chafariz, que chamam ‘do Bis-po’, na vertente alongada, que leva à Guarda, a minha viatura começou a resvalar, porque a faixa da estrada volveu-se em breve num espelho reluzente!
A neve caía, tornando-se ali harto perigosa. Às vezes, parecia um inferno! Água e neve, vento em fúria, uma tristeza quase infinita para quem vai só! Isto de conduzir, em más condições, iguais às de ontem! Só visto w observado, para descrever-se! E, no fim de tudo, o receio apavorante de ficar uma noite enregelado e só, não tendo assistência! Quem passa ali não se detém! A noite – o grande espectro!

Manteigas
17-1-1972

Momentos dolorosos

Conservo permanente a imagem de horror que ontem me prostrou. O Taunus 17, resvalando pela neve, atravessa-se na estrada, com rumo à valeta. Que desespero! Acelero fortemente, quase em delírio, havendo engatado logo em primeira
Ao perto e ao longe, deslizam veículos, enquanto eu, agindo com inépcia, fico retido no mesmo lugar! Penso até numa avaria! Suplico humilde que alguém se condoa, na triste conjuntura! Mas quem atende o triste condutor, que tem o carro a fugir-lhe?!
É noite. Urge ganhar tempo! Os outros passam e eu é que não! Fico na estrada. Habilidosamente, os outros lá se esgueiram, utilizando as bermas e eu quedo-me nervoso, olhando tristemente para o alvo lençol Tenteio o calçado: escorrega e amedronta! Pare-ce-me vidro a faixa de rodagem!
Engato novamente e acelero o motor. É tudo em vão! A vale-ta! É este o perigo! Após ela, a ribanceira! A traseira do carro já roça de perto! Que fazer? Manter a calma? Mas se é noite, em bre-ve espaço e corro perigo de ficar no estendal’ Nem povoado nem alma caridosa!
Encomendo-me a Deus e também aos Santos, que os homens não me valem! Não poderão talvez! Como é dura a vida! Viajar sozinho e não ter ninguém que me acompanhasse, para aju-dar no duro transe! O vento agora é já furioso, arremessando-me ao rosto, em crebros torvelinhos, neve gelada que não acaba!

Manteigas
18-1-1972

Sacralização

Fazer do rapaz, candidato ao sacerdócio, um ente àpar-te, era ideia primária, no seminarista. Ele era diferente de todos os mais, por isso mesmo devia assumir atitudes diferentes. “ Segrega-tus a populo”, ( separado do povo), este era o sentido, mas agora dão-lhe outro ( tirado dentre o povo). Bem parece, afinal, que a segunda versão é mais de aceitar.
Por motivos, já se vê, de erradas concepções, o rapaz sugestionava-se, pensando, na verdade, que formava casta! Vestia de outro modo, sendo escravo da cor; as suas palavras, harto pesadas e sempre graves, serão edificantes; o seu olhar, em regra furtivo; os modos habituais comedidos por força e temperados; a maneira se viver, em completo isolamento, constituindo excepção apenas aqueles actos que exigissem presença.
Sendo outro Cristo, devia falar d’Ele: por isso a existên-cia havia de ser um testemunho vivo. Fumar, nem por sombras! Quanto ao beber, a máxima cautela ainda era pouca!
Escusado afirmar que tudo isto foi vão ou ainda melhor, que deu fruto negativo! Efectivamente, a sociedade em geral repele e rejeita quem se apresenta com hábitos diferentes e, quando o não faz, afivela breve a máscara de recurso, aparentando algum tempo aquilo que não é. Sendo isto assim, era tudo fachada.
Jamais o candidato, de batina aos 12 e cabeção aos 15, podia ser benquisto, no meio da sociedade! Fazia por hábito e faz ainda figura diferente: os outros fumam e ele não; os outros bebem, e ele receia; os outros riem, mas ele então assume, para logo, ares de gravidade.
É um ser estranho! Alheio a tudo, ninguém o tolera ou então só de máscara! Só de máscara!

Manteigas
19-1-1972
"Matou-se o padre Caio"?!

Como dobre a finados, soaram dolentes as palavras sinistras! Seria verdade?! As novas deprimentes, por mal de peca-dos, nem sempre enganam! Que grande tristeza! Que motivos for-tes o haviam de levar a tal desfecho?! Dizia-se, por aí, que era mal tratado pela consorte!
Porquê?! Não seria o infeliz já bem desventurado ?! Ati-rar-se abaixo dum 4º andar, para acabar seus dias, por modo tão cruel?! Que mulher foi aquela, raça de víbora, peçonha diabólica, para causar tamanha desgraça?! Por que não aqueceria ao inditoso padre o Sol benfazejo?!
Tal remate de vida supõe, com efeito, se eu bem aquila-to, um abismo enorme de negridão E ninguém o libertou daquele desatino! Escassearam, neste mundo, almas generosas, que aju-dassem pronto aquele desgraçado?! Vi-o só uma vez, quando ele exercia! Foi, realmente, na linha da Beira Alta. Ofereceu-me então uma bela estampa, que guardei longo tempo.
Viajava eu, pela primeira vez, rumo ao Fundão, onde iniciaria os primeiros estudos. Quem tal diria, nessa ocasião?! O diabo tece-as: é bem verdade! Como eu te lastimo, pobre colega! Que Deus tenha pena e jamais tome em conta o final desgraçado da tua existência, que foi atribulado e carente de razão! Foi loucura, certamente, que tu não eras capaz!
Oxalá que o Senhor, rico de misericórdia, não faça como nós! Vendo lá do Céu, tua enorme desventura, queira em breve receber-te nas eternas moradas!

Manteigas
20-1-1972

Irresponsabilidade?

Será crime o suicídio? Considerado em abstracto, quer isto dizer, desligado inteiramente de circunstâncias várias, que neu-tralizam, às vezes, ou pelo menos, atenuam bastante a sua gravi-dade, é reputado falta muito grave, pois viola direitos, que só a Deus pertencem, como autor e Senhor da vida humana. Ele é, de facto, único proprietário de quanto existe, e nós administradores.
Entretanto, se atendermos ao caso, em seus pormenores, encontramos quase sempre motivos fortíssimos, que lhe tiram, na verdade, o aspecto condenável. Quem vai atentar, contra aquilo que mais ama?! Que não faz alguém, para defender e conservar a sua existência? Recurso a Médicos, ingestão de remédios, e sei lá que mais?!
Se alguém actua diferentemente, fá-lo por loucura: pode não tratar-se de loucura persistente ou ainda habitual, mas actua de igual modo. No momento fatídico, a paixão absorvente sobreleva de tal maneira ao próprio raciocínio, que o impede ou ofusca.
Dominado o homem por ideia forte, qual mola pertinaz, que o força e constrange, é levado à deriva em todos os sentidos. Motivos os mais sagrados, razões as mais santas, fica tudo obscu-recido, face ao impulso, que arrasta e domina, sem barreira a opor-se.
Que fará o nosso Deus, em casos desta ordem? Tenho para mim que Ele olha ao passado e nele se estriba.
Manteigas
21-1-1972 O Futuro das Memórias
Que destino o teu, Diário amoroso, a que eu não auguro uma existência feliz?! Vives encoberto, há longos anos, sempre velado, mudo, silencioso, com vista a impedir olhares indiscretos. Vegetas paciente, envolvido em sombras, abstendo-te ao máximo de aparecer à luz. Para que usas de tamanho cuidado?! Não sabes, por ventura, que assuntos delicados, humanos, prementes já hoje se tratam em plena luz?!
Apesar de tudo, nada há resolvido, sobre o teu porvir! Terás por ventura, direito de nascer ou serás condenado a eterno silêncio?! Vou alindar-te, corrigindo paciente os originais, para que o teu advento não seja vaiado! Desejo vivamente que a forma exterior não manche a tua origem nem desdiga excessivamente de quem te gerou!
Ostentarás, sim, roupagem humilde, mas airosa e limpa! Gostaria imenso que não fosses apenas conduta de sentimentos e foco de ideias que é preciso rever, mas trajasses ainda num estilo harmonioso, com algo de pureza, para assim honrares, de algum modo aceitável, a língua de Camões.
Infelizmente, porém, não tenho envergadura, que a tan-to me habilite, embora sobeje vontade e esforço e não falte ambi-ção! Ficasse tudo à mão! Que a roupagem não desdiga nem ela me sujeite a censuras merecidas. Zoilos e críticos não os temo, por cer-to. Apesar de tudo, receio e temo que algumas vezes a razão maior esteja do seu lado, ficando então eu de quinhão indesejado!
Exaltar a minha língua, dominá-la e servi-la, realizando um propósito, é a minha ambição.
Vide Entre Vinhas
22-1-1972 Saudade?
Aquela franguita dá-me voltas ao miolo! Nunca mais apareceu, escondendo-se em buracos e, quando fora deles, é raro demorar-se! A sua voz emudeceu. Ninguém mais a ouviu! Cabis-baixa e vergada, nem se lembra de comer! Espevitada e alegre, anteriormente, mudou por completo!
Chamada com insistência, alonga um tanto o magro pescoço, voltando em seguida à tristeza habitua. Aqueles olhos apagaram-se também e não vêem quase nada. Pôr ovos é coisa rara! Doença talvez?! Nada que se pareça! Perguntando ao Manuel qual seria a razão daquele abatimento, apressou-se então a justifi-cá-lo, embora a tristeza se lhe visse no rosto.
Era, na verdade, uma franga linda, que fazia inveja a todas as pessoas. Cacarejava muito e punha tais ovos, que era um rega-lo! Sempre jovial, acorria à chamada e, ao luzir do buraco, já ela estava a pé. Agora, porém, tudo o vento levara! Mudança radical! O reverso da medalha!
A companheira ausente é que faz tudo isto! Ah!, atalhei eu logo, compenetrado! Ela não era só?!
Pois não! É isso que a mata! De pequenina, sempre com a irmã! Tão amigas eram, que anda agora inconsolável.
-- Que foi feito da outra?
-- Levaram-na há dias, para Lisboa ou melhor ainda para Porto Salvo.
-- Essa agora! Não devíeis fazer tal! É um caso de saudade, que impressiona a valer! Afinal, há também amizade, entre as aves de capoeira! Por que não mandais vir a companheira adorá-vel?
--Oh!, volve ele compungido, a outra levaram-na, para a Leninha ter ovos, Fica mais forte a papinha de bebé!
--Pois sim! Coitadinha da franga que morre, de tristeza!
Manteigas
23-1-1972 Alargar os Horizontes
Após longo castigo, é belo sumamente arrancar do Covão, indo por aí fora, em demanda persistente de novos horizon-tes. Foi o que sucedeu. Pelas 10 e pouco, largo açodado, para lan-çar-me em paragens de sol. Faço logo caras à vila do Fundão. Havia já muito que tal desejava, mas a neve e o tempo vinham pôr veto. Hoje, porém, não foi assim!
O sul dourado, batendo amoroso na crista dos montes, parecia acarinhá-los, ao passo que os olhava, com extrema bonda-de. Era o despertar do sono hibernal, que tinha seus visos de não acabar. Um sol de ouro, risonho, quase estonteante!
Parto seguidamente e vou de longada, volteando célere, pela velha estrada, em fartos ziguezagues. Há, naturalmente, algo a espevitar-me. O meu veículo, entorpecido ainda, mal podia avançar, devido ao nevão, que dias antes o havia colhido. A desforra é bela, em casos destes.
Enlevado e preso nos meus pensamentos, depara-se-me um quadro, assaz horripilante: em banco largo, baixo e sólido, jazia impotente gordo suíno, já branquinho de neve! À sua volta, braços musculosos iam dando já os últimos retoques.
A violência, a tortura, a maior crueldade e a insensibili-dade haviam feito do animal perfeito cadáver!
Manteigas
25-1-1972 Saturação
Acabo de chegar do 4º ano de Inglês. Que desolação e incrível horror! Aquilo só visto! Coisas repetidas e já repisadas são para os alunos outra novidade! Já não dá gosto exercer a profissão! Fugir para longe é que seria mais desejado. Nunca mais ouvir falar, esquecer a matéria, olvidar tais alunos! Chego a ter pena de tais nulidades. Melhor diria, talvez, cábulas de marca!
Que é que pensam da vida?! Como intentam vivê-la?! A expensas de alguém, extorquindo o que outrem ganha, de maneira honrada, à custa d e de seus braços?! Roubando, às escâncaras e ferrando o cão, à maneira de gatunos ou vigaristas?!
Que sociedade, afinal, será esta depois, em que os pobres mortais se esfolam e devoram, quais lobos famintos?! Marimbam-se muitos para esta juventude! Só chuva de fogo , com dilúvio de coriscos meteriam a direito a gente de agora! Respeito, é claro, as excepções!
Não há capricho nem brio nenhum, que estão fora de moda!
Estou deveras enjoado com tal proceder! Atirar a lombeiros as pérolas do saber é mais que idiotice! É crime nefando! Estupidez rematada! Quem me dera brevemente esquecer e debandar! Apo-sentado ficaria tranquilo: comendo em paz, viveria mais tempo!
Que vem, afinal, de aulas forçadas, em que reina o des-curo, alastra a preguiça, junto com apatia?! Que me presta repetir, esmerando-me em processos?! Riem-se de mim, sem que possa obstar!
Manteigas
26-1-1972 Incutir um Destino
Talhar o destino ao ser racional! Meu Deus do Céu, como é possível? Pegar em alguém, amordaçar-lhe a vontade, como se fora uma coisa banal! Deitar às sortes o futuro do homem! Obrigá-lo a gostar do que ele não gosta! Enganá-lo sem pejo, dizendo ser Deus que assim o quer! É preciso ter bossa e agir sem vergonha! Quem garantiu que Deus assim o quer?! Por que arroga-rem-se poderes de de excepção?!
Iriam jurar que assim é, de facto?! Que vai ser de uma crian-ça, que envolveram, tenrinha, em longa camisa de 7 varas?! Man-daram-na olhar em sentido único, proibindo qualquer outro. Mais: asseveraram-lhe, amiúde não haver mais caminhos e que, tomando outros, seria desditosa!
Não será loucura?! Insensatez mais pedante creio des-de já não ser possível Forjar, levianamente, o destino de alguém! Ousar sem rubor, distorcer a natureza, usando para tanto, de argú-cia e cálculo! A criança infeliz, entroncada e segura, crê fielmente ser aquele o seu destino! Imbuíram-na, sem pejo, de conceitos humanos, encheram-na de espanto, fizeram dela uma coisa vil!
Retorcida, amesquinhada, ei-la trilhando o chão pedre-goso e inseguro que Deus, por certo, vai desaprovar! Onde a liber-dade e o poder realizar-se?! Será, no porvir, aquilo que não quer! Um fantasma de pessoa, infeliz como tantas!
Cada um seja livre na escolha do seu trilho! Aqueles que se atravessam no caminho de alguém, a impor desvios, seja isso ainda com fim honesto, são criminosos e, como tais devem ser punidos, pelo abuso grave da liberdade.
Manteigas
27-1-1972 “ Odeia os erros: ama os homens”
Foi Santo Agostinho que lançou no papel este belo con-selho. A síntese profunda do famoso dito põe logo a claro o seu talento, deveras peregrino. Ao mesmo tempo, é norma segura, que elucida e guia. Odiar os homens não é de cristãos, como bem se presume, em face do Evangelho.
O ensino persistente de Jesus Cristo não admite jamais qualquer pequena dúvida. “ Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”
O Mestre assim fala e a sua palavra é fonte de vida. Os erros porém, não proíbe detestá-los: consentir neles desvirtua a existên-cia. Concretizando: não me conformo, de modo nenhum, com o processo na educação. Embora tardiamente e quase a título póstu-mo, levanto o meu clamor! Sempre a mesma linha, em porfia contí-nua, para fazerem mais ma vítima!
Cercado então de mil cuidados, embalado geralmente por música celeste, deixei-me levar - coisa bem fácil , na minha idade!
Quanto ao meu lar, embora rejeite a maneira utilizada, não me atrevo agora a culpar os pais, assacando violento a respon-sabilidade! Prior e professor, em meios humildes e analfabetos, são oráculos vivos.
De maneira especial. o pároco de aldeia que, afinal, era um homem são e bem intencionado. Mas, segundo o povo, só ele conhecia o mundo e falava de Deus como um profeta! Quem duvidaria da palavra sincera, a que juntava, habitualmente, o exemplo incitante da vida privada?!
Manteigas .
28-1-1972
O que é não ter lar! Viver neste mundo, sem carinho nem arrimo, à maneira de escravo, que a sensibilidade tortura e deprime! Por outro lado, sem uma voz, algo estremecida, uma palavra doce, um olhar de meiguice, para afastar cruezas e, ao mesmo tempo dispersar nuvens densas, que impendem sobre mim!
Que digo eu, meu Deus?! Queixar-me por dores e rirem de mim! Pedir atenção à comida usual e fazerem sempre a mesma coisa! Quando não dói, a voz é indiferente, o grito uma aragem, um gemido cansado, que o vento arrebata, deixando de soar, ao trans-por dos umbrais! Quem se rala comigo?!
Dói-me o corpo todo e sinto febre na alma! Insónias constantes! Indisposições! Lamentos perdidos! Tudo isto, afinal, por causa do alimento, que é muito danoso para o organismo! Que vida a minha! Onde mora a caridade?! Relegada para o Céu?! No mun-do em que vivo é flor que não encontro?! Egoísmo, sim, por todos os cantos! Esse abunda, com certeza! Não posso já com tal indife-rença!
Moldado noutra forma, estranho profundamente o que vejo fazer! A formosa virtude é somente aparência! De facto, heroísmo é apenas a casca! De santidade nada mais resta que o nome soante! E que dizer, se falamos de pronto em mortifcação?! Comem que se desunham, cevando por este modo, corpos disfor-mes e pondo em seu bojo, repleto e nédio, o fruto da ambição bem como da gula!
Aos outros míseros aconselham uma lei: a eles então aplicam já outra! Seria fácil medrar qualquer sociedade, feita de glu-tões. Infelizes, sim, os pobres doentes ou vítimas imbeles da sua jurisdição! Refiro-me sempre aos bem instalados e grandes burgue-ses!
Manteigas
29-1-1972
A hipocrisia foi, desde sempre, uma chaga social, que, pelos efeitos, deveras nefastos, é nosso dever rechaçar com vigor. Lutar contra os grandes não é fácil tarefa., mas é necessário pôr-se o homem de guarda pois, de outro modo, é tardio agir. Altamente obra de sapa, alerta os novos e inexperientes.
Na convivência, porém, recorre-se à discrição, para não deteriorar as relações entre os homens. Mas é tão desagradável viver a prestações, apercebendo-se a gente de que, a toda a hora, à volta de nós, há só doblez e falta grave de seriedade! Quantas vezes sucede que alguém entre nós figura uma coisa e vive preci-samente ao invés do que aparenta! Muito se engana quem cuida! – reza o provérbio!
Tenho para mim que há-de ser terrível, humilhante e apreensivo o juízo universal. Ante Deus, Juiz supremo, não pode haver doblez! Nem conta decerto a referida argúcia, hipocrisia ou manha! Se Deus não ocul-tar as faltas encobertas, como há-de ser vergonhoso que os outros saibam tudo aquilo que tentámos esconder! Santidade falseada, prestígio sem apoio, uma vida sem mérito, poeira densa a rodos, lançada aos olhos de quem é ingénuo!
Há-os, por vezes, que têm suas falhas, mas ainda assim não tentam geralmente ocultá-las de outrem! Sentem no peito um desgosto profundo.Se alguma coisa disfarçam, é por serem obrigados! Não são estes decerto os mais condenáveis! Aqueles, porém, que se julgam seguros, e defendem princípios que não vivem nem sentem, é que são o veneno, urgindo irradiá-los , para que a sociedade não seja inquinada.
Manteigas
30-1-1972
Com dois anos somente, lá foi tão cedo para o outro mundo Não cheguei a vê-la, mas faço ideia! Botãozinho mimoso que não desabrochou! Primavera radiosa que não chegou a deli-near.se, em toda a beleza. Quem dera estar perto e havê-la salva-do! Não foi, de facto, morte natural: um desastre lamentável A criança brincava, juntinho ao rego, na Senhora dos Verdes, perto de um moinho!
Por arte diabólica, apareceu a menina já dentro do cano, quase rente à mó Só faltava mais essa! Por um triz não foi! Sendo isso assim, o desastre era horríve!: qual grão pequenino de trigo ou centeio daria pasto à galga para torná-lo em pó!
Que horror, meu Deus! E ninguém ver! Nem uma pessoa que libertasse o anjinho! Como sofro nesta hora e sinto na minha alma aquela agonia! No meu peito dolorido, cravou-se um espinho e a meus olhos tristes apontam as lágrimas ( 2-5-2010, com 92 anos ao passar a computador!)
Eu bem sei, ó meu Deus, que a inocente é ditosa, mas isso não impede que eu sofra e deplore calorosamente. Está no Céu, bem entendido, a Pátria que adoro, o lugar saudoso da eterna luz. Ninguém lhe rouba o tesouro que a inocência obteve e o Sangue de Jesus garantiu, para sempre. É feliz e ditosa, invejável até! Mas que sofrimento para a inocente!
Que espinho acerado para os pais inconsoláveis! Nenhum bebé conheço: é esta a verdade, mas partilho nesta dor e rogo a Deus Pai se compadeça de nós e a todos abençoe.
Manteigas \\ 31-1-1972’
Como tudo o que é grande, levou tempo imenso a che-gar ao fim. Mês de Janeiro, longo, interminável, furioso e forte, em ventanias, gelado na Nave! Mas, pelo bom Deus, nada existe aí, que não acabe! Infinito como é satisfaz plenamente quaisquer aspirações de eterna felicidade.
Estou desafogado, ao dobrar este Cabo! Nem me lem-bra, ao mesmo tempo, que dei passos em frente, caminhando para a morte! Que me importa esse facto, se caminho para Deus?! No termo da viagem, um encontro maravlhoso! Terei, pois, ocasião de avistar.me no Além, com os seres adorados que amei, neste mun-do: pais, irmãozinhos e, alem deles, outras belas figuras.
Acaba esta vida, tormentosa, agitada, para outra iniciar-se, bem mais apetecível! Finalizando o mês, avanço um grande passo, mas feliz de mim, porque sou crente! Embora não me assis-ta direito pessoal ao gozo do Céu, Deus-Providèmcia, na sua bon-dade, vai suprir generoso as minhas deficiências.
Rode embora velozmente esse engenho pavoroso não irá desconcertar-me, pois caminho gozoso para a Pátria da sauda-de! Grandes encontros me estão aguardando, após o arranque deste mundo efémero.
Janeiro sem fim, chuvoso e nevado, com vento agudo, cortante, molesto, não quero o teu mal nem me alegro com ele! Adeus, meu amigo, que me levas depressa, aos umbrais da minha Pátria. Volta ou não como entenderes, rodes ligeiro ou ainda moro-so, ofereças bom tempo ou de mau cariz, serei paciente, não maldi-zendo a tua memória.
Manteigas
1-2-1972
Começa hoje um novo mês que, por ser de Fevereiro, tem maior relevância. Foi nele realmente que vi a luz do dia e, se eu bem atentava, 4 olhos lindos se cravavam nos meus, a partir de então. Eram luzes intensas, que em cheio me inundavam, tornando a existência um afago constante, como faróis a guiar-me, na treva da noite.
Jamais a escuridão envolveria o meu ser, pois ao surgir dessa luz, afastaram-se as trevas. Eram lindos esses olhos, por serem de bem querer. Quem dera agora vê-los e, em seguida mor-rer!
Houve algo impiedoso, que os cegou para sempre, ficando eu, desde logo, em noite perpétua. A essa ‘negra’ importuna dão-lhe o nome de morte. Não quero pronunciar este chamo hor-rendo! Como fazer rosto a quem foi tão cruel, roubando o meu tesouro, para deixar-me a pedir?! Em Fevereiro! Já vai tão longe! Era exactamente:19-2-1918!
Quem pudera alguma vez reconstruir o passado e, com os olhos de agora, ver isso tudo, em claro espelho! Oh! visão doce , corre e avança, personifica-te e vem até mim! Anda, caminha. apressa-te e voa, que me encontro agora, em imenso deserto!
Quatro luzes, ó meu Deus, por que não vê-las, mais uma vez?! Que beleza a irradiar e que meigos segredos não trariam para mim?! Esses olhos apagaram-se e eu choro em desalento, mas acalmo e não protesto, que eles brilham entre os astros, no azul imenso do céu estrelado!
Lx\ Alcântara / 1981-03-20
Segundo eu julgo, aquele dueto do Cemitério da Ajuda, embora expressivo, não está completo. Encerra até uma ideia der-rotista:”Só resta uma pedra e pranto a verter”.É isto que reprovo.
Às cinzas jacentes, diz-nos a fé, vai seguir-se um dia, um corpo transformado, unindo-se à alma, que na Terra as informa-ra. Creio, sim, na ressurreição da carne! Se Cristo ressusctou. como primogénito dentre os outros mortos e cabeça nobre do corpo mís-tico, também nós próprios havemos de segui-lO. É que os mem-bros dum corpo seguem a cabeça a todos os lugares. S. Paulo é claro, a este respeito. O Apóstolo S. João de modo igual. No Velho Testamento, respirava-se já a mesma verdade, no livro de Jó e dos Macabeus.
“ Resta uma lousa, por memória dela” Resta, decerto, algo diferente. A que são devidos os grãos de trigo, que vemos na espi-ga? A um grão morto e destroçado – a semente! Nem outra coisa era aceitável! Corpo e alma formam o ser, um todo indivisível.
Os dois elementos contribuem decerto para a vida moral, em sentido positivo ou negativo. Razoável, pois, ficarem ambos associados, já na humilhação, já na eterna glória. Não é mais confortante a verdade evangélica? Fora, pois, com tal derro-tismo que leva ao desalento, gerando prostração. Cristo elevou-nos a todos, pela sua vitória, sobre a própria morte.
Alcântara \ 1981-03-21 “ Salud, Dinero y Amor!”
Dera eu pequena esmola a certa mendiga, quando ouvi, em Madrid, as palavras do título. Nunca mais eu pude esquecê-las! De facto, aquela tarde amena, os meus anos verdes e a astúcia da pedinte, que inflamou os dizeres de calor humano, tudo se irmanou, para gravar em mim a cena que relembro.
Mulher de meia-idade, um tanto sebenta e algo andrajosa, pôs no olhar um requebro tal, que a voz articulada saiu espontânea, qual fruto maduro que se desprega da árvore. Cai este no chão, mas aquelas palavras caíram-me na alma. Que acento na voz e que luz de magia, nos olhos de mendiga!
Foi por esta razão que guardei suas vozes, procurando, mais tarde, arrancar a substância que as mesmas encerram. Salud, dinero y amor! Foi deste modo que ela agradeceu, o pequeno óbu-lo, que depus em suas mãos!
Eloquência na voz, fogo no olhar, profundeza na ideia! Vale a pena meditar!
Alcântara \ 1981-03-22
Cont.
Salud! Primeira nota do acorde perfeito! Fica bem assim! A ele cabe decerto, o primeiro lugar e o apodo honroso de “fundamental” Apraz-me agora fazer o paralelo. Imaginemos, pois, o acorde em dó maior, formado como é lei, por três notas apenas: dó, mi, sol. Os seus elementos são os seguintes: tónica, mediante e dominante.
Assim como o dó é base e apoio ao acorde referido, assim também a saúde, naqueloutro acorde. Dizemos, em regra, que goza de saúde quem trabalha sem dores. É são e escorreito o que não enferma de moléstia alguma . Basilar, pois, a nota deste acorde! Efectivamente, dinheiro e amor, estando ela ausente, para nada serviriam.
Fixemos alguém que seja doente: não tem apetite; dorme a prestações; não pode trabalhar; a nada acha graça; não tem gosto de viver; foge do convívio; mergulha em tristeza; numa palavra, é infeliz!
O dinheiro, se o tem, nada lhe diz: não fala à alma. O amor, embora narcótico, não tem ambiente nem pode cultivar-se, num pei-to enfermiço. Salud, pois, em primeiro lugar!
Alcântara\1981-03-23
Medalha ao Peito\ Lenine
. Ouvindo este nome, fiquei assustado. Seria possível?! Que ligava o finado, aqui, em Alcântara, à memória do Russo que o mundo conhece? Fosse como fosse, o nome era exacto. Mandei repeti-lo à mãe do finado. Com toda a unção e afecto maternal, vol-veu com firmeza: Lenine, sim ! Era meu filho!
Casado recentemente, deixou esta vida, onde estão agonizando aqueles que o amam. Era tão bom este filho estremeci-do! Aih que saudade, meu santo Deus! Amigo da família, chefe ido-latrado, no lar que fundara, reprovava a injustiça e falava dos pobres e quaisquer infelizes, com imensa ternura.
Que filho aquele! Que prenda adorada o Céu me ofer-tou! Mas perdi-a,infelizmente! Um filho ideal; o rosto enluta do que as lágrimas sulcavam:tudo isso foi razão para deixar-me na alma um sulco de amargura!
Por fim, retira do peito a grande medalha, que ostenta orgulhosa:” Era este o meu filho! Que belo rapaz! Formoso no corpo e belo na alma! Em seguida, vira a outra face: “Esta, que vê, é aquela avó que adorava o netinho!
Para remate do conciso falar vêm pressurosas, quentes e atrevidas, lágrimas de fogo.
Jamais esquecerei esta mãe saudosa, que a fé ilumina, a esperança nutre e o amor estimula.
Belém \ 1986-07-13
Este dia vai ser apertado. São 8 menos nove. Às 5 da manhã, iniciava eu já os trabalhos diários que, segundo é hábito, não postergo nunca. Perguntar-se-á: mas, para quê madrugar assim tanto?! Para mais, é Domingo! Repousar é, sem dúvida, um direito sagrado, mas, ao longo da vida, nunca eu usei tal privilégio! Umas vezes, não podia: outras mais, eu não queria!
Agora, às portas da velhice, é que vou alterar esta for-ma de agir?! Apesar de tudo, há coisas na vida que me dão prazer, logo pela manhã. Parte delas, embora o não dêem, são necessá-rias, como por exemplo, fazer a barba” O mesmo não digo, se pego, como hoje num Tratado de Harmonia, fixando curioso o circuito das quintas e lendo, a propósito as regras úteis que presidem sem-pre à modulação.
Também dá prazer um capítulo da Bíblia, em Línguas diferentes. Actualmente, prende-me o Inglês, a que faz companhia a Língua alemã, Depois, vêm funções de carácter religioso, das quais não prescindo. Finalmente, o dejejum, rematando a manhã pelo Diário escrito.
Âs 9 horas em ponto, hei-de estar em Alcântara (Lis-boa), para a lida habitual. Logo de entrada, há um funeral de serviço completo, seguindo o cortejo para o lugar da Ajuda. Após este, almoço previamente (caso contrário, não tinha tempo), volto de novo para Alcântara.
Às 13 horas, levam-me a Benfica, onde terá início outro serviço fúnebre, para o cemitério local. Ultimado este, vou ter com o Serra. É um encontro marcado, em sua própria casa, lá na Amado-ra. O objectivo é tratar dum assunto, com certa relevância: trocar impressões, sobre a publicação do meu primeiro livro.
Apreciaria, a valer, que saísse este ano, lá para Novembro ou então Dezembro.
LISBOA \ 1981-06-06
Arejemos um pouco o nosso espírito, enveredando agora pela Gramática. No século XVII, um grande orador, glória imortal das nossas Letras, o jesuíta Vieira, deixou exarado, em fra-se lapidar, o conceito alarmante que fazia do ‘não’. Ficou, por isso, marcado para sempre e, por mais voltas que dê a roda fatal, nin-guém lhe arrancará, da fronte envilecida o triste labéu: “ Terrível palavra é o “não!”
Pedindo vénia ao Mestre insigne, quero de igual modo visar um monossílabo, utilizando a frase incisiva: terrível palavra é também o ‘se’. Mais pequena ainda, oferece, para logo, enormes dificuldades, quando elemento de uma oração. Se o idioma francês e assim o português (caso inadmissível) fizessem uso de uma via única, desaparecia logo qualquer discordância. Mas ainda bem que não é assim, pois individualiza o idioma português.
A moderna geração capricha fortemente em romper com o passado. No que tem de condenável também não posso fiar-me. A verdade, porém, aliada ao bom senso, leva-me agora por outra via. Há muito de belo, a que eu, prudentemente, não devo renunciar. pois, quando o fizesse, apodavam-me de louco. Após tais premissas, é-me grato sumamente, expender o meu pensar, baseando-o no passado, sem fugir ao presente.
1. Grandes Mestres da Língua, conspícuos filó-logos, Gramáticos notáveis e abalizados, como também rude gente do povo, irão depor, nesta hora, se fo necessá-rio. Zoilos e críticos mal intencionados não têm lugar. È um tribunal de muita seriedade, onde impera o respeito. se ama a verdade e presta culto aos valores do espírito.
Lx. 1 1981-o6-07 Cont.
Venham para já Mestres venerandos: Heitor e Camões,Vieira e Bernardes, Sousa e Castilho, Herculano e Garre-te. Em seguida, chamo a depor os melhores Gramáticos; Ribeiro de Vasconcelos, Epifânio Dias, Torrinha e Figueiredo. Depois, cabe a vez a eminentes Filólogos: Ribeiro de Vasconcelos, Adolfo Coe lho, Leite de Vasconcelos, Júlio Moreira, Gonçalves Viana e José Joaquim Nunes.
Por fim, chega a voz agreste, espontânea e verdadeira do povo humilde, franco e sincero, que fala sem peias. Embora não cite dizeres valiosos, com peso igual, tenho a certeza de que essa voz me apoia também. O que vou expor, como fruto já maduro, não condena os discordantes: somente expresssa o que julgo estar cer-to. É-se livre neste mundo: cada um segue a via que mais o empol-ga!
A displicência de alguns não abrange qualquer ‘se.’ Há frases diversas, em que é normal haver concordância. O pomo de discórdia levanta-se apenas, em casos determinados, a que tentam aplicar a sintaxe francesa. Sirvam de modelo as frases seguintes: vive-se muito mal; ama-se a virtude. Na Língua de Flobert, é sim-ples a estrutura: On vit très mal; On aime la vertu.
O sujeito destas frases é o pronome ‘on’, sendo ‘’vertu’ complemento directo, na derradeira. Ninguém há que discorde ou aponte acaso inexactidão, pois tudo se acomoda às regras da sin-taxe e respeita igualmente o uso da Língua.
Lx. \ Alcântara \ 1981-o6-08 Cont,
Na Língua portuguesa vão as coisas de outro modo: o sujeito da oração é indeterminado, no primeiro caso; sujeito ‘virtu-de’, no período seguinte. Em Francês, voz activa; em Português, voz activa, na primeira, e passiva, na segunda. Não se diga, por ventura, que o processo sintáctico deve ser paralelo, em ambas as Línguas. Ninguém acreditava! A palavra ‘on’ provém do nominativo (substantivo ‘homo) que era o caso do sujeito, na Língua latina.
O mesmo não sucede, na Língua portuguesa, cujo ‘se’ apresentado, nas frases citadas, carece, realmente, de nominativo. Efectivamente, a sua declinação apresenta-se assim: sui-sibi-se-se, começando apenas no caso genitivo. Das razões apontadas, inferi-mos claramente que o francês ‘on’ representa o sujeito, ao passo que o ‘se’, em Português, nem é sujeito nem o representa.
Dá-se até um caso interessante, que nos leva pronto a dizer o contrário, isto é, longe muito longe de apontar o sujeito, des-tina-se antes a encobri-lo, desviando a atenção. Para evitar na pes-soa, já o ressaibo, já indisposição! Processo curioso, que revela prontamente a delicadeza e nobres sentimentos do povo português!
Lisboa \ Alcântara \1981-06-09 Cont.
Vejamos a prova do que fica exposto no Diário anterior: querendo censurar a atitude de alguém, com certa leveza, tem a nossa Língua maneira adequada, para consegui-lo. Em vez de atingir a pessoa, visada, com o forte arremesso de um’ tu’ esmaga-dor, usa uma palavra que deveras o esconde, aparando em si a aspereza e o choque: Não ‘se’ pensa! Procede-‘se’, às vezes, irre-flectidamente! Não ‘se’ atende às conveniências!
Chegados a este ponto, é lógico perguntar: qual é , na ver-dade. o papel do ‘se’, nas ditas frases? Nada mais que velar, esconder, tapar! Ora, se este é o fim, não vamos dizer que serve de sujeito! Por outro lado, se a gente do povo construir erradamente a segunda frase, volta logo à carga, fazendo a concordância!
Que denota isto? Por que rectifica “vende-se livros “ em “ vendem-se livros”? Nada mais que pôr o verbo ‘vende-se’ a concordar com livros. que é o sujeito! Também não repugna que um pronome pessoal, de origem latina haja dado em nossa Língua um pronome indefinido
. Casos desta espécie ou parecidos são bastante fre-quentes. na Língua portuguesa. Ninguém estranha mudanças des-tas. . O nome ‘porta’ não vem realmente de um verbo latino?! O pronome ‘nada’ não tem como étimo um simples adjectivo, que podemos encontrar na expressão nula res nata?” Os pronomes pessoais ‘ele-ela’ provêm de pronomes demonstrativos, ille-illa.
Lx. Alcântara / 1981-06-10 VERBOS E SUJEITO,
Estableceu-se o uso de negar sujeito a certos verbos, como por exemplo os impessoais. Acho erróneo tal costume! Não pode aceitar-se! Esta a razão por que outros idiomas recorrem a il-ce- it ou ainda a on-one-man. As últimas palavras representam o sujeito; as primeiras nem isso fazem. Entretanto não dão lugar a este dispa-rate: não tem “sujeito!” Na frase chove!, o sujeito existe, necessa-riamente! Caso contrário, não havia chuva!
Constituem o sujeito os agentes climatéricos: evapora-ção e condensação. Verificados já os tais quesitos, que permitem o fenomeno de ordem metereológica, haverá forçosamente vapor de água na atmosfera, o qual, por sua vez, dá origem a nuvens, que se resolvem em chuva. Na frase portuguesa “trabalha-se pouco”, o ‘se’ exerce um papel que justifica o emprego, ao passo que os apêndices, em idiomas estrangeiros, não exercem função, que de longe se compare.
O nosso monossílabo tem papel humanitário, em gran-de número de casos e, quando não, serve as conveniências ou ain-da o decoro ou simplesmente encobre o sujeito.
Lx. Alcântara/ 1981-o6-13 Cont.
Em frases do tipo “fala-se bem”é empregado com ver-bos intransitivos. Além deste caso, por falsa analogia com a Língua francesa, “on est heureux”, usa-se também com os chamados ver-bos de significação indefinida. Haja vista o exemplo “é-se feliz”. A tradução literal da frase apontada é esta, exactamente: homem é feliz.
Empregado o ‘se’ qual palavra apassivante, o que sucede com verbos transitivos, faz a mesma vez do verbo ser. O conhecido filólogo, que dá pelo nome de Sá Nogueira, discorda totalmente, mas o uso da Língua, a sua conveniência , a sua necessidade ou riqueza de estruturas, assim como o apoio de notáveis gramáticos e insignes filólogos dão-lhe também foros de cidadania.
Examinemos de perto: ama-se a virtude. No Latim clás-sico, dava o seguinte: virtus amatur. No popular, que mais interes-sa, para o efeito em vista, achamos até diversas maneiras: virtus amata est; virtus se amat; homo virtutem amat; virtutem amant.
As Línguas derivadas do idioma latino como do germânico não tinham verbos passivos. Por isso, era necessário recorrer a paráfrases ou arranjos específicos que, a rigor, não são passivos, mas, por necessidade e uso corrente, consideramos tais.
O Latim, sendo Língua sintéctica , exprime a passiva, utilizando uma só palavra: amari; amatur.
Lx.Alcântara / 1981-06-14 Vai ficando a Primavera…
Aqui, na cidade, experimento-a de leve. Ruídos, sim! Aviões que passam, veículos pesados, reclamos vários. Os tran-seuntes, magarefes e ardinas! Sempre agitada, a cidade não pára! Isto um dia, o ano inteiro!
Por um lado. é pena, que eu amo a natureza, a sorrir, na Primavera, ostentando suas galas! Quem me dera, Senhor, ir de meu vagar, por verdes leiras de milhais, surpreendendo ali a vida e a cor! Encerrado, porém, no meio de arranha-céus, nem o firma-mento é dado contemplar!
Da linda Primavera só breves amostras, em canteiros de jardins! Que eles, agora, já não são o que eram! Apenas a memória se conserva ainda! Autênticos mimos eram um regalo olhar para eles, em extremos de limpeza, arranjo e colorido! Jamais esquecerei a quadra primaveril que o passado me ofertava! Em nossos dias, mal a adivinho nos pobres jardins, que Lisboa apre-senta!
Estátuas mutiladas, bancos imundos, plantas decepa-das, relva empobrecida e cheiros pestilentos! Faz pena tal coisa! Assim me vou triste, por esta Lisboa, onde agora a canícula desar-ranja e deslustra os belos primores da Mãe-Natureza! Rosas pendi-das, cravos a murchar, odores escassos e mal percebidos! Que é isto, afinal?!
Alcântara / 1981-06-15 Voltemos à Gramática: Se’
Em Alemão dá-se este arranjo: Man liebt die Tugend. ama-se a virtude). Equivale, pois, a um sujeito, mas indeterminado, expresso em Man, enquanto em Português, o agente da passiva é que fica, realmente, indeterminado. Assim (ama-se a virtude): pre-dicado: ama-se, equivalente a é amada; sujeito: a virtude. No Latim popular: virtus amata est; virtus se amat. O agente da passiva: inde-terminado ( por alguém, por muitos, pelas pessoas de bem, por todos .
A Língua inglesa prefere, geralmente, a voz passiva: vir-tue is loved. Neste caso é igual a estrutura sintáctica, entre nós e os Ingleses.
A Língua africânder que tem origem no Holandês, usa tam-bém o processo alemão: Man hou van die deug. Equivale assim a um sujeito indeterminado, na voz activa. De tudo o que fica, impõe-se a conclusão: o idioma português é original em suas escrituras e processos sintácticos atendendo assim à psicologia do povo que o usa.
Além disso, é uma Língua analítica.
Lx. \ Alcântara
1981-06-16 Continuação: Se
Como estamos vendo, a Língua portuguesa tem um cunho próprio, que a distingue das outras e lhe confere individuali-dade. São duas as raízes, em que o facto assenta: Latim popular ( virtus amata est; virtus se amat) e psicologia do povo lusitano. Por ser diferente a estrutura sintáctica, igualmente diverge a respectiva análise
Atendamos ao que segue: ama-se a virtude. Sujeito: vir-tude; predicado: ama-se ou é amada. Em Francês: sujeito’on’( do Latim ‘homo’). Em Alemão e Africânder: Man.
Em Inglês, como em Português, com voz passiva.

Alcântara / 1981-06-15 Categorias do ‘se’
Quanto à designação, de tipo morfológico, chamem-lhe lá partícula adverbial ou palavra especial, isso não importa! Há outras palavras, em iguais circunstâncias ou muito aproximadas. Onde ficam bem os números cardinais? Nas palavras variáveis ou invariáveis? Em nenhuma, talvez, das duas categorias! Onde inserir o dissílabo ‘também’
Observemos o ‘se’, em arranjos diferentes. Se o pai não castiga, logo o filho desobedece. Éconjunção temporal causal. Se eu te amei sempre, por que sou abandonado?! Conjunção causal. Ignoro se António já veio de Lisboa. Advérbio pronominal interroga-tivo. Se Carlos é alto, a irmã não fica atrás. Conjunção concessiva. Certos autores lèem-se com prazer. Palavraapassivante ( são lidos). Trataram-me ontem como se como se eu fosse um Zé-ninguém. Conjunção comparativa hipotética.
Lx. Alcântara \ 1981-06-24
Certas palavras não são, a rigor, o sujeito da oração. Se nós, em cólera, dissermos para outrem: alguém as há-de pagar, não tendo em mente pessoa determinada, o dissílabo ‘alguém’ não é,a rigor, verdadeiro sujeito, visto não sabermos de quem se trata. Existe, de facto, mas sendo impossível determinar a pessoa, não pode apontar-se!
Por ser deste modo, reconhecemos logo o facto seguin-te: palavras há que não são, a rigor, o sujeito da oração; apenas o representam. Tomando agora em conta a psicologia dum povo qualquer, o génio da Língua , os costumes peculiares e a maneira própria de realizar-se , chegaremos breve a esta conclusão: o ‘se’ da frase “vive-se mal” nem é sujeito nem o representa.
Registemos, a propósito, uma série de factores que, progressivamente, vão atenuando a nossa afirmação e ocultando o sujeito. Ponto de partida: tu és palerma! Atenuação: sois uns paler-mas! Vocês são palermas! Os meninos são palermas! Esta gente é palerma! Não se pensa já! Vive-se agora assim!
Este ‘se’ é, de facto, o sujeito? Representa ali o sujeito da oração? Não é propósito firme afastá-lo da vista, ocultando o alvo?!
Alcântara/ 1981-06-26 Cont. Se
João cortou-se: conjugação pronominal e também refle-xa, pois esta acção não passa do sujeito. e o dito ‘se’ representa ali a pessoa do João. Pedro e Maria amam-se. A acção expressa é retribuída mutuamente: por isso, pronome pessoal recíproco.
Não se trabalha, não se ganha também! Como véu espesso que tira a luz e encobre os objectos, assim este ‘se’ vem a compor-tar-se, em ordem ao sujeito. Por esta razão, não parece descabido chamar-lhe agora pronome indefinido, pois a oração tem sujeito, sim, mas indeterminado! O dito ‘se’ é uma palavra enguiçada! Subs-tantivado pelo artigo desempenha neste caso a função de nome!
Ficou-se a olhar para a longa estrada. Chamando-lhe agora partícula de realce, não é desacertado: pode suprimir-se, não fazendo falta! Lembram-me ainda cantares da minha terra, se bem que eu saí dela tão cedo, que era para olvida-los! Aqui, afigura-se já conjunção adversativa, pois equivale a ‘contudo’
Com tanta variedade e acepções diferentes, onde vamos incluir o pequeno vocábulo ?! Terrível palavra é, de facto, o ‘não’ , disse Vieira. Terrível palavra é, de facto, o ‘se’, dizemos nós todos!
Siga cada um seus gostos pessoais, que nem por isso este nosso mundo ficará mais pobre!
Alcântara / 1981-06-3 Imperativo .
Eis um dos cinco modos que a gramática apresenta. Segundo as circunstâncias, designa ele: ordem, exortação; pedido, permissão; preceito e concessão. Dispondo somente das segundas pessoas e não sendo usado na forma negativa, é, pois, forçoso indicqr os tempos que suprem tal carência.
Para tanto, recorre a nossa Língua ao presente conjun-tivo; ao imperfeito e mais que perfeito; ao futuro indicativo e tam-bém ao infinitivo, Exemplos: ninguém faça mal, às atinências que daí lhe venha bem; não bebas água fria, tomando coisas quentes; viesses mais cedo; tivesses cumprido a tua obrigação; honrarás pai e mãe; não mexer nos lábios!
O imperativo inglês é completo em si mesmo, quer dizer, usa-se, por via de regra, em todas as pessoas. Recorre esta Língua a um verbo auxiliar : to let. Exemplo: let me read; read; let him , her, it read; let us read; let them read.
Alcântara/ 1981-o7-o1
A origem exacta do nosso imperativo vamos encontrá-la, como é sabido, no imperativo da Língua latina: ama, amate (ama, amai). A segunda forma apresenta a evolução: amate- ama-de- amae- amai. Abrandamento do t em d; queda da consoante intervocálica sonora; sinérese ( redução de duas sílabas a uma só)
A forma supletiva do imperativo que tem mais aplicação é o presente do conjuntivo: não desças daí; não façamos a outrem o que não queremos nos façam a nós; seja eu ditoso, ao menos na outra vida; obriguem-se todos e façam comer as outras pessoas.
Apesar do seu largo emprego, não abrange, sozinho, todos os casos da nossa Língua. É do imperativo que estou falando. O futuro imperfeito é chamado nos preceitos, leis e conselhos de carácter moral: não furtarás; não cometerás adultério; honrarás teu pai e tua mãe.
Alcântara / 1981-07-01 Dias da Semana
A semana actual de 7 dias não é novidade, pois já os Romanos se serviam dela. Só que havia diferença no chamo de tais dias, uma vez que o apodo era pagão. Este designativo figura hoje ainda nas Línguas europeias. à excepção da portuguesa. Que recorre para tanto ao Latim eclesiástico. Podemos verificá-lo, adu-zindo como exemplo algumas Línguas de maior projecção, no mundo civilizado.
Espanhol: Lunes ( segunda feira) dia da Lua; Martes, dia de Marte; Miércoles, dia de Mercúrio; Jueves, dia de Júpiter; Viernes, dia de Vénus ; schabat, palavra hebraica (sábado) que significa cessar ou descansar. Domingo é palavra que faz excepção, pois o seu étimo não é pagão. A partir de , Dominus ( Senhor), forma-se dominicum( do Senhor, relativo ao Senhor, cuja evolução nos trouxe ‘Domingo’.
É, portanto, na origem simples adjectivo, significando tratar-se de coisa sagrada, referente a Deus ou relacionada com a Divindade.
Alcântara \ 1981-07-21 Condicional
Em Português, considera-se ‘modo,’a par do infinitivo, imperativo, indicativo e conjuntivo. Desta maneira, vai pois a 5 o número de modos. Alguns autores excluem, de facto, o infinitivo e o próprio condicional. É deste que vou tratar, pois oferece dificulda-des, em qualquer idioma.
Primeiramente, alguns conceitos, para melhor enten-dermos. Falam as gramáticas do caso hipotético, abrangendo este trê modalidades: real, possível, irreal. Sirvam de exemplo os casos seguintes:1. se me escreveste, foste meu amigo; 2, se me escreve-res, serás meu amigo; se me tivesses escrito, terias sido meu ami-go.
A primeira cláusula ( período gramatical) como se ocu-pa dum facto real, exige o verbo no modo indicativo ( modo da rea-lidade) : a segunda, admitindo-o somente como facto possível, requer o verbo no modo conjuntivo ( modo da incerteza e da dúvi-da). A terceira, como nega implicitamente dois factos relacionados, ( escreverem-se e serem amigos) exige em Português o modo con-dicional.
Comparemos agora a nossa Língua ao idioma latino, pois que entre mãe e filha tem de haver por força, alguma seme-lhança. Dos casos apresentados, interessa mais o derradeiro. Entretanto, relacionemos tudo, para melhor compreensão.
1, Caso hipotético, mas do real: se me escreveste, foste meu amigo ( si mihi scripsisti, amicus fuisti). Comparação paralela, já na Língua-mãe , já na Língua românica.
Alcântara \ 1981-07-22 Cont
Caso hipotético, mas do possível. Se me escreveres, serás meu amigo. ( si mihi scripseris, amicus fueris. Tanto a Língua-mãe como a derivada utilizam, ao que vemos, o modo da incerteza, da possibilidade ou dúvida- o conjuntivo, embora os tempos res-pectivos não sejam coincidentes, morfologicamente.
Em Latim, não havia, realmente, futuro do conjuntivo, que era substituído pelo perfeito pretérito.
Caso hipotético do irreal. Antes de mais, devo esclarecer que tal designação é disparatada, só a mantendo um velho costume, que ninguém derrogou, até aos nossos dias. Somos chegados ao ponto nevrálgico: emprego exacto do condicional, propriamente dito. As três palavras do fim alertam o leitor, que vai perguntar: qual é então o condicional impropriamente dito? E há razão em fazê-lo, embora a expressão não seja adequada.
Deve chamar-se. a rigor, futuro imperfeito de tempo pretérito ou futuro perfeito de tempo pretérito É esta a razão pela qual os Ingleses o designam assim: future in the past.
Exemplifiquemos, para melhor entender. Mariano disse que, se estivesse bem disposto, viria a minha casa no dia seguinte. Estamos em presença dum futuro imperfeito de tempo pretérito e não de condicional. Realmente, a acção é futura, em relação ao presente e ao passado também
Alcântara \ 1981.-07-23 Cont
Eles, na minha presença, tinham garantido que, se António Pita continuasse impertinente, quando resolvesse arrepiar caminho, teria já perdido o ensejo de fazê-lo. Este é um futuro per-feito, mas de tempo pretérito, visto que uma acção futura, em rela-ção a um momento passado, ( teria perdido o ensejo), já estará consumada, antes de outra também futura ( resolver arrepiar cami-nho),
Chegados a este ponto, vamos ao condicional, propria-mente dito. Como já sabemos, este só tem lugar, no período hipoté-tico do caso irreal, podendo realizar-se o condicional presente ou pretérito, conforme tal acção é do presente, do tempo futuro. ou ainda do passado.
Atentemos agora em exemplos diversos, com vista directa a boa exposição. Se pudéssemos um dia ir até â Lua, no espaço dum mês e fosse gratuita a viagem, muita gente lá iria. Este é nitidamente um período hipotético, mas do irreal. Nega-se implici-tamente a acção da condicionada e da condicional. É falso ir à Lua, no espaço dum mês como também o é que muita gente lá vá. Aque-la acção é do presente, sendo por isso que se realizou o condicio-nal presente.
“ Os cientistas já disseram que, se os cálculos feitos não falhassem, viajaríamos um dia, pelo espaço infinito como fazemos na Terra”. Vê-se logo, à primeira mirada, que se trata duma acção de futuro e de pretérito. É por isso exactamente que pode usar-se o futuro, em vez do condicional . ( se os cálculos não falharem)
Akcântara \ 1981-07-24 Cont,
Se não fosse, realmente, o ilustre povo grego o mundo antigo teria sido mais pobre. Fala- se aqui duma acção passada de tempo pretérito; verifica-se também o caso irreal, pois que existiram os gregos antigos e o mundo não foi pobre, na área conjunta das Ciências e das Artes. Trata-se, pois, melhor diríamos, duma hipó-tese, que é irrealizável. Se não houvesse exames, como distingui-ríamos os bons alunos dos outros restantes?! Avulta, neste caso, uma acção de todo o tempo, razão pela qual foi utilizado o condi-cional presente. Que se trata ainda do caso hipotético, mas do irreal, também não há dúvida!
Se não continuasse a haver mais santos, heróis e cien-tistas, que seria do mundo?! Tem aqui lugar o condicional presente, pois se trata afinal de condicional de futuro. A hipótese em foco é também irrealizável. Resumindo: o modo condicional pode utilizar-se em duas acepções , harto diferentes: uma, que faz integrá-lo no modo indicativo; outra, que é rigorosamente condicional.
Como tempo do modo indicativo exprime simplesmente o que o povo inglês designa por ‘future in the past’ – futuro imperfei-to de pretérito ou futuro perfeito de pretérito. Sendo tempo do modo indicativo, exprime acção futura, em relação a um momento do pas-sado ( futuro imperfeito ou perfeito do passado): ele disse-me que , no dia segulnte, quando eu chegasse, já teria feito as pazes com o seu inim igo
Alcântara \ 1981-07-25 Oração Condicional
O emprego exacto do condicional tem dificuldades, por-que não é paralela, nas Línguas faladas ,a sua estrutura. Confirma-se o dito: 1. Se me segues, fico teu amigo; 2. se me seguires, ficarei teu amigo; 3. se me seguisses, ficaria teu amigo; 4. se me tivesses seguido, teria ficado teu amigo; 5. Vejamos agora frases na Língua francesa.
1 Si tu me suis, je deviens ton ami; 2. si tu me suis, je deviendrai ton ami; 3. si tu me suivais, je deviendrais ton ami; 4. si tu m’étais suivi, je serais devenu ton ami aussi.
Passemos agora à Língua inglesa. 1. If you follow me, I become your friend; 2, 1f you should follow me, I shall become your friend; 3. If you would follow me, I should become your friend; 4. If you had followed me,
I shall have become your friend too.
No idioma alemão. 1. Wenn du mir folgst,werde Ich dein Freund; 2. Wenn du wirst mir folgen, werde Ich dein Freund werden. 3. Wenn du mir folgtest, wurde Ich dein Freund werden . 4. Wenn du hattest mir gefolgen, werde Ich mein Freund geworden sein. 5 .Er sagte zu Johan das wenn er mir gefolgtest, wurde er dein Freund geworden sein. Alcântara \ Belém
8-3-1986 Síntese (da causa para os efeitos)
Como já foi dito, o objectivo, na educação é tornar o ser feliz e membro útil da sociedade, em que está inserido. Falhando os dois alvos ou até um deles, gorado fica o trabalho e funestas, por certo as consequências. Sendo, pois, uma questão vital, que não admite de facto, reversibilidade, importa ao máximo vigiá-la a rigor, para evitarmos decepções amargas.
O primeiro passo logo se deixa ver, é preparar bem os nossos educadores: pais e sacerdotes; os professores; os pedago-gos; psiquiatras e psicólogos. Se a causa falhar, não podemos, cer-tamente, aguardar bom fruto. O efeito está sempre de harmonia com a fonte produtora.
Sabemos também que, em milhares de casos falha a educação. É facto comprovado que não precisa argumentos. A experiência o atesta: di-lo claramente a observação. Tratando-se, pois, dum assunto vital, há-de lançar-se o machado à raiz da árvo-re, A parte dum corpo, já decomposto, deve extrair-se. Aquilo que já não tem recuperação possível é logo decepado. Embora doa, nin-guém hesita! Destrói-se uma parte, mas fica o resto. Agindo de outro modo, perdia-se o conjunto, nada se lucrando.
Chegamos agora ao ponto crucial. Qual foi o método, usado por hábito, cá no país? A resposta vem de chofre: o método sintético. Que vem a ser a síntese, no processo educativo? Na Filo-sofia, esmiúça-se lá o sentido exacto desta palavra e da sua contrá-ria. Entretanto, não nos dê cuidado tal definição. Vamos antes por partes, a fim de chegarmos à meta desejada, com bastante luz
Vejamos, pois, como é que se processa a educação entre nós. Ao processo utilizado chama Condillac “ Método de Tre-vas”Apresento a aplicação no campo religioso. A propósito, a gente da província que vem para Lisboa, em verdes anos, perde geral-mente, no todo ou em parte, os hábitos cristãos da sua terra natal. Há muitas excepções que são harto honrosas mas, por via de regra, todos sabemos que não é assim. Desleixo, talvez! Muitos afazeres? Fé bastante frouxa? Vivo temor de crítica mordaz? Podem ser diversos esses factores! Contudo. o que eu reputo fundamental é a chamada síntese na educação.
O educador não guia o educando. Leva-o. Não assiste o pupilo: força-o. Sendo assim, não descobre, por si, o caminho a seguir, pois é empurrado. Segue fatalmente o seu pedagogo, à maneira dum cego! Este não sabe para onde vai nem conhece o caminho. Confia noutro que o leva ao destino. Posso dar até um exemplo mais forte, embora desprimoroso: o muleteiro que leva o macho pela arreata.
Não sabe o animal para onde vai nem qual é o seu destino. Presta-se unicamente a ser levado. No campo religioso, ocorrem os factos, do modo seguinte: “ Filho, vai à Missa, que hoje é Domingo! Somos obrigados!É dever dum cristão cumprir o preceito! Menino, vai à catequese. Não podes faltar! Eu colho informações, acerca da presença e atitudes assumidas, em ordem a ti. “
“Menina, vamos fazer as nossas orações, aqui no inte-rior, segundo o costume. Amanhã é Natal! De nossa casa, vamos todos comungar, por isso, hoje, devemos preparar-nos, fazendo, já se vê, uma boa confissão.
9-3-1985 Cont.
Como depreendemos, a criança nada põe que venha de si. Vai levada, simplesmente. Não conhece nem escolhe. Não enxerga as razões. que levam a agir!.Por si, não pode encontrá-las. De fora, ninguém lhas aponta. Aqueles deveres são-lhe impostos assim, e ela obedece maquinalmemte. “
Aos pais deve-se obediência! Portanto é andar” Fazer o que eles dizem, aconselham e pedem ou então mandam. Para mais, o pároco do lugar é isso que ensina. Chama Condillac “Método de Trevas” ao ensino, pela síntese. Com muita razão lançou aquela frase! É desastroso! Como a própria chuva que não penetra no solo, deixando-o ressequido, assim também aquelas directrizes, acções e planos ficam ao de cima.
São actos inconscientes, só mecanizados que, não ten-do raízes na própria alma, aborrecem prestes, sendo relegados para segundo plano ou ainda pior, postos de parte, ao ser possível. É este, de facto, o ponto final! Sabemos muito bem que pomos logo à margem o que nos foi imposto, contra vontade. Que é que nós repelimos? O que nada nos diz! O que não entendemos! O que não dá prazer!
Pessoa desmotivada apenas vê enfado em práticas fre-quentes! Em ordem a Deus, aos santos e à Virgem bem como à Igreja, as coisas, geralmente, passam deste modo. Transponhamos agora o assunto em mãos para um campo diferente: a obediência aos pais. Comecemos já, preferindo a mãe, que é, na verdade, a primeira educadora, após os dois anos
Imaginemos, pois, que ela diz a seu filho:”Menino, vai a casa da vizinha pedir um pão emprestado, que o nosso acabou! Diz-lhe sem falta que, amanhã ou depois, já conto levar-lhe outro!” O menino ouviu, mas não lhe agradando, fez ali ouvidos de bom mercador! Tanto mais que se estava ensaiando para ir ter com outro, a fim de jogarem. A mãe insiste e ele recusa. Já o mesmo tentara, de outras vezes, com bom resultado.
Sendo bem sucedido, preparava-se logo para fazer o mesmo! A mãe, coitada, enchia-se de paciência e também de ner-vos, mas custava-lhe imenso castigar o filho. Nisto, entra o pai que, vendo a cena, perde a cabeça e, com voz alterada, assenta-lhe no rosto duas bofetadas. A criança vai então, mas é forçada.
Em seu peito lavra a revolta. Não compreende por que há-de ser assim! Abandonar o jogo, para fazer mandados que lhe custam imenso! Os outros meninos são mais felizes, pois vê-os brincar, descontraidamente.
Quem lhe dera a ele ter pais assim! Além disso, nota claramente que eles são felizes! Riem, cantam e saltam! Cumpriu as ordens, sim, mas em seu peito há desespero e grande revolta. O pai não é amigo, pois, caso contrário, não falava furioso nem o agredia! Aquilo, pensava ele, era uma agressão! Que remédio tinha senão obedecer?!
Dali por diante, era já mais pesada a sua obediência. Ficavam dois a mandar! Se ele fosse já maior! Teria de aguentar, até ser mais crescido! Mais tarde, porém, veria melhor o que tinha de fazer: recusar simplesmente ou então, abandonar para sempre a casa paterna.
Por estes quadros, vemos claramente o que dá na prá-tica, a educação por síntese, quer dizer, semmotivações . É um processo errado, falso, perigoso, cruel e desumano. A causa basilar de tantas deserções, já de seminaristas, já de sacerdotes, frades e freiras vem daqui exactamente!
Impor a vontade, categoricamente, seja a quem for é um caminho errado. O educando não pesa, não conta, não assente! Fica, pois, à margem de qualquer educação! Mais: torna-se pior do que era antes. Agora, portanto, é mais um ser despeitado, cheio de rancor, abrasado em vingança. Por isso, fará rumo contrário ao que lhe fora imposto.

BELÉM ANÁLISE (dos efeitos para a caus) 10-3-1985
Segue a análise o caminho inverso da chamada ‘sínte-se’, pois busca no agir a via natural: vai seguramente do efeito para a causa. Assim, a criança, ao corrente das razões que a levam a agir, escolhe por si mesma, sedo então guiada mas não levada; assistida, mas não forçada. É exactamente o caminho inverso, como já foi dito e repisado. A outra vai da causa para o efeito. Impõe, com autoridade, actuando sempre dogmaticamente, A von-tade alheia é lei suprema. Nem se discute nem se põe em causa, para reflectir.
Vamos, pois, seguindo o caminho da análise, via natural e defensável, na educação. No Diário anterior, apresentei como alvo as práticas religiosas e a obediência aos pais. Retomemos hoje os ditos assuntos, aplicando a análise.
1º Aspecto religioso: Missa e confissão ; comunhão e cate-quese; 2º obediência aos pais, começando pela mãe. “Olha, meu filho, sabes, por ventura, quem nos deu o ser e mantém a vida? Quem vela por nós, a todo momento, concedendo-nos favores, que nunca pagamos? Quem morreu por nós, expirando numa cruz, para livrar-nos do Inferno? Quem é Providência, a tudo recorrendo, para que nada nos falte?
-- Quem é, mãezinha? Deve ser muito bom e um grande amigo, para fazer tanto bem! Gostaria igualmente, de fazer alguma coisa, a fim de mostrar a minha gratidão. Que poderei fazer?
-- Meu filhinho, por seres agradecido, Ele com certeza vai gostar de ti. Procura agradar-lhe e fazer o que Ele manda, para que, finalmente, ganhes o Céu!
-- Que é o Céu, mãezinha? – Um Lugar maravilhoso, onde vive o Senhor com a Corte Celeste. Todo ser humano ali tem espaço, que Deus nos ganhou, pela morte cruenta do Senhor Jesus Cristo
-- E como sabemos o que é que Ele quer? -- Os Man-damentos constituem um resumo da sua vontade. Para sabermos, em pormenor, o que Ele deseja, basta abrir os Evangelhos, ler e reflectir!
-- Se Ele é teu amigo, quero amá-l’O também e dar-lhe muito gosto! Praticamente, como devo orientar.me? Quem nos diz, se for preciso, o que o Senhor nos quer?
--Assistir à Missa, tanto nos Domingos como nos dias santos; ir à catequese; para O conhecermos; recorrer à confissão e também à comunhão.
-- Mas isso da Missa não é enfadonho?! -- Bem ao con-trário! Tu não sabes, meu filho? A Missa é a actualização da morte do Senhor, no Monte Calvário, em Jerusalém
-- Mas nada nos diz que ali há morte! -- Repara bem, meu filho! O pão e o vinho, após a conversão, no Corpo e Sangue do Senhor Jesus, estão separados! Assim, dão-nos pronto a ideia de morte! Esta é incruenta, mas a vítima é a mesma!
--Se assistisses à morte de teu bom pai, assim com maus tratos, que é que fazias?
-- Tinha muita pena e ficava muito triste!
-- Pois aí tens! Por outro lado, Jesus Cristo fica ali pre-sente, pela conversão da matéria oferecida, no corpo e no sangue do Senhor Jesus.
-- Por que é que ficou em pão?
-- Para nós O recebermos e servir-nos de alimento. Para isso, purificamos a nossa consciência, declarando os pecados, cheios de confusão e arrependimento.
-- Agora já sei por que hei-de ir à Missa, igualmente à confissão e também à Comunhão. Vou gostar muito. Jesus é meu amigo! A Ele devo tudo. Por isso, quero também amá-lO e dar-lhe muito gosto. Vou fazer tudo o que Ele deseja.
Belém \ 11-3-1986 Cont,
2º Obediência aos pais
Com esta virtude ou outra qualquer, dá-se o mesmo caso. A sujeição a outrem acarreta problemas. E então nos primei-ros anos! Quem obedece renega-se a si mesmo, contraria seus hábitos, mortifica a vontade e logo renuncia ao que lhe dá prazer. Daqui ressalta claro que não é fácil tarefa. Só motivada a criança obedece. Impor secamente, por forma arbitrária, e jeito dogmático seja o que for, não surte efeito.
Só por ideal, escolhido por alguém e deveras amado! Seja como for, para que dignifique, é necessário que seja a mesma pes-soa a querê-la também, mercê de razões, que ela própria descobre ou alguém lhe indica e ela aprova também.
O caso apresentado noutro Diário é o que volta de novo. Postas as coisas como já se encontravam, ao chegar o pai, que se impunha ali que este fizesse? Desautorizar a mãe não era aconse-lhável. Entretanto, igualmente o não era a atitude que assumiu. Modos autoritários, num educador, são condenáveis. É o triste famoso “posso, quero e mando”, que faz a ruína de muitas existên-cias.
Que devia fazer o referido pai, naquelas circunstân-cias? Muito simplesmente : falar à inteligência e mais ao coração daquele seu filho. Para o motivar, dir-lhe-ia assim: meu filho, anda cá. Dá-me um beijinho! Olha: eu gosto de ti e da tua mãezinha! Ela é muito nossa amiga! Foi ela e eu quem contribuiu para que tu exis-tisses. A Deus do Céu deves tu mais, que é Ele de facto, o autor da vida.
Nós somos instrumentos que Ele afeiçoou, para fazer-mos as suas vezes. Entretanto, depois d’Ele , é a nós que mais deves.
Se, na verdade, fiz muito por ti, alguém neste mundo, fez mais do que eu! Ainda antes de vires à luz, encontrando-te junto do seu coração, era ela, sim, a tua querida mãe, que te embalava, com imensa ternura, distribuindo por ti o oxigénio do ar irradiando já para o teu corpo uma parte do seu sangue , numa palavra, ceden-do-te alimento do seu próprio sustento. Durante a gravidez, rogava ao Senhor te fizesse feliz e nenhum descaminho sofresse a tua vida.
Quem mais te amou, cá neste mundo e quem mais sofreu foi ela também. Recordo-me bem do que ela dizia, antes de nasceres! Construía para ti um mundo de sonho! Falava de ti a quem se aproximava. Tudo suportava, por amor de ti! Para dar-te à luz, quanto ela sofreu! Passado esse transe, era toda carinho para o seu bebé! Longas noites velou, junto do teu berço. Ao menor movi-mento, esboçado por ti, logo estava a pino, a fim de servir-te.
Ainda tu, de facto, não sabias pedir, já ela se abeirava, trazendo logo quanto precisavas. E se, alta noite, gritavas com dores?! Então sofria igualmente, procurando investigar a causa do teu mal, dando-lhe remédio ou chamando o Médico, a fim de curar-te. Sem que lho pedisses, fazia ela tudo, com grande carinho e imenso desvelo. É, na verdade, a pessoa mais amiga, que tens, neste mundo.
Quantos beijos te deu que não retribuíste! Quem te amamentou, recusando leite estranho e cuidados mercenários?! Quem te limpava, ao sujares a roupa, na tua incontinência?! Quem mais sofreu com os teus problemas?! Como vês, é um ser adorável a tua mãezinha! Levanta os olhos para o seu rosto.
Vê como chora e deseja beijar-te, perdoando tuas fal-tas! Nisto, o pequeno, seja embora refilão, muito imperial e insubor-dinado, sente logo ânsia de reparar o mal feito. É ele mesmo que abraça e beija a mãe adorada, por um acto voluntário, consciente e amoroso. Escolhe o seu caminho. Sabidas agora as justas razões por que deve obedecer, já não hesita. Não precisa, depois, que o mande, de novo! Aquilo que o irritava dá-lhe agora prazer.
Aplicação da análise: recusa da síntese!
Belém \ Lisboa Vide-Entre-Vinhas
Não sei devidamente : ignoro a rigor o que é falar hoje da minha terra natal! Algo como sonho a esfumar-se ao longe, no largo horizonte! Há quanto a não vejo! Creio haver sido, em 1972 que eu a visitei, pela última vez, durante as férias grandes.
Acabavam os exames, no Liceu da Covlhã e eu dispu-nha-me já a deixar Manteigas, em cujo Externato leccionara 15 anos. Iria ver novas terras, um império glorioso, 500 anos Luso, onde a alma lusitana derramara sangue, luz, vida e amor! Entrava português: sairia, depois, já estrangeiro!
Vicissitudes da vida!
Pois antes da abalada enviara â minha aldeia um adeus melancólico, feito de carinho, ternura e paixão! Ao chegar lá abaixo, à estrada nacional, volvi para sempre um olhar saudoso, mergulhado em lágrimas, suspiros e ais. Recolhido em mim, fez-se luz diamantina e pude contemplar o fulgor do meu berço. Em espíri-to, embora, fui logo percorrendo as ruas contorcidas, onde as gies-tas, no Inverno, se curtiam, fermentando.
No mês de Março, fazia-se a limpeza, transportando-o para as leiras, que exultavam, de o ver! Concentrado em mim, via as casas humildes, parecendo cochichar, em diálogo sem fim. Lem-bravam, desde logo, figuras do passado, que a morte levara, dei-xando no peito amargura e saudade!
Atravessava a Portela, com a bica não longe, ao passo que lembrava, todo enleado, os jogos animados, que ali se efectua-vam. à beira da Páscoa. Era assim a péla (jogo) que vinha renas-cer, gerando em nossas almas alegria sem par.
Descia um pouco mais, deixando para trás o velho presbitério, onde padres virtuosos fizeram assento: José Maria Mar-tins ( quem me baptizou); José António Baptista; José Antunes Duarte, e Carlos Pina Paula, (actual Prior), que mudou para o Ter-reiro, onde levantara uma bela igreja e novo presbitério, anexo a ela.
Seguia depois a Escola primitiva e a taberna do Nunes, cau-sa de tantos ralhos, pranto e discórdia.
Agora, a Fonte do Cão, que era de mergulho e dava boa água para as casas vizinhas. Pela Rua da Oliveira, chegava-se, por fim, à casa saudosa, onde vi, deslumbrado ,a primeira luz. Ali me detive, quase arroubado! Oh! Casa da Portela, que olhas para o Terreiro, fala-me ainda, conta em pormenor o que guardas sobre mim! Diz-me, te peço, relata por miúdo o que os pais saudosos lá fizeram por mim! Esse amor, esse encanto, esses beijos sem fim, esse mundo sorridente, que o tempo me levou!
Belém \ Lisboa
18-4-1986 Cont.
Aih! Casa da Portela, na Rua da Oliveira, quão longe estou ficando! É que eu sofro imenso de ver-te indiferente! Infor-maram, há pouco, mas custa aceitá-lo! Sempre é verdade que ameaças ruína)! Quanto sofro com isso! És o símbolo perfeito do lento desabar de todos os sonhos e doces ilusões!
Tudo vai ficando, junto com a vida, que perdeu o seu impul-so. Mas ,ó casa amiga, retém firme o perfil, denegrida embora pela mão do tempo! É que, realmente, se fazes como digo, ainda o sonho não morre, insuflando-me alento.
Deixa primeiro que largue deste mundo! Guarda firme-mente os segredos que sabes! Acautela as memórias, para alento de meus anos, já conturbados , pelo muito voltear da roda fatal! Não permitas a estranhos que profanem teus muros ou invadam os recantos, onde fui tão feliz!
Sala e salita, quarto do fundo, onde vi, ao certo, a pri-meira luz! e tu, quarto escuro, fazei-me companhia, no final da existência! Deixai-me ser feliz, fixando embevecido vosso rosto ave-lhado. Permiti, sim, me apoie em vossas taipas, onde eu. tantas vezes, com passo ainda incerto, me encostava, em menino!
Falai-me calorosos, desses entes que adorei, com amor acendrado! Já possivelmente a terra os comeu? Seu espírito, porém, goza no Paraíso o prémio sem igual, que o Céu generoso oferta aos bons. Esses corpos, no entanto, agora já mirrados, hei-de vê-los um dia, mais formosos ainda do que eram neste mundo! O bom Pai do Céu, mediante seu poder, há-de transformá-los em corpos gloriosos
É por tudo isto que eu te acarinho, velha casa da Porte-la, onde fui tão amado, nesses anos de infância. E tu igualmente, ó cozinha empedrada, sê alento e conforto para o meu coração! Eras tão fumenta, em anos recuados! Sem a tua chaminé, foste, na ver-dade, o martírio de todos! Aquela que mais sofreu foi a mãe adora-da!
Penetrávamos em ti, curvados e chorosos, quase raste-jando. Mais tarde, viraste, com a tua chaminé, feita de granito! Mesmo assim feia, estreita e fummarenta, quero-te a valer, pois foi no teu seio que passei de facto, os melhores tempos, ao longo da infância, como da puerícia. E de ti, sótão escasso, que posso eu dizer? Há também recordações, para aqui registar!
Belém Cont.
19-4-1976
Deixa então, ó sótão amigo, que eu suba ainda, pela escada portátil e dê, uma vez mais um giro amoroso, pelo teu seio. Rentinho ao telhado, sempre de cócoras, evitava contusões na cabeça e nos braços .
Ia a ti por cebolas, batatas e maçãs ou então levava panelas, asados e caldeiros, para se deterem imobilizados. Quando vinha chuva ou fazia vento, surgia o problema que se punha a todos. As telhas partidas , no telhado, quase plano, deixavam infil-trar grossas pingas de água. Era logo um afã remediar esse mal, tocasse ainda a cabeça nas traves do telhado.
E tu, longo balcão do exterior, em que ouvia ressoar os passos conhecidos de entes amados! Sobretudo, à noitinha ou já por noite velha, quando o pai adorado voltava da estação, alagado em água! Tudo isto e o mais que não teria fim, me deixa a alma doente, vergada pela saudade. Também a ti não esqueço, funda loja da Portela, com paredes tão grossas, que figuram fortaleza!
Recebeste gado, provisões e lenha, nesses anos, já remotos, Depois, sofreste algum arranjo, destinando-te a usos, que não desdissessem. Guardo lembranças desses anos que passaram e me falam de ti.
Nesta hora de saudade, avivam-se na alma outros belos amores. Do outro lado da rua, erguia-se também uma velha habita-ção, que não posso olvidar. A simpática velhinha, a doce Ana Rosa, que me embalou em criança, era a alma dessa rua e o constante anelo da minha alma. O coração repartia-se igualmente por essa casa humilde. Partia a mãe adorada para as fainas do campo? Dei-xava-me entregue à querida vizinha. Quanto eu lhe queria não pos-so exprimi-o em meras palavras Que saudade imensa me está dila-cerando os seios de alma!
Deixa, pois. ó casa amiga , que penetre ainda agora no seio de teus muros! És qual santuário, aonde me dirijo como romei-ro, levando no meu peito o fascínio de criança! Abro a porta da varanda que dá para a sala? Que vejo eu logo? Dois olhos afagan-tes que me falam amorosos, dardejando prestesmente afagos e carícias.
Belém \ Lisboa
30-3-1986 Idioma Luso em sério risco
Não foi há muito ainda que eu ouvi o disparate! Aqui o deixo para memória. Chegou-me o caso pela televisão. Foi o seguinte: :”Vão haver muitos caos”. Escusado é dizer que se trata aqui dum erro palmar e, como tal, há-de ser eliminado! Caso contrá-rio, ao fim de alguns anos, faz-se irreconhecível esta Língua formo-sa! Ora bom. Sendo a mais espalhada, pelo mundo além, iria alguém reconhecê-la, passados 100 anos?!
Vamos, pois, eliminar estas chagas purulentas, antes que seja tarde! Como introdução, convém indicar o motivo exacto. pelo qual muita gente desliza para o erro. Se eu não me engano, situa-se a causa no intento necessário de fazer a concordância, entre o verbo e o sujeito. Pois não diz a Gramática: o verbo con-corda com o sujeito em número e pessoa?! Ninguém dirá: ‘o livro são bonitos!’Ou ainda: os livros é bonito!
Ora bem. Quando verbo haver significa existir, aconte-cer, ocorrer, emprega-se, por cá, na terceira pessoa do número sin-gular: há homens perversos; há casos delicados; há pessoas incor-rigíveis; há tantos dissabores, nesta vida atribulada! Se tiver um auxiliar, a construção é igual: vai haver muitos casos para lamentar! Vai haver tantos perigos, que receio falar deles! Usa-se, pois, no singular e nunca no plural!
Não me apraz entrar agora na análise sintáctica! Apesar de tudo, farei breves referências, a respeito do caso. A análise habitual todos a conhecem. Predicado: há; sujeito inexistente; complemento directo: homens perversos.
Isto é, de facto, o que temos ouvido, em nossas Escolas, ao longo do tempo. Consideram este verbo como impessoal, naquelas frases ou outras semelhantes. A mim repugna-me que haja uma acção, referência ou qualidade, sem um sujeito de qualquer nature-za. Seria uma casa sem alicerces! Uma planta sem raiz nem tronco Tanto assim é que as outras Línguas arranjam um termo que repre-sente o sujeito ou faça as suas vezes.
É o caso de: it, es, il, etc Se entroncamos no Latim a cons-trução” há homens”, encontraremos: sunt homines. Portanto. o sujeito é”homines”
Belém
14-4-1986
Tentei esquecer, mas não consegui. Dificilmente olvi-damos o bem que nos fazem; mais difícil se torna esquecer o mal. Ocorreu o facto, por fins de Fevereiro, lá para a Graça, caso não erre. Bem clama o povo: “ Desta água não beberei!”Em tantas vol-tas e reviravoltas, acontece ainda o que menos esperamos!
A propósito, recordei uma história, que um dia li, na África do Sul, em língua africânder e que passo a expor, usando uma síntese. Havia muito calor e uma seca terrível. Por esta razão, exauriram-se as fontes, ficando somente um poço com água, à dis-posição de todos os animais. Estava cheio, bem entendido, mas o bravo leão não saía dali, impedindo os outros de matar a sede.
Chegou até ao ponto de erguer um muro alto, em volta do poço, para afastar assim os pobres sedentos. Não contente com isso, estava sempre deitado, ali junto da linfa. Um belo dia, a lebre passou por lá e, notando o facto, concebeu um plano, que bem resolveu o magno problema. Que havia de ser?! Percorreu toda a zona, com grande brevidade e convidou todos os animais para um largo encontro, pondo-os ao corrente do que havia projectado.
Meu dito, meu feito! Traçadas as linhas e expostas a todos, esperaram bastante que o leão adormecesse. Depois, ergue-ram, a toda a pressa, um muro bem alto, em volta dele. Ao acordar, notando o sucedido, formou, desde logo um salto resoluto, mas nada conseguiu.
“ Estou tramado!”- murmurou surpreso, para os seus botões. Entretanto, rugiu fortemente : “ Deixai-me sair daqui!”
-- “Não!”- responderam os bichos. Tu foste malandro! Por isso mesmo, é que foste enjaulado!” Passados três dias, estava quase morto, por causa da sede!
--“ Deixai-me sair daqui - rogava ele então, já bastante mansinho! Não voltarei a ser malandro!”Perante a mudança, os bichos não hesitam: dão-lhe a liberdade. Agora, é já delicado e não diz jamais ser aquele o seu poço! Serviu-lhe de lição!
1986 Mais uma pincelada sobre Vide-Entre-Vinhas .
Junto â Casa da Portela, onde vi primeiro a luz, surge a velha moradia, habitada por alguém que trago no coração: Ana Rosa e seu marido, A minha história, desde pequenino, correu para-lela à deste casal, que perdera a filha única, em 1918.Revivamos, no presente, o que houve no passado. Abeiremo-nos, pois, da casa humilde e velhinha, onde mora gente honrada , que eu adorava, desde bebé.
Ei-la que aparece, em primeiro lugar e vem logo beijar-me, estendendo seus braços, que me cingem diligentes. Eu deixo enredar-me, porque sinto prazer… quase arroubamento! Entretanto, olho para a esquerda e lá no interior, já um tanto escuro, diviso a extremidade a um velho tear, que funciona amiúde.
À direita da sala, abre-se uma porta, que me deixa pas-sar, rumo à cozinha, lá mesmo ao fundo. Antes de chegar, atraves-so uma quadra, escura também, que serve de corredor, algo estrangulado e bastante irregular, sendo aproveitado para arruma-ções. Era a cozinha, o lugar ideal para o menino, tão amimado!
Entre as várias cenas que ali decorreram, há duas sobretudo, que mantêm bem viva toda a poesia do meu tempo de criança: a ceia com o pobre que nos batia à porta; o picar do queijo, que fornecia o “borrego” Era este, bem entendido, um pedaço do queijo, já espremido. Tanto me sabia, nesse tempo inesquecível!
Junto à pilheira, ardiam, os cavacos, e ao centro da lareira erguia-se a banca, mesinha redonda com breve tripé. Servia para tudo: caçoula comum, donde todos comíamos; francela perfurada, para o acincho, e tudo o mais. Quanto eu gostava de passar no local as horas de menino!
Sendo o primeiro filho, não tinha ninguém com quem brincar. Em tal caso, era a ti Ana a maior aspiração que eu podia alimentar. De sua casa, entesto para a horta, deixando a loja térrea, onde as 4 cabrinhas levam toda a noite, remoendo o pasto. São elas de nome: a Negra e a Nogueira; segue a Laranja e, por fim, o Rouxinol .
Tão meigas cabrinhas parecem entender! Como sentem pra-zer em dar seu leite àqueles velhinhos! Com ele, fazia a ti Ana belos quejinhos, que seriam vendidos, em Celorico da beira. O soro res-tante comíamo- lo nós.
Pois a horta referida é outro lugar que me aviva a sau-dade.Tinha figos em Junho, mas o mel delicioso, que o velhote extraía, já no Outono, não pode esquecer! Ao longo da parede, abrigados de Nascente, lá se erguiam os cortços, que me faziam cismar!
Entrando no recinto, divisava-se à esquerda, logo a meia altura da parede lateral, a cheirosa hortelã. Do lado contrário, surgia a oliveira, que dá o nome à rua antiga. Em frente da porta, junto do couval, avultava um monte, feito de esterco, que o bom António Cândido ia aumentando, com pazadas sucessivas do que ele encontrava , ao longo dos caminhos.
Belém \ 21-4-1986
Agora, volto já costas à Rua da Oliveira, endireitando para o Terreiro. Antes de chegar, passo pela igreja, â casa antiga do velho Cabral, alma negra das crianças, que invadiam o adro ou roubavam as maçãs, no Chão da Dona Maria. No templo velhinho, recebi o Baptismo, sendo ali preparado, alguns anos mais tarde, para a Comunhão.
Que momentos deliciosos ali não passei, já pelo Natal, contemplando o Presépio, já no tempo da Páscoa ou em dias festi-vos , quando o velho templo se enchia de fiéis! O caduco Santo Amaro, com o longo ‘cajado’ é que chamava a atenção! Vendo-o tão sisudo, fazia-me pensar! Os outros santos, em tamanho inferior, não me eram suspeitos! Aquele, porém, trazia-me intrigado!
Recordo também a reza do Terço, que se fazia ali, à boca da noite, culminando em geral, com a Bênção do Santíssimo. Por via de regra, crianças e velhotes aproveitavam logo este belo ensejo para dormir um pouco, encostando-se às paredes. Eu, porém, não podia fazê-lo, que dois olhos vigilantes se cravavam em mim, para eu rezar!
Às vezes, para distrair-me, tentava penetrar no vão da sacristia, mas o velho Cabra levava-se prestes de todos os diabos, não dando luz verde! Ele, afinal, que deleitava as crianças, no forno da Aldeia, em noites de Inverno, era na sacristia o terror dos miú-dos. Enfim, viragens da sorte! Recomendação, talvez, do velho Prior, o padre José Maria?
Continuando a romagem, chego ao Terreiro. Lugar de encontros, para velhos e novos, era sempre agradável passa por ali e deter-me um pouco. Havia bons encontros para segredinhos, jogos em barda e correrias loucas. Lembra-me, a propósito, o jogo da péla, a salsa-verde, o perdi-saco e o escondedor, para não falar já do agitado salti-vão e do pilha-três. Uma série de lembranças que se diluem fundo na poeira dos tempos., mas ainda conservam muito fascínio!
Falta só memoriar a fogueira do Natal, para a qual se trazia largo combustível , em que primava um tronco enorme de velho castanheiro. Movimentá-lo era o cabo dos trabalhos !
Da casa da Portela, eu via deslumbrado as faúlhas doi-dejantes, pairando no ar, como abelhas desavindas.
Belém
22-4-1986 Cont.
Do Terreiro antigo, esse Largo memorável, onde todos se encontravam, já para a conversa, dando livre curso à leve fantasia, já para o ingresso em bailados domingueiros. a fim de ter ocasião de falar em suas penas, mágoas e dores, volvo uma vez mais um olhar retrospectivo, recordando lugares, personagens e factos, que ficaram vincados para todo o sempre.
Ficava à beira da rua a baiúca do Nunes, onde os inve-terados passavam, em delícia, horas esquecidas, moendo ali a substância para as despesas da casa. Não longe da taberna, mos-trava-se ufana a velha Escola do povo, que era sombreada por nogueira vultuosa, em cujos ramos, flexíveis e bamboleamtes, tan-tas vezes bifurcado, passava eu as horas mais gratas.
Já mais abaixo, na mesma rua e à beira dela, na vizi-nhança da velha igreja, ergue-se a casa do velho Cabral, zeloso sacristão desta paróquia. Lembro aqui também o mordaz Carriço, que nos últimos anos levava o garotio a medir em público forças e coragem, na dura calçada!
Quem passasse por ali, a dadas horas, encontrava decerto a velha Tomásia, que toda se alegrava, inquirindo alguém, sobre o filho Mateus, residente, ao que julgo, nos Estados Unidos. Também não faltava, já exausto da vida e labutas que impõe, o enfermiço, José do Adro, apertando o estômago, que o fazia penar
Em frente do Largo, no lugar de honra e sala de visitas de Vide-Entre –Vinhas, avista-se logo a casa dos Portugais, que passavam, noutras eras, por gente abastada, se é que não eram tidos pelos ‘ricos da Aldeia’. A gora, deixo o local, rumando ao Outeiro, onde foi inaugurada, em 1931, a Escola Masculina, que ali frequentei, para fazer a 4ª Classe, no ano seguinte. Exercia então o cargo o professor Ribeiro, enquanto Dona Clementina, sua jovem esposa, continuava presidindo à Feminina., lá na Portela.
Foi um ano agitado e cheio de problemas. Não tínha-mos bases e era necessário aparecer alguém nos exames de Julho. Por isso a’férula’ fervia , sem direito a folga. Ao todo, levei uma reguada, por ter sido moderado , a bater no Joaquim. “ Carrega nesses diabos”, dizia ele animoso, querendo levar a cabo a tarefa entre mãos!
Deste sítio, inflectindo para a Laja, chego apressado ao termo da aldeia, em cuja última casa vivia uma velhinha toda bon-dade, que era minha avó. Ceguinha já, exultava de alegria, quando a visitava. Ouço ainda o ressoar vibrante da sua voz.
--Ó minha avó!
-- Entra cá,mê netinho!
Belém???????????????????????????????????????????????????????????????????????????
23-4-1986 Cont,
Nas idas â Laja, encontrava colegas, que me divertiam. Era, na verdade, o Joaquim Martins e o António Ferreiro, De vez em quando, se eu lhes tardava, subiam â Portela, para novo encontro. Já Deus chamou esses companheiros, de quem guardo, saudoso, gratas recordações. Uma delas é a que segue.
Encontrando-me na Laja, diz afogueado o Tonho Ferrei-ro: Ó Pedro. hás-de ir connosco à poça do Barreiro! Toma-se lá banho! Aquilo é bom, como vais ver! Está abasbadinha, a mais não poder!
-- Oh! Eu não sei nadar! Tenho medo!
--Por essa razão, escusas de ter medo! Anda daí!
Assegurada já a minha protecção e livre de perigo, ( assim o julgava) lá vou com eles, pois era, na verdade, uma grata experiên-cia. Chegado à borda, noto desde logo que a linfa espelhada está rasante! Uma tentação, para os rapazes treinados! Bom!
Já desnudados, atiram-se os dois, imergindo no líquido, ao passo que eu, preparado igualmente, estava acocorado no largo bordo. Vendo-me hesitante, a meter o dedo no seio da água, a fim de saber a temperatura, encorajam-me outra vez, com muita insis-tência e palavras de apoio.
Eu, porém, é que não decidia. A superfície líquida, espelhada e cristalina, infundia-me receio. Nunca o fizera! A presa era grande, alta em excesso e desconhecida. Que haveria lá den-tro? Pedras, calhaus, silvas e urtigas? Animalejos, harto peçonhen-tos?! Era um bico -de -obra!
Nisto, o Tonho Ferreiro, vendo sem efeito pedidos e conselhos, empurra-me logo, sem qualquer aviso, para dentro da água! Era o meu baptismo! Coisa excitante e, por isso mesmo indescritível! Esvaíra-se o temor! Abrindo a boca, engoli um pouco de água, mas não prejudicou! Um banho forçado, mas proveitoso! Valeu a pena! Entretanto, os dois companheiros riam a bom rir, enquanto eu, algo atrapalhado vinha ao de cima, ganhando cora-gem.
Os ensaios da vida, por vezes dolorosos, trazem bene-fícios de natureza vária. Minha mãe guardava-me sem tréguas, impedindo a convivência, fosse com quem fosse! Só às fugidas e com raridade eu podia escapar-lhe! Foram eles, como vemos, quem tirou do meu peito o receio de nadar!
Belém
24-4-1986 Cont.
Já que se trata de ensaios, aí vai mais um, que me foi proveitoso. Até aos 12 anos, era sempre humilhado, se me obrigava alguém a medir as forças com outro companheiro. Faltava a expe-riência, Não convivendo, que podia fazer?! Entretanto, se outros desafiavam, por aquelas palavras que todos conhecemos “queres alguma coisa comigo?”, eu não fugia, mas vinha a catástrofe!
Caía no chão, ficando envergonhado, enquanto os outros se riam de mim! Grave problema que eu, realmente, não sabia resolver!
Um dia, porém, diz o Manuel Diego, que era nosso cria-do. “ Olha, Pedro, quando passares à casa do Zé Lopes, vais ali desafiar o temido Zé ‘Catrino!’
Volvo eu logo, decidido e pronto: isso é que não! Tem mais três anos! Além disso, todos fogem dele! Não quero desafiá-lo! Ele deita-me abaixo!
Anda até aqui – atalha logo ele - vou-te ensinar como hás-de fazer! Tu és valente, mas não sabes lutar! Pões-te direito e não fazes força! Claro! Desse jeito, cais logo no chão! Repara bem no que vou dizer-te: Primeiro que tudo, alargas as pernas, firmando bem os pés; em seguida, curvas o tronco, cinges o parceiro pela cintura e enclavinhas os dedos, atrás das costas. Percebes?
-- Sim, claro!
Uma vez assim, ele fará esforço, para atirar-te ao chão, mas tu não cedes e fazes-lhe a ele o que intenta fazer-te.Está esclarecido? Bom. Então, quando formos daqui ( estávamos, à data, na Tapada Ribeira!) desafias logo o Zé ‘Catrino’.
Tentei de novo esquivar-me à luta, alegando razões. Ele, porém,
e que não desistia. Vendo-me hesitar e ficar pensativo, aduz incentivos que resolvem as dúvidas. Repara, diz ele, cheio de importância: não tenhas medo, porque eu estou lá, ao pé de ti, quando lutares. Se houver alguma coisa, deixa isso comigo! Eu acompanho-te e não deixo abusar! Esta saída confortou-me bastan-te, levando-me então a preferir o ‘sim’. Era uma aventura, um caso excepcional, ao menos para mim. Durante o caminho que é muito subido e algo tortuoso, veio-me sempre animando, para não desistir do propósito formado. Chegados à Lavandeira, solto um ai fundo que ele nota, de súbito.
“ Confiança! Tu és forte! Caías sempre, de não teres prática! Vais ver agora como tudo se altera!” Estávamos já, por bai-xo da latada. Espreitando para o pátio, desfecho eu logo: queres hoje alguma coisa?!
Belém
25-4-1985 Cont.
Ele, então, sai desembridado, capaz de me engolir! Ao primeiro safanão, atiro-o logo para a calçada, onde fica estatelado! Acto contínuo, levanta-se logo e tenta desforrar-se! À segunda arremetida, sucede-lhe o mesmo! Agora, pergunto eu: queres outra vez? “ Não! Já não quero mais!”
Começa nova etapa, na minha existência! Jamais esquecerei o ensino valioso do Manuel Diego!
Seguidamente, lembrando o passado, endireito ao Pisão! Vou decidido, pela Quinta do Crucho, que é melhor caminho e me traz à memória cenas de outro tempo. Vivia no local uma tia-avó, que dava pelo nome de Maria José. Era, de facto, irmã de minha avó, mãe de meu pai.
Em dia de Janeiras, lá estava caído! Nessa data, havia bela fruta, sedução e engodo para o rapazio! Bom! Entesto depois, ao chamado Corgo e breve penetro no Soito dos Ferrinhos. Nessa altura, havia ali belos castanheiros, que levavam fartura à casa de meus pais!
Descida a barreira, avistava-se logo a palheira do Pisão que, não sendo extensa, dava para tudo: gado e provisões, aco-modando-se estas no exíguo combarro. Por que vem o Pisão em primeiro lugar? Era a propriedade que meu pai distinguia, entre as demais. Fora ali criado: os tempos de menino como de adolescente não esquecem jamais!
Pois o querido pai, nas horas disponíveis, encontrava-se ali, necessariamente. Sempre labutando assim melhorava a terra de regadio. Ao longo dos arretos, passava um ribeiro que, em tem-po de trovoada constituía um perigo. Extravasando, penetrava no lameiro, empurrando o solo arável, com fúria inaudita. Novos cui-dados para o pai infatigável! Limpar a barroca, erguer novas defe-sas, alinhar o terreno, desviar o curso de água! Enfim, mil tarefas diferentes que a furiosa tempestade originava sempre!
Quantas vezes se privava do almoço ou então comia tarde, já quase ao pôr-do-Sol, mercê de trabalhos que intentava realizar. Isso, porém, não era obstáculo! Já tardiamente, surgia minha mãe, com um pouco de comida, a fim de alimentar-se! As suas ocupa-ções, no serviço doméstico, absorviam-lhe as horas.
Não obstante o facto, ele sorria, cheio de paciência e boa disposição. Um marido ideal Um pai admirável! Sentava-se então para refazer-se, mas notava, desde logo, que faltava a colher! Não se enervava! A mesma calma! Igual serenidade! O mesmo bem-estar!
Ai! Pisão, situado no fundo, alenta-me agora com memórias antigas dos tempos de criança! Verte em meu peito essa grata poesia, encanto e maravilha , que me vinham de ti! Anos belos, em que os pais amorosos centravam em mim todo o seu afecto, sendo eu, na verdade , a razão cabal da sua existência.
Belém\ 26-4-1986
Falei do Pisão, que era, na verdade, a parte mais amada por aquele pai tão maravilhoso. Para baixo, era fácil deslo-car-se: no regresso, porém, havia dificuldades, sobretudo vindo com fardos! Tornava-se premente aliviar o corpo, descansando um tanto, com o peso no chão! Para isso, escolhia lugares, acomodados ao fim: geralmente, uma pedra , com tamanho vultuoso ou ainda uma parede que se prestasse ao caso.
Enquanto ele pôde, fazia-o com presteza e grande pra-zer. Depois, trazia fardos leves e, finalmente, vinha já sem nada! Nos últimos anos, renunciou, por inteiro, à ida ao Pisão. Subir a ver-tente já não era com ele, mesmo sem nada a carregar-lhe nos ombros.
Entretanto, génio empreendedor que hábitos de longe, não toleravam ficasse inactivo, começou então a pender, sensivel-mente, para o meu Carvalhal, pequena propriedade, a meio quiló-metro de Vide –Entre- Vinhas.
Psicologicamente, dizia-lhe pouco, uma vez que a her-dara da primeira esposa, com a qual habitara, durante escasso tempo. Efectivamente, a dita senhora morreu de parto. Como porém, a referida quintinha ficava à mão e tinha acesso que a tor-nava aceitável para qualquer veículo, endireitou para ali, fazendo agora as vezes do longínquo Pisão
Perdido ou achado, era lá que se encontrava. Em breve tempo, com mínimo esforço, alcançava o Carvalhal. Não havia subidas nem sequer mau piso! Era, portanto ideal para os anos derradeiros! Assaz laborioso, tentava melhorar o terreno de cultivo, donde tirava carradas sem conta de pedra miúda. Arroteava anual-mente um pequeno troço. Se o achava duro, insistia ainda, só desistindo, a muito custo.
Esta propiedade tinha, a princípio, cabana de colmo, lá mesmo ao fundo, situada a Norte. Como era lavrador, não queria fazenda sem cabanal, adequado às tarefas da premente lavoura. Construiu, depois, uma casa com loja, espaçosa e direita, para ali resguardar quanto fosse preciso. Ainda hoje existe, um pouco melhorada.
Pois o Carvalhal conquistou-me o afecto, por causa dis-so! Minha mãe frequentava igualmente este solo fértil, extraindo hortaliças que levava para casa. Estava, pois, destinado a ficar o património que hoje me pertence! A tamanha distància, no tempo e no espaço, figuro os velhinhos curvados sobre a terra, para dela tirarem o sustento dos filhos.
27-4-1986 \\’Belém Cont,????????????????????????????????????????????
Apeguei-me a valer, ao dito Carvalhal. As fainas come-çadas que meu pai largara, por não ter recursos de ordem financei-ra ou por débil saúde, resolvera eu prossegui-las um dia, assim que pudesse. Como o pensara assim o realizei. Durante as férias gran-des, tinha ali vasto campo, onde me distraísse! Sendo professor de Ensino Secundário, dispunha realmente dos meses de Verão, que eu aproveitava, para levar a cabo a melhoria do solo.
Metendo ombros à dura empresa, comecei pelo fundo: reforçar o muro ou reconstruí-lo, quando não erguê-lo, desde os fundamentos, onde o não havia. Sendo grande o desnível, cada vez que ruía, perdia-se o terreno, que logo se esgueirava para os vizinhos!
Ao longo deste muro, havia desde há muito, um renque de ginjeiras, que sugavam a terra com enorme prejuízo para toda a cultura. Ora, lançando as raízes, a toda a extensão, pelo solo ará-vel, impediam o renovo de bem produzir. A terra melhor quase nada prometia. Além disto, havia uma agravante: no tempo das ginjas, o garotio ousado saltava para ali, amarrotando as batateiras viçosas e partindo as árvores, para colherem os frutos maduros . Prejuízos a dobrar!
Concebi então uma ideia luminosa, com bastante pro-veito: mandar abrir valas, a um metro de fundo, arrancando, sem piedade, as raízes gulosas, que ficaram ao sol, para todo o sempre! Então, sim! Com a terra livre e um muro sólido, já eu descansava! Terminada esta fase, que foi morosa, voltei o olhar para o arreto do meio. Era estreito e exíguo! Desloquei então a parede protectora , alargando-o bastante e continuando o labor porfioso, que meu pai largara, por ser muito árduo!
Na extremidade, cavava-se um poço de pequenas dimensões, embora o querido pai tentasse alargá-lo, por várias vezes. Também ali me esforcei por dar-lhe amplitude. Ficou então enorme o poço da figueira! Em seguida, plantei várias árvores, que regava com amor e assiduidade.
Estes sítios saudosos, ligados à infância, continuados na puerícia e depois na adolescência constituem o mundo, em que fui tão feliz! Tempo inesquecível, que jamais olvidarei! Época de ouro, na minha existência, que se volveu, mais tarde, após a morte dos pais, em fase desamada e tempestuosa.
Belém\28-4-1986
Nesta romagem que fiz em espírito, recordei e vivi o tempo mais belo da minha existência. Agora, ao findar, quero ainda insistir em alguns pormenores, que me foram escapando, já que vêm ao de cima, a cores deslumbrantes. Hei-de começar pela casa da Portela, em Vide-Entre-Vinhas, pois foi ali que vi a primeira luz e recebi também os primeiros beijos. Aludirei igualmente à zona cir-cundante, onde ensaiei os meus primeiros passos, já sem amparo ou realizei meus jogos inocentes, durante a puerícia.
Quero distinguir o átrio da casa, onde jazi, por largos dias, abrasado em febre. Minha mãe, angustiada, passava rentinho, com as lágrimas nos olhos, ante a perspectiva de perder para sem-pre o único filho . Eu, embora criança, apercebi-me do facto e. de lágrimas nos olhos, ânsia veemente, inundada em carinho, afecto e paixão, supliquei uma vez: “minha mãe, não chore! Olhe que eu não morro!”
De facto, não morri, que Deus me preservou! Vem ago-ra a pêlo a zona do pátio da querida Ana Rosa, logo em frente da casa paterna. António Cândido havia preparado todos os objectos, para ali fazer a aguardente. Tirara já o vinho, guardando o mosto na dorna grande , que pusera em acção. Como o pátio é extenso, havia muito lugar: tudo ali cabia!
Os meus 4 anos acompanhavam a cena, com grande atenção! Bem. A operação começa e fico boquiaberto, presencian-do ali o grato evoluir daquela tarefa. Eis senão quando vejo correr um fio branquinho, para dentro de um asado. Nisto, abeiro-me tan-to, que António Cândido fez logo reparo e disse em voz alta: “ Que-res disso, meu filho? Espera aí, que eu já te dou!”
Então, foi buscar um copinho, dando-me a beber. Resultado? Fiquei logo borracho, caindo no chão, sem poder levan-tar-me! Recordo muito bem o que veio em seguida! Andava tudo à roda e, tentando erguer-me, não consegui! Entrementes, chega minha mãe, que olha estupefacta, quando eu lhe digo: minha mãe, dê-me uns pauzinhos. que não posso levantar-me!
Do mais que houve, não me lembro já! Foi esta borra-cheira um caso único. em toda a minha vida!
Belém \\ 29-4-1986 Cont,
Uma coisa puxa outra. A sombra da nogueira traz-me à lembrança outra similar, que se erguia, a poucos metros, no Chão da Fonte, mesmo juntinho à velha Escola. No Verão, era delicioso ficar por ali, ouvindo as conversas da gente idosa. Foi o caso que um dia se encontrava dialogando a vizinha Ana Rosa com Dona Raquel, professora Oficial de Vide-Entre-Vinhas..
Os meus anos inocentes prendiam-me à velhinha, que sempre me acarinhava, tratando-me qual filho. Ora, sucedia amiú-de que eu ouvia mal. Calculo, pois, que a finada Ana Rosa lhe falasse de mim, lastimando, com certeza, a minha enfermidade, em anos tão verdes. Não prestava atenção, que a idade era pouca. Apesar de tudo, em dada altura, interpela-me a propósito, a Dona Raquel, do modo seguinte: “ Tu ouves, menino?
-- Ovo, ovo – disparo eu logo!
Sem que eu o soubesse, apliquei prontamente a lei da analogia. Não sei como foi a reacção da Mestra, mas acho que nada fez, para me corrigi! À velha professora, que Deus lhe perdoe, pois nunca lutou pela instrução, com lucros visíveis. Ao longo de vários anos que ali permaneceu, ninguém jamais conseguiu diploma da 4ª classe ou então da 3ª. Ninguém foi a exame! Tempos, lasti-máveis! E pagava a gente, para viver na ignorância!
Desta vez, é a cozinha objecto de referência, em casa de Ana Rosa. Tenho para mim haver-me já referido às cenas princi-pais: a do ‘borrego’, ao fazer do queijo e a da ceia ‘democrática’, em que todos, incluindo os mendigos comíamos juntos, da bacia comum.
Na zona da cozinha, havia um buraco, não muito largo, que dava passagem à candeia de petróleo. Em tempo de Verão, não era necessário mas, no Inverno, o vento apagava-a , não podendo o ti Cândido levá-la na mão, para a loja das cabras, onde se encontrava a dorna das uvas
O caso, porém, resolvia-se fácil: a Ti Ana metia-a pres-tes, no orifício, aparando-a o ti Cândido, no interior da loja. Aqui, doisbelos quadros observava eu, com grande interesse: o mungir das cabrinhas e assim também o verificar da fermentação. Dava isto que pensar à pobre criança, que nada percebia do que estava ocorrendo, no interior da pipa.
30-4-1986 Cont.
A cena da ordenha era vulgar, não me dando quezília. Apesar de tudo, gostava de assistir, sem nunca faltar, quando pela noite, o facto ocorria. Queria muito à ti Ana Rosa, mas chegado o momento, deixava a cozinha, para fazer companhia ao velho ti Cândido.
As 4 cabrinhas eram modelares. Pareciam entender, mostrando bonomia, ao verem o dono com um grande ferrado, sus-penso da mão. Remoendo o pasto, elas próprias se abeiravam, transluzindo nos olhos o gosto de ser úteis! Com que paciência vol-tavam a traseira . ajeitando-se elas mesmas, em volta do ferrado!
Agora, o ti Cândido, pondo-se de cócoras, começava a mungi-las A primeira que vinha é que era atendida. O pastor, de sua parte, lidava com elas, como se, realmente, fossem pessoas. Fala-va com brandura , tocava-lhes manso, ao que elas acediam, obede-cendo ali, com a máxima presteza!
Agora, és tu, Laranja, monologava ele, com voz embrandecida e cheio de carinho. Logo ela se aproximava, dispon-do-se habilmente, para verter no fundo o leite precioso. “É a tua vez, ó Rouxinol! Vinha logo sem demora a amável cabrinha, para junto do dono, com igual finalidade.
És tu, Negra! Anda cá também! Não me esqueço de ti! Finalizada esta operação, dirigia-se à Riscada, que fazia a mesma coisa, mostrando satisfação de ser aliviada e alegrar o seu dono!
Eu, então, gozava a delícia, empoleirado na vizinha adega, onde havia palha, sobre a qual me recostava. Ao meio da loja, erguia-se a barreira, feita de canas. O gado respeitava-a, jamais saltando para o interior.
Após a vindima, que o vizinho Cândido fazia sozinho, cortando os cachos e trazendo-os à noite, juntamente com as cabras, metia as uvas na dorna, para ali fermentarem. Havia-a pre-parado, à Fonte do cão. Cheiinha de água, embuchava toda. Uma vez em condições, toca de levá-la para a loja da casa, onde era atestada de cachos maduros, que trouxera do Chão, da vizinha Tapada, Demoacho e da Ladeira.
Tudo isto que digo me era familiar e compreendia mui-tíssimo bem. Entretanto, a cena da candeia punha-me confuso. Acabada a ordenha, ripava da luz, suspensa num prego, metendo o objecto no interior da dorna.
Verificado o efeito na própria luz, falava sozinho, quase em surdina: ‘Inda num stá!’ Ao outro dia, a mesma operação! A candeia, porém, mantinha-se acesa. Finalmente, chegava o dia, em que ela se apagava! Nascia-lhe logo uma alma jubilosa, descarre-gando a alegria em palavras repuxadas:” Ó Ana, amanhã, tirar o
1-5-1986 Cont.
A cena anterior deixava-me suspenso e boquiaberto! A princípio, a candeia mantinha-se; De pois, já não! Apagava-se por-quê?! Bem eu perguntava, mas a resposta é que não vinha! Intriga-do sempre, dirigia-me a outrem, mas nem palavra! Que grande azar nascer uma pessoa em meios ignorantes!
O tempo foi correndo, até que um dia, já bastante mais tarde, noutro meio diferente, obtive a resposta, nos livros de Quími-ca. Afinal, o processo dava certo, embora o ti Cândido, não soubes-se explicar cientificamente o desenrolar dos factos correntes. O que apagava a luz era, realmente o óxido de carbono, em que o açúcar se tinha decomposto. O álcool ficava e o dito óxido era libertado, espalhando-se no ar. É certo e sabido que o dito óxido produz efeito contrário ao do oxigénio.
Julgo encontrar-me no bom caminho, embora nesta data, em que passo o texto a computador e corrija defeitos, eu cavalgue já os 93 anos.
X
Cabe também a vez à escapadela através da cozinha! O ti Cândido era pastor. Só de vez em quando ia a ti Ana acompa-nhar as cabrinhas. Ora, sendo assim, comecei a alimentar a ideia sedutora de ir acompanhá-la, passando o tempo no campo. Fazen-do saber isso à mãe, Margarida, obtive uma resposta que não me satisfez.
Minha mãe, deixa-me ir com o ti Cândido guardar as cabras, no Carvalhal?
-- Não vais, não! – diz ela prontamente! Está muito frio! Não sais de casa!”
Bom! Estava barrado este grande anseio! No entanto, não desisti! Pensei a valer e meditei a sério, resolvendo o caso de outra maneira. Comunicado o projecto aos meus vizinhos, foi logo apro-vado. Da cozinha da ti Ana, através da janela, que dava para a Rua, podia esgueirar-me, sem ninguém me ver. Era alta, bem entendido, mas junto da parede, na Rua da Portela, avultava uma cabana, feita de colmo.
Foi a salvação! O ti Cândido sustentou-me da janela, até me apoiar no topo da cortelha! Depois, escorreguei de mansi-nho, pelas giestas abaixo. até chegar à rocha. Estava salvo! Era uma estreia. Que dia maravilhoso, embora com frio!
O ti Cândido acendeu uma fogueira e tudo correu bem!
1986 A Tecla Mártir
Custa-me sempre fazer tal coisa! Entretanto, não posso evitá-lo! Efectivamente, se o erro continua, impõe-se realmente que o protesto se mantenha! Quem cala consente! Ora, é isso que eu não quero! De que é que se trata? De certos disparates que ouço na Televisão, o que bastante me indispõe, uma vez que é semente, lançada à terra, onde fica para sempre!
O assunto agora é de carácter linguístico: não doutrinal! Diversos casos se registaram, mas não vou decerto ocupar-me de todos. Apenas, já se vê, dos mais inaceitáveis, que me lembrem, de momento. Ouve-se amiúde este arranjo sintáctico: ‘não levem os vossos livros sem os pagar.
A construção que uso e se deve utilizar é a seguinte: não levem os seus livros ,sem os pagar. Há outra construção que também está certa; não leveis os vossos livros sem os pagar!
Qualquer outro arranjo é inaceitável, por ser disparatado. Vou mostrar isso, ainda uma vez mais. Se perguntarmos ao verbo quem leva os livros ( o sujeito da oração) vem a resposta: os senho-res, as senhoras; os meninos, as meninas; Vossas Excelências. A forma verbal ‘levem’ está na 3ª pessoa, o que é indicativo de trata-mento ‘cortês’
‘Não leveis os vossos livros’ também está correcta: ver-bo na 2ª, pronome(vós) na 2ª, Aqui tratamos por ‘tu’.
Belém \ 2-3-1986 Compressão A pretexto da palavra, surgem logo outras, com semelhança. É mera questão de fazer mudanças. Ao que vemos, trata-se apenas de mudar o prefixo, jogando sempre com o termo ‘pressão’ São, pois, derivadas por prefixação as seguintes palavras, que me vêm à ideia: compressão e repressão; depressão e impressão. Temos em jogo os seguintes prefixos: com, re, de, im (n), que vão alterando, por modo, parcial, o sentido rigoroso da palavra primitiva.
O prefixo ‘com’ significa actuação de elemento exterior (agente), com o fim de reforçar a acção de premir (calcar). Foi isto, exactamente, o que eu observei, na Rua de Alcântara, aqui em Lis-boa. Nas belas Ciências da Natureza, de que fui professor, quando estive em Manteigas, falava-se muito em pressão atmosférica( peso que o ar exerce na superfície dos corpos.
Se a memória não falha, é essa pressão de 1033 gramas. por centímetro quadrado. Quantas arrobas não pesam sobre nós! Como podemos aguentar centenas delas?! O Grande Arquitecto previu tudo isto e criou resistências que aguentassem tal pressão. Não interessa agora o que faz variar a mesma pressão, que não vem a propósito. O que intento pôr em foco é o que pode reforçar a dita pressão e seja constituído por agentes externos, de carácter diferente dos que vemos nos livros.???????????????????????????????????????????????????????????????????’
Neste passo, recordo um facto, ocorrido há anos, em certo lugar. Eu mesmo observei o decorrer da cena. Acabava de chegar, da minha aldeia, onde passara belas férias, para retomar as lidas no Colégio, onde era professor. Descendo uma rua, avisto em baixo um vulto de homem , a certa distância, fazendo limpeza às fossas nasais, sem se curvar.
A prática de anos e o grande à-vontade permitiam-lhe agir, sem grande curvatura. Mera inconsciência? Irresponsabilidade? Javardice em causa? Não sei exactamente. O que sei, na verdade, é que ele então, com certo movimento, levou o indicador `s superfí-cie externa do pobre nariz, arremessando para longe, mucosidades e imundície, aglomeradas lá.
Cá de cima, anotei o sucedido e fiquei enjoado! Por muito pouco não ia vomitando! Lá me aguentei conforme pude e tomei precauções, não fosse caso que viesse a acontecer-me coisa pior! O que eu tinha imaginado estava-se preparando - um aperto de mão, na minha pessoa! Eu que sou tão nojento! Podia lá ser! Bom! Homem prevenido vale por dois! Ouvi isto muitas vezes, ao longo da vida! Por isso mesmo, preveni-me a tempo!
Sabia de antemão que ele iria cumprimentar-me, segundo era hábito. Eu, por minha parte, sentia repulsa em tocar-lhe na imundície. Que podia fazer? Recuar? Era solução, mas não me convinha! Devia seguir, naquela direcção, Bem! Aventurei-me! Avanço resoluto e meto no bolso a mão direita! Ao chegar junto dele, esboçou leve jeito, com vista ao acto, mas logo desistiu, vendo ali bem a minha posição.
Estava salvo, ao menos daquela vez!
Belém
12-3-1986 \\ ??????????????????????????????????’ Deserções .
Chama-se desertor aquele que abandona a carreira encetada, por não corresponder à sua expectativa, haver sido imposta ou sugerida e não lhe dar prazer. Anda associado tal pro-ceder ao facto vergonhoso de trair uma causa ou então um ideal. Entretanto, nem sempre acontece.
Se alguém, por ventura, se não sente realizado, num dado sector, que não foi de sua escolha, e podia ter sido,( para não dizer “devia ter sido”) por que razão é que há-de manter-se contra von-tade?! Ficar acorrentado, mantendo sempre a frustração?! Que inte-resse tem isso?! Cà por mim, entendo que não deve hesitar-se um momento sequer!
Escravizado aos homens, quando o Céu nos deixa livres?! Como é isso?! Não percebo, não!
Quando a Igreja Católica estudou a fundo o caso espe-cial dos padres celibatários, que desejavam romper o compromisso tomado, na verdura dos anos, apareceram logo uns 80.000, a pedir a dispensa! Foi assombroso! Em 400.000! Nada menos de um 5º, para começar! Tenho para mim que não estava em causa a sua vocação! “Perderam-na!” – asseguram alguns! Como podiam perdê-la, se eles a não tinham?! Quem a tem não vai perdê-la, com tanta facilidade, embora se admitam casos do género.
Entretanto, por via de regra, não é isso que sucede! Muitos deles queriam o sacerdócio, mas fora do celibato, dando-se o caso, assim o julgo eu, de terem vocação. Como porém, a Igreja Católica não transige ainda, (fá-lo-á no futuro), diremos sem base, que não têm vocação, se não admite o celibato eclesiástico.
Chegámos a um ponto, deveras importante, no campo educativo Aqueles 80.000, logo de entrada, causaram espanto! E quantos ficaram que não tiveram coragem?! Quantos ainda que estavam decididos, mas não arriscaram o nome que tinham?! Não aplico restrições a todos os elementos Um número reduzido ( 10% ? ) manter-se-ia fiel ao antigo celibato, mas acho que não mais!
As dificuldades são de facto, enormes , em todos os campos. Quanto mais se avança, pela vida fora, mais elas se acu-mulam! Bom! Mas eu intento agora uma coisa diferente! Projecto nada menos que investigar a causa de tanta deserção! Se não me engano, vou descobri-la, ao menos em parte, no sistema educati-vo com o nome de ‘síntese’. Era tudo imposto, dogmaticamente.
Não se discutia nem se objectava! Mesmo já na Guarda, no Curso Teológico, os professores, de modo geral ( não abarco a todos), não aceitavam, pelo menos de bom grado, objecções à matéria e, muito menos, sérias discordâncias. Um dentre eles até levava a mal!
Bem. Tal sistema é o que há de pior! Apenas engollr, sem digerir! As razões pessoais não interessavam! “O mestre disse: bas-ta isso!” A quantos erros ‘ o mestre disse’ não está sujeito! Além disso o estudante pode ter, no momento, diversa posição.
Lembro-me agora dum facto assombroso, ocorrido em Roma, numa aula de Dogma . Era aluno, então, o urso dos estudan-tes, um distinto português, que chamavam Agostinho. Foi mais tarde bispo do Porto. O professor era, ao tempo, o cardeal Billot, considerado grande, entre os maiores. ????????????????????????????????????????????????????????????????
Havia para tema “A Santíssima Trindade”. Em dado momen-to, o famoso Agostinho apresenta, sem delongas , tremenda objec-ção, que faz suar o grande professor. Fica taciturno, pensa, apro-funda, sem dizer palavra, até findar a aula. Ouvindo o sinal, para os alunos saírem, diz ele então:” Nunca pensei que pudesse erguer-se tal objecção! Não sei responder! Peço oito dias para estudar o assunto e dar a resposta.
Não se deve proceder com intransigência, autoritarismo e dogmatismo! Seja o próprio aluno a achar o caminho! Partamos sempre do menos para o mais, do que é simples para o complexo. Guiemos, sim, mas não empurremos.Que seja o próprio a com-preender, abraçar e deduzir!
Belém
13-3-1986 Cont.
Voltando uma vez mais ao assunto em causa, faz-nos impressão o número vultuoso que logo desertou. Seriam traidores à causa da gteja? Não os tenho por isso! Seriam imprudentes, incon-siderados ou então levianos? Julgo que não! Até porque muitos deles perdiam bons lugares, sem terem a certeza, quanto aos do futuro. No entanto, lançaram-se de cabeça, aguentando firmes as consequências!
Seriam apóstatas? Muito longe disso! Quantos eu conheço que ficaram fiéis às práticas de piedade, executando-as regularmente, como por exemplo: a Missa, ao Domingo, a reza do Terço e prestação de serviços, no templo do Senhor, como simples leigos.
Tenho para mim que foram antes vítimas do velho sis-tema, utilizado ainda, no Seminário: engolir sempre, sem digerir! Aceitar, por norma, sem digerir! Aceitar, sem discussão! Avançar puxado! Que podia esperar-se da chamada síntese, aplicada a pre-ceito na educação? Obedecer cegamente, como se fora autómato!
Justificando o processo, iam os Mestres dizendo, com muita frequência:” Quem obedece nunca se engana! Entretanto, o Superior está sujeito a isso! Hoje, penso diferente: não aceito o primcípio. Quem se engana prejudica outrem, sendo obrigado a fazer recuos. Quem é que já os fez, dando em seguida a mão à palmatória?!
Desdizer-se ou recuar houve pouco, no mundo, quem o fizesse ou utilizasse! Lembro-me apenas de Santo Agostinho! Hou-ve mais? É natural! Apesar de tudo, contam-se bem! A propósito do assunto, vem à memória o Papa Paulo VI, que disse uma vez ao velho patriarca de Constantinopla:”Se fomos nós que tivemos a cul-pa, pedimos humildemente perdão aos nossos irmãos!”
Foi admirável essa atitude, embora ela não tenha o vigor e a beleza sem par de uma falta pessoal, que se confessa e logo repudia!
Aceitar, pois, deixar-se levar como pobre jumento que o dono conduz, puxando a arreata, dá péssimo efeito! Decorar apenas, receber opiniões e guardá-las sempre como arcanos celestes, é outro disparate! Não foi Descartes o autor famoso do Discurso do Método? Duvidar inicialmente e chegar à verdade, por esforço pes-soal! Assim, conhecemos as razões, procedendo ali como seres racionais.
Abusar da memória, com dano grave para a inteligên-cia, é outro fiasco. Entibia-se prestes o nosso raciocínio; debilita-se ainda a capacidade; afrouxa o critério. Engolir apenas, fazer mon-tões, isso não chega e é perigoso. O que vamos decorando é fruto alheio que se vai empilhando, para logo esquecer-se, volvido algum tempo! O que interessa não é empilhar! Isso é de outrem!
Se o não entendemos, assimilando os conceitos, e esten-dendo o nosso campo de acção, nada aproveita! Fazer retiros em barda e rezar sem fim, por serem impostos, nada aproveitam, uma vez que não penetram o cerne da alma. Imposições, ordens peremptórias, maneiras sacudidas e gestos ameaçadores fazem a tragédia que o amanhã nos dará.
É preciso, na verdade, que o pupilo raciocine, conheça as razões do seu agir quotidiano; seja consultado, para dar opinião; ouvido sempre, nos casos pessoais; atendido e ajudado, nos seus problemas; Numa palavra, ser tratado como gente e não como peça de grande maquinis-mo!.……………………………………………………………………………………………………………………………s Por caminho errado, obtém-se um manequim, um boneco animado ou um fantoche.
Agirá toda a vida como simples máquina. Se um dia raciocina e cai na razão, fica decepcionado e resolve o problema pela deserção! Volta costas ao fardo que lhe puseram nos ombros e, livre já de peias, faz rumo a seu mundo, onde pensa realizar-se.
Não contrafeito, mas sereno e confiado, inicia a cami-nhada, pelo trilho escolhido. A ninguém pede aviso e corre para a meta. Sente pena imensa de ter sido ingénuo e decide afoitamente não prestar seus ouvidos a contos de fadas! Quer vivas realidades: não fantasias a povoar-lhe o cérebro
Sendo tão perniciosos estes males que expus, urge combatê-los, com viva energia e pronta decisão. Reparar no aforis-mo: “Todos os conselhos tu ouvirás: só o teu tomarás!”
Ouvir, sim, mas sempre ficar no que parece melhor!
Belém \\1986 Igualdade de Classes
É este o alvo do Socialismo. Não me cabe a mim fazer as leis nem criar sistemas de tal natureza. Entretanto, posso dar opinião e expressar o que julgo, acerca do assunto. Antes de mais, ponho desde já as seguintes perguntas: 1 .seria bom?; 2 .seria possível?
A partir daqui, aparece já matéria que dá pano para mangas.
Bom era, certamente, que os bens deste mundo ficas-sem distribuídos, com equidade, evitando assim, dois graves extre-mos que nos enchem de pasmo, surpresa e desânimo: o amontoar de riqueza, nas mãos de poucos; a fome e a miséria atingindo a grande massa da pobre Humanidade. Haveria para todos o que fosse bastante, banindo da Terra tantas injustiças.
Como seria o mundo, se houvesse pão e tudo o mais, em todos os lares, para cada um viver decentemente! Capitalistas duros, açambarcadores, usurários crus e vis exploradores passa-riam à História, levando consigo o ferrete da ignomínia, como única lembrança, degradante e abominável.
2 . Seria possível? Hoc opus hic labor est (aqui é que está o busílis) ou aqui é que a porca torce o rabo! Ouso afirmar que não é possível! Portanto, é vão qualquer esforço, em tal sentido! Claro! Resta provar a minha afirmação. Não é difícil! Começo já!
Por incapacidade? Nâo é por isso! Apenas por falta de honestidade; por ambição desmedida, rancor e inveja. O resultado, na fatal inversão, era o que vinha em seguida: criaria decerto uma situação bem pior ainda que a primeira referida! Guerra civil, des-truição e até inversões: não é de facto o que interessa!
Dizer que é possível é mentir abertamente, já por mal-dade, já por miopia. Apear somente os que estão em cima e abrir um fosso maior ainda, criando assim maiores desigualdades, seria o resultado! Havendo para isso boa intenção, equidade e sensatez!
Mas não! É ver o que sucede, nos países socialistas (radicais). Os da cúpula é que têm tudo! São, a rigor, os novos capitalistas! Os do Partido creio terem o bastante: os opositores são os novos escravos do século XX. É esta, assim, a igualdade de classes?! Por tais razões, fundadas no que vejo, ouso então afir-mar que é utopia a situação invejada!
Belém
31-3-1986 Parábola do Filho Pródigo
Dentre as coisas belas que nos dão os Livros Santos, esta é, sem dúvida, uma das melhores. Encontra-se exarada no Evangelho de S, Lucas e mostra à evidência a grande misericórdia do Senhor nosso Deus, para com o pecador, quando ele se arre-pende e volta aos braços do Pai amoroso.
Abandonado o lar, para viver livremente, vai dissipando bens e saúde. Por fim, isolado e triste, reconsidera e chora. Ao lon-ge, dois olhos se projectam, pelo vasto horizonte, aguardando o momento de vê-lo chegar. Sabe com certeza que dor e privações, desengano e logros irão trazê-lo à casa paterna.
Regressa o infeliz que é o pecador, e seu pai, angustia-do, é o primeiro a vê-lo, ainda à distância. Vem já desiludido, sem bens nem esperança. Entretanto, seu pai aguarda ansioso que ele se abeire, para acarinhá-lo e dar-lhe incentivo. Corre, pois, ao seu encontro, desfazendo-se em mostras que lhe saem do peito. Segue a narrativa em línguas diferentes: Francês, Inglês. Alemão e Portu-guês. .
Vale a pena mergulhar nesta luz diamantina e ficar inundado.
Le fils perdu et retrouvé. The lost son. Der Vater und seine zwei Sohne. O filho perdido. 11 J Un home avait deux fils. 12 Le plus jeune dit à son père: Mon père, donne-moi la part de notre for-tune qui doit me revenir. Alors le père partagea la fortune entre ses deux fils.
11 There was a man who had two sons.
12 The younger one said to him: Give me now my share of hue property. So the man divided the property between his two son-sEin Mann hatte zwei Sohne,12
Der jungere sagte zu seinem Vater: Gib mir den Teil der Herbschaftder zu mir zustent. Da teilte der Vater seinen Besitz unter die beiden auf.
11 Um homem tinha dois filhos. 12 O mais novo disse ao pai: Dá-me a parte dos bens que me corresponde, E o pai repartiu os bens entre os dois
Belém \ 1-4-1986 \ Cont.
13 Peu de jours après, le plus jeune fils vendit sa part de la properté et partit avec son argent. pour un pays éloigné. Là, il vécut dans le désordre et dissipa aussi sa fortune.
13 After a few days, the younger son sold his part of tee property and left home. with the money, He went to a country, far away. where he wasted his money in reckless living
13 Nach ein paar Tagen, machte der jungere Sohn seinen ganzen Anteil zu Geld und zog in die Fremde Dort, lebte er in saus und Braus und verubelte alles,
13 Poucos dias depois, o filho mais novo, juntan-do tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía., vivendo dissolutamente.
14 Quand il eu tout dépensé, une grande famine survint dans ce pays, et il commença à manquer du nécessaire.
14 He spent everythng he had.Then a severe fam-ine spread over that country ans he was left without a thing.
14 Als er nicht mehr hatte, brach in jene land eine grosse Hungersnot aus; da ging es him schlecht.
14 Tendo gasto tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passar privações.
15 Il alla donc se mettre au service d’un des habi-tants du pays qui l’envoya dans ses champs garder les cochons.
15 So he went to work for one of the citizens of that country who sent him out to his farm, to take care of the pigs.
15 Er fand schliesslich Arbeit by einem Burger-jenes Landes der schickte ihn zum Schweinehutten aufs Feld.
15 Então foi servir a um dos habitantes daquela terra -, que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Belém
16 Il aurait bien voulu se nourir des fruits du car-cubier, mais personne ne lui en donnait
16 He wished he could fill himself with the bean pods the pigs ate, but no one gave him anything to eat.
16 Er war so hungrich dass er auch mit dem Schweie-futter zufrieden gewesen ware, aber selbst dass verwehrte man ihm.
16 Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
17 Alors, se mit à réléchir, sur sa situation et il se dit: Tous lles ouvriers de mon pére ont plus de nourriture quils n’en peuvent manger, tandis que moi, ici, je meurs de faim.
17 At last, he came to his senses and said: All my father’s hired workers have more than they can eat and here I am about to starve.
17 Endlich, ging er in sich und sagte sich: Die Ar-beiter meines Vaters bekomen mehr als sie essen konnen und ich werde hier noch vor Hunger umkommen
17 Caindo em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui morro de fome!
18 Je vais partir, pour retourner chez mon père et je lui dirai: Mon père, j’ai péché contre Dieu et contre toi
18 I will get up and go to my father and say: father,I have sinned against God and against you .
18 Ich will zu meinem Vater gehem und ihm sagen: Vater, Ich bin vor Gott und vor dir schuldich geworden.
18 Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei:: Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
19 Je ne suis plus digne que tu me regardes comme ton fils Traite-moi comme l’un de tes ouvriers.
19 I am no longer fit to be called your son! Treat me as one uf your hired workers.
19 Ich verdiene es nicht mehrdein Sohn zu sein. Lass mich als einfachen Arbeiter bei dir blieben.
19 Já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus jornaleiros
Belém 8-4-1986 Para reflectir .
A formosa Parábola do Filho Pródigo, a que falta ainda a última parte, é certamente a mais bela de todas e o quadro mais eloquente. de qualquer Literatura. Constitui, por isso, um vasto campo, onde vamos deleitar-nos espiritualmente. É trágico desca-minho, por levar ao infortúnio, à própria destruição, física e moral.
Entretanto, quando o pai do infeliz é todo perturbação, desassossego e inquietação, pela sorte de seu filho, enchemo-nos de coragem, admiração e ternura. A figura simbólica do Evangelho de S. Lucas é muito conhecida. Ao vermos o “Touro”, vem-nos logo à mente a misericórdia do nosso bom Deus!
É, na verdade, o formoso Evangelho da misericórdia. As entranhas belas do Pai do Céu revelam-se ali cheias de compaixão, interesse e caridade, no tocante ao pecador. Ainda atolado no ver-gonhoso vício, esbanjando a riqueza e caindo no lodo, o Pai do Céu não sente repulsa. Espera dia e noite, olhando atento e estende os seus braços, para cingir o perdulário.
Quem antes de todos alcança o outro é o Pai de bonda-de. Seus olhos inquiridores, perscrutavam o horizonte, a toda a extensão, na mira de alcançá-lo.
Esse momento chega, por fim, correndo logo em sua ajuda. O insensato ,que partira para longe, carregando seus haveres, volta agora desmedrado, pobre e infeliz. Entende, na dele, que o pai tem razão, para dar-lhe outro nome que não o de filho. Entretanto, sabendo que ele é bom, pensa que o aceita, à semelhança exacta dum Jornaleiro.
Já não era mau! Neste quadro vivo, humano e expressi-vo, é figurado o pobre pecador – o jovem licencioso, que dá livre curso às suas paixões. Para satisfazê-las, abandona o lar amigo, onde seus pais se enchem de amargura. Cada dia que passa é mais um espinho a cravar- se na alma. O filho desnaturado, insen-sato e lascivo a tudo renuncia, para viver à larga, em terras distan-tes.
Belém 9-4-1986 Cont,
O simbolismo desta parábola é sempre actual, expres-sivo e real. A história do Pródigo é o quadro vivo da alma pecado-ra. Que faz, realmente, o que volta costas ao Pai do Céu, repelindo seus braçps, carinhos e afagos?! Postergando seu amor, solicita-ções e crebros avisos?! Entregue a si mesmo, sem a protecção que recusara firme, resvala, noite e dia para o terrível abismo!
Que é o homem, sem Deus?! Pobre verme da Terra, sujeito a ser calcado. Tudo quanto faz é já conducente à destrui-ção! Aborrece o que é eterno, fechando seus olhos às grandes rea-lidades: apenas se abrem para o que é passageiro, falso, ilusório! Os problemas do Além, a que não pode fugir, quase entenebrecem!
Tem olhos, sim, mas nada vêem; ouvidos, e não ouve ou então se ouve, nada escuta! É um infeliz, de olhos vendados para as grandes realidades! Esta é, realmente a via do pecador! Bem digno se torna da nossa compaixão! O que nos vale é Deus ser paciente e esperar bondoso até que chegue a hora da séria reflexão, que leve sem tardança ao arrependimento. As várias carências, decepções e amarguras contribuem para isso.
Amigos e amigas todosse afastam, ao vê-lo sem meios. É a hora de Deus, que nunca nos rejeita! Na história do Pródigo, que é, afinal, a grande trajectória do homem pecador, há um por-menor, que é digno de atenção: lançado na miséria, havendo já dis-sipado todos os seus bens, precisa trabalho para subsistir.
Surge-lhe então um senhor abastado, que o envia logo para os seus campos, dando-lhe por missão a guarda de porcos. Mais realismo não consigo encontrar! A imundície moral contacta ao vivo com outra imundície. O porco, em geral, sugere porcaria: imundície vasta de toda a ordem: no corpo e no cheiro e no próprio local. Não é impressionante?!
Pobre rapaz! É tanta a fome, a necessidade e a mesma carência( a ânsia de Deus na alma pecadora!), qe até lhe sabia bem a comida dos suínos. Entretanto, nem isso mesmo lhe era permiti-do! Ao que pode levar a sensualidade, o vício da luxúria! Derrube total de corpo e alma!
Somente em Deus podemos achar abundância em tudo quanto é delicioso. Importa sumamente caminhar a seu lado, neste vale de lágrimas!
Lisboa
1-8-1981 O nosso Carlitos ???????????????????????????????????
Acaba de chegar, da cidade invicta. Os seus 22 caíram a 30 do mês passado, razão poderosa que o levou, de facto, a mar-car presença, nesse mesmo dia, pela manhã. Vinte e duas primave-ras; os pais ainda vivos, embora achacados; segundo ano da Faculdade, em circunstâncias indesejáveis e quase impossíveis, criadas e mantidas pelo Abril-25 a este jovem angolano, são razões forçosas, para celebrarmos juntos, a sua vitória.
O alvo aproxima.se: faltam só três anos! Aos 25, Engenheiro, electro-técnico! Um belo ‘canudo, mas universitário! Dura caminhada, com termo glorioso! Este objectivo move-nos a todos! É um sobrinho que honra a família, pelas suas qualidades: tenacidade, amor a Deus e à família, pronto espírito de caridade , nobre doação ao duro trabalho e modelo perfeito a imitar como cristão e como cidadão.
Entretanto, avultam e crescem as dificuldades: doença do pai e falta de recursos. Vida assaz ingrata trouxe para eles o 25 de Abril.
Para ultrapassar obstáculos assim, esmera-se em extremo e tudo ele arrisca. Por estas razões, vem escaveirado, magrinho e pálido. Vai ele recuperar?! O mês de Agosto será decisivo, pois nos seguintes há trabalho a fazer: cadeiras em atraso. para o mês de Outubro.
Que o Céu o proteja e cubra de bênçãos, para conse-guir o que tanto deseja! Será motivo de gáudio o dia venturoso, em que ele ponha o ramo.
Vide-Entre-Vinhas
1-1-1971
Por favor do Céu, mais um ano desconto, no rol da exis-tência. Não é longa, não, bem entendido, mas foi mais extensa que a de muitos nascidos. Por isto, exactamente, Vos rendo graças, meu Deus e Senhor, pedindo ansioso, no limiar do novo ano, que me ajudeis com vossa graça para que o passo em frente venha determinado a servir e amar-Vos , sem a mínima reserva!
Após estas palavras, endereçadas, com todo o fervor, ao Senhor meu Deus, dirijo-me a ti, Diário amigo, pois foste na vida fiel companheiro, em horas de alegria como de tristeza! Pronto, a cada hora, jamais rancoroso, a ti devo, sem dúvida, as horas mais gratas. Em tempo algum te vi fazer o jogo dos hipócrtas: bem ao contrário, a tua singeleza tem-me edificado!
Amigos falsos e harto dolosos, há muito se postaram nas veredas que eu trilho, sendo tu, nessas horas, leal e risonho, acolhedor e assaz benfazejo! Recebendo generoso os queixumes da minha alma e guardando avaramente a confissão generosa dos meus segredos, foi em ti somente que eu pude repousar, descan-sando tranquilo meu peito amargurado.
Por certas razões que seria longo expor de momento, assim como por outras, confesso-me gato a este bom amigo, que nunca usou astúcia nem foi fraudulento. Sempre igual e sempre franco, amigo lhano e sincero, que prezo sem limites, continuarei fervoroso a render-lhe meu culto, no mais íntimo do peito.
Aqui tens, doce amigo, um altar deslumbrante, adorna-do com flores que a minha alma te oferece


MEMÓRIAS 35 TERMINA AQUI
Nota: 35+27, já publicados, antes das Memórias, perfa-zem 62. Entretanto, já cavalgo os 93 anos! Tenho ainda muitos originais, para levar ao computador




Belém
Vide-Entre-Vinhas
2-1-1971
Diz o povo, com razão, que deve ser bom o princípio de tudo. Desta vez, porém, verifica-se o contrário: o início do ano foi de tempestade! Que dia horrível o de ontem já! Neve sem medida! Frio penetrante, agudo e álgido! Vento sempre ihquieto e deveras molesto! Sair â rua ? Nem pensar em tal! A gente arrepia-se, até dentro de casa! Não havia decerto lume que bastasse! Desolação e grande incerteza!
Que aspecto sorumbático mostrava, já ontem a abóba-da celeste! Carregada e cinzenta, de escuro intenso e harto incon-solável, pôs desde logo alvoroço no peito e funda inquietação na alma dorida! A noite fora horrível! Envolto em cobertores, nem podia revirar-me! Entalava a roupa , esfregava os pés, um contra o outro, encolhia-me em seguida, para logo distender-me! Tudo sempre em vão! Um frigorífico este braço da serra!
Não me lembrava de coisa no género! Levanto-me já tarde, assomando â janela! Um deslumbramento! A serra imensa, o vasto horizonte, montes e vales, vilas e aldeias, tudo amortalhado em branco lençol! Nem vivalma, ao longo das ruas! O silêncio da morte? É provável que sim! Tudo emudeceu, recolhido em seus lares! Só um cão exrraviado contemplava surpreso o grane esten-dal!
Quanto ao mais, a quietação tumular! Avultavam ape-nas, aqui e além, desmesuradas cristas de altos rochedos, acon-chegadinhos e harto inclinados, para assim resistirem ao frio glacial! As plantas constrangidas tentavam equilibrar-se, num esforço her-cúleo, para não soçobrarem.
E a neve caía, rolando às mãos cheias, em flocos doi-dejantes, que infundiam tristeza e geravam desalento!
Vide-Entre-Vinhas
3-1-1972 “ Não há bem que sempre dure nem mal que sem-pre ature!”
Chegou a isto, exactamente, a sabedoria de povos e nações. Não vou eu desdizê-lo, que tenho em muito a experiência das gen-tes. Se o passado tem sombras, apresenta igualmente belas pági-nas de luz. Aconteceu ontem.
Após um dia horrível, que jamais olvidarei, visita-nos hoje um sol quentinho e deveras radioso, qual doce primavera! As crianças buliçosas invadem a rua e, às abrigadas, lá se encontram velhinhos, aquecendo gostosos seus membros transidos. A neve, porém, mantém-se ainda, figurando dormir em leito de arminho. Dormirá ela, por arte de Deus?! Bem parece que sim, mas o Sol , com seu ardor, vai fazê-la acordar.
Lentamente, é verdade, mas ei-la a despertar, espreguiçan-do-se breve, nas encostas declivosas, por onde vai escorregando , para mudar seu estado. Grandioso quadro, lição maravilhosa dos estados da matéria! Como o Sol é grande, benfazejo e protector, sendo causa eficiente, ao operar tais coisas!
Vem das nuvens a água e, por baixa sensível de tempe-ratura, ao descer na atmosfera, solidifica um pouco lentamente. Ei-la assim agora, pondo tudo branquinho e sendo para os novos pra-zer inolvidável! Vem logo, já se vê, a batalha da neve, os bonecos pitorescos e outras diversões que alegram as crianças e as fazem cismar!
Desceu mais ainda a temperatura, pela noite demorada. Aclarou o céu, qual espelho de cristal, arrefecendo tudo, à superfí-cie da Terra. É a geada bem como o gelo, que matizam já tudo, criando aspectos novos que deleitam as crianças. Congelou-se a água e gelou a neve, aguardando pacientes o advento do Sol, para despertarem do sono profundo, em que haviam mergulhado
Manteigas
5-1-1972
Deixei hoje a minha aldeia, encontrando-me a postos, no lugar do trabalho. Fazia-o no passado, com grande euforia, por ser muito rendosa esta quadra escolar. Hoje, porém, retomo o labor, já sem interesse! Custa muito ensinar quem não quer aprender! E quem se prende a valer a dadas extravagâncias, que nada têm a ver com assuntos escolares?! Por isso, não vibro nesta hora, em que reinicio o meu duro trabalho.
Cumprirei o meu dever, tendo plena certeza de que é vão o meu esforço., inútil, sim, o meu lidar! Motivação forte, para deixar o ensino. Que é que me prende que o não faça já?! Desilu-sões amargas, a cada passo que dou! Decepções, a toda a hora! A medida está cheia e, quando isso acontece, nada vale tentar!
Esforçar-me-ei, no entanto, para que algo renda o meu cuidado, a fim de que as turmas lucrem o possível. Acabado este ano, outro mais avançarei, mas não quero repetir esta angústia inquietante!
Deixei neve em Celorico, acho neve aqui também! Dentro e fora, é só gelo! Ambiente insuportável! Treme sempre a alma, sofre o corpo também! Mergulho eu todo em grande frieza! Nada aquece a minha vida, que se arrasta ingloriamente! Onde falta incentivo, nada importa o lidar: é a morte que se move: não a vida que estag-nou!
Ouvi dizer há pouco a certo pai jovem que , ao entrar em sua casa, logo foge a tristeza e os cuidados se apartam!. Ao regressar do trabalho, que é, por vezes, doloroso, leva a alma atri-bulada e o seu coração em ânsias fundas! Entretanto, vem prestes o milagre: o garrular da filhinha, que só conta 8 meses, é logo panaceia para todos os males, angústias e dores!
Manteigas
6-1-1972
A mulher que se admira e pela qual o homem vibra será prestimosa em quaisquer circunstâncias? É ponto sério a conside-rar, razão pela qual exige atenção. Sendo ela, na verdade, compa-nheira desejável, complemento do homem e apoio na vida, nem sempre acha estímulo. para ajudar o sexo forte.
Unicamente em família, com os filhos que estremece e o esposo que ama é capaz de revelar-se, em toda a grandeza. Fora deste caso, não fio muito dela ou então quase nada, à excepção, claro está, da Religiosa, chamada por Deus ( não pelos homens). Vocação espontânea, madura e preferida, vive plenamente um ideal superior. Ainda aqui, fica decerto em plano inferior, tirando o caso de santidade autêntica.
Mas isto que digo, verifica-se apenas em casos singulares, enquanto na mãe, é facto universal. A nível das primeiras, acompa-nhando-as de perto , situam-se também as que amam no silêncio. constrangidas talvez por ditames sociais ou costumes venerandos de seus maiores que não ousam infringir. É um caso de simpatia ou amor assolapado que, para o efeito, age decidido.
À margem do exposto, não esperemos de seu peito egoísta esse belo tesouro que muito invejamos. É mais fria que o homem, indiferente e injusta, arrogante e ousada. Exige adoração, e ambiciona o mando; é déspota e vil, em extremo grau; sobremodo antipática. E quando já passante verdadeira tia que a ninguém inte-ressa!
Aí tendes vós o modelo acabado que se diz “alcovitei-ra”, mas encartada! Tudo ela sabe, tudo inventa e cria , modifica tudo
Manteigas
7-1-1972
Aos pés do Ginjeiral, ergue-se humilhada, ia até dizer enterrada uma casa antiga, com visos de solar. Fica em Vide-Entre-Vinhas. Foi Escola Oficial, durante longos anos, a que se prende, ao de leve, a minha adolescência. Apresenta cornija para Norte e Poente, sendo a fachada Norte lavrada em cantaria. Sul não existe: a propriedade contígua nivela-se ao telhado
A nascente, o barranco da Portela ou melhor diria, o ribeiro da Bica.
De qualquer lado que a procuremos, não tem vista nenhu-ma, ignorando-se o motivo por que ali a construíram. É velha tradi-ção que pertencera, em tempos , a um capitão, chefe de ladrões. Que haverá de verdade, em tal afirmação?! Certo é, ninguém duvi-da, fazer parte integrante do Casal Valente. No tocante ao mais, tudo são conjecturas!
Pois a Casa tão falada rendeu agora a bela soma de 150 contos! Bem mal empregados! Dinheiro tão mal gasto jamais eu vi! Sepultura mais perfeita será raro encontrar! Que lhe falta para isso ?! Humidade tem que baste, pois ressumbra das lojas e da fachada que dá para Sul. Simulacro de lojas, isso é que é! Escuri-dão também não falta! Não lhe vedaram u Sul?!
Donde vem a luz e bem assim o próprio calor?!
Manteigas
13-2-1972
Quanto mais conheço os homens e estudo o seu viver, mais detesto e abomino a sua perversão. É exacto afinal o que lá diz a Imitação de Cristo, a este respeito:”Quanto mais conheço os homens, menos homem me sinto”. De facto, à medida que roda o tempo da existência, mais e mais se avoluma o cinismo e a doblez.
Devia ser ao contrário, pois tumba aproxima-se e com ela também o ajuste de contas! Infelizmente, porém, não é deste modo! A malícia agiganta-se , aumenta a falsidade e a hipocrisia medra e viceja. Que fazer então? Endireitar o mundo? Isso não me é dado, que nem Deus mo pediu, mas, em boa verdade, fico apreensivo, de ver trafulhice e mil desconcertos! Não é de facto gostoso viver num mundo aparente, em que a doblez é rainha uni-versal!
Prender-se a quê?! Falar para quem e acerca de quê?! Será grato alguma vez ouvir, sem interesse, conversas chochas, que não podem jamais aliciar alguém?! Não vale muito mais encon-trar-me sozinho do que mal acompanhado?! Mas como é desolador olhar sempre à minha roda e não ver senão paredes?! Se elas falassem, podendo sentir! Impossível! Ficam mudas, estáticas, perante a minha dor!
MEMÓRIAS 34 (B)
1977- 10- 07
Liceu Linus
Ontem, achei por acaso a Emissora Nacional. Procura-va eu, às 7 e 30, um posto emissor de língua inglesa, quando surge, de improviso, um fado de Coimbra! Que belo achado!
Ninguém me havia dito ser portuguesa a tal canção, mas eu adivinhava, pelo que senti, dentro de mim!
Expressava claramente que algo de meu estava no ar! Não posso descrever o meu estado de alma! Prendi-me inteiramente a rádio AEG, como se nele encontrasse, de facto, a minha própria vida! Quisesse eu embora arrancar-me dali, não seria capaz!

Era Portugal a cantar para mim, numa fala doce, com alta emoção! Era na distância um peito a gemer, chorando amarguras que eu também sinto! Era o passado, que há muito rodou, mas fala ainda ao meu coração!
Que voz tão bela! Que língua suave!
Habituado aqui às linguas germânicas, tão deselegantes para o meu ouvido, afigura-se divino o
Luso idioma!
De modo especial a língua africânder é tão arrepiante para almas sensíveis! Será ela a expressão da alma austral?! Arra-nha e fere, molesta e não olha!
Que língua rude, pelos sons guturais e falta lastimosa de suavidade, nos outros sons! Lembra as espinheiras que há, por aqui!
Vejo-as, de facto, em todo lugar, medrando ali, a olhos vistas! São elas, realmente, que dominam e comandam a vida humana, não deixando às gentes movimentos livres! Qualquer ges-to nosso, por leve que seja, traz picadela ou grande arranhão!
Nestas circunstâncias, foi para mim uma hora deliciosa. Ainda hoje ressoa, de forma velada, no íntimo seio da minha alma, qual brisa suave. a dar lenitivo a peitos ressequidos!
Não te apagues em mim, canção de maravilha! Fica
para sempre a habitar no meu peito, que os ardores da Namíbia o estão requeimando e os acúleos eivados o fazem san-grar!
Visita-me, pois, com muita frequência, voz da minha Pátria, que és expressão da voz materna! Vem muitas vezes! Entra no meu peito, onde chora gemendo a voz da saudade! Doces momentos, em que eu, embriagado, me colava ao rádio, como se, realmente, ali estivesse a minha ventura!

Daqui a um ano ou coisa assim, estará para breve o fim da aventura! Deus o permita, que sinto a alma vergar, desfalecida, pelo enorme peso da solidão!
Nada me fala, neste deserto, em que vivo imerso e me sinto prestes a desfalecer! Noto somente que vida se escoa e vão escas-seando as minhas energias.
Apressa, meu Deus, o tempo do regresso, que
anseio vivamente, por ver Portugal, onde espero repousar e morrer feliz!

Nyangana
1977- 10- 08
Chegou, finalmente! Quatro longas semanas haviam decorrido, enquanto saudoso aguardava a sua vinda. O tempo rodou e, em voltas sucessivas, trouxe o Padre Hermes à Missão de
Nyangana, onde é luz e calor. Foi-se a noite de breu e cla-reia o novo dia. Como Sol no Oriente, a romper glorioso, com brilho e promessas, assim o bom amigo surgiu pela manhã, afim de ajudar
Meu viver de exilado, no distante Cavango.

Apareceu radioso e de sorriso nos lábios, correndo para mim, afim de abraçar-me! Como foi doce este encontro amigo!
Quanto vale, neste mundo uma boa amizade! É conforto e apoio, nos contras desta vida. A qualquer hora, favorável ou adver-sa, lá
está presente, afim de tomar parte em tristezas e dores!

Sentia-me tão só! Mais solitário e desamparado que em tem-po algum! Tudo era triste, obscuro e sem graça!
Entretanto, o Padre Hermes não é só de palavras e meigos sorrisos! Junta ainda a isso acções nobilitantes, que prendem e cativam! Sem que eu lho dissesse, procurou, em várias lojas um
Método bom, para acordeão. Mas não teve com êxito.

Como ele é gentil! Lembrar-se de mim que nada lhe dou! Tanto me faz, sem recompensa! Só digo palavras, mas é tão pouco! Podia, na verdade, aparecer aqui, sem o dito livro, mas trouxe outra coisa muito necessária: uma calculadora que faz maravilhas, pois é electrónica! ´

Como é delicioso ser lembrado por alguém! Quem não lem-bra a ninguém, é semelhante à planta solitária! Neste caso,
O homem vegeta: vive e cresce mas, a rigor, não sente nem ama!
No seu coração, jamais o alvoroço! Nunca o prazer da suave emoção! É um deserto o peito do homem, quando somente areais e arbustos espinhosos ali se anicham! Triste condição!
Como são inebriantes e, ao mesmo tempo, geradoras de vida
Provas assim! Seria belo o mundo, se reinasse em toda a parte o amor e a caridade!

Nyangana
1977- 10 – 09
A máquina electrónica faz-me pensar! Cabe, certamente num bolso qualquer, pequeno que seja! Olhando para ela, ninguém conjectura o que pode realizar.

Funciona com pilhas que duram 10 horas, equivalendo a dizer que se estende a vários meses. Pode também ligar-se à cor-rente, ficando accionada por energia eléctrica. Na sua exiguidade opera maravilhas. É muito cedo, para a conhecer, de maneira cabal, mas o que descobri é já bastante, para me encantar.
O engenho humano é prodigioso.
Se observo a máquina, sou levado a pensar que ultrapassa de longe a inteligência humana. Mas isto é aparente! De
Facto, a inteligência arquitectou a máquina, mas esta, por sua vez, não faz aquela. Além disto, se ela avaria, só a inteligência a pode consertar. A si própria nada ela faz e aquilo que realiza fá-lo inconsciente.
Apesar de tudo, é grande maravilha, que revela a acui-dade e o poder do intelecto.
Q quem devemos nós este dom precioso? A Deus Cria-dor,
Fonte da vida e Génio da Ciência.
Já lhe agradecemos?!

Nyangana
1977- 10-10
A vida em sociedade, origina problemas, se não abdi-camos de certas pretensões. Para consegui-lo, exige-se controlo, sobre os nossos actos, reacções e atitudes. Um é fanfarrão e gosta de figurar: toma a palavra, sem que deixe aos outros momento de intervir
Evidentemente, nestas circunstâncias, há mau ambiente e
cria-se má vontade, sendo natural que alguns não voltem.
Desta maneira, vai o grupo diminuindo.

Quando fala só um, não deixando aos outros ocasião de exprimir-se, já tudo corre mal, pois tais monopólios não são bem vistos.
Outro fala muito, por ser destituído, já que é vulgar o monopólio da fala por quem menos sabe ou então é mais estúpido!
Entretanto, já por estupidez, já por arrogância e louca vaida-de, é sempre mal visto quem chama as atenções e tenta preencher os
momentos livres. Os mais lesados e indispostos jamais volta-rão ou. se o fizerem, será por humildade ou espírito nobre.
Nas minhas circunstâncias, banido e só, hei tido ocasião para sentir a fundo o amargo da convivência, decorrendo assim!
Enjoa a solidão e mata em nossa alma o desejo de viver, mas é preferível a certa convivência, em que outros figuram, sem deixar um momento! Que grande maçada! Viver sozinho e, nos raros momentos, em que a língua se desata, ver tudo açambarcado por
Almas grosseiras, corações empedernidos e falhos de senti-mento!

Aconteceu ontem. À hora do convívio, após o jantar, haven-do permanecido, ao longo de várias horas, encerado, no meu quar-to,
Não pude sequer dizer uma palavra! Razão para tanto? De modo
Nenhum! O contrário, afinal, é que estaria certo! Não temos já connosco o bom Padre Hermes, que é o deus de todos? Foi por tal razão que me aguentei duas horas, sem tugir nem mugir, ouvin-do apenas o que não entendia?!

Fala de tal maneira o monopolista de ocasiões e palavras, que não consigo acompanhá-lo! Qual será o motivo desse dispara-te?! Ocupou todo o tempo. Estupidez? Orgulho? Inveja?
Falta de gentileza e sensibilidade?!
Quando o homem faz isto, deixa de ser amado e cria-nos logo profundo mal-estar! Parece incrível que haja, no mundo,
Tropeços destes, que apenas vegetam, à maneira das plan-tas,
Sem o menor sentimento de bondade e amor, delicadeza e renúncia!
O que vale é o Padre Hermes que, sendo embora ale-mão,
ocupGa neste campo o lugar contrário, pela sua gentileza, nobres sentimentos, e espírito pronto de bem servir!
Este assunto, para mim, é deveras crucial, pois me encontro solitário, m tristeza e mudez, por noites e dias, sem conta nem medida.

Liceu Linus
1977-10-12
Estou lendo agora, pela segunda vez, a Novela encan-tadora
David Copperfield. Em Inglês tem sabor especial.
Charles Dickens reproduz a sua vida, por maneira sugestiva e assaz tocante! O seu livro excelente, pondo bem a nu dificuldades e penas que os desprotegidos tèm de enfrentar, comove os leitores, levando a tomar em conta aspirações e cuidados da gente
humilde!
A luta ingente que houve de travar, para subsistir; as contrariedades que teve de suportar, recalcando o seu querer; os enormes sacrifícios, todos a capricho bem como as veleidades de quem era mais forte deixam no leitor uma terna piedade para com os humildes. Que pinceladas vivas, analisando a propósito, situa-ções delicadas!
Jamais esquecerei a figura de Pegotty, servente da casa e tão dedicada! O largo ascendente que tinha sobre e ele e a jovem mãe!
Como fala terno, referindo-se às duas, a repartir seus afectos
pelo menino, tão disputado! Sua mãe enviuvara, sendo muito nova. Reside neste facto a causa da desgraça. Casando outra vez, juntou-se a um homem d feitio mandão que trouxera de casa, para dirigir, uma irmã caprichosa e nada razoável!

O pequeno Charles odiava o padrasto e não via com bons olhos a tal governanta. O drama, porém, não findava ali. Havia de
prolongar-se e tomar proporções, que nos enchem de pieda-de e
provocam lágrimas: separação forçada, entre mãe e filho; busca de emprego, para não sucumbir; uma série constante de fac-tos inesperados e cheios de imprevistos.

As pessoas do convívio, desde Mr.Micawber ao irmão de Pegotty, jamais se apagarão no espírito do leitor.
Fazem parte do grupo a velha tia-avó e o marido excêntrico
No fundo, é esta Novela símbolo vivo do ser humano, que luta sempre em busca da ventura, embora a não encontre! Há milhares de obstáculos a impedir-lhe o êxito, provenientes, quase sempre, daquelas pessoas que nos rodeiam. Afinal, É Deus-Providência a reger o Universo e a velar pelas almas.

As contrariedades fazem parte da vida, tendo elas em mira desprender-nos da matéria, para subirmos até ao nosso Deus,
princípio e fim da vida humana. Viemos d’Ele e caminhamos ao
seu encontro. A nossa felicidade reside no Senhor que nos criou para Si. Na realidade, as várias barreiras, que se deparam, através da existência, constituem para nós uma fonte de riqueza.

São alarme vivo, que nos desperta do sono; convite à emen-da; clamor eloquente para a vida do espírito. A dor é fecunda, alta-mente criadora! Pela dor, viemos ao mundo; pela dor
Fomos libertados em Cristo Jesus.
O paraíso dos comunistas é decepcionante, falso, abu-sivo!

Liceu Linus
1977 - 10 – 13
Qual será na verdade o futuro da República? Refiro-me agora à África do Sul. Ninguém, com certeza, pode conjecturá-lo
pois vemos mudanças, que muito surpreendem, quando não espantam. Entretanto, avaliando as coisas pela faceta pior, não pode aguentar-se, durante muitos anos. Vejamos primeiro o lado negativo, agindo em seguida sobre o contrário, mais ou menos provável
Quanto ao primeiro, há-de ter-se em conta a pressão enor-me, que estão fazendo, contra o apartheid. Temos a certeza de não ser apenas o mundo comunista, pois com ele fazem coro as nações do
Mundo livre. Sanções económicas, embargo às armas, corte de relações, cancelamento de contratos feitos.

Sendo isto real e aplicado à letra, ao fim de alguns anos, acho impossível que o Estado se aguente. Além disto, a campanha infanda, que alastra pelo mundo, cria má vontade aos Sul-Africanos. É de notar para já que essa campanha se estende, no presente ao mundo inteiro! Até aqueles povos que são da mesma
raça entram no coro.
Para cúmulo, há dentro da República ferozes inimigos que,
Sozinhos embora, são capazes de a minar! Dezoito milhões de gentes nativas e um grupo de brancos que vai engrossando, já por
traição, já por discordância e certo despeito.
Os inimigos internos são os piores!
De lembrar, a propósito, que os grupos referidos são muito apoiados, com todos os recursos já de ordem material, já de espé-cie moral.

Nestas circunstâncias, pode alguém sobreviver?!
Não vejo saída, já que o inimigo está dentro e fora, contando com apoios de toda a natureza.
Factores positivos. Dispõe a República de imensas riquezas
Nomeadamente o que é necessário para a bomba atómica. Além disso, utiliza já uma técnica avançada. Tome-se em conta a vontade férrea deste aglomerado (4 milhões) que, ao longo dos séculos, deu largo contributo para a civilização, criando até uma
língua própria.
É esta a sua pátria que eles defenderão, com toda a valentia.
“ Nós viveremos, nós morreremos todos por ti, África do Sul!”
Ons sal lewe…

Liceu Linus
1977-10.-14
Bacoreja-me, por alto, haver hoje concerto, durante o serão. Começará, pelos vistos, às 20 menos 5. Eu, no entanto, como é sexta-feira, já tudo ordenei, para ir a Nyangana, após o meio-dia.
Entrou nos meus hábitos e agora largá-los já não é possível.

Se o Reitor me convida, tenho de ficar, saindo amanhã, logo de madrugada. Confesso, porém, ser acto indesejável. De facto, ouvir o tambor, em ritmo certo mas sempre igual; presenciar movi-mentos que são repetidos e sem variedade; sentir que os meus ouvidos são logo arranhados por cantos arrepiantes!...

Que pode entusiasmar um peito europeu, habituado há muito a primores de arte?! Par mais, ouvir línguas duras, já guturais, já pululantes! Será isto engraçado ?! Entretanto, o que mais repugna
está ainda para vir! Rir, aplaudindo! Bater palmas, concordar em tudo, mostrando que aprecio! Dizer talvez que tudo está bem!
Enganar o próximo, fazendo eu disfarce ! Não! Não me sinto fadado para tanta comédia!
Fugirei, se puder! Fazem, além disso, representações ou simples comédias, cuja rudeza lhes roubou o interesse. Safa daqui! Ao menos em Nyangana encerro, no quarto, onde estou seguro! Escrevo e leio, pratico acordeão e ponho as minhas coisas no devi-do lugar!
Há já três semanas, que o jornal O Século de Joanes-burgo não chega às minhas mãos! Pobreza de Correio! As cartas, então, … miséria também! Às vezes, esperam no Rundu que almas caridosas vão desencantá-las. Tudo isto é primitivo, árido, boçal e
assaz prosaico.
Quando chegará o dia projectado? Terei eu carta, da Europa ou de Vinduque
Os amigos rareiam: unas vezes, a morte indesejada corta o nosso destino; outras ainda, os vaivéns da existência. Perdem o pio, como usa dizer-se! Seja como for, tenho de resignar-me, pois é
Melhor que ficar indisposto.

Quanto às missivas, vivo nesta esperança, até ao dia ‘h’.
Se nada encontrar, assalta-me a tristeza, descendo mais fundo que havia imaginado. A vida é assim, com altos e baixos, ale-grias e tristezas, mágoas e prazeres. Enquanto a esperança reluz no horizonte, é bom e suportável!
Quando, porém, deixa de brilhar, tudo acabou! Os jovens são velhos! A vida cessa! Há movimento, vida vegetativa, mas não espi-ritual! É assunto arrumado! Corpos sem alma que se arrastam gemendo, sempre aos encontrões, sem estimulante!

Hoje, estou quase assim! Dói-me já o corpo e sinto nas pál-pebras força poderosa que tende a fechá-las. É noite de concerto! Que me importa a mim?! Que pode alegrar-me?!
Unicamente pessoas dedicadas! Destas, porém, não vejo aqui! Não sou exilado?! Não fui vexado, em terra portuguesa, onde residia, junto da família)!
Agora, longe de tudo… julgo até longe de mim próprio!

Liceu Linus
1977-10-15
Encontrando-me em Angola, desde 1972, ignorava qua-se tudo o que tinha ocorrido, no Portugal da Europa. Por esta razão, andava ansioso por notícias de lá, esclarecendo-me sobre os efei-tos da viragem política, no 25 de Abril.

Nada mais a propósito que enviar uma carta a pessoa amiga,
solicitando informações exactas, sobre o caso em foco.
A resposta desejada não se fez esperar, já que em breve tempo a tive à mão. Era uma catilinária, extensa e fervente, com pormenores em abundância. Devorei com empenho essa exposi-ção, que não vou repetir, seleccionando breves dizeres, que
em poucas palavras, digam muito.

“Só mostram bem-estar ladrões e imbecis!”
Mas esta, afinal, não é a minha Pátria. Não é esta, decerto a Pátria de Camões que tanto engrandece, na Epopeia imortal Não a reconheço! Alguém pelo diabo intentou deformá-la! Mas isto,
a rigor, equivale exactamente, à sua destruição!

Como pode viver-se, numa pátria assim?! Sentirão alegria as pessoas de bem, que vivem honestas e ganham o pão honrada-mente?! Dará gosto habitar, onde roubam de dia, reina a insegu-rança e não há decoro?! Que sociedade é esta?!

Nyangana
1977- 10- 16 Ideal Cristão
O pensar do cristão deve ser este: o nosso futuro é mais divino que humano. Como alongamento, vem o seguinte: onde
Achar abrigo? Tudo nos foge: pessoas, bens, etc…
Só em Deus e na fé. De facto, é verdade! O homem, sem Deus, anda à mercê; não controla os seus actos, caminhando assim por via tortuosa-
Se Deus nos criou para o seu Reino, fora deste mundo fica-mos em trevas.
A cruz da vida, amargura e decepções, luto pesado e lágri-mas ardentes, bens que se perderam, fruto bem amargo de pesa-das canseiras, tudo isso é vão e foge num momento, se Deus qui-ser e assim ordenar. Importa, na verdade, meter o Senhor em nos-sas vidas. Trabalhar sem Ele, aceitando-O embora, mas afinal sem fogo na alma e afecto no coração, é andar às cegas!

Sendo Providência, governa o mundo: não pode largar a obra imensa da criação! Acompanha e segue aquilo que ama. Orienta o Orbe, em que vivo imerso

É, pois, ilusão actuar sem Ele, viver à margem.
Urge intercâmbio, vivo e frequente; exige-se pronto que os seus Mandamentos não sejam letra morta. Como seria o mundo, se todos cumprissem os 10 Mandamentos!
Nem guerra nem ambição nem inveja ou desamor!
O que o mundo precisa é Jesus Cristo em nossa vida!

Sem Ele, apenas loucura, se não desvarios, para matar uma fome, que nada pode travar!
Vem a propósito a célebre frase de Santo Agostinho, no século IV:”Fecisti nos, Domine, ad Te et inquietum est cor nos-trum, donec requiescat in Te!”Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto, enquanto não
repousar em Ti.
Felizes aqueles que sabem ler nos casos da vida focan-do-os bem, com o facho da fé.

Liceu Linus
• 1977- 10- 17
• Ouço, geralmente, a África livre, por causa das notícias e locais interessantes, que são retransmitidos. Estes artigos, além de curiosos, são a panorâmica do mundo em acção, de maneira especial. O mundo lusófono. Habitualmen-te, são extraídos de jornais e revistas, em língua portuguesa, referindo-se, em regra ,ao nosso Portugal e seus problemas: descolonização e efeitos desta. Ouço-os, pois, com muito agrado.

Afim de não quebrar o hábito adquirido, fiz ontem mesmo, pelas 20 horas. Qual não foi o meu espanto, ao ouvir com surpresa, uma voz desconhecida, a falar na Emissora! Por causa do ruído, não captei o princípio, mas logo notei que ela realmente se afastava do comum. Digo francamente: gostei, a valer!
Afigurou-se-me oásis, em pleno deserto!

Sempre a mesma coisa também esgota!
Pois aquilo foi um belo êxito! Notícias e comentários, Voz da Resistência, palavras fortes, cheias de realismo e ânsia ardente de vida melhor! No fundo, ânsia de justiça, fome de paz, em tom aguer-rido! Resoluções e protestos usam esta via.
Aquela voz falava de Cristo e do seu Evangelho, mas por modo novo, original, compreensivo e até eloquente! Que bem assentou a voz do Evangelho… a voz do Céu, num mundo a arder
em ódio e vingança! Como é repousante o ensino de Cristo! É Ele, afinal, que devemos seguir e não os homens! Só asneiras é
que fazem! Disformam tudo… lançam a morte, onde existe a vida.
Procedem exactamente ao invés de Cristo! Por esta razão, incendeiam a Terra, pondo-a de jeito que não pode tolerar-se!
Como viver, num mundo assim?! Lavram no ódio, vivem da mentira, não cumprem a palavra, fazem a capricho engenhos de morte, ceifam inocentes, assassinam passageiros! Nunca o nosso
Orbe esteve como agora! Que é que vai sair deste amontoa-do?!
Quem semeia ventos colhe tempestades! Semente daninha só mal origina! As novas gerações aprendem a matar! Será deleitoso viver com elas, estando no poder?! Viveram de pilhagens, assaltos e morte. Assim continuarão, pelos séculos fora! Só Deus do Céu é que pode salvar o mundo de hoje, em tamanha convulsão!
Foi o que sucedeu, no século V, depois de Cristo. Se não fosse a Igreja, que seria da Europa, no tempo das invasões! E
após o facto?! Mercê de Deus, por meio da pregação, os bárbaros
converteram-se e não houve reveses para a civilização.
Se a Divina Providência, já saturada pela nossa frieza e espírito pagão, não vier prestes libertar o mundo, cairá no abismo, donde mais se não ergue! Entretanto, Deus a Senhor há-de ter pena de tantos inocentes, que pagariam com a vida o facto de exis-tir!

Liceu Linus
1977- 10-18
Um jesuíta foi silenciado pela Santa Sé, por escritos e notas, que têm como objecto os homossexuais. Segundo ele escre-ve, os actos desses homens deviam ser reputados, moralmente bons, dado que houvesse um compromisso de amor e respeito, de carácter mútuo. Li as referências, no Southern Cross.
A primeira reacção foi logo negativa, por ligar tais actos a práticas censuráveis e também por eu julgar serem contra a moral.
Discuti o assunto com um Padre alemão, Missionário em Nyangana, o qual me forneceu alguns pormenores que eu desco-nhecia. Perante eles, a minha atitude é já moderada. Perdeu, pois, o ar d e rigidez e severa intransigência que tive, de início, chaman-do ao jesuíta nomes incorrectos.
O caso, realmente, não se apresenta como eu julgava. Antes de mais, estão fora de jogo práticas indevidas, altamente imo-rais, havendo entre ambos compromisso de amor e respeito mútuo. Esta, a posição do tal jesuíta! Analisando a frio, reprovamos logo, mas é bom tomar em conta que as ditas pessoas não são normais. Se fossem como nós, era mais que certo não podermos admitir a homossexualidade!
Trata-se, pois, de pessoas doentes, que vivem a sua vida: não outra d diferente, imposta de fora. O caso deles merece aten-ção, embora, de facto, não seja fácil penetrar no seu mundo.
Num encontro realizado, tomaram logo parte 500 delegados de várias nações, Apresentaram-se lá como bons católicos, estando presentes 75 padres e vários religiosos
Houve Missa dialogada e outros actos de culto.
É problema angustiante, porque desejam, a sério, praticar a religião e ser
Bons cristãos. A Santa Sè resolveu, no entanto, que o tal jesuíta deixasse de escrever e falar sobre o assunto. Não estamos preparados para aceitar estes casos; mas é natural que o tempo e os factos aclarem a situação, dando uma resposta ao caso de tal gente!
Segundo afirmam, não existe cura para tal doença. Qual será, na verdade, a razão do facto? Aparelho genital incaracterísti-co? A Medicina e a Psicologia poderão responder. Quanto a mim, escasseiam-me dados, para
Emitir opinião própria. Aguardarei, pois, que alguém informa-do traga mais luz. Delicado assunto!
Se os doentes são pessoas e querem salvar-se, deve-mos tomar em conta o seu problema.
Com relações carnais, nunca a Igreja vai transigir, segundo eu penso
Liceu Linus
1977. 10-19
Há 44 anos, tinha eu só 15 e levava já, na vila do Fundão, 8 dias a estudar. Árduos esses dias e cheios de alvoroço, já pela novidade, já por decepção. Afinal de contas, as agruras de então eram só amostras daquilo que viria, ao longo da existência. Vivendo os pais, tudo é excelente e
apresenta sempre cariz aceitável.
Os espinhos não torturam, porque alguém os arreda! O que parece amargura não passa de uma sombra, ante a crua reali-dade. que mais tarde surgirá. Se eu tivesse ainda pais, embora já velhinhos, seria diferente o mundo, em que vivo. Bastaria, de facto, a sua presença, para dar-me coragem, nos passos difíceis. Sofreria por eles. Em seu favor é que eu trabalharia, sendo isto, na verdade, um grande incentivo.
Mas já tudo passou, qual sonho formoso, que de noite visita, para não deixar, logo após ele, senão mágoa e saudade. O tempo o desfez e levou para tão longe, que jamais o vivi, na sua realidade. Só conjecturas,
Imaginação, apenas lembranças, envoltas em mágoa, a que seguem, não raro, suspiros e lágrimas.
Hoje, então, ao ver-me exilado, longe de tudo e, às vezes, de mi
Como sinto a falta dos entes queridos! Só Deus me acompa-nha, nesta dura provação! Estou mais perto d’Ele, verdade seja dita, mas que grande sofrimento e amarga decepção!
Os problemas amontoam-se; as dificuldades multipli-cam-se também e tudo redunda em minha provação! Pessoas e coisas fazem grande coro,
Conjurando-se tudo na minha perdição.
Apenas confio na bênção do Céu! Ele é tudo para mim! Pois quem me vale, nas horas amargas do triste viver?! Quem me dera pagar em moeda igual! Mas, se tenho na Terra os pés a pren-der-me! Sou carne, sou nervos, funda sensação! Ave sem asas, barco sem leme! Apenas o Céu me pode salvar, nesta jornada que faço, chorando!
Eu creio firmemente que Ele é Santo, Justo e Bom, não cer-rando os ouvidos ao gritar do meu peito! Por isso me resigno e vivo conformado,
Na esperança firme de alcançar um dia a ventura do Céu.
Tiraram-me a família, e furtaram-me os bens, apenas me deixando martírio e dor, e eu segui chorando, mesquinho, ensi-mesmado, até que o Senhor corresse ao meu encontro. Assim que Ele veio, senti-me feliz e
ganhei logo coragem, para trilhar decidido a via espinhosa. Apesar de tudo, sinto a minha alma chorar em agonia, porque eu sou também carne,
sensibilidade e nervos doentes!
Liceu Linus
1977-10- 20
Dentro em breve, começam os exames, abeirando-se, pois, o fim das aulas. Em Portugal, era uma festa, porque as férias do Verão davam sempre lugar, para tudo fazer. Nos anos de passa-gem, (1º-3º-4ºe 6º) prolongavam-se elas, de Junho a Outubro. Duravam, pois, cerca de 4 meses. Nos outros anos, eram só dois.
Aqui, é diferente, pois não chegam a dois!
Ideal para mim era sair, rumando a Portugal, mas segundo a Imprensa e as cartas de amigos, aquilo não vai bem! Ocorrem assaltos, em pleno dia! Por noite fora, ninguém sai à rua! Quanto a retornados
,é apavorante! Somente pobres e infelizes!
Ficar por aqui era bom, sim, mas o futuro prevê-se mau tam-bém!
Quem dera, Senhor, que na minha Pátria, houvesse já ordem, paz e alegria!
Pode alguém ser feliz, vivendo inseguro e sem confiança no Governo de Lisboa?! Por que será que o Governo Português já se não impõe?! Maus elementos há-os, é claro, em todas as sociedades! Hão-de ser retirados, após o uso de meios inteligen-tes e razoáveis
O caso viu-se ainda há pouco, lá em Nova Yorque, ao faltar a energia, durante a noite. Selvajaria, primitivismo, crime e desafo-ro, perigo social! Não faltaram pilhagens, assaltos e virulência!
Liceu Linus
1977-10-21 Professor de Pretos
Vir da Europa e meter-se em África, onde há povos diversos, na Idade da Pedra, é deveras excitante e cria problemas. Este é já o 5º ano que lido com nativos, mas agora apenas é que vou penetrando na sua psicologia. Nos primeiros tempos e parte do ano, agora corrente, já tive dissabores, por haver aplicado os pro-cessos europeus.
Na verdade, são mais humanos, cristãos e razoáveis. O certo, po-
rém, com tristeza o digo, é que eles não actuam, pois ficam gorados.
Apelar alguma vez para a alta nobreza de sentimentos e res-ponsabilidade, o mesmo é que dormir! Pelo menos, durante um lon-go período.
Não tiveram, de facto, preparação!
Nestas circunstâncias, o professor inditoso fica desarmado, perante o número e a falta de carácter. Tímidas e servis, estas gen-tes do Cavango
fazem-na pela calada.
Devo observar que os pretos de Angola são mais evo-luídos, muito mais correctos e dignos de afecto. Recordo-os agora com muita saudade e conservo deles as melhores lembranças. Os do Cavango são primitivos.
Uma boa parte só entende bem a linguagem do pau! Preci-samente o que eu não queria! O certo, porém, é que outro caminho apresenta-se nulo e improdutivo!
Berrar, enervar-se ou mostrar desagrado, para eles é festa, gastando seu tempo a imitar a voz e os próprios gestos. Por sinal, imitam canhestros,
Mas criam situações que amachucam a gente, durante longo tempo.
Aconteceu-me este ano.
Como a experiência é mestra da vida, o meu agir vai sofren-do mudança.
Jamais ralharei, assumindo atitudes, que sirvam para festa! Não falar, não fazer gestos nem contorções!
No chamado “Concerto”, sendo animado e feito de mil coisas, farão
Imitações. Ridicularizando! O pior não é isso! Iniciam a farsa, com antecedência, prolongando-a depois, durante longo tempo.
Para mim, isso acabou! Um pauzinho na mão, apontan-do no quadro e
Gerando compostura! Nada como isso! Gorados outros meios, optei por este, embora o utilize o menos possível!
Nyangana
1977-10-22
Ouvimos e lemos tanto desconchavo, sobre Portugal, que muitos portugueses já se envergonham. Será verdade que os nossos Governantes
não evitam o caos em que a Pátria se afunda? Não haverá, no seu elenco,
peitos generosos e espíritos egrégios, que salvem do nau-frágio a frágil barquinha?! Não me convenço! Embora cá longe, sem dados precisos, tenho ainda confiança no Governo Socialista.
Seria para mim decepção amarga que o nobre país, a caminho do abismo, não fosse travado, a fim de ingressar na via da honra, por que todos ansiamos. É preciso travão! Três anos longos de funda ansiedade é já demasiado para quem sofre.
Portugal, que deu mundos ao mundo e levou generoso a civilização a todos os cantos do Orbe terráqueo; que assombrou as nações, pela audácia e renúncia, que mostrou amplamente; que ensinou o Evangelho e mostrou o caminho do Céu a milhões de nativos; que viveu prestigiado por obras e feitos, recebendo de Roma privilégios e graças; que se ergueu do nada por seus próprios meios, vencendo inimigos a quem envergonhou, por derrotas infligi-das… tornou-se imortal!
Portugal amado, meu lar ideal e ninho tão querido, como eu te lastimo, na hora da amargura! Mofam de ti quantos me rodeiam, alegando exiguidade e falta de génio, para resolver pro-blemas vitais , que urgem e clamam. Escarnecem de ti e eu sofro com isso! Entretanto, não sinto vergonha de ser português. Reputo sacrilégio tomar alguém a sério essa atitude. Se eu me envergo-nhasse, negava-me por isso! Poderia fazê-lo?
Se a minha alma é deveras portuguesa! Se tudo o que eu amo é
português! Só no meu país sou igual a mim próprio. Em qualquer outra parte, sou menos do que eu! Fora de Portugal só empreendo o que os outros me deixam. Nem razões sequer eu posso alegar, ainda que me assistam.
Como era possível destruir, sem rebuço, a minha pes-soa?! Não é isso contrário à própria natureza?! Sou português e sin-to orgulho de não ser outra coisa! Em nossos dias, troçam de ti, meu Portugal, mas um dia virá por certo, em que hás-de erguer-te da vil tristeza, em que jazes prostrado.
Então, por certo, vai surgir de novo, o nobre orgulho de ser português! Eu ainda confio nos bons portugueses, que têm o leme! Não os conheço, mas em meu peito, ouço esta voz: Não deixes vergar-te ao peso enorme da humilhação, que a tua Pátria, abençoada por Deus e Santa Maria, tem almas generosas que hão-de levantá-la.
Eu creio nesta voz, que fala e roga!
Precisamos, sim, de homens genuínos, caracteres impolutos, vontades fortes, que ponham a nação para lá do Partido e de qual-quer vantagem, de ordem pessoal. Necessitamos chefes que res-peitem a fundo a nossa bela História, no que tem de puro, nobre, exemplar!
Do remoto passado rejeitamos apenas o que foi ultra-passado ou não diz nada! Tudo o mais há-de conservar-se, pois é garantia da nossa união e
orgulho nacional. Negar o passado é, para logo, destruir a Pátria. Uma vez assim, já não ergue cabeça! Deixou de ser ela! Um fantasma talvez! Um ser
degenerado, que vive de fora. Já ninguém a reconhece.
O nosso Portugal foi sempre cristão! Tirá-lo desta via é já destruí-lo!
Quem isso intentar é mau português! Não é fanatismo o que estou defendendo! Sim, amor a Deus a quem devemos tudo.
Quando eu regressar, ó Pátria formosa, quero desde logo, reconhecer o teu rosto! Anseio por beijar-te a fronte cuspida e enxugar as lágrimas que estiveres chorando! Quero ajoelhar, peran-te a grandeza da tua desventura!
Irei logo rezar, para que Deus e a Virgem acorram do Céu e garantam a paz que tanto desejamos.
Nyangana
1977- 10- 23
“Se queres morrer, volta para o teu lugar”
Uma freira alemã, que trabalhava em Angola, antes de 74, houve de fugir, como tantas outras. Entretanto, o nobre coração ficara-lhe preso. Nunca mais esqueceu as populações humildes a quem dava assistência como enfermeira. Foi andando sempre, cá por esta margem, esperando voltar, logo que pudesse.
Esteve em Andara, Vinduque e outros sítios, mas nunca olvidou os primeiros lugares, onde trabalhara, por amor das Mis-sões. Volvido algum tempo, foi à sua pátria, indo em seguida a caminho de Roma, a fim de avistar-se com a Superiora.
Exposto o seu caso e tornado patente o alvoroço de alma, diz-lhe então aquela: “Já que assim é, não quero opor-me às tuas pretensões. Vai para Angola”-
Radiante ficou a jovem Enfermeira, preparando suas coisas, a fim de rumar à cidade Luanda, capital da República.
Como era natural, apresentou-se logo ao Arcebispo, o ango-lano D, Muaca, a fim de elucidá-lo, acerca do caso e ouvir a propó-sito o que fosse necessário.
Diz-lhe em resposta o Bispo da cidade:” Se queres mor-rer, volta para o teu lugar!”
Que triste situação! E, no entanto, já passaram três anos!
Aquele povo infeliz, sem nada para comer, sem nada para vestir, sem qualquer assistência, de carácter medical, incerto da vida e já sem esperança, vai morrendo aos poucos, em lenta ago-nia!
As palavras do Prelado não deixam qualquer dúvida! Angola, na verdade, é um campo de batalha! As áreas rurais estão de facto, sujeitas a assaltos, pilhagens, violências.
Hoje, Angola não é independente! O povo angolano é tão infeliz! Este povo querido está sendo aniquilado por motivos estranhos à sua felicidade Chefes angolanos, não vedes a pátria caindo prisioneira?! Não vedes as gentes, que já não eram muitas,
Antes da guerra, caírem no silêncio, donde se não volta?! Que vos fica, depois?! Apenas estrangeiros senhores da vossa ter-ra, que não amam nem prezam?!
Matais agora e deixais que morram os vossos melhores filhos?! Que resta, depois?! Voltai já costas aos ventos danosos que sopram de fora, venham tais ventos donde vierem! Uni-vos, como irmãos! Trabalhai para vós! Deixai a ambição e os sórdidos interes-ses de ordem partidária! Enterrai bem fundo as vistas alheias Con-vidai para ajudar-vos quem for amigo.
Angolanos saudosos, acreditai: nós, portugueses sofre-mos também, com a vossa desgraça! Nós queremos a fundo que esta velha província, amada relíquia do “vasto império,” viva desa-fogada, feliz e gloriosa! A mártir Angola está no coração de todos os Portugueses, como todas as parcelas desse mundo vasto,
Que foi português.
Só nos alegramos, quando vós, de facto. estiverdes livres.
Mas dessa maneira, jamais o sereis! Irmãos contra irmãos. destruindo vidas e fazendo de Angola uma ‘terra queimada! Meu Deus!’Iluminai, Senhor, os chefes negros! Levai-os prestes à com-preensão e desejo de servir! Encaminhai-os ao bom entendimento!
Que pena me faz, quando vejo Angolanos, aqui pelo Sudoeste! Há d eles, por toda a parte, afigurando-se párias, que
a sua terra ardente expeliu de si!
Falam com tristeza e funda mágoa no peito ferido! As lágrimas afluem, enquanto vão narrando a tragédia pessoal! Nem
Casa nem bens nem sequer família! Não sabem uns dos outros!
Nyangana
1977-10- 24
A 12 de Novembro do ano corrente. Vou fazer o casamento dum par angolano, que vive refugiado, aqui no Sudoeste. Veio já o Manuel avistar-se comigo, para indicar a data do enlace matrimo-nial.
O casal, à data, já tem filhos pequenos, vivendo portanto em pura mancebia. Por esta razão, desejam a sério, legalizar suas vidas, para que o bom Deus os proteja e ampare,
abençoando-lhes a prole. Por tudo isto, aceito de bom grado incumbências morais
Para mim, os queridos angolanos são diferentes dos outros, no Continente africano. Pudesse eu ajudá-los, em todas as cir-cunstâncias. Infelizmente, porém, estou manietado, esperando ansioso que Deus me liberte, conduzindo-me à Pátria. Se os planos não falharem, por fins de 78 ou ainda 79, devo regressar!
Sendo a nossa política já de confiança, embora com socialis-tas a deter o leme, ficarei de vez, leccionando então como particu-lar. Piorando a s coisas, voltarei de novo para o Sudoeste ou África do Sul.
A segunda alternativa é menos agradável! Gostaria imenso de ver Portugal desafogado e livre, vivendo alegres todos os portu-gueses. Em tendo pão, segurança e conforto, já sentem desejo de viver neste mundo.
Eu, no exílio, abandonado e só, é que não participo, nesse desejo. O 12 de Novembro vem acentuar a minha tristeza: perfa-zem-se 13 anos que a mãe querida partiu deste mundo para outro melhor, Após a sua morte, senti-me angustiado, pobre e mendigo!
Uma coisa apenas vem mitigar a dor e a saudade: a certeza absoluta de que é feliz! Realmente o Céu é para os bons!
Ela pertencia, não tenho dúvida alguma, ao número dos elei-tos!
Quatro longos meses de intenso penar, sem um queixume!
Sei que é ditosa, sendo esta realidade conforto e alegria para o meu coração.
Nyangana
1977-10-25
No dia 22, pelas 22 horas, ouviu-se em Nyangana, potente explosão.
Ficámos a julgar seria do outro lado, na mártir vizinha. Se tal canhão fosse de alcance!... Factos desta ordem ocorrem frequen-tes, originando em toda a gente elevada tensão. Desafinam-se os nervos, originando mal-estar! Ao mínimo ruído, é logo alvoroço, terminando assim o repouso da noite. Quem dera ver-me livre do inferno da guerra!
Há já 5 anos, trabalhando em perigo, sempre arriscado, em zona de guerrilha! O pior de tudo é eu não ver meio de o bulício terminar! Antes ao contrário: abuso e tirania aumentam hora a hora! O terrorismo alastra de maneira assustadora, pagando os inocentes por culpas que não têm
Ultimamente, vieram mais cubanos dilacerar em sanha a
Mártir Angola. É voz no Cavango terem já chegado à vila do Cuangar. Toda aquela zona foi há dias ocupada. Segundo vai cor-rendo. Vieram tropas e tanques do MPLA e com estas juntamente os homens de Castro.
Ao que dizem por aí, dispersaram-se já, pelo Catuítui,, após fuga em desespero, estendendo-se agora por toda a área, até ao Cuangar. Havendo sido acossados pelas tropas da UNITA, volta-ram de novo, passado algum tempo, fazendo-se acompanhar de tropas cubanas.
Reina, pois, o alvoroço, nesta margem do rio. A popula-ção indígena está sendo retirada para zonas interiores, bastante produtivas, tendo isto a seu cargo as tropas da UNITA.
Segundo o relato do Padre Bonifatius, nativo do Sudoes-te, a
Missionar em Andara, tem morrido muita gente, com tais deslocações, acentuando-se o facto em pessoas idosas.
O caso agrava-se e não vejo solução, pelo menos em breve.
As gentes angolanas do centro e do Sul, zonas mais povoa-das, são
fiéis à UNITA, em grande maioria. Acontece, pois, serem mal tratadas pelas tropas inimigas.
Nestas circunstâncias, vai o povo angolano caminhando para a morte. Há carência de tudo: é escasso o vestuário; os ali-mentos;
habitação e remédios; enfermeiros e Médicos. Além disto, que é já bastante, ameaças de morte, violência e pilhagens, espancamentos, desespero e ruína, sem faltarem vinganças.
Quanto melhor não vivíeis no antigo regime, que vos levava serenos à independência, de maneira gradual, sem gota de sangue! Mas cantou a sereia, e os ouvidos de muitos ficaram delei-tados!
Não sabíeis, por ventura que a voz da sereia é sempre enganadora?! Quem pode fiar.se?! Tenho pena de mim, a quem
A guerra infernal assassinou já um ente querido, sem qual-quer motivação, mas sinto por igual muita pena de vós. gentes angolanas, em terra de ninguém!
Terra queimada, terra de maldição!
Se Deus não é presente à obra dos homens, receemos sem-pre! O veneno subtil vai-se infiltrando e, às duas por três, surge a ratoeira… o crime… a desgraça!
Liceu Linus
1977-10-26
O Terrorismo Internacional
O maior flagelo da época actual é o terrorismo. Remon-tou o ser humano ao tempo da barbárie, utilizando habilmente os recursos da técnica. Já não parece um mundo civilizado aquele em que vivemos. É mais que certo haver injustiças. Todos sabemos que o mundo tem fome e, nalguns casos, só a Revolução é capaz de sanar o que não pode aceitar-se.
Mal necessário? Às vezes, sim,: quando falharam os meios pacíficos.. Mas o pior ainda não é isto! Por este caminho, treinam-se os povos na prática do crime, sem respeito nenhum pela vida humana. Uma vez habituados, o terrorismo não cessa e, ao mínimo pretexto, vão repetir-se actos paralelos.
O homem, afinal, é um ser decaído e nunca satisfeito! À margem de Deus, infunde terror, pois traz no peito o veneno letal.
Não havendo, pois, acção conjunta, de fibra e cerne interna-cional,
que o extinga, de vez, a chaga vergonhosa, apenas cresce-rá, pelos séculos vindouros.
Este aspecto é grave e até crucial, pois tira a paz, garan-tia sem a qual não há gosto de viver. Isto que digo, no tocante ao futuro. Quanto ao presente, causa arrepios a atitude insensata dos chamados terroristas, De facto, se nos causa horror a pena de mor-te, aplicada a capricho, por motivos fúteis, quanto mais não entris-tece o destino lastimoso de tantos inocentes que os bárbaros empolgam!
Não acho, neste mundo, coisa mais injusta, repelente e asquerosa! Crianças em flor, mulheres e velhinhos, pessoas d e bem… ninguém escapa à sanha infame destes canalhas!
Por que é que não usam outros processos?! Libertação de bandidos, pronta aquisição de milhões em dólares, bons meios de transporte e lugar seguro, para habitar! Que belo programa!
Assim, era o mundo um inferno!
Apenas os bandidos viveriam em paz e sempre em abun-dância!
Inversão de valores?!
O dólar em foco é preciso ganhá-lo! “Comerás o pão com o suor do teu rosto!”Não é assim que diz a Escritura?!
A palavra de Deus já não tem ensejo nem merece respeito?!
“Se as nossas pretensões não forem satisfeitas, até à hora X,
mataremos os reféns, destruindo o avião!”
Com que direito se faz tal coisa?! Em pé de igualdade ino-cente e facínora?! Donde veio o padrão que repugna e indigna?!
Ter-se-á o homem convertido em fera, para assim reali-zar seus intentos perversos?! Possa eu ver o dia, em que o mundo horrorizado lavre o seu protesto, para o cancro se extinguir,
decretando medidas sábias! Seria para mim um dia venturo-so!
Matar inocentes! Sacrificar ao venal terrorismo pessoas de bem! Amordaçar a virtude! Criar situações que não podem tole-rar-se! Que todos os povos se debrucem já sobre este caso espan-toso, que envergonha a nossa época. Nenhuma nação deve dar apoio a tais elementos. É deveras infame tal proceder!
Se o mundo assim usar, decretando além disso. Penas dolorosas para tais facínoras, levará o terrorismo um golpe mortal! Se têm pretensões, que usem outros meios. Se não puderem, aguentem, pois quem as faz é bom que as pague! Os outros infeli-zes não têm culpa!
Nyangana
1977-10-27 Os cães do Tondoro
São dois casais de raça diferente, havendo a mais a fêmea Coimbra. Esta e um casal são pastores alemães. Forçoso é dizer que tal raça de cães é a mais elegante de quantas já vi. O outro casal é mais desengraçado, mas tem qualidades. Uma dentre elas é a afeição que votam ao dono. Outra ainda consiste no faro, que
Julgo inigualável.
Contaram-me, a propósito, o caso seguinte: numa zona fronteiriça, fazia-se busca aos vários artigos de contrabando, sobre-tudo à droga. Ora, para casos tais utilizava a polícia cães adequa-dos. Chamam-lhe Dorbers.
Aproximando-se eles do automóvel, indicaram logo arti-gos
Proibidos, por meio do latir. Nestas circunstâncias, é feita a busca, no interior do veículo. Bancos e malas, vazio das portas, mala de trás, interior dos pneus. Feita a diligência, nada apurado!
Entretanto, os animais não arredam.

desde logo enorme diferença. O tal depósito
Levava muito menos do que era natural. Aberto em seguida, por ordem superior, encontram breve um depósito menor, recheado com droga.
Razão cabal tinham os bichos, para não se calarem.
Provado ficou, uma vez mais. Que o cão Dorber é incompa-rável.
Pois na Missão de nome Tondoro, fazem eles também as suas partidinhas. Por serem dois casais, há lutas horríveis, entre os dois machos. Quando tal sucede, vem Padre Manfred,
Bengala na mão, para afastar os fortes lutadores. Apesar de tudo, o ardor do combate não deixa separá-los. Partem os flagelos, tressua o Missionário e nada se obtém, ao menos de princípio.
Um dia, o Dorber feriu o dono. Claro está que o facto insólito valeu lhe uma sova. A falta, porém, foi logo perdoada,
olhando à causa. O Dorber não consente que o outro cão ocupe o seu lugar: o traço da porta que o dono utiliza. Ora, um dia o pastor alemão quis honras iguais, em seu proveito. Tanto bastou para logo causar uma luta de morte!
Portentosos animais os cães do Tondoro! Durante a noi-te ou por tempo de sexta, é de vê-los estendidos, ao longo do cor-redor!
Ai de quem entre sem que vejam o dono ao pé dos estra-nhos!
Falta-lhes falar, que o mais abunda!
Vendo o Padre Manfred em presença de alguém, é já sufi-ciente, para eles se absterem de qualquer atentado! Basta uma vez! Impagáveis cães!
O pastor alemão também ajuda a polícia; depois de treinado, é um bom lutador! Em instinto e beleza excede o Dorber. Este ape-nas o excede em questão de faro.
Se o dono arranca em veículo, tomam logo a dianteira, impedindo a marcha, durante uns quilómetros.
Pela ausência do dono. Mostram-se abatidos, ficando alerta. Para vê-lo surgir.
Liceu Linus
1\977-10. 28 Exames
Lavram os nervos, aqui e além. Todos s e agitam, em maior ou menor grau. É tempo de exames ou melhor, talvez, cami-nhamos para eles, a passos largos. O 7º e 8º já vão terminando, mas o 5º e o 6º a que dou Inglès só em 1 de Novembro terão seu início.
Se eu bem comparo esta quadra efervescente, remontando a Portugal, que diferença enorme, em questão de exa-mes e atitudes humanas! Alguns aspectos são harto chocantes. O factor ‘cunha’ andava em bolandas! Pedido a B, rogo ainda a C, promessas a D. Movia-se tudo, Este aspecto, porém, avultava muito mais, durante a Primária ou mais ainda, no exame de admissão.
Apesar de tudo, no Curso Liceal também não faltava. Lembra-me, a propósito, a saída jocosa de certa mãe, que dizia, impante, na Covilhã: O meu filho está jogando hoje com várias ‘cunhas’ Três pedidos feitos e a Cunha do nome!”
Aqui, então, nem uma sombra a rogar por alguém! É
preferível! O aluno, por cá, recebe o que merece, em função do esforço e do trabalho feito! Nem mais nem menos! Quem sabe passa; quem não sabe, fica.
No meu Portugal, em época de exames. Até os contí-nuos subiam de importância. É que eles actuavam com certa eficá-cia!
Os liceais, esses então ganhavam logo personalidade , que não era brincadeira! Nós, aqui, não temos esse luxo. Somos os mesmos!
Quanto aos alunos, a questão do nervosismo não tem paralelo! Orais não existem! Só escritas para todos, sendo a nota final a totalidade obtida, sobre várias parcelas: pontos de frequên-cia; chamadas orais, ao longo do ano, em que se atende à leitura e boa recitação; compreensão dos textos; conversação preparada e outra impreparada; tópicos gerais. Soma abrangente
(50 pontos).
Se eu, quando aluno, tivesse exames destes, conseguia, digo firme, três valores a mais, na média geral. É que, nas orais ficava inibido de usar o raciocínio. Hoje, à distância, reputo essas provas
verdadeira injustiça. O pedido, realmente está na berlinda, mas ele só é válido para certos meninos. Que são, em regra, os mais incapazes. Os que têm valor, mas vêm de baixo, não podem mostrar aquilo que sabem! Com horror e espanto, revelam, sim, que não têm protecção, ficando à mercê dum sistema irracional e
contraproducente. Quando acabará tal processo de exa-mes?!
Por que não fazer como nós aqui usamos?!
Mais uma achega, a tal propósito. Certo dia, viajava de com-boio, pela Beira Alta, quando me surge um antigo aluno.
Então, que fazes por aqui, meu bom amigo?
-- Olhe, vou à Guarda prestar contas do 7º. na Cadeira de Latim. Aquilo é certinho. Sei, de antemão o que vão perguntar-
-me. Quer assistir? Venha daí!
Disse-lhe que sim. Uma vez em presença, todo eu sou ouvidos.
-- Qual é, afinal, o escritor latino que maus aprecia?
-- Cícero
-- Entre os seus escritos, quais são os que prefere?
-- Cartas.
-- Escolha uma.
Assim vai o mundo! Os de baixo, coitados, é que passam angústias!
1977-10-29
Minha irmã, ao presente, na terra natal! Como há-de ser chocante o primeiro embate, volvidas já, dezenas de anos,
passados em Angola! Nem palavras tenho, para exprimir tais
sentimentos! Antes de Abril,74, e a data posterior, que logo
surgiu?!
Seria, talvez, como passar dum mundo para outro? Não sei, mas imagino. As cartas da mana irão informando logo em seguida, pois viveu a ‘tragédia’( palavra de Melo Antunes,
insigne militar do nosso Exército).
Enquanto não chegarem, vou eu supondo a desgraça familiar, que terá sobrevindo: ruir estrondoso de hábitos radicados; perda total dos bens adquiridos, honestamente, sem indemnização; sepultura de duas filhas em solo africano; futuro incerto dos filhos restantes.
A última carta era já do povoado, a queixar-se de tudo:
Casa inabitável; falta de aquecimento; inadaptação; frio
Insuportável; custo de vida a que não é possível fazer logo face. Um ror de coisas!
Merecia outra sorte! O caso dela, porém, não é exclusi-vo!
Entretanto, cada um vê o seu! Tenho para mim que Deus a compense, pois a sua vida foi sempre honesta.
Aguardava outra carta, já que a primeira era escassa em pormenores. Apenas informava, acerca de do facto e era abun-dante em lamentações! Esperava nova carta, mas não a encontrei,
Que Deus alivie todos os inocentes! (Era o meu pedido!)
Num Diário do tempo, escrevia eu: aquela pobre irmã o que tem sofrido! Tanta desilusão! Tantas decepções! Tantos contratem-pos! Horríveis percalços! As mais inesperadas e amargas decep-ções!
Lembra-me, a propósito, a frase de Garrete; Deus aflige neste mundo aqueles que ama. O prémio só na outra vida.
Tenho a certeza de que também esta frase se aplica a minha irmã. Que ela saiba interpretar os casos da vida, â luz da eternidade! Aplicando aos factos a ciência humana, afiguram-se logo autênticos enigmas. Os caminhos de Deus são muito diferen-tes e têm como fim a nossa felicidade!
Parecem, às vezes, um tanto absurdos, porque os focamos à luz deste mundo. Ora, este espírito é, de se, contrário ao espírito de Deus. O nosso destino prolonga-se muito para além da morte. Aqui, só de passagem, Deus criou-nos para Ele.
Nyangana
1977-10-30
Nas horas de lazer que, afinal, são poucas, vou lendo alguma coisa, alheio às matérias que rejo no Liceu.
Ultimamente, consagrei a atenção a livros de Marx, Engels e Lenine. Li com atenção e vivo interesse argumentos e notas.
A favor do Socialismo.
Achei muito de verdade, nas suas afirmações, mas con-fesso abertamente que não respondem a quesitos diversos
Que se impõem, de imediato.
Concedo plenamente que a ordem social, vigente em nosso tempo, é detestável, por ser injusta. Não está certo que exí-gua minoria acumule a riqueza, enquanto a massa humana, que representa, decerto, a maioria absoluta, viva parcamente, sendo ela, afinal, a causa produtora, imprescindível.
Conciliar os interesses, de um lado e outro não será muito fácil, mas há sempre caminhos, existindo realmente desejo de acertar. Segundo me parece, há duas saídas: a de
Marx-Lenine , que chamam comunista ou de substituição; outra de correcção.
Vejamos a primeira. Se lermos, alguma vez, sociólogos comunistas, ficaremos presos, dando-lhes razão, sem qualquer argumento que possa travar o seu raciocínio. Entretanto,
reflectindo um pouco sobre os princípios que, na verdade, tê muito de certo, não resistem, me parece, a uma crítica honesta e bem conduzida.
Diz o citado Marx: Um operário produz, trabalhando, uma peça de máquina, cujo preço inicial é de 21 francos,
antes do labor. Se o patrão, em seguida, pagar ao emprega-do 3 francos de salário e vender o objecto por 27, rouba 3
francos.
As minhas palavras não são textuais, mas revelam com certeza o pensamento do autor. À primeira vista, o seu argumento apresenta-se logo como incontestável, mas eu refuto em parte o seu raciocínio. De facto, após a força do trabalhador, aplicada no objecto, este valorizou-se em mais 6
francos, o que dá em resultado: 21+6= 27
Naquele 21 entram as máquinas, bem como os moto-res, matéria- primas, matérias acessórias, luz e local.
Ora, diz Marx: A capacidade e a força de trabalho daquele operário aumentaram em 6 francos o valor do objecto. Logo. 6 francos é, a rigor, o salário daquele trabalhador e não ape-nas três! O patrão dá-lhe três e rouba outros três!
Sem exame acurado, parece ter razão, ma agora per-gunto: quem sofre os embates do lucro cessante e do dano emer-gente?! Suponhamos que, devido à concorrência ou
Super-produção, vende a mercadoria por baixo preço
Segunda pergunta: quem se responsabiliza, se a fábrica arde ou sofre graves prejuízos, em máquinas e motores?! Quem
Aguenta os prejuízos?
Não devemos esquecer o valor imprescindível da inteli-gência, pois é um dos factores da produção.
Ao todo são três: capital. Inteligência e trabalho. São
inter-dependentes e solidários.
Da boa coordenação e firme equilíbrio depende o êxito,
nesta matéria.
Liceu Linus
1977-10-31 Cont.
Terceira pergunta: quem paga ao patrão, dando 6 fran-cos ao dito operário?! A gestão acertada, mercê da qual aumenta-ram os lucros quem a pagaria, dando ao trabalhador os francos em causa? Terá ele jus a mais de três? Digo que sim, mas não a 6!
Muitas empresas têm lucros fabulosos, devido `a perícia de gerentes argutos. Segundo penso, a inteligência não é para Marx factor de riqueza, o que é infundado! Vejo estas coisas da seguinte maneira: os operários devem tomar parte nos lucros da Empresa, vigorando nela regime capitalista. Será de utilizar a subs-tituição?
Apear o capitalismo, para alojar o comunismo?
Se trouxer à sociedade uma vida melhor, é de tentar. Mas eu não creio! É mau o capitalismo, na estrutura actual? É.
E quanto ao comunismo? Pior ainda! Portanto, de nada vale a substituição. Ir a pior não adianta! Realmente o comunismo +e novo capitalismo, que reduz o ser humano a ‘peça de máquina’, pri-vando-o assim da sua liberdade.
Interessa apenas a colectividade, a que tudo sacrifica. O indivíduo fica apagado!
Há nisto, por certo, enorme desequilíbrio
Nova objecção ao sistema comunista: é o Estado, afinal, que adianta as máquinas assim como os motores, etc. Depois, não vai pagar nada, pelo uso e desgaste?! Quem é o patrão de quanto exis-te?
Está provado que, tirando pela raiz, a iniciativa privada, as Empresas definham e morrem breve.
Que vai, ….. por Moçambique? Que se passa em Ango-la?! Que se vê em Portugal, como resultado do Governo comunis-ta?! Eliminar totalmente a iniciativa privada é matar a produção. Ninguém ignora que os povos capitalistas produzem muito mais que os seus opositores. Quem alimenta os povos da África Austral? Não é, afinal, a África do Sul?!
Quem vale à URSS e outros povos comunistas?! Não são realmente os Estados Unidos?
Apesar de tudo, não quero defender o Capitalismo!
Precisa ser corrigido. Os operários merecem ter parte nos lucros da Empresa. O comunismo geral foi delineado pelos históri-cos.
É inaceitável e também o Socialismo, ficando muito â esquerda. Socialismo equilibrado que respeite sensato o direito de propriedade e a liberdade do homem, nacionalizando o mínimo possível ( só o que é basilar para o bem do país) é o sistema ideal. Deve olhar-se ao bem de todos.
Não apenas a um grupo! Todos têm direitos e deveres a cumprir, de maneira igual.
Capitalismo, um tanto corrigido ou socialismo cristão, mas não comunismo! Lisboa
1981-01-01
Alcântara
Doze mil escudos! Não posso entender nem quero admiti-lo! Um ano agrícola cheio de canseiras, eriçado com espi-nhos e trabalhos diversos! Nem falo em doenças que fundo angus-tiam e logo deprimem! Também ponho de parte o
Nyangana
1977-09-24 Projecto
Baila na mente uma ideia sedutora: escrever um livri-nho, encabeçado, como vai a seguir: Gonçalo em Camisa.
O caso em foco não surgiu de repente, mas nesta data revi-gorou-se o desejo. Tentando passar de potência ao acto.
Trago entre mãos a primeira Novela ( Um Sonho Fasci-nante), começada há 30 anos e logo interrompida, no
Capítulo XII. Ficará, provavelmente, com mais 21. Restam só 4, para dar-lhe remate.
Há outra Novela, já posterior, que teve seu início, lá em Pinhel, para onde fora, como professor, em 1950. Conto
ampliá-la substancialmente, pois julgo inadequada a manei-ra de acabar.
A revisão completa de todos os Diários e estes dois finais
levam tempo imenso, requerendo por força os momentos disponíveis.
Voltando ao Gonçalo, seria possivelmente um livro dei ins-tantâneos. Quase anedótico, focaria somente aspectos cómicos, imprevistos e trágicos da tal personagem, os quais
são próprios do ser racional.
Tudo o que humilha, rebaixa ou indispõe e se tenta esconder surgiria logo, nos ‘instantâneos.’A ideia é tentadora, mas falta disposição e, às vezes, tempo
Satura-me em extremo a vida que levo. aqui no Sudoeste!
Se fosse em Vinduque! Não é meio ideal, para a minha aspiração, mas era melhor! Veremos, em breve, o que o tempo me oferta!
Nyangana
1977-09-25
De hoje a 15 dias, haverá entre nós imenso regozijo. Terá
Regressado aquele que esperamos, com viva ansiedade – o nosso Padre Hermes. Sem ele aqui, falta-nos alguém que dê
vida e relevo à Missão de Nyangana. O mesmo é dizer que lhe falta a alma. Que impressão nos dá um corpo sem alma?
Impressão desoladora que nos leva a fugir, cheios de horror e já vencidos!
Eu, exilado de Angola e, por isso, refugiado, no Sudoeste Africano, encontrei no Padre Hermes o irmão que muito amo,
pela sua gentileza, dedicação e puro altruísmo!
Venha ele satisfeito, para junto de nós que estamos saudosos, já suspirando! Destes corações é que o mundo precisa! Nem egoísmo nem rancor! A todo momento, boa disposição e ale-gria no rosto! Ele veio da Alemanha, não
para servir-se, mas servir os outros. Grande recompensa o espera no Céu
Nyangana
1977-09-26
Acontecem na vida factos estranhos que fazem cismar.
Eu creio na Providência, que rege o mundo todo e o tem de
Sua mão. Há dias já, que ando pensativo e assaz preocu-pado.
Tenho agora em foco uma pobre criança, originária de Ango-la, segundo parece. Pode ter 10, quando muito 12 anos.
Usa aparelho na perna esquerda e quando se desloca, faz leve pendência, nessa direcção
A primeira vez que notei o facto, avistei-a de longe e tive grande choque. Coisa banal uma criança doente, preta ou branca? É uma de tantas que aparecem no mundo!’ e se nos depa-ram! Talvez seja isso, mas o caso, para mim, é deveras singular.
Eu sigo-a com os olhos, até perdê-la de vista. É como feitiço que me prende e arrasta. Por mais que tente, não consigo despren-der-me! Piedade e ternura, para com os infelizes?!
Sim, um pouco disso, não haja dúvida, mas o caso, para
mim, é muito diferente
Esta miúda figura exactamente a Maria Margarida (sobrinha e afilhada), quando fui por ela, no mês de Agosto de 68, ao
Aeroporto da capital portuguesa.
Saíra de Angola, para fazer seus estudos, no Colégio de Manteigas, onde eu era professor.
Tinha aquela a mesma doença e na mesma perna. A idade e o tamanho do próprio corpo andariam próximos.
Atendendo agora ao destino cruel que depois a vitimou,
Quando já prestes a entrar na Faculdade, sinto no peito um baque tremendo, mas é um ponto de atracção, ao ver tal criança. Não lhe sei o apelido nem lhe sei o nome nem conheço talvez a linguagem que usa, mas é um ponto de tracção e causa de angústia
Era a 8 de Maio de 75, na cidade Silva Porto.
À hora do recreio, no Liceu Silva Cunha, conversavam
animados, trocando impressões, alunos e alunas.
Nessa altura exacta, a maior fatalidade estava a incubar-se,
para esta menina. Uma bala assassina atinge-a na cabeça, penetrando no cérebro.
Dezasseis e oito duma tarde sinistra! Cai para sempre, cá neste mundo, a nossa Guida, que tanto amávamos! Não fizera mal! A ninguém ofendera! No entanto, a guerra feroz nada respeita, achando melhor pôr fim a seus dias. O que vale, para nós, é Deus existir, para vingar tamanho crime! Punir um assassino, para livrar a sociedade humana, é razoável e justo
Matar um inocente, com requintes de maldade, nada
existe no mundo que possa justificá-lo! O sangue de tais vítimas clama da Terra pelo nosso Deus!
Ela partiu, mas deixou nos seus eterna saudade. Que o Pai do
Céu a tenha em glória, abreviando clemente a sua expiação, lá
no Purgatório
Segundo informação, o Comandante Tigre, que mandou ati-rar, morreu no Lobito, quando a UNITA invadiu a cidade.
Quem com ferro mata com ferro morre.
Liceu Linus
1977- 09-27
Reabre o Liceu, para hoje iniciarmos o 4ºperíodo.
Com ele, finaliza também o ano escolar. A 8 de Dezembro, estaremos já livres, para gozo de férias! Praticamente, são apenas dois meses, que passam ligeiros, por haver, nessa dat maior aplica-ção.
Levo, pois a bom termo dois anos de magistério, em ter-ras do Sudoeste. Perfaz isto já o bom somatório de 32 anos
Conceda-me Deus mais um ano aqui, o máximo dois, para assim finalizar o múnus de professor. Trinta e quatro anos já vão saturando! Falta a paciência e com facilidade me torno pesado.
O esforço que utilizo, para dominar-me, excede os recursos. Uma vez em Portugal, vou dar explicações, até perfazer os 40 anos, dados ao Ensino, a tempo inteiro.
Nota
O número de anos ficou assim repartido: 27 em Portugal (Ensino Particular); 3 em Angola (Ensino Oficial,
de 1972 a 1975); 4 na Namíbia, administrada pela África do Sul.
A minha residência com a família era no Chitembo, onde
eu passava as férias e os fins de semana, e onde começava “, a zona perigosa”que chegava a Serpa Pinto.
Para minha desgraça e vergonha eterna dos Serviços Sociais, foi-me recusada a tal ‘Reforma’ como professor do Ensino Secundário, quando outros a receberam, com menos tempo do que eu. Tenho testemunhas.
Retomemos o fio da longa narrativa.
Faltam 2 Capítulos, 34 e 35, para acabar s Novela, Será coi-sa de jeito?! Com a morte na alma, darei eu vida às personagens?!
Pátria linda…família adorada…amigos que prezo! Tudo
morreu, que a distância falou! Entre nós todos, cavou-se o abismo, não sendo possível darmos as mãos. Após tanta dor e tamanha desventura, conceda-me o bom Deus a sua companhia, Será Ele o grande prémio para amarguras e dores, Fora de Vós, Senhor e bom Pai. Só o mal e a desgraça podemos encontrar! Não olheis irado para as minhas faltas! Que Vos mova pronto aquele amor operoso que Vos pregou no madeiro, entre dois malfeito-res!Liceu Linus
1977-09-28
Ser professor em zona operacional é algo delicado e cheio dc imprevistos. As regalias auferidas aqui não compensam
jamais os perigos tremendos que surgem pela frente. Com-paremos então, focando as regalias: cinco dezenas e meia de ran-des mensais; casa, água e luz; mobília essencial. Os contras danosos são em maior número e de grande projecção. O maior de todos é o risco enorme de ficar sem pele, em qualquer altura. A zona em causa está vigiada, mas não podem evitar que, uma vez ou outra se se dêem fatalidades. Besta ver por alto o caso da Rodésia, onde há por certo vigilância pronta e bem organizada.
Na Ovamboland, com a base militar só a 3 quilómetros, da Escola Oficial, os terroristas invadiram-na pronto, levando na frente alunos e docentes. Outras vezes, matam simplesmente, da maneira mais bárbara, como fazem na Rodésia. Além disto, que já não é pouco, há o ambiente que se respira e sente.
Seja como for, o lume espalha-se, deflagra e queima.
A malta nova traz já no sangue o fermento da revolta. Raro é o preto que não disponha, ao menos, dum aparelho de radio.
Por meio dele, recebe a mentira, gerando-se no peito ódio e vingança. Ensina-se a matar, afazer assaltos, a roubar o que é
de outrem.
O aparelho radiofónico devia servir para erguer o homem, tornando-o melhor. Afinal de contas, foi convertido em ins-trumento diabólico, para degradar!
Que tempos estes! Que será o mundo, no dia de ama-nhã,
Com esta aprendizagem?! O Senhor Jesus Cristo pregou o amor: o Comunismo prega sempre o ódio! Quem terá razão?!
Deus ou o homem? A quem devemos nós obediência pron-ta? Adestrada assim, por tais mentores, que será, realmente, a nossa juventude, nos próximos anos?! Há-de ser impossível viver, neste mundo! Já temos amostras. É ver, por exemplo, o
que vai no Uganda!
Os chefes do futuro ver-se-ão obrigados a converter-se em feras, para defenderem a própria vida. Sociedade sem Deus cria chefes despóticos. Onde reina o ódio só mal é de esperar! Mas isto é efeito do ensino diabólico, ministrado às crianças. Quem semeia ventos colhe tempestades.Por este andar, eu prevejo para África um futuro lastimoso! Ainda será tempo? Alguns dos chefes já viram o problema; outros, porém, são levados e guiados pela sereia.
Será este, de facto, o processo natural, para que toda a África venha a destruir-se! Extinta a Religião e perdido o respeito a qualquer autoridade; alimentada a ânsia do poder
bem como a ambição, nada mais resta: só auto-destruição Assistiremos inquietos a una época incessante de lutas e mortes, em que os melhores valores tombam primeiro. As
Religiões bem como o tribalismo são valores preciosos, para a defesa do Continente Africano. Unir as tribos, com um só chefe, igual para todos! Destruir o tribalismo é um erro palmar
Outro erro igual, se não maior é pregar o ateísmo, des-truindo a ReliLiceu Linus
1977-09-29
Perguntou de manhã um membro do exército por que é que as freiras não gostam dos militares da África do Sul. Não pude responder-lhe, pois na verdade ignoro o facto, em pormenor. Leio nos jornais certas referências, donde posso inferir que seja assim mas, daqui à realidade, pode haver ainda uma longa distância.
Constou, há poucos doas, que uma freira americana havia dito o seguinte: Se eu fosse da mesma cor, juntava-me aos ‘turras!’
Tenho para mim que esta má vontade provém do apar-theid. Foi, na verdade, o que tentei expor, para justificar.
Se eles efectivamente não têm iguais direitos, fazendo como é certo, parte da nação, que deviam esperar senão a revolta?!
Por sua parte, as freiras, sobretudo as pretas, clamam e bra-dam contra a injustiça.
Exigem condições que não separem as raças, por moti-vo da cor. Ora, uma vez que o exército representa a lei, há-de estar aí a causa real dessa má vontade.
De facto, o apartheid legal é contra a justiça. Mercê dele, um preto, habilitado qual branco, ganha menos que ele; não pode habitar determinadas zonas; não é admitido como membro do Governo, pois lhe estão vedadas funções políticas; não pode casar com elementos brancos; não pode comprar terras, na ara própria dos europeus.
Claro se deixa ver que tal maneira de agi é fundada, exac-tamente, na desigualdade, perante a lei. É algo semelhante às cas-tas na Índia. Ora, o Sol, quando nasce é para todos.
Os Sul-Africanos defendem-se então, dizendo em alta voz que asua região não é pluriracial: sim multinacional
O mundo em geral não aceita o dito, alegado, a propósi-to, que os pretos, afinal, são 80%, dispondo somente de 13% do extenso território
Na minha opinião, os vários Estados, auto-governados ( home lands) têm vantagens, limando colisões que surgiriam ,
Naturalmente, da integração. Por outro lado, não é de repen-te que uma Comunidade se pode inserir noutra diferente. Tenho para mim que o ponto de vista da África do Sul é
defensável, mas legalmente devem ser abolidas proibições e entraves, que separam as raças. Isso é injusto e clama ao Céu.
Não é cristão! A divisão das terras é também de rever!
Acerca de injustiças, também o mundo é injusto para a África do sul, pois o que se intenta é a sua destruição, afim
de extrair-lhe a imensa riqueza utilizando, ao mesmo tempo, a situação estratégica. Portanto, à África do Sul, com deveres a cumprir( nisso estou de acordo) cabem-lhe também direitos,
situando-se entre estes o direito à existência.
Ora, vendo bem as coisas, penso, e não me engano, que o mundo em geral, alinha sempre com os inimigos, intentando somente focar os deveres e negar, em seguida, qualquer direito.
Haja moralidade e acabem de vez os tais cri.té Liceu Lin1977-09-30
Como tudo o que é matéria ou revela mudanças, a ela inerentes, também Setembro agoniza e passa de vez. Tanta ansie-dade e tanto pensar, procurando com desejos apressar o
movimento! Para què, se tudo, por certo, corre velozmente?!
Gostaria, sim, que o tempo voasse, para deixar o Sudoeste Africano, ingressando em Portugal.
A data não vem longe, porquanto ao lembrá-la, vejo-a mais perto. O segundo ano vai quase no fim, pois o Reitor anunciou já ontem a data dos exames – no mês de Novembro! Por outro lado, hoje de manhã, veio ter comigo o Secretário da Escola, dizendo, sem rodeios que tirasse as médias às Provas de frequência. Pelo que vejo, tudo fala do fim. Foi aquele o meu trabalho, durante a manhã. Tinha aulas, mas foram só duas, como ontem sucedeu. Amanhã, vai ser a mesma coisa!
Ocasionou a mudança a presença entre nós dum alto funcio-nário, residente em Vinduque. Os nossos alunos estão sujeitos a vários testes, a fim de mostrarem o grau de inteligência. Ignoro as razões para tal ocorrência, mas quer-me parecer que é para fichei-ros, que interessam ao Governo.
De facto, os mais classificados terão bom ensejo de continuar os seus estudos, com ajuda estranha.

Voltando aos exames, o processo aqui usado é mais que excelente. Quem me dera a mim havê-lo eu tido, quando era estudante! As Provas Orais que aterram o aluno e o colocam em jeito de não mostrar o que sabe, não existem aqui. Há só Escritas e algumas destas fá-las o docente.

Quando vêm de Pretória, são corridas pelo professor.
Os do 5.º ano fizeram seu exame, no mês de Setembro, mas continuam, para revisões e serviço de Inspecção, que virá, em Outubro. O ano passado não veio cá. Pois a nota final, para o Stan-dard 5 é assim obtida: Oral (chamadas, durante o ano) 40 pontos; 1.ª Escrita (carta e composição) 20 e 30, respectivamente; 2.ª Escri-ta, 60 pontos. O total é de 150.

Lisboa – Alcântara
1981-01-07

Doze mil escudos! É escandaloso! Não posso entender nem quero admiti-lo! Um ano agrícola, cheio de canseiras, eriçado com espinhos e trabalhos diversos! Nem falo em doenças, que fundo angustiam e logo deprimem! Também ponho de parte o enorme traumatismo, gerado em Angola, devido não só à ruína material senão também ao drama psicológico, originado em crimes e hor-rendos assassínios.

Vêm dum exílio, criado por Satanás, sem achar protecção nem calor ou estímulo. Por falta de emprego, havendo que susten-tar-se um grupo de 5 pessoas, escorraçadas de Angola, com modesto subsídio atribuído a um só, dão-se à cultura da terra, enfermiços e débeis, acabando a ruína em saúde e haveres.
Cultivam batata. Chegada a colheita que não é abundante, esperam animados que haja bom preço. Não querem muito! Apenas
O bastante, para subsistir.
Pela arranca da batata, não dá entusiasmo, vender prestes-mente!
Apenas 100$00 por 15 quilos! Esperam-se meses. Entretan-to, devido a factores que não podem evitar, o precioso tubérculo apodrece já e continua a baixar, descendo para 90 o preço duma arroba. A esperança esmorece e com ela a ventura e o gosto de viver!
Postas as coisas no pé indicado, faltando recursos têm que vender pelo preço aleatório. Não há protecção, de carácter oficial
É necessário morrer à fome… sucumbir à doença! Quase se atiram para u negro desespero! Seis escudos, por quilo! Que é isso, afinal?!
É que a receita mal cobre a despesa e o trabalho pessoal!
É isto, realmente, a orgânica social?! Pode o ser humano, de juízo são, encolher os ombros?! Para onde caminhamos, de olhos bem abertos?!
Para cúmulo de tudo, sobe a 8 escudos o preço do quilo!
Resultado? Enorme prejuízo… um dar em ruína! Doze con-tos em perdas! E não entram aqui os sacos de podres, que foram rejeitados!
As esferas competentes não olham para isto?! Não há garan-tias para a gente dos campos?! Onde o estímulo para cultivar?!

Lx. – Alcântara
1981-01-08

O Branco graxista
É vulgar e frequente depararem-se graxistas, aqui e além. Ninguém o estranha e, verdade seja, prestam bons serviços, embo-ra dispensáveis. Com efeito, não era impossível engraxar cada um os seus próprios sapatos. Entretanto, o que hoje me prende é coisa diferente.
Notei o caso ali para Santos. Fez-me impressão e dei-me a pensar, durante momentos. É que eu, vivendo em Angola, observei o sentir da gente nativa. Sendo isto assim, estou mais autorizado a formar opinião e a pesar os factos.
O negro em África tinha o Branco por alguém superior, a quem tudo sorria, de nada carecendo. Nesta ordem d e de ideias, atribuía-lhe dotes e potencialidades que nem sempre existam: inte-ligência rara, alto prestígio, dinheiro a rodos.
Tudo abundava, no ser privilegiado, que era o Branco. Este conceito
Generalizara-se, entre os nativos, de modo especial os mais atrasados.
Somente o Branco podia vestir bem, ter carro e serventes, habitar lindas casas, gozar a capricho Eles, afinal, sem eira nem beira nem dotes de alma que podiam fazer?!
Estas graves razões pesavam no meu espírito, agindo agora noutro sentido.

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