sexta-feira, 29 de julho de 2011

M 39 - 1972/03/17 a 07/22 e 1982/01/03 a 02/19

1972/03/17 a 1972/07/22
e
1982/01/03 a 1982/02/19

1972
Manteigas 17-3-1972
Em Viagem
A automotora desliza em carris, girando apressada, rumo à capital. No corredor, arrumam-se a custo, alguns impacientes, cujos olhos se distendem, ao longe e ao perto, devorando a via, em miradas frequentes. Aqui e além, bocejam alguns, sondando o relógio e procurando boas relações. A mesma finalidade os torna solidários.
Agora, sou eu que me levanto, demandando a frente.

Manteigas 9-4-1972
Grande surpresa hoje me colheu, ao bater das 8! Como há duas torres, na vila de Manteigas, ouvi 15 anos o soar das horas, nos dois relógios. Entretanto, não eram simultâneas, coisa, por certo, que ninguém admira: à maneira das cabeças, também os relógios se dão a extravagâncias! É conhecido o velho prolóquio: cada cabeça, sua sentença! Havendo paridade, cada relógio seu tempo diferente! Mas não era isso que, na verdade, me surpreendia, pois que o mesmo sucede, em qualquer outra parte. O assunto, agora, é bem diferente!
Se não, vejamos: um dos martelos ia sempre adiante e fazia-o por sistema. Julguei até que era por acinte ou por causa ignorada! Pensando algumas vezes, sobre o caso entre mãos, imaginei também tratar-se apenas de um acto simbólico. Ia sempre adiante o relógio de S.Pedro! Figuraria, talvez, o avanço notável da freguesia, sobre a outra rival – a de Santa Maria?! Simbolizaria a indústria florescente e o progresso deslumbrante, concretizado em obras que maravilham quem passa?!
Hoje, porém, ao sair de casa, voltou-se-me a atenção para Santa Maria, em cuja torre soavam as 8! Acto contínuo, levanto os olhos para a torre de S.Pedro, esquadrinhando ali, no mostrador a posição dos ponteiros. Não eram ainda as 8 da manhã! Podia lá ser?! Veriam bem estes meus olhos?! Estive quase para não crer, mas era verdade, pois, volvidos instantes, chegou, até mim, a voz esperada. Apesar de tudo, foi motivo de espanto!

Manteigas 10-4-1972
Ontem, nevou, com grande espanto! Já tinha aquecido, ficando a impressão de que a neve findara. As contas, porém, saíram furadas e vá de aguentar! Lá está ela, sobre a montanha, dando a esta a cor do linho! Estou saturado, vendo-a sempre: ao invés dos turistas, vindos de longe, para regalar-se, na alvura da serra, fico deprimido, assim que a descubro.
A prima Cristina, que nasceu em Lisboa, julga-se desditosa, por não haver jamais contemplado a neve! Para mim, então, é suprema desventura, vê-la constantemente enregelar-me o corpo e tornar a minha vida quase insuportável! Creio, no entanto, ser este o final! Vou fugir para longe do medonho Covão, onde vivi sempre enregelado por longos 15 anos! Boa parte da vida, certamente a mais válida, ficou disseminada, por estas escarpas, onde a vista morria, para nada mais poder alcançar
Agrada-me, pois, o belo pensamento: jamais verei neve, que dos 39 anos, aos 54, foi alvo constante de meus olhos magoados! Dei já início ao plano da mudança, pois que esta, a rigor, envolve mil coisas! Serão todas arrumadas, segundo a importância. Ontem, varri a garagem, metendo os papéis na mala mais velha, que vai permanecer como recordação! Cismo a toda a hora no que devo fazer, para arrancar, já sem retorno, a este vale tão fundo!

Manteigas 11-4-1972
Hesitei, a princípio, mas depois resolvi. Era, na verdade, uma ideia obsediante, importuna, definida: ir à Covlhã dispor as minhas coisas, no Banco do Atlântico e tudo preparar, sem demora nem empate. Haviam sido, já três, as minhas tentativas, mas todas infrutíferas: fechavam-me as portas, quer dizer, atendiam aqui as aspirações que noutro lugar satisfariam. Ilusão e nada mais, pois noutro lugar haveria erguido obra mais válida, preenchendo aspirações de outra natureza. Agora, porém, é já tarde para isso! “ Burro morto, cevada ao rabo”!
Passou, de facto, a ocasião e, nesta data, era uma vez… Entretanto, alguma coisa se lucra, ainda agora: passar em calma os últimos anos, sem zangas nem ruídos! Esta gente nova é quase insaciável Que a aturem e aguentem os que assim a puseram! Desenfreada, importuna e leviana, arrogante e mal criada! Vem isto de há pouco, nas já me saturou!
Trabalhei bastante: 27 anos é já suficiente para arruinar um homem qualquer, fazendo como eu. Importa agora transferir o dinheiro, do Sotto Maior e da Caixa Geral, para o Português do Atlântico, onde intento guardar o fruto ganho pelo meu trabalho! Não chega a 500 contos! O que isto representa de lidas e canseiras só Deus o sabe! Não há palavras humanas que traduzam bem as privações, esforço e noitadas, subtraídas à vida, para amealhar tão fraco pé-de-meia!
Este facto deplorável fornece razões de sobra, para que eu odeie o Capitalismo! Arruinar-se a existência, para juntar migalhas que já não podem servir, por falta de saúde ou espaço de existência

Manteigas 12-4-1972
Nada assentei com o nosso Director, sobre o ano escolar, que vai ter início, como é habitual, após as férias grandes. Basta preveni-lo até fins de Julho: equivale a dizer, com dois me ses de férias. Apesar disso, fá-lo-ei com mais espaço, havendo assuntos pendentes, que é preciso tratar. Procedo em tudo como se, na verdade, houvesse decidido, por forma incontrastável!
Penso eu: ninguém logrará, por mais que tente, desviar-me de sair, dadas as circunstâncias que tomaram já corpo. Acabou-se de uma vez o lugar de privilégio, coisa aliás que me reteve, durante vários anos: correram-me também do velho hospital e fui substituído.
Os provedores de agora têm de impor-se, com grande rompante, Só agem de outro modo, se forem lisonjeados e objectos de culto. Fora deste clima, eliminam decerto os capelães. Nem se lembram, às vezes, que acima deles está o Prelado. Riscam, tiram e põem como ditadores! Lá virá ocasião de baixarem a grimpa!
Além do mais, a disciplina, dentro do Colégio, morreu de vez! Indisciplina, altivez e preguiça, eis as características dos novos estudantes. Claro! Há sempre excepções! Como ficar?! Nasceu outro sol: é forçoso que me eclipse, nestas paragens. Deixá-los-ei sossegados, ainda àqueles que vieram atravessar-se, no meu caminho, sem o mínimo respeito de franca lealdade!

Manteigas 13-4-1972
Iniciei já o arranjo das malas e dispus as coisas para a grande arrancada. Saturam-me estes ares! Pesam-me estes montes! A própria água me causa dano! Há muito já eu devia ter partido. Quem obstou, afinal, a que eu o fizesse?! Nem sei, precisamente! Que pedido me fez a mãe extremosa, antes de morrer?! “ Não fiques aqui, meu filho! Vai-te de cá embora!
Decorreram 15 anos, de 1957 a 1972, absorvendo a minha vida, entre os 39 e os 54. Aqui passou a idade, em que o homem rende mais e tira maior fruto da sua actividade, intelectual. Envelheci assaz precocemente e a solidão das serras tornou-me pesado, algo tristonho. meditabundo. Jamais vi deslumbrado um radioso alvorecer ou dolente pôr de Sol! Altivas escarpas, adrede alongadas, guardam ciosamente a colmeia humana
Acontece, pois, que nem céu luminoso nem rasgado horizonte é dado contemplar! Quase sempre nevoeiro, a jeito de capacete, cobrindo porfiado a área triste e exígua que habitamos no fundo! Como é pequeno e harto acanhado o chão que pisamos, assim também o espírito se encurta e amesquinha, por influência do meio!
Deprimido como estou, de vista limitada e espírito ensombrado, conseguirei novamente ressurgir e viver ou será irremediável a minha situação?! Fujamos daqui, o mais breve possível!

Manteigas 14-4-1972
Dando hoje uma mirada àqueles preparativos, que antecedem a abalada, noto com agrado haver já feito bastantes diligências: arrumei a garagem; fui â Covilhã; separei os livros que hei-de levar, a caminho de Lisboa; pus em ordem os papéis. Deito-me sempre, fazendo planos e levanto-me depois, para efectuá-los. Agora, uma ideia; logo, outra diferente. Se fosse mais novo, era coisa facílima. Hoje, porém, tudo obscuro; tudo molesto! Começar é difícil, após os 45. Que eu, realmente, não intento fazer isso, mas sempre é mudança!
Aposentar-me e dar explicações, originaria, estou certo disso, uma vida tranquíla. Tarefa já leve, para a minha experiência! Um número reduzido não exige esforço! Turmas enormes como estas são, cansam e moem. Sendo atendido, ao requerer a aposentação, irei receber modesta quantia: a Caixa de Previdência para os docentes de Ensino Particular f oi criada apenas em 1962, não interessando os anos de magistério, referentes ao passado. No entanto, exíguo que seja o prémio mensal, ajudará, certamente, a fazer face aos gastos necessários
Vivendo em Lisboa, complicam-se as coisas, mas há também recursos, que a Província não tem. Deus ajudará, que é nossa Providência e Pai amoroso de todos os filhos, principalmente os mais espezinhados!

Manteigas 15-4-1972
“Finis coronat opus”. É este um velho provérbio que, por ser latino, granjeou reputação. Vale também a sua antiguidade. Apesar de tudo, assalta-me a dúvida, perante o sucesso do Colégio de Manteigas. Com surpresa enorme para o Corpo Docente, vimos no Jornal “ Ecos de Manteigas, uma informação que diz o seguinte: “ Por motivo de doença do seu fundador, proprietário e director, vende-se, arrenda-se ou aceitam-se ainda novos sócios”
Emocionante o momento, por várias razões, como tal é óbvio: não sabermos de nada; ninguém nos falar particularmente, acerca do caso; não haver aí uma prova de atenção, para quem tem sido, ao longo dos anos, tão sacrificado como estes professores! A quem mais interessaria a solução imediata do grave problema? Eu, então que trabalho como galego, há já 15 anos! É bem certo que nem sempre o fim coroa a obra! Às vezes, deslustra-a Nem sempre o remate é lustre do arquitecto!
Se bem vemos este caso, não podemos, certamente, deixar de senti-lo: revela nitidamente falta de compreensão, manifesta desconfiança, profunda ambição e propositada ânsia de ferir e molestar! Nem uma palavra! Nem uma insinuação! É bem verdade que, de alguns homens só isto se espera! Já o sabia, que nasci há muito, mas isso, bem entendido, não impede o choque!
Triste sina, afinal, que o trato humano cave tais fossos, abra tais feridas, origine protestos e cause decepções! O senhor D. António, bispo de Coimbra, disse uma vez a um colega meu: “Nemo bónus, nisi probetur”. Isto assim, não obstante a Moral dizer o contrário.”Nemo malus nisi probetur”.
A Escritura regista: “Omnis homo mendax”. Sendo estes os factos, não devia estranhar! Entretanto, os factos provocam choque.

Manteigas 16-4-1972
Não é bom nem sensato prender-se a gente seja ao que for, neste mundo volúvel.

Manteigas 18-4-1972
Os meus preparativos encontram-se agora na ordem do dia. Radicou-se em mim esta ideia absorvente, nada havendo já que possa absorvê-la! Sair de Manteigas, abandonar para sempre este Covão sombrio, em que estive sepultado ao longo de 15 anos! Fugir, de uma vez, à perpétua escuridão, que me envolve há tanto! Tentei-o, de outras vezes, nunca o alcançando, por motivos estranhos!
Agora, no entanto, amadureceu esta ideia feliz. Custou, na verdade, mas logrei despedir-me. Os motivos graves do meu coração dissiparam-se já, e nada me resta senão largar. Desde Outubro passado, foi suficiente, para tomar a grave decisão. Decepção e amargura tudo se coligou, para resolver-me! Desenraizado como estou já, desapareceram as grandes causas - as que gera o coração e guarda avaramente: os meus livros diários, os meus alunos, as pessoas amigas, estes lugares, tudo o que perfaz o mundo da alma e enleva também o nosso coração!
Já tudo perdeu a cor, superficialmente. A isto levaram desconsiderações e até aleivosias, embora subsista nos recessos do peito. Por tais razões, vou dispondo as coisas, no sentido que importa: desligar-me de tudo, procurar outros céus, desfrutar mais espaço, fugir para sempre à intranquilidade, evitar de vez, aborrecimentos que, a toda a hora, não pude esconjurar.
Quase tudo arrumei já, servindo-me de malas e sacos plásticos. Chegado o momento, disponho as coisas, no carro particular e eis-me lançado na estrada de Lisboa, com Deus por companhia. Será provavelmente o meu entardecer. Só Deus o sabe! Agora, é só partir, para nunca mais!

Manteigas 19-4-1972
Um Crime abominável!
Ocorreu há pouco, na cidade X, ficando tão gravado, que não consigo esquecê-lo! Estremeço, horrorizo-me, de trazer à memória esse caso horripilante! A mãe desnaturada rebenta a filhinha, de 3 anos apenas! Uma sova tremenda pôs fim à existência da pobre criança! Haverá punição que seja bastante?! Encontrarei palavras que possam traduzir a minha indignação e revelar, de igual passo o meu grande furor?! É tão melindroso este caso lastimável que, segundo julgo, nem devia ser lembrado!
Qual foi o crime dessa inocente, para deixar a vida amada, antes de vivê-la! Brincar descuidada, jogando à péla, frente ao televisor, cujo vidro partiu! Exprimir-se deste modo será crime nefando? Jogar à péla merece punição, estrangulamento e banho de sangue? Eu vejo, nesta hora, a mãe ensandecida, arrebatada já por enorme furor e tomada ali pelo mesmo diabo, arremessar-se irosa, qual demónio vivo, à criança indefesa, cujo grande crime era apenas viver a vida! E aquela que a gerara, devendo a todo o transa defender-lhe a existência, atirou-se brutalmente, arrancando-lha impiedosa! Bateu , bateu e, no fim, disse à pobrezinha: “ Agora, de castigo vais para a cama!”
Lá vai a inocente, a muito custo já, rebentada pelo ventre! Eu não posso descrever! Sinto a minha alma em grande convulsão e o peito dorido em funda agonia! Chega o pai, à noite e, uma vez informado, vai lançar-se à criança, para castigá-la. Nisto, uma débil vozinha, quase já do outro mundo, suplica tremente: “ Paizinho, não me bata, que estou cheia de chichi!”
Era sangue, às golfadas, pois fora rebentada!

Manteigas 20-4-1972
É feliz neste mundo quem sinta prazer naquilo que faz. Estarei neste caso?! Para ter deleite naquilo que empreendo, necessário se torna que seja de minha escolha. Profissão e trabalhos, preferências e folgares hão-de vir do meu íntimo, como se fora um ventre a gerá-las para a vida. Sendo fruto de alguém que se ingeriu importuno e actuou levianamente, já se não casam, por certo, com o meu temperamento! Nesse caso, iriam dar gosto a outra pessoa, mas não a mim!
Havia uma coisa que me dava prazer, mas agora dissipou-se, ante a vida insana que vai pelo mundo: liberdade sem freio, egoísmo feroz, importância desmedida, espírito iconoclasta, planeamento de igualdade em profissões e misteres. Nem tudo se aprova! Que se espera daqui?!
A amargura somente e coisas semelhantes! Sendo isto assim, os alunos não trabalham, atirando para os Mestres, com um fardo insuportável! São altivos e grosseiros, insubordinados e bastante reles! Quem vai aguentar?! Só as novas gerações. Os que seguem a rigor, princípios antigos, de modo nenhum se acomodam já!
Quem irá então, por via segura?! Deus é quem sabe, mas creio não ser difícil achar a resposta. Convencido estou, pois, que outra barreira se vai erguendo já, para desprender-me deste lugar É tão pouco, afinal, aquilo que me prende! Minha irmã e os filhos, por amor dela? De meu irmão também gosto, mas não tenho a certeza se ele de facto, é amigo verdadeiro! Oxalá eu esteja enganado! As acções o dirão!
Fora deles, nada há certamente que me prenda à vida, cá neste mundo!

Manteigas 21-4-1072
A nossa Guida escreveu de Angola. Foi grande o alvoroço, no meu coração, de tal modo e feitio, que dormi agitado, acordando precisamente, às 4 da manhã. “Tive aborrecimentos com um Furriel, natural de Guimarães.”Quem me dera em Silva Porto, para medir-lhe um pau, ao longo das costas! O tal menino havia de saber como é que se dança o famoso fandango! Vai incomodar a nossa pequena e fazê-la sofrer? Oh! Veículo talvez de asquerosas doenças! Quem te deu liberdade, para indispores a nossa menina?! Descuida-te lá, que eu te direi!
Só queria apanhar-te, quando for daqui em férias grandes! Ficarias sabendo quem é o tio da estudante, acabando-te a farsa, em menos dum credo! Não te sacudas nem armes à importância, que pode sair-te o gado mosqueiro! Aproveita agora o tempo da vida, dispondo as coisas, ordenadamente, que a hora é incerta! Um esquecimento é, às vezes, fatal Quantas lamúrias, por falta de sensatez! Quantos desaires, por se armar à importância! Ainda é tempo, magala! Afasta-te prudente, para não teres graves dissabores!
Segue o meu conselho, preparando as malas, que é tempo azado! Se me deixas alcançar-te e perco a cabeça, não imagino o que pode suceder! Coisa boa não é! Diz o povinho: “ Quem nos avisa, nosso amigo é!” Isto, exactamente é o que eu estou fazendo! No meu coração, há já ressentimento! Não vou ter mão, que está fora de alcance! De modo nenhum quero ver prejudicado o futuro da miúda que vai perdendo anos, por motivos fúteis, devidos a ti!
Doloroso se torna presenciar tais factos, em gente do meu sangue!

Manteigas 22-4-1972
O tempo agora afasta-se lento, pesado, molesto! Com ar matreiro, não apressa marcha! Este período, na faina escolar, parece interminável e, há pouco iniciado, afigura-se haver muito. Nunca assim aconteceu! Por um lado, a saudade dos meus; por outro, a saturação imensa que me vem deste meio. Não sei, a rigor, como isto há-de ser. Quando tenho muitas aulas, tudo vai bem e de nada me apercebo! Absorvido nas matérias, roda o tempo veloz, sem deixar vestígios na alma atribulada! Quando, porém, há tempo de lazer, a coisa é mais séria! Bocejo e reviro-me, penso e vem a náusea.
De quê?! De mim e dos outros, de tudo e de nada! Que me prende ao mundo e suas vaidades? Se não houvesse na planta zona copada, abundante em ramos e folhas diversas, que seria dela?! Tombaria, por certo. Isto é o que vai suceder-me. Efectivamente, desenraizado como estou, já nada me segura. Acompanho cegamente o rodar fatal da vida presente: nem amo já nem sou amado! Por esta razão, ninguém me quer a mim nem eu quero a ninguém! Alheios em tal grau, ignoramo-nos de todo, ao cruzar de nossos passos.
Como ser então feliz, rodeado como estou de ambiente adverso?! Terei eu paz? Terei ventura?! Albergarei no meu peito a chama do amor?! Só, gelo me cerca. Que outras mais surpresas virão ferir-me ainda?!

Manteigas 24-4-1972
Ensino de hoje
Ao longo de 4 anos, esboçou-se claramente uma situação deveras lamentável, que desacredita o nosso Ensino e leva o país à ruína mais trágica. A princípio, era simples amostra; depois, foi tomando vulto, para atingir, em seguida, formas colossais. Ando surpreendido e escandalizado! O aluno de agora não quer esforçar-se. Ora, sabido é que vontade e esforço estão na base de qualquer projecto. “ Labor omnia vincit”. O esforço vence tudo. Nada aí há que lhe ponha obstáculos, com eficiência ou crie dificuldades quase insuperáveis! Ao contrário, podemos afirmar, de modo igual; sem trabalho, nada se consegue.
Para onde caminha um povo infeliz, cujos filhos e filhas deixam de esforçar-se?! Se é do trabalho que vem todo o bem, a danosa preguiça origina, ao invés todo o mal possível. Sendo isto verdade -ninguém o contesta - esboça-se já, no futuro incerto desta geração, uma nuvem espessa, que porá estremeções , no coração dos mortais. Habituados há muito, a nada fazer, criando só vícios e nutrindo paixões, os jovens do nosso tempo serão amanhã elementos perigosos de sociedades quase agonizantes.
Virão povos mais fortes, em que a disciplina seja norma de viver e o esforço pessoal uma norma constante da sua existência. Perante eles que são vigorosos e preparados para o sacrifício, estas gerações moles e indolentes são pasto cobiçado para vistas estranhas. A perda de liberdade virá logo em seguida, sendo necessário um elemento estranho, para logo pôr cobro a desmandos e atropelos, que vicejam e alastram por toda a parte. Antolha-se bem mau o cariz dos novos tempos”

Manteigas 25-4-1972
Continuação
Entre as vergonhas do século presente, encontra-se medrando a do Ensino escolar, cá em Portugal. A corrupção lavrou por todo o sítio, alcançando prestes o cerne das almas. Princípios basilares que eram sagrados, hábitos inconcussos, maneiras respeitáveis e tradições, harto venerandas, estão sendo votadas ao negro ostracismo, vendo assim nós, de braços cruzados e amargura no peito, o desabar estrondoso de alta civilização.
É, de facto, a sepultura do que foi uma glória. Nada se respeita! Iconoclastas há-os a rodos; demolidores surgem amiúde. E tanto custou erguer e firmar este belo edifício! Derribar algo é sempre a favor; levantar, porém, é muito diferente!
Lavrando a corrupção no dito sector, em que os patrões vão medindo tudo pelo efeito material, que poderá fazer-se, para obstar à marcha?! Apenas a extinção da marcha?! Encolher os ombros ou abdicar?! Conformar-se e aprovar?! Assim recomendam os princípios da honra?! Para onde caminhamos?! Ainda ontem era perigoso e sujeito a punição fumar no interior ou no espaço defeso. Hoje, é isso banal e ninguém já repara! Até aqui era desonesto usar o vestido, acima do joelho; agora, porém, já o não é!
O que era mau, se de facto era, poderá alguma vez tornar-se bom?! A corrupção alastra a todos os sectores, incluindo o Ensino. Abdicou-se já da mesma autoridade; fez-se do sorriso uma arma de conquista e vive-se em farsa a vida dos alunos .

Manteigas 26-4-1972
“Diz o borrachão o que tem no Coração”
Mais um provérbio que, em sua exiguidade, transmite coisas grandes, feitas de experiência, tempo e saber. Assemelha-se bem ao prolóquio latino: “in vino veritas”! A verdade está no vinho ou ainda: O borracho nada esconde! E bem parece que assim é realmente! De facto, pessoas discretas, recatadas e tímidas, ao calor do vinho tornam-se gárrulas e muito indiscretas. Falta ali já o forte contra-peso, que não actua na dita ocasião. Expressam mérito, na pessoa visada?l
Muita coisa se encobre, na vida presente, umas vezes, por vergonha; outras ainda, por conveniência. Removido o pejo, temos a pessoa em toda a nudez! Então, cessa a compostura, não há discrição e falta o bom senso! Estas amarras terão utilidade? Melhor diria; serão causa de virtude? Por motivos humanos perdem desde logo o seu valor moral! Efectivamente, se eu me coíbo, para não ser vexado, ou por outra razão meramente humana, que valor, afinal posso eu ter,aos olhos de Deus?!

Manteigas 30-4-1972
Como é grato e bom ver o tempo escoar-se, não me lembrando sequer que tal correria me aproxima da morte! O que seduz neste facto o meu êxodo? Voltar as minhas costas ao grande Covão e fazè-lo para sempre! Que bom! Deixar o fundão, onde envelheci, durante 15 anos, por falta de luz, é grata aspiração que revolve a alma e alvoroça o peito!
Por que razão me gastei aqui, obscurecido e mal medrado, entre gentes remotas, num clima agreste, rigoroso e molesto? Por que deixei passar 15 anos tão belos, em que podia luzir, rumo à ventura?! Gostosa miragem que, que durante algum tempo logrou enfeitiçar-me, para seguidamente ficar imerso em mar de pranto! Agora é tarde, bem sei! Não obstante isso, almejo vivamente por sair daqui! Voltar as costas à sombra, procurar horizontes, dilatados e sãos, em que sinta afago a alma desnudada, na corrida breve pela existência!
Ver sorrir lealmente, ouvir uma voz meiga que se julga amiga, receber o calor de alminhas inocentes, ser enleado por bracitos débeis, sejam eles de sobrinhos! Mas há neste mundo tão pouca verdade! Quanto adoro a amizade e estremeço ao vivo, só de nela pensar! Deserdado já, em verdes anos, sentir-lhe a falta, de muito jovem. Que fazer agora?!
Se ao menos achasse alguém que logo me acarinhasse, desinteressado! Sem o belo conforto dum afecto sincero, não é possível a vida! Irmã ou sobrinha, de cabeça no lugar, partilhando alegrias, dores e desaires, com o tio já velhinho! Seria bem pouco, mas bastaria!

Manteigas 1-5-1972
Barreiras
Lá para os mares da remota Austrália, existe há muito, a Grande Barreira, constituída por corais, numa extensão, que orça pelos 1500 quilómetros. Os corais, por sua vez, aglomeram-se ali, formando assim obstáculo forte para a navegação. Quanto a mim, a grande barrira é muito diferente! Ninguém adivinha, mas eu dou ajuda, para evitar maçada! O mês de Maio, com dias tão longos, sendo ele tão extenso, é para mim a grande barreira!
Trinta e um dias, férteis em labor, e fecundos em canseiras! Exames de alunos, aprontamento de coisas, em vista da saída, esse arranque fantástico, pelo qual suspiro, e a que visam os meus actos, por mais insignificantes! Quem há-de transpô-la com tanto a arrumar e tanto a largar?! Quando se é jovem, faz-se grato mudar e é bastante fácil a adaptação. Agora, porém, tudo corre diferente! O mais leve obstáculo avoluma-se demais, transformando-se logo em alta montanha!
Pôr as contas a limpo, essas contas malditas, que nunca estão em dia! Desde Setembro, em férias de contas! É quanto basta, para me tirar a doce paz! Eu, então nunca administrei o que é dos outros, a não ser que o pedissem! A mim, porém, ninguém se dirigiu, pedindo autorização em tal sentido! É forte desgraça a cair-me em cima! Nunca saber de quanto disponho! Julgarão até que me fazem favor! Sei lá! Não digo nada! Vêem-se coisas!

Manteigas 2-5-1972
Vai por toda a parte enorme surto de vida, o que em mim faz espanto e me deixa perplexo. Algo bem diferente se passa comigo, pois não me encontro em boa sintonia. Serei eu neste mundo excepção à regra?! Andarei alheado e tão solitário, que leve a rigor, existência diferente dos outros mortais?! Mas isso é estranho, deveras excêntrico e muito danoso. Constituir, por mim só um mundo àparte! Mas porquê?! Em nome de quê?! Ideal nobilitante?! Fui eu, na verdade, que o gerei no peito?! Saiu do coração, onde lavra, há muito, decepção e desacordo?!
Fruto averdungado, cuja planta foi torcida, debato-me no vácuo, onde gemo angustiado. Mas que valem meus ais, se ninguém os escuta?! Sim admito isso a quem vão interessar, neste mundo egoísta, em que vale quem tem e dá com abundância.
Chilreiam à volta alegres avezinhas, esvoaçando lépidas e fazendo trejeitos, que parecem amorosos. Zurram bem forte, por vales e montes, jumentos asquerosos, que sentem conforto na alegria de viver. Um pouco de erva tenra e família em sonho é quanto basta, para serem felizes. Que dizer da Natureza?! Essa então de nada carece, anunciando prodígios e obrando maravilhas que deslumbram meus olhos, tristes, apagados!
Percebo em toda a parte, sorriso e promessas e descubro sempre, mas fora de mim, sólidas esperanças. Só em minha alma lavra há muito, o verme da solidão e se instala com firmeza esta negra sombra que não me deixa sorrir nem jamais ser contente! Como vou libertar-me desta situação, horrenda e maléfica?!

Manteigas 3-5-1972 ,
Esbatidas pelo tempo, que não perdoa a ninguém nem passa em vão, chegam até mim lembranças melífluas, que entornam breve, no peito gemente, o perfume da saudade. É amargo também, mas isso não importa, que transmite à alma sensações deleitosas. Remonto ao passado, que dista, ao presente, já 4 anos ou coisa no género, e eis-me de novo no doce paraíso, que era a minha aldeia. Absorvido por cuidados, que a minha alma nutria, a eles me dava todo, sentindo-me feliz!
Era o jogo da péla e outros passatempos, que me faziam vibrar, dando cor à vida. Sacrificava-lhes tudo! Por eles daria a vida, na grata reflexão, que a idade justifica. De ninguém me queixava, porque era todo eu, em corpo e alma, acção e afecto, a viver a minha vida, a preferir sempre o que dava prazer, a gizar, de facto, a realidade que muito amava. Ser eu tal qual, viver inteiramente as doces ilusões, cultivá-las com esmero, sem intervenção, entregar-me a elas! Sonhar… sonhar!
Eram piões e baraças, a péla e o rapa, bicho e salsa-verde … Disseram-me depois ser aquilo danoso, intentando substituí-lo por outras acções, ditas construtivas. Aceitei, de bom grado, porque era inocente e, julgando então que sabiam eles bem mais do que eu, deixei-me levar, qual manso cordeiro, embalado por um sonho que outros geraram.

Manteigas 4-5-1972
Dissipou-se em meu peito essa voz feiticeira, que me trazia sempre ilusões e desenganos. Melhor diria, talvez, a única verdade que me é grato lembrar. O dia de Santa Cruz, em que eu vibrava forte, passou uma vez mais, deixando resquícios de melancolia, que a saudade agridoce persiste em manter. Essa voz maviosa que põe no meu peito alvoroço e júbilo! Essa meiga presença que, embora distante, inda alerta a minha alma!
Que força maravilhosa a erguer das ruínas um peito amargurado! Vem comigo, oh saudade, faz-me companhia e nunca te afastes! Vive comigo, senta-te a meu lado, para logo dizeres o que a minha alma adora! Não te vás para longe! Tem pena de mim, que não posso com a vida, por ser-me tão contrária! Afugenta de meu peito estas sombras medonhas e difunde luz, que brote a jorros, dissipando a escuridão! Dorme comigo e segue-me depois a todo o lugar, não mais largando quem te rende culto e presta homenagem! Sê doce companheira, nesta amarga solidão, que tristeza a minha, nesta solidão em que vivo mergulhado e vela a toda a hora, pois desfaleço, na longa jornada!
Ai, meu Deus, que tristeza a minha! Tão só na vida! Ludíbrio de todos! Escárnio atroz da vil sociedade! Ninguém me defende, no medonho torvelinho! Ninguém me ajuda, nas horas adversas!

Manteigas 5-5-1972
Fim-de-semana? Dizem que sim. Até afirmaram alto que são maravilhosos tais dias de repouso! Comigo, porém, acontece ao invés. É então que mais sofro, por notar que ando só! De facto, a solidão é um dos males da vida presente e o maior da existência. E então com este feitio! Imperioso, egoísta, sensual e afectivo! É na verdade, o cúmulo da miséria, o grau mais alto da infelicidade! Aqui me cerro, pois, horas a fio, como se, na verdade, fosse um criminoso, expiando suas faltas. Mas é detestável! Onde é que está o fim-de-semana?!
Por que é que não sou como os outros mortais, que aproveitam ensejos, a fim de arejar, aliviando o espírito?! Por que não saboreio, durante os lazeres, o prazer inefável de tudo esquecer, entregando-me em seguida, aos puros afectos, que inebriam a alma? Sim! Mas, afinal, em companhia de quem?! Acaso as paredes falam dialogando?! Ou os móveis do quarto, mudos, estáticos?! Os demais objectos que, a toda a hora me cercam e olham?! Gemem eles, por ventura, compartilhando na minha dor?!
Onde está, pois, o meu fim-de-semana?! Escolhi eu, por ventura, esta forma de viver?! Encontro-me isolado incompreendido e já sem ninguém. Mas isto não era, de facto, o que eu desejava! Atiraram-me cedo para esta liça! Não fui eu para lá, de espontânea escolha! Não me foi sonegado o sério da vida, jogando então com fantasias?!
Aos 20 anos, é fácil crer e dizer que sim, quando rogado! É-se generoso, sendo levado pela imaginação! A dura realidade surge mais tarde, quando sérios problemas, de variado aspecto, requerem solução. Unicamente, os “chamados” por Deus e não pelos homens, são capazes de haver-se com dignidade, brio e valentia!

Manteigas 7-5-1972
Daqui a um mês, é já final de luta, que muito me constrange! Anseio vivamente por esse tempo saudável, que vai logo tirar-me vãs apreensões, restituindo-me a paz. No entanto, ainda hoje, no 4º ano, houve um caso revoltante. Interrogando, a propósito, o maioral da turma, assim como outros, de certo nome, veio em resposta, o silêncio total! Já não posso com isto! Fiquei horrorizado e, por bem pouco não perdi a cabeça É demais para mim!
Que fazer, nesta hora, sem meios de repressão?! Poderá conceber-se alguma sociedade, deixando cada um entregue a si mesmo?! Só de loucos varridos! Há-de haver incentivo! Requeremos, sim, que haja intervenções! De outro modo, não temos sociedade nem progresso nem ordem!
Ao que pode chegar-se! Não quero alongar-me nem devanear, descobrindo causas e descendo a porquês! A verdade, porém, é tornar-se amesquinhante esta situação. Efeitos e sintoma do capitalismo?! Responda-me agora quem souber fazê-lo! Interrogo a Fátima. A mesma coisa! Todos emudecem, como por acordo: a Joaquina e o Rui; a Conceição e o Mário! Reina o silêncio, na aula de Inglês! É um silêncio pesado, importuno, indigesto!
Abandonar a aula?! Desatar ao soco?! Estou peado: quero actuar, mas não vejo saída! Braços caídos! Só a violência que muito desamo e desaprovo! Desçam outros, pois, à raiz do mal, quando eu partir. Tenho saudades; não posso olvidar esses tempos ditosos, em que os nossos alunos eram cumpridores, tendo por norma serem gentis e querendo, a valer tornar-se alguém!
Mudaram os tempos ou fui eu que mudei?!

Manteigas 8-5-1972
Foi há pouco ainda, na aula do 2º ano. Interrogando, nas Ciências Naturais, verifiquei, muito surpreendido, que não tinham estudado. Eram revisões de Pontos corrigidos. Aquilo, realmente, deu-me no goto! Safa! Não posso aturá-los! Já imitam os maiores, passeando pelas ruas e acordando a calçada! Era segunda-feira, mas que valia?! O fim-de-semana é para estúrdia! Ano de exame, lá na Covilhã?! Isso não conta! Gozar a vida, namorar, em nosso tempo e distrair, não viver preocupado, mandar os outros à fava, não prestar atenção!
A lei suprema da vida, em nosso tempo, é o desejo de cada um. Vai ele de encontro ao sentir geral? Opõe – se à tradição? Levanta problemas? Nada importa! Vendo, pois, tais empregos, gaiatos e gaiatas apressaram-se a imitar; cigarro e bola, meninas e gozo! Caí das nuvens! A pronta reacção levantou-se, desde logo, a tomar providências.
Secamente, disse à turma: vem a mesma lição! Cá vos espero, na quarta-feira! Admitindo, no entanto, que algum soubesse, procurei certificar-me. Responde tu, Fernando! Moita! Teixeira! Nada! Um silêncio de chumbo! As orelhinhas hão-de aquecer-vos! Isto atura-se?! Olho ainda para o Zé da Rosa, fixo o Viegas, o Melo e a Ção bem como a Cristina. Têm cara de espanto e receiam, a valer, pelo seu futuro!

Manteigas 9-5-1972
É erro grave que se paga bem caro, sepultar-se alguém num meio pequeno. À semelhança de porco exíguo, que pouco ou nada vale, já feito em postas, também esses meios debilitam o ser, limitando a actividade e até impedindo se valorizem. Este apego à matéria este aferro aos vizinhos, este sentimento de funda nostalgia, à maneira de sapa, vai actuando, por modo subtil, , havendo como efeito a perda de valores.
Sair e expor-se, trocar impressões, comparar e atirar-se! Que infinita margem não vem oferecer um meio populoso, para alguém se erguer e lançar na vida! Ali, há tudo a rodos! Somente aqueles que não querem trabalhar é que vêem o mundo seguir e escapar-se! Escolas e oficinas, convívio selecto, bibliotecas públicas e grandes arquivos, Universidades e Institutos, nada aí falta! É aldeia ou vilória?! Pobres habitantes!
Encontro-me agora no Colégio da vila, tendo à minha frente lá mesmo no cimo, a Fraga da Cruz. Para fixá-la, esgargalo-me todo, ficando para logo o pescoço em ferida! Onde posso encontrar dilatados horizontes, em que a vista repouse, auferindo neles raios de luz?! Tudo, neste fundo me foi vedado luz e calor, o céu e o mar, terra e Primavera, nascer e pôr de Sol.
Quanto havia aproveitado, se aos 20 e poucos anos, em vez de enterrar-me exercesse a actividade, num meio citadino?! Oh! se fora em Lisboa! Tiraria o Curso de Conservatório.
Foi um tempo morto, em que vegetei, mas não vivi. É certo e provado: a estreiteza de um lugar, seja este ou outro, acanha-nos a alma, que torna pequena, mesquinha, inválida! Se tirarmos a toupeira do lugar, em que vive, não quer a luz e prefere voltar. Se abrirmos um buraco, na sua galeria, procura em breve, tapá-lo a rigor!

Manteigas 10-5-1972
Primavera total! Aqui, porém, só temos vislumbres desse tempo risonho! Faltam 10 para as 9, em manhã de Maio. Que vejo eu, no entanto, em quadra maravilhosa, na qual a vida borbota, canta e sorri, por toda a parte?! Ligeiro assomo de vegetação, em que sobressai o verde-escuro, tão carregado, que põe luto na alma! Céu escasso e distante, sendo ele, com efeito, vasto e colossal!
E gorjeios de aves? Não sabem elas, já por instinto, onde a beleza se acha instalada?! Não procuram ansiosas, lugares amenos e assaz deleitosos, para entoar seus hinos?! Como ouvi-las cantar, onde a mãe-natureza não passou de madrasta?! Onde a Fraga e o Fragão, num desdém humilhante, escarnecem dos homens, postos que são, em trono impérvio. E eu quedo-me em silêncio, impotente e humilhado, ocultando ânsias no peito que sofre!
É um sorriso alvar, grotesco, sandeu, que põe na alma, entrada em agonia, convulsões de arrepiar! Que fazer então aqui?! A vida é assim?! Oh não! Nada disso! Há vales, por aí fora, que me inundam de gozo, e montanhas solenes que elevam para Deus! Aqui não! Tudo é prosaico, envolvendo-nos logo em malhas e pregas.
Fugir, fugir é o que logo se oferece! Fugir quanto antes! Já não posso com isto! Sinto a alma acabrunhada, quando olho a natureza!

Manteigas 11-5-1972
Foi há poucos dias, além precisamente, nas traseiras da Câmara. Chovia bastante e eu olhava então através da janela, no velho presbitério. Já foi ruidoso aquele vulto decrépito, em que eu moro com os ratos. Estes, afinal, mais senhores que eu próprio! Podem eles, na verdade, afirmar que o são! Tanto barulho e à descarada nunca eu fiz, durante a vida. Às vezes, figura cavalgada em que a morte é rainha.
Outras muitas, risada macabra, retouçando, hilariantes… Agora é quase uma ruína: ritos de outro mundo! Isto que digo é sempre a horas mortas, sem respeito algum pelo sono de alguém que se encontra ali, um pouco abaixo! Agora, é quase uma ruína: paraíso de aranhas, ratazanas e ratos! Um homem infeliz a tudo se expõe! Ninguém diga jamais: “ Desta água não beberei!
Pois ali me gastava, passando momentos, ingratos e negros, à espera, talvez, que o jantar me chamasse! Nisto, depara-se um quadro, a que presto atenção: uma criancinha, de 3 anos apenas, quando muito alguns 4, seguia à frente do avô, em ziguezagues contínuos. Cada um, já se vê, empunhando um guarda-chuva, seguia pela estrada. O velhote paciente olhava embevecido, girando à direita e logo à esquerda, ora trotando, ora em passo lento.
A criança era tudo, nesta cena encantadora! Subia o guarda-chuva, encobria-se nele, atirava-o para o chão e batia-o nas pedras. E os meus olhos seguiram-no até findar a rua, largando-o somente, à esquina dos Direitos, pois mo ocultou!

Manteigas 12-5-1972
“ É solitário andar por entre gentes” Este verso de Camões, que outrora me não quadrava, percebo-o hoje, à maravilha, como se fora, realmente, coisa muito minha. Aos 20 anos, é-se desapegado, crente, generoso e bastante crédulo. Aos 50 ( já antes) acredita-se em Deus, mas descrê-se dos Homens. A razão é evidente: diziam uma coisa, mas faziam outra! Ensino desta ordem é factor decisivo na desgraça de alguém e depõe altamente contra o falso educador! Com efeito, pregar uma coisa e alijá-la de si não é ser probo nem amar a verdade nem temer, de algum modo, as responsabilidades.
O ideal a atingir consiste exactamente em ser, por fora, o que é por dentro, pintando a vida como ela é, não dando nunca imagens retorcidas. Enquanto assim não for, teremos sempre, à volta de nós, elementos revoltados, que serão, mais tarde, nossos acusadores, de jeito implacável. E com razão! Educar é, sim, preparar para a vida, ministrando a incipientes a dose de saber que o Mestre acumulou, em diversos ramos, focando distintamente o bem e o mal, encarando a existência por todas as faces; insinuar levemente, apontando os contras; deixar aos outros a escolha espontânea; respeitar a pessoa e o sentir do educando.
Jamais, porém, ocultar manhosamente aspectos anegrados, salientando apenas os mais lisonjeiros. Tem um nome acomodado esse mister, quando vem desfocado: vigarista sem perdão ou outro do género, pois a língua mais rica não cria jamais um termo adequado, para exprimir, a rigor, tamanha baixeza.
Nunca impor um destino ou até sugeri-lo, com habilidade e persistência, pois é crime hediondo e caminho seguro de ruina total. Que importa gostarmos, se os outros não gostam?!

Manteigas 13-5-197
Visitei, na sua casa, os prezados compadres.

Manteigas 17-5-1972
“ Já não ri, quando eu falo”
Alguém entre nós proferiu tais palavras, que logo registei, pelo que têm de interessante e significativo. Por esta razão, vou já debruçar-me, durante minutos, sobre o conteúdo. Achar graça expressiva ao que outrem diz, reagindo logo, por forma invulgar, denota algo mais que originalidade ou mero improviso.
Psicologicamente, o assunto é denso e demanda, por isso, alguma penetração. Efectivamente, que singularidade poderá existir, numa criança qualquer?! Ela faz apenas o que outras já fizeram, por modo igual ou até diferente, repetindo-se as maneiras e os processos habituais. Apesar disso, os pais deliram, e até se espantam. “Nunca se viu coisa assim! Nem escapará tão arguta criança!” Seria sorte demais!
Estes desabafos, repassados de surpresa, é muito frequente ouvi-los aos pais! Correspondem eles à pura realidade?! Bem longe disso! Comparam eles, sem haver medido; fazem o paralelo, sem atentar! Outras partes ainda, igualmente curiosas, no seu parecer e que são excelentes, geram espanto e admiração. Porquê? A razão do facto está precisamente em haver interesse! No que toca aos pais, o caso processa-se: a criança é deles; exprime a sua vida e concretiza a de ambos! É, com efeito, a exacta projecção de suas mesmas almas; um prolongamento do seu próprio ser; reprodução fiel, viva e operante!
Como não amar aquilo que é seu?! O que não se distingue dos próprios pais! Idiota seria aquele que o fizesse! Isto, no tocante aos pais e filhos respectivos! Em paridade, quer dizer, em ligações amorosas, dá-se o mesmo fenómeno. Se alguém ama outrem, encontra-lhe graça, nas mínimas coisas. Não exprimisse, em alto grau, a perfeição do ideal!
“ Já não ri, quando eu falo” significa a derrota, o morrer de um sonho, o poente doloroso de um sol que foi belo, mas já o não é!

Manteigas 18-5-1972
Um Final Doloroso!
Última celebração, na igreja velhinha de Vide-Entre-Vinhas. Foi precisamente no dia 14. Em fim-de-semana, fui de longada até Celorico, na firme intenção de ver a minha aldeia. Meu dito, meu feito! Realizava-se aqui a festa do Colégio, mas sendo na véspera da minha abalada, perdia o interesse. Desenraizado como ando já, passo à margem do facto.
Forte razão, para fugir daqui e mergulhar, desde logo, no ar puro da montanha, nos lugares saudosos que me viram nascer. Um banho salutar imuniza-me breve, contra os males da existência, pondo na minha alma forte vibração. Anda por ali um perfume que inebria e gera consolo, Pairam, sobre os montes e velhas moradias, vultos saudosos, imagens carinhosas de quem eu amei. Por vezes, surgem nas leiras, debruçadas e fixas, vendo correr a água, e olhando em êxtase para os batatais, já todos em flor.
Todo este ambiente é feito de magia. Não posso resistir àquele sortilégio! Desta vez, porém, tive de ser fraco! Assumindo o encargo, que o Prior me deu, para celebrar a Missa dominical, rogo que aceitei gostosamente, recebi este anúncio, antes do início: “Última Eucaristia, celebrada hoje, na velha igreja!”Palavras matadoras! A primeira impressão foi grata e jubilosa! Um templo novo de linhas elegantes e perfil gracioso, é melhor que o velhinho, já desengraçado e sem conforto! Mas veio a saudade e o passado longínquo despertar a minha alma! Vieram ambos, nessa hora amarga, ateando no meu peito uma ânsia incontida e pondo nos olhos um lago de pranto!

Manteigas 19-5-1972
Continuação
Encontrava-me, pois, a fazer a homilia. Quis então falar, referindo-me ao templo, mas a voz estava presa e o cérebro parado! Diligências empregadas nada fizeram. Era dia da Ascensão e também de tristeza. “ Partings are always sad!”assim diz há muito, o provérbio inglês. Partida de Cristo e partida eterna do velho templo. Jesus Cristo voltará, mas o templo velhinho jamais o verá! Que belas recordações nos prendem a seus muros! Que mundos cristalinos de sonho e perfume, a diluírem-se à distância, mas vivos, deslumbrantes, gravados para sempre, na minha alma saudosa!
O nosso baptismo que a todos permitiu a entrada aí, pela primeira vez… a primeira Comunhão de tão grata memória, associada também aos preparativos, que antecedem o acto! A marcha em ala, cantando hinos, em treino jubiloso, para a grande cerimónia, assistida no templo pelos nossos pais! O pároco velhinho, da remota infância, apontando, na homilia o caminho do Céu e os meios aptos, para o alcançar!
Que acento e convicção ele punha nas palavras! Para nós, crianças, era como oráculo, e os seus dizeres, incontrastáveis! Dele vinha a luz e a guia segura, para levarmos uma vida honesta e agradável a Deus. Os beliscões e soquetes que as mães atiravam, por sermos irrequietos, no lugar sagrado! A reza do Terço, feita em comum, por noites aluaradas, em que apetecia dormir… dormir! A Missa da aurora, na 1ª quinta-feira de cada mês, com os olhos pesados e as pálpebras coladas!
Meu Deus, quanto de belo me ofereceu a vida e ali decorreu vai ser apagado pela mão do progresso, que já não respeita a minha grande dor!
As imagens estáticas, a que eu, por vezes, atribuía atitudes e certos movimentos! A catequese, onde me ensinaram as verdades da fé!

Manteigas 30-5-1972
Há factos na vida que a sustentam e apoiam: compensação manifesta para os contras da existência! Foi o caso em 28. Como era domingo, recebi logo o convite, para almoçar, em casa amiga. Não pude recusar! Violentaria o meu coração, deixando ao mesmo tempo, mágoa funda, em alguém. Aceitar, neste caso é o que manda o peito e dita a consciência.
O Dr. Isabel, compadre e amigo, sente imenso gosto em ser prestável, sem que eu o mereça! O mesmo sucede com a senhora gentil que o Céu lhe deu. Casal modelar, honra-me em extremo, com a sua amizade e penhora-me ainda com a sua gentileza. Não sei o que me impele ou que força oculta para lá me empurra! Não posso dizer não, dando-me prazer o uso de um sim. Se eu venho confortado, trazendo o peito mais desoprimido! Afigura-se, na verdade, um banho refrigerante, um tónico forte, na fraqueza e na aridez.
Revelo e sinto mais gosto de viver a vida, acho-a mais bela e tenho desejo de ser melhor. Irradiam, por certo, beleza moral que deslumbra e prende! Como eu passei bem o que era horrível! Tardes longas, em domingo, sem aulas nem convívio! Que solidão criais em mim! Hoje, porém, foi oásis e delícia em que o meu viver ficou embalsamado!

Manteigas 31-5-1972
Casal Falcão
Já o conhecia, pois lhe fora apresentado, em época distante! A falta de convívio trouxera olvido, sendo na verdade como desconhecidos. Desta vez, porém, o caso referido foi mais aproveitado: houve troca de impressões e longa conversa, nessa tarde inesquecível – 28 do corrente. Impressionou-me a fundo a lhaneza encantadora de Dona Anita, senhora espanhola, de grande mérito, ligada em matrimónio ao senhor Falcão, alentejano de origem.
Muito surda já e com visão deficiente, inspira no entanto viva simpatia e ganha confiança, ao primeiro relance do nosso olhar. Nunca mais nos deixa a vincada impressão, que se grava logo em nossas almas, a qual tem por base a sua piedade, graça e lhaneza. Contou em pormenor seus achaques e doenças bem como os sobressaltos que as moléstias do marido lhe têm causado. Excepcional o afecta que dedica ao marido a quem muito estremece.
Como ouve mal, pergunta e responde, evitando incómodo a seu interlocutor. Por sua parte, o senhor Falcão, estremece-a também, amenizando a conversa com anedotas e vários gracejos. Revela o senhor conhecimentos vastos, em linguagem viva, quente e expressiva. É um casal modelar que muito aprecio. Vêm-me à lembrança as palavras da Física: a matéria atrai a matéria.
Também aqui se aplicará?! Estou em crê-lo: mas junto uma achega de carácter ideológico: não é a matéria, mas sim o espírito que aproxima as almas.

Manteigas 3-6-1972
Resido em S. Domingos (Bairro)
Regressei do Beiral, onde estive em serviço. Agora Manteigas é já “zona tórrida”, onde tenho militado, com grande esforço e valentia, ora gozando ora sofrendo. Lamento vivamente que, havendo servido, com tanto afã, seja alvo negro de incompreensão e bode espiatório, para culpas e falhas, de que eu não tive culpa. Uma certeza me assiste, que é também consolação: cumpri o meu dever, com os olhos sempre fitos, no ideal que abracei: contribuir, segundo me cabia, para elevar o meio, em que tenho vivido, já insinuando, já esclarecendo.
Procurei sempre, com todo o esmero, cultivar as mentes e, ao mesmo tempo, formar a vontade, sobrepondo esta ao volúvel sentimento. Se algo obtive, Deus é quem sabe! Actuei e prossegui generosamente, não fugindo ao sacrifício. Se mais não fiz, é que não pude! Alvo de indiferença e subestimação, há três anos já, hei sofrido bastante. Chegava muito bem a solidão, em que tenho mergulhado, pela vida fora, para tornar-me infeliz! Pelos homens deste mundo, não vale a pena morrer!
Só Deus é justo e santo e merece confiança! A ele seja dado eterno louvor, pelos séculos sem fim! Aqui é zona “tórrida”: sinto a alma a escaldar! O que valeu agora, foi o banho salutar que me inundou no Beiral: o olhar puro e confiado, o belo sorriso, franco e leal, de inocentes criancinhas, que me saudaram ali.

Manteigas 4-6-1972
O cerco aperta-se e oprime fortemente! Não aguento esta vida, em que tenho mergulhado, quero dizer, esta morte disfarçada, e a grande comédia viva, em que gente estranha me fez tomar parte, contra minha vontade! Não fui eu a escolher: alguém o fez por mim ou então ainda as tristes circunstâncias, sócio-económicas, de braço dado com outros factores. Estes, afinal, embora marginais, actuaram também, sendo manobrados por critério estreito, que o meio ambiente criou e impôs. O homem humilde é vítima dele, embora tantas vezes sustente o contrário! Verdade incontrastável, se olhamos o passado!
Constitui ele um círculo fechado, em que o ser humano gira e se revolve, impelido por factores estranhos a si. Sendo embora livre, fica escravo; inteligente, embotam-lhe a acuidade; alegre e jovial, fazem-no macambúzio; prometedor, neutralizam pronto a habilidade e potência para agir, em nome próprio. Não lhe chamam talvez escravatura, mas em nada se distingue. Dêem-lhe, pois, o nome que entenderem! Eu, cá, chamo-lhe assim!
Poderá haver aí renúncia maior que submeter-se alguém ao critério e apreço de quem quer que seja?! Se fosse ao de Deus! Os homens, em geral, são atravessados e tendem, por sistema, a calcar o semelhante, fazendo-o joguete de seus mesmos caprichos, quando não até de seus vícios e paixões. Disfarcem embora e dêem-lhe outra cor!
Por esta razão, estúpido é confiar plenamente seja em quem for ou seguir vendado seu estreito critério. Maior estupidez não creio que haja aí! Ouvir pareceres, analisá-los bem, é medida prudente, mas após exame, seguir na existência um caminho próprio, de sua escolha, seja ele embora contra indicado, para os que nos cercam.

Manteigas 5-6-1972
Um revés grave deixa na alma sinal da passagem, Desta vez, realmente, cingiu o coração de tal maneira, que julgava não poder. Não sei o que era, mas andava sufocado e bastante deprimido, a nada achando jeito. Falavam e riam, à minha volta? Afigurava-se escárnio! Tudo me enjoava! As próprias noites, adensando a solidão, eram insuportáveis! Não posso descrever esse golpe inesperado, injusto e certeiro! Esvaiu-se-me a coragem, a luz entibiou-se e o próprio mundo pareceu vacilar!
Agora, porém, uma luzinha surgiu: arranjei quarto e fiquei melhor. A senhora Conceição que chamam “do Cadaval” é agora patroa. Mãe de 9 filhos, um dos quais em França, recebeu-me gentilmente. Melhor do que isto não podia ser! Favor do Céu? Protecção de minha mãe, que tanto me queria?! Eu creio, ó Deus, na comunicação dos Santos e também dos Anjos! Ela era santa! Pois agora, já sinto alívio bastante! Fico junto ao Beiral, onde presto serviços e tomo as refeições. Parece, na verdade que me sinto aliviado: o pesadelo figura eliminado!
A nova hospedeira vai além dos 70. É já viúva muito piedosa e vive do passado e de suas orações! Os retratos preciosos dos entes queridos contempla-os ela, a toda a hora, constituindo, assim o creio, a suprema fonte da sua alegria, cá neste mundo!

Manteigas 6-6-1972
Circular - Inquérito
Chegou-me, há dias. É muito curiosa, interessante, humana e oportuna. Em 20 séculos, apenas agora veio a lume um caso angustiante, que sempre existiu, mas ninguém tinha jus de sequer nomear! Várias perguntas ali se formulam, entre as quais as seguintes: 1. causa da falta de vocações, religiosas e sacerdotais; 2. celibato dos padres e afectividade; 3. deficiência económica, solidão etc.
Vê-se nitidamente que é grave a situação. Por isso, a Igreja quer acertar, concedendo ao clero os meios adequados, Ouvir cada um, privadamente, com abertura e sinceridade, é com efeito o processo razoável. Acobertar-se de maneira parva, à sombra ilusória da hipocrisia não é caminho certo nem proveitoso. Deve usar-se de lhaneza, abertura e compreensão, para sanar os males de que enferma o clero.
Em meu entender, o celibato imposto é causa primária de todos os desaires e várias quebras, já que priva o homem de todo o carinho e lhe nega assistência, não podendo bastar-se nem sequer obviar a necessidades prementes. Apenas livre e facultativo tão pesado ónus! Ele exige heroísmo, num porvir tremendo, que terá seu início, dos 30 aos 35. Irá crescendo com a própria idade, as necessidades, a incompreensão, a fatalidade na vida presente, as doenças e achaques, e a falta de amparo. Fechar os olhos a isto é desumano, carente de acuidade, ignorante da Bíblia e da história do clero, através dos séculos. Houve heróis, mas o heroísmo é constituído pelas excepções, que são sempre em minoria.
Conclusão: Deus não aprova o celibato imposto!

Manteigas 8-6-1972
Encontrei-os, há pouco, ao sair do Beiral (Orfanato). Pela mão um do outro, saíam confortados os dois pequerruchos. Abeiro-me decidido, para cortar-lhes o passo e conversar um pouco. Desciam a escada e ocupavam então o 2º degrau. Um dos dois é magro e pálido, olhar melancólico e algo receoso. Pela estatura, avantaja-se em idade, sendo, pois, guia do mais pequeno. Este, rechonchudo e harto baixinho, jamais larga o outro, que segue a toda a parte. Chego-me carinhoso, segundo é costume, ao tratar com petizes.
Para onde ides vós, arrisco eu pronto? “Vamos brincar”, esclarece o mais velho. Andais contentes? Acenam que sim, com um gesto de cabeça. És, então, na verdade, amigo desse menino? “ É meu irmão, atalha lesto, enquanto se vê liado por bracitos delgados. Depois, baixou os olhitos, em que li funda angústia, juntando seguidamente, com a voz em tremuras: “Minha mãe já morreu!” Comovido então, sensibilizei-me até às lágrimas! Inocentes criancinhas! Ainda pequeninos e já sem carinhos! Que desventura, bom Pai do Céu! Como são incompreensíveis teus altos desígnios! Insondáveis, a rigor, os teus arcanos!
Como te chamas? “ Aníbal”E o teu irmãozinho? “Fernando!”
Neste momento, chega-se mais a ele, fazendo enternecer-me. Estava ali, de facto, quanto ele amava! Só isto falava a seu coração! Era este o seu mundo real!

Manteigas 9-6-1972
“ Si é reles!”
Sucedeu ontem, não longe daqui, em frente da Capela, dedicada a S. Domingos. Subira a ladeira, pela estrada poeirenta, após a faina diária, lá baixo, no Externato. Fatigado como ia, sentei-me num degrau, junto da ermida, olhando interessado para as duas petizas, que brincavam na estrada. Interrogo-as em breve, inquirindo minucioso acerca das idades, brinquedos preferidos e outras derivações.
Fico então sabendo que a mais pequenina se chama Fatinha. Rechonchuda a valer e um tanto desconfiada, arregalava em excesso, os olhos volumosos, enquanto ia arrastando, a grande custo, as sandálias da outra. Ficavam-lhe folgadas, pois a sua vizinha tem 5 ou 6 anos, e ela só metade.Tudo corria bem, ganhando confiança com a minha pessoa.
Então a mais velha desfecha, à queima-roupa, uma pergunta ousada, a que eu, então, achei imensa graça: “Si é reles, não é?” Só ouvindo o final, indago prontamente: o quê?! Não houve resposta. Quem? “Si”.
Tento defender-me, alegando ali que não matava nem batia sem razão! A isto objectava, algo persistente e deveras incrédula: “Já, já!” Nisto, a Fatinha irrompe breve, em minha defesa, dizendo com entono; “Mas não! Vês?!”
Assim decorreu este fim de tarde, que me fez esquecer, durante momentos, agruras e pesares, que a vida me causa!

Manteigas 10-6-1972
Escrevo em S.Domingos, na casa nova do senhor António. Este filho dedicado trabalha em Paris. A senhora Conceição, mãe extremosa, recebeu-me gentilmente, após a sapatada que levei há dias, em paga de tanto zelo, no decurso de 15 anos, em que fui no Externato alma e cerne, dando aulas de Português, Francês e Inglês e também Alemão, Naturais, 1º Ciclo e Canto Coral. Ninguém acredita, mas é verdade!
Resolveram desalojar-me do velho pardieiro, em que tinha quarto, onde ratos e ratazanas faziam tropelias, pela calada da noite. Boa recompensa a que eu mereci, não haja dúvida! Dava eu, no Externato, 50 aulas, ao longo da semana, o que fiz durante anos, mas este número equivalia a mais, dado que em 5 do programa liceal, bastavam 4; em 4, chegavam 3, etc. Não minto, ao certo, dizendo o seguinte; eu sozinho dava cumprimento aos programas liceais, atinentes a matérias, que representam mais de metade, no Curso geral.
Parece impossível! Os livros de Ponto e o quadro de professores virão confirmá-lo! Com que denodo ali trabalhava! Diriam até ser meu o Colégio, avaliando pelo muito que então me esforçava! Pois não era meu! Pertencia a outrem.
Não é bom trabalhar assim! Cumprir o dever e não ir além! É que, fazendo ao contrário, deve recear-se tremenda vergastada! Abstenho-me agora de expor as razões que podem ser múltiplas.
Só Deus é grande! Que Ele me ajude, nesta provação!
Vim agora da garagem, onde arrumei, um pouco melhor, trastes e malas. Antes de ir embora, carrego eu tudo, sem olhares indiscretos, partindo, por madrugada, a caminho de Lisboa.

Manteigas 11-6-1972
Com o 10 de Junho, ponto final! Acabaram as aulas, tendo início as férias. Sensação de alívio me invade todo, após a canseira, extenuante e agitada, que trouxe para logo o ano lectivo. Nunca assim me custara chegar ao final! Aborrecimentos, ansiedade, angústia! Nunca mais chega o fim, ruminava eu, harto desorientado! Mas, como tudo acaba, acabou também o malfadado ano, que julgo ser o último! Vou desligar-me do Ensino Particular e não quero mais obedecer a ninguém!
Estou saturado, já de caprichos, já de fantasias como também de recalcamentos e arbitrariedades! Ao menos, sejam em paz os anos derradeiros! Aturei já muito! Foi a vida inteira! Sempre a obedecer! Sempre a imitar, a fazer o que não queria! É já pouco tempo, mas quero aproveitá-lo, a fim de opor-me àquilo que fiz, permitindo a estranhos dispusessem de mim e tomando seu aviso! Que devia o meu destino à vontade alheia?! Que tinham comigo, fosse eu rico ou pobre, casado ou solteiro?!
Arvoraram-se em mentores que bem dispensava! Fizeram-se tutores, que abusaram de mim! Levantaram-se em mestres, que não fizeram luz; em pedagogos, que me torciam e reviravam logo, a bel-prazer Renego de tais obreiros e peço a Deus me faça justiça, pois eu, a rigor, não sou já como ele me fez! Ficaram as marcas impressas na alma e não logro apagá-las.
Requer-se agora um pouco de energia, para ultimar as actividades que me prendem ao Colégio: provas escritas, a que seguem as orais; processos vários que não aprovo e logo baniria, se o caso referido estivesse na minha mão. Querendo Deus, cessarão no porvir, as tais incumbências, ao menos, assim julgo, como são praticadas.
Levarei obscuramente vida mais autêntica. Obedecer a outrem é sempre difícil! Quem nos garante sua boa intenção?! Quem nos assegura haver realmente a prudência necessária e recto pensar?! Quem fica inteirado de que é seguro o critério?! A própria obediência, nomeada virtude, tem de ser livre, acolhida e amada: caso contrário, logo degenera, dando, a rigor, em escravatura!
Disseram-me em tempos: quem obedece nunca se engana, por fazer desse modo a vontade de Deus. Hoje, rio-me disso e tenho pena imensa de haver acreditado. Renunciar o indivíduo à personalidade é tal aberração, que a julgo desde logo inqualificável! É um dom do Céu, uma prenda sagrada: por isso, inalterável! Só a Deus pertence e a mim, como utente. Quem me garante que a vontade humana é também a vontade celeste?!
Quantas vezes, na verdade, são caprichos humanos de seres endeusados, acção velada e assaz manhosa, para lograr determinados fins?! Estes, por serem humanos, jamais ultrapassam as barreiras da existência! Para que foi então que Deus-Providência me deu a liberdade, o entendimento e a personalidade?! Para que os outros se divertissem melhor, mofando de mim e fazendo-me baixar, na escala social?!

Manteigas 13-6-1972
Semana cheiinha com provas escritas e treinos de exame. São os horários que se atropelam, direitos e regalias que não se respeitam, vantagens diversas, que são postergadas. O homem, por norma, é sempre o mesmo: pequenino, mesquinho e harto abusador, naquela medida, em que excede outrem e dispõe, a talante, de meios psicológicos, para se impor. A i do infeliz, que tem os olhos fechados! Quando os abre, por fim, de nada lhe servem. Bate sempre em vão, no peito dorido, torcendo a orelha, mas que lhe presta?! É tarde já: só lhe resta chorar!
Isto acontece, em duas circunstâncias: 1.quando somos inábeis para dirigir a nossa própria vida, assim permitindo ou solicitando que os outros abram a negra sepultura, em que havemos de tombar. Há-os por aí, com rara habilidade, para iludir as gentes crédulas e lográ-las, em seguida, ficando estas, apesar de tudo, em extremo reconhecidas; 2.quando vivemos à parva, em ambiente angelical, já no lar paterno, já em casas de formação. É o caso de muitos. Não foram preparados, a fim de se integrarem na sociedadel
Nas primeiras idades, em que somos receptivos, só obedecendo e pondo em prática o que outros impingem, em nome de Deus e por seu mandado, é fácil e rendoso abusar de alguém, já com bom fim, já com fim perverso. Os nossos pais, mercê tantas vezes de critérios estreitos, fazem de seus filhos autênticos bonecos, em que imprimem indelével o selo da desgraça e a marca da inépcia.
Culpá-los? Sim e não. Não, por serem vítimas de velhos preconceitos e usos antiquados que a sua ignorância não pode irradiar. A felicidade do ser humano ou a sua desgraça, tem origem no lar, sendo continuada por certos mestres e até pedagogos, a quem os pais inadvertidos entregam os filhos.

Manteigas 14-6-1972
A Europa de outrora (civilização cristã)
A história do mundo confirma o dito: em tudo o que é humano, há subida e descida. O velho continente, paladino e baluarte da civilização, que se nomeia cristã, e probo guardião de tradições veneráveis, abdicou da função, renunciando ao múnus, que já vinha exercendo, havia séculos. Defensor do Cristianismo, heróico missionário, em plagas adustas, levava a Cruz junto com a espada, de olhos fitos no ideal.
Isto, exactamente, caracterizava as antigas Cruzadas, notando-se igualmente nas belas catedrais, que a Idade-Média nos quis legar. Em resultado, como prova eficiente de zelo apostólico, fundaram-se logo viveiros de Apóstolos; erigiram conventos; levantaram-se templos; multiplicaram, grandemente, as casas de formação. Uma enorme pujança, que floria em vocações e sorria para Deus!
Acontecera o mesmo às viçosas cristandades da Ásia Menor e do norte de África. Que resta hoje disso?! Talvez só o nome, se é que ele existe! E no entanto, andaram por ali os mesmos Apóstolos e Padres da Igreja, sendo iluminadas essas regiões por astros brilhantes de primeira grandeza. São prova do facto Santo Agostinho, Tertuliano e Orígines, e já antes deles, na Ásia Menor, os mesmos Aoóstolos, que Jesus formara.
Que está fazendo, à data, o velho continente? Abdicaria já, da sua autoridade?! Cruzar os braços e deixar correr?! Onde não existe qualquer reacção, há morte latente! Que fez e disse o Cardial da Hungria, ao chegar ao mundo livre?! Ser esta, na verdade, a Igreja do silêncio e não a deles!

Manteigas 15-6-1972
A última etapa destas paragens decorre exactamente, no bairro de S.Domingos. Embora esfalfante, pois me aguardam 100 degraus de escadarias, venho subindo, a fugir dos vales, onde se juntam excrescências várias e se aglomeram detritos. Ares mais lavados, companhias mais abertas, porque não eivadas de espírito burguês, malevolente e insalubre, que distingue, para logo, determinados sectores.
Ultimo, pois, meus últimos dias, aqui, em Manteigas, num rico ambiente, que deveras alicia, prende e lisonjeia. Pena foi, decerto não havê-lo conhecido, já muito antes. Mas, enfim, burro morto, cevada ao rabo! Agora, passa breve este mês de Junho, que hoje dá pelo meio. Outra metade e mais o de Julho, que talvez já não leve até ao final! Vamos ver no que dá a minha aposentação, que vou tentar, lá para a semana!
Moralmente, creio haver direito, por causa das moléstias que se vão acentuando. Falarei com o Médico e logo dirá o que hei-de fazer.
Pois em S.Domingos, situado na vertente, bairro novo e airoso, que vê, a Oeste, a Fraga da Cruz, lá muito em cima e quase na vertical, passo eu agora os meses derradeiros, em número de dois! Aprecio imenso a estadia aqui: os ares são lavados, e tudo me prende! Subir, subir, abeirar-me das alturas, dando costas aos fundos!

Manteigas 18-6-1972
Custou resolver, mas finalmente, decidi com firmeza. Mercê deste facto, entreguei a garagem, dizendo à Dona Ida que ficará livre, no mês de Agosto. Por isso, vou pagar em Julho 7 meses atrasados. Foi preciso fazê-lo, pois há anos já que a utilizo, guardando ali o carro e outras coisas de uso pessoal. O Taunus morou lá 10 anos cumpridos. Já antes dele fizera assim o Fiat. Prendo-me às pessoas e também às coisas! Actualmente, a prisão é débil, salvo raras excepções, que guardarei para sempre. Demais, ninguém estranha!
Foram já 15 anos! Se houvera aqui nascido, aferrava-me ao solo, mas tal não é o caso! Acharia tudo belo, obcecado pelo amor que votamos ao berço! Era, pois, terra de empréstimo! Trabalhei duro, alguma coisa havendo feito, em prol da promoção nas classes humildes, sem esquecer o destino eterno do ser humano. Findou o meu ciclo: outros vieram que melhor farão! Oprime-se o peito, mas é esta a vida; subir e descer!
Continuar aqui, seria sofrer ingloriamente! Ora, fazer assim, é morrer a prestações, consumir-se na sombra, a não ser que o façamos, por amora Deus! Pelas criaturas, não dá para a pena! É coisa insensata! Vou daqui sem remorsos, plenamente convencido que fiz mais bem do que mal; o que me dá segurança e tranquilidade!

Manteigas 20-6-1972
Inicia a Covilhã suas Provas temíveis! Chamo-as assim, porque foi, na verdade, um ano tremendo, fértil em namoros, rico e farto em devaneios. Raros serão hoje os que não andam aos pares! Parece uma comédia! Foi o ano lectivo mais desgostoso que já tive na vida, não obstante ser boa a matérai-prima! Raramente consegui percentagem tão alta, em qualidade e número. Mas, que acontece a um povo, em regime democrático, não estando os cidadãos preparados para isso e, por outro lado, bem mentalizados?! Vem a anarquia, o poder popular, a inconsciência das massas, o abuso e a desordem!
Detesto fascismo, odeio a tirania, amo a liberdade, mas amo, de igual passo, um mínimo de ordem, respeito e acatamento, para que o Ensino se torne eficiente. De outro modo, caem os braços e vem a ruína! Vou sair, é verdade, mas não queria, por modo nenhum, deslustrar o meu nome, que sempre caprichei em manter dignificado, à custa de esforço! Entretanto, se atendo um pouco à falta de interesse, que noto à volta, quase perco o alento, escasseando-me desejos!
Cá os deixarei. Que fiquem em paz e realizem com brilho aquilo que eu, nas actuais circunstâncias, não posso levar a cabo. Vai soar, em breve, a hora maravilhosa da libertação! É um pesadelo viver assim! Não presta a ninguém! Passar a vida inteira sujeito a horários! Que horror!

Manteigas 21-6-1972
Lá por S.Domingos, corre a vida serena. Tem um quê de familiar, que eu não conhecia, há 27 anos! Acho aquilo interessante e deveras humano, acolhedor e afável. A minha solidão quebra-se em parte, devido ao tacto de excelente mulher, que, por ser devota, honesta e simples, é adorável, para companhia. Recordo saudoso o último serão. Chegara do Colégio, algo aborrecido, como sempre acontece, nos últimos tempos, metendo-me no quarto, logo de entrada.
Liguei a escalfeta ou melhor dito, o capacho eléctrico, adquirido em Franca e, sentado na cama, ia remoendo sinistros pensamentos. Estava só, imergindo a valer, na minha solidão, a que fazia cortejo o apagado silêncio. Debruçado e nervoso, desamparado e longe de mim, sem algum coração, que vibrasse a uníssono, consumia-me de espaço, qual haste vergada, cheia de seiva, que não pode extravazar. Apagar-me deste modo, aparentando vida, não é viver, certamente!
Nisto, ouço uma voz, lá do corredor: “ Se quiser aquecer-se, já tenho ali uma rica braseira”! Escusado é dizer que fui, sem detença, para a cozinha! Alguém pensara em mim, procurando com empenho, tornar a minha vida um tanto agradável”. Fiquei, desde logo, sensibilizado, confessando-me ali extremamente grato! Depara-se-me então uma rica braseira e, junto dela, risonha velhinha.
Logo em seguida, vieram suas netas, para animar o belo serão! Desta maneira, a vida é já outra. Razão teve Deus, no Paraíso Terreal, quando olhou para Adão, que estava sem ninguém: “ Não é bom que o homem esteja só”! Demais Ele sabia que é fonte de tortura e origem de todo o mal

Manteigas 23-6-1972
Decorreu ontem a Prova de Ciências. Se não me engano muito, há bons resultados, pois acho acessível a Prova Escrita, e os alunos, por seu lado, conheciam a matéria. Mais inocentes, não estão viciados. Insisti bastante, ao longo deste ano, sobre questões que surgiram agora. Fiquei satisfeito, à primeira mirada, através do questionário, que abarca globalmente 29 alíneas. Uma dentre elas, é muito curIosa, mas receio bastante que alguns estudantes a não tenham alcançado.
O esperto Alexandre, no dizer do pai, viu logo o caso. Trata-se, afinal, de uma campânula, assaz avantajada, em cujo interior, fechado hermeticamente, se encontra um ratinho e uma planta verde. Logo de entrada, perguntamos nós por que é que não morre, pois ali perto encontra-se morto um companheiro seu, também no interior de uma campânula igual.
Com o outro, porém, não se deu o mesmo: acha-se bem-disposto e vê-se escorreito. A verdade inegável é que a planta verde, exposta ao Sol, consome o gás carbónico e liberta oxigénio. Sendo isto assim, está o caso resolvido, porquanto o ratinho liberta gás carbónico e precisa oxigénio. É um jogo de tal ordem, que denota certamente um bom ordenador.
O facto impressiona, enquanto implica decerto uma relação íntima e profunda entre plantas e animais. Também o Viegas respondeu acertado, segundo ele disse, expondo logo os motivos. Aguardo com ansiedade os resultados finais, embora tencione deixar o Colégio.

Manteigas 3-7-1972
Vou já esgueirar-me para o Fundão. Indo pela serra, é apenas uma hora, para galgar o breve percurso: 47 quilómetros. Há muito já, que não vejo, com demora, o amável compadre de velhos tempos, o que deixa saudades. Hoje, pois, tenciono matá-las! A velha amizade é preciso cultivar-se: flor mimosa e delicada, necessita amparo e frequente desvelo. Tudo o que existe carece de alimento: de outra maneira, sucumbe, por certo, e acaba por morrer! Que é que alimenta a verdadeira amizade, qual nós a vivemos!
Não anda apoiada em vão interesse nem coisa semelhante! Encontros amiudados, troca sincera de gratas impressões, em que a alma se expande e a gente se realiza! É tão pouco, neste mundo aquilo que satisfaz! Vale a pena intentar o que alenta a alma e faz rejubilar o nosso coração! A amizade verdadeira opera sempre autêntico milagre!
No meio do desvairo, em que as gentes actuam, como se, realmente, fossem inimigas, sabe a divino dar as mãos com firmeza e abrir o nosso peito, sem qualquer refolho que seja impenetrável! Fico bem-disposto, prelibando já o gozo inefável da bela companhia, em cuja presença é grato permanecer.
Relembro, a propósito, o conselho amigo, sincero e avisado, que o finado saudoso, pai do meu compadre, um dia me lançou: “ Juntem-se mais vezes, confraternizando! A vida é curta, urgindo aproveitá -la. Quando menos pensamos, já somos de outro mundo! Avistem-se pois com mais frequência, fazendo expandir corações e almas, em troca de impressões, lembranças e gracejos, que logo aviventam e dão prazer! O velho pai, Salvado assim falou um dia.
Tinha razão! Quem nos garante o dia de amanhã?! Por outro lado, a vida é tão amarga! São tão breves e escassos os momentos de prazer!

Manteigas 4-7-1972
Lá fui ontem ao Fundão, a que me ligam velhas recordações, umas gloriosas, outras humilhantes. O que não desmerece é a sólida amizade, que une dois compadres, ambos achacados e a braços também, com vários problemas. Uma vez chegado, certifiquei-me logo de que havia uma folga na barra da direcção , o que fez encaminhar-me ao Café Portugal. Aguardei paciente, compadre Duarte, velho amigo também e, por volta das 14, aparece o compadre, risonho, acolhedor, não obstante a doença, que fundo o acabrunha e retém, a espaços.
Após os cumprimentos, efusivos, prolongados, que já são habituais, há quente diálogo, e recurso ao passado, cujos episódios outrora vivemos, em franca expansão. Quem dera Senhor, que esse tempo voltasse! Nem eu nem ele éramos enfermiços! A vida intensa, que emanava das almas fazia reverdecer os dias da vida! Infelizmente, porém, mão pesada e severa impeliu o ferrolho que jamais desandou!
Há riso franco e amplos comentários, enquanto os àparte adornam sempre os episódios, tornando-os chistosos. O tempo, assim, decorria veloz, importuno e furtivo, pois não atendia às nossas exigências. Correr, correr sempre, dizendo sem pejo: “ São horas de largar! Que fazeis aqui, mergulhados na paródia?! É isto a vida?!
Ouvi a censura e caíram-me os braços, com tanto arreganho! No entanto, aproveitei ao máximo, reservando apenas uma hora e um quarto, para ingressar na vila de Manteigas. Vim por Belmonte, o que alongou o percurso mais 13 quilómetros. Por outro lado, segui lentamente, para evitar sérios desaires.

Manteigas 6-7-1972.
“Julgava eu que era a cadeira!” Aguardando a minha vez, para encontrar-me com o Especialista, surgiu uma velhinha , que saudou os circunstantes, empunhando linhas e uma agulha pequena. Entrando na sala, corta a direito e toca levemente no ombro de uma jovem, aquém solicita imensa desculpa, alegando em defesa que via mal e muito mal! Seguidamente, pede com empenho lhe prepare a agulha. “Preciso dar uns pontos”, esclarece a velhinha.
“É às apalpadelas”, na expressão queixosa, tremebunda e incerta da pobre mulher que de modo nenhum ostentava impaciência. Seria talvez como aquela das “ Viagens” descrita por Garrett? Mas essa, afinal, tinha uma neta, que voltava o novelo! Esta, porém, assim desamparada, tendo só por companhia a solidão e o silêncio, apareceu-me àquela hora, sustentando com firmeza haver neste mundo quem seja, na verdade, muito mais infeliz! Foi uma lição, eloquente e profunda , a que tirei nessa tarde, que não vai muito longe !
Como iriam ficar tais pontos ao calha?! Se tem família, por que não acorre, a prestar-lhe auxílio?! E se a não tem, por que não aparece uma alma caridosa, que no brilho intenso de seus olhos sadios, conceda, generosa, uma réstia de luz à pobre mulher?!
Pudesse eu ajudar-te, velhinha santa mulher infeliz (quem sabe?) desditosa e triste!

Manteigas 10-7-1972
Chegou, finalmente, a hora decisiva, para dar mais um passo; em 15 anos sucessivos, tentara-o já, pelo menos duas vezes, sem efeitos práticos. Não lhe pegara, de modo eficiente, nem as próprias circunstâncias eram semelhantes. Foi só anteontem que me avistei decidido com o Director, pedindo a exoneração.
Quanto isso me custou! Meses e meses foi ideia constante, que ora repelia ora aconchegava. Hesitante e perplexo, já desde Novembro, em que o Esteves se valeu de seus poderes e grande autoridade, para lançar-me do Hospital, onde era Capelão, urgiu decidir-me, apresentando o caso em termos claros. Assim aconteceu em 8 do corrente! Decorreu o pedido, na velha secretaria do Colégio novo.
Eram 9 e 30 de manhã enevoada, bem diferente de outras, em que o Sol escaldava. Se tudo muda, como podemos nós fugir à regra?!
Acho-me, pois, liberto de Manteigas e do cargo pesado a que votei as melhores reservas do meu espírito! É um sonho tudo isto, em que pareço não acreditar! Velhos e bons amigos, embora poucos em número, deixam-me saudades; os meus alunos e alunas; estes montes altaneiros; suas íngremes escarpas; o arvoredo frondoso, em que o verde macio apresenta sempre tons bem diversos; enfim, as paredes e os muros tão familiares, e estes ares serranos…tudo em breve ficará longe de mim!

Manteigas 11-7-1972
Iminente e destravada, punha alvoroço em nossos corações! As ruas da vila estavam desertas e os próprios animais haviam debandado para os seus abrigos. Desgarrada pessoa esgueirava-se furtiva, ao longo do caminho, enquanto olhava, receosa, escutando assustada. Os raios fulminantes cortavam o céu, riscando-o vivamente de prata e fogo. Instantes depois, vinha imponente o ribombar do trovão, dilatando o ar e provocando assim embates fantásticos.
Aproximava-se em breve a hora de jantar. Nem visos de melhoria! Detido na farmácia, olhava fixamente os beirados vizinhos e media os segundos, entre o raio e o trovão. Tinha de ir ainda para S.Domingos, pois como no Beiral Mas quem dava passada, sem um guarda-chuva?! Por outro lado, com sapatos de Verão, penetrava a água dentro do calçado! A que posso recorrer? Quem é só não tem recurso, porque não é lembrado! Lá diz o provérbio latino: Ai de quem é só!
Foi este o prémio de ser levado por conselhos de outrem, sem tomar em conta o meu ideal. Se eu pudesse recuar! Isso, porém, já não é possível Que me resta, pois, de tal situação?! Esperar em Deus, que nunca se engana e me há-de compensar da triste solidão em que fui lançado por gente ingénua, ignorante ou mal formada.

Manteigas 12-7-1972
Enorme cuidado me toma, nesta hora, motivado por ‘contas’. Dizia D. Domingos: ”Primeiro, Cristo; depois isto”. Acompanhava o dito com gesto leve, em que actuava o indicador e o vizinho polegar. Efectivamente, o aspecto económico não é subestimável.
Como fazer face às despesas correntes?! Para todas as coisas, é preciso dinheiro e, sem o vil metal, para nada servimos, em face do mundo. Daí o rifão: “Diz-me o que tens: dir-te-ei quanto vales ”ou “Nada tens, nada vales!” ou ainda “Quanto tens, quanto vales!” Como outros provérbios, tem na verdade a sua filosofia, que o saber dos povos estilizou, sumariamente.
Por esta razão, foi a vida atarefada, realizando economias e trabalhando quanto podia. A dureza da vida me ensinou eficazmente. Aprendi logo cedo, na escola da provação. Ainda em princípio, sem dinheiro nem valia, vi-me logo a braços com sérias dificuldades: o descolamento da minha retina. Que fazer então?! Que faz um indivíduo, sem dinheiro e sem valor?!
O tempo correu e, ao passar por mim, embranqueceu-me os cabelos. Agora, encontro-me já nos 54: muitas doenças, mágoas sem fim, desilusões, assaz acabrunhantes! O que apurei, que afinal era bem pouco, reservo-o, já se vê, para a velhice. Como será ela?! Deus é quem sabe! Pelo que me toca, devo prepará-la. Por tais razões, ando apreensivo, mercê de contas, algo atrasadas, que outros esqueceram, mas lembram a mim.
Eu, afinal tanto me preocupo, se devo dinheiro! Acaso será defeito, exigir o que é nosso e não abdicar?! Será digno de censura, aguardar inquietado que nos tragam à mão o fruto e a paga do nosso labor?! Não é desconfiança, pois sei que vem, mas estou com pressa!

Manteigas 13-7-1972
Decorrem pausados, em tédio constante e funda amargura, os dias longos do mês de Julho. Desde que raia a bela aurora, até que o manto de treva cinge o Covão, quantos bocejos, e miradas furtivas, com olhar reprovador! Mas quê?! Apresso eu, por ventura, o rodar compassado, em que vou agonizando e até me consumo?! Desterrei-me há dias, para S.Domingos, onde há, sem dúvida, belas companhias. Apesar disso, poderei na verdade preencher a brecha que a vida actual abriu em mim?!
Desolado e triste, fixo amargurado o cume dos montes, seguindo no horizonte, a linha irregular, que fenece em breve. Trago os olhos aguados, pois há muito não vêem o que eles mais desejam: rostos amigos, afáveis e lhanos, olhos que me fixem, dardejando carinhos; dedicações bem firmes, que o tempo não destroi; afectos que dão cor, interesse e relevo à vida presente! E onde estão eles? Não vivo eu sozinho, imerso na tristeza, em que a sociedade me lançou um dia?!
Seduziram-me habilmente, em anos imaduros, quando fui atirado para a amarga solidão, que detesto e repilo! Luto em vão, bem sei, qual náufrago perdido que as ondas vomitaram, enquanto um sopro de vida lhe sustenta o alento! No imenso fundão, em tudo semelhante a uma tumba mortuária, deixei os meus valores, para receber em troca, o dinheiro vil, que não dá vida, amargas desilusões que fundo me torturam!
Valeu a pena?! Deus o sabe! Lutei denodado, mas não colhi o que mais desejava!

Manteigas 21-7-1972
À data de hoje, chegou o tédio a seu auge! Sem aulas nem Pontos, esperando somente que tudo se ajuste, em véspera de abalada, que longo, profundo e hórrido enjoo! Precisamente o assunto que mais ralado me tem, provocando tantas vezes, horas de angústia, aquilo efectivamente, que amargura a minha alma, e ela vê tão distante!
Saturado de tudo, alheado de quase todos, não apetece a leitura nem sequer o convívio!
Só mudando o ambiente, cessarão os meus males! Entretanto, a roda fatal avança morosa! Sua marcha lenta desafina-me os nervos, pondo estremeções no íntimo peito. A rabulice humana é tão requintada, que me faltam palavras, para descrevê-la! Haverá motivo ou não de protestar vivamente, se adverti alguém, acerca dos meus planos?! Foi já no dia 8! E disseram-me “em breve!”
Aguardei penosamente, sofri horas infindas, vivi momentos cruciantes, em que a vida estagnava, deleitando alguém, de maneira cruel e gozando a delícia de ver outrem penar! Serei eu o veneno ou reside, à minha volta?! Esperar humanidade é o mesmo que enforcar-se, renunciar à existência! Será grato fazer isso?! Admitiria, vá lá, certo grau de maldade, mas tanta e do quilate, andava eu longe disso!
Só a fuga tresloucada, sem olhar para trás! A mulher de Lot, se bem me lembro, de olhar para trás, foi logo transformada em estátua de sal. Comigo ia suceder a mesma coisa; toca de andar, olhando só em frente!

Manteigas 22-7-1972
A Flor da Gratidão
Bela virtude…

1982
Lx. Alcântara 3-1-1982
Quem tem Inimigos
Não vamos julgar que é desventurado! Não os ter é maior desventura! Qual é, afinal, a causa deles? Ninguém o ignora: valer alguma coisa; fazer-lhes sombra; constituir obstáculo à sua ambição; impor-se a todos. Claro! Desperta inveja! Daqui se vê, pois, que a raiz do mal reside na ambição. Querer ombrear ou ir mais além, mas ser impedido por outro mais hábil é, geralmente, causa bastante de inimizade. Outras vezes provêm de afirmações, que fazem estarrecer: verdades que ferem, pois são opostas à maneira de pensar, agir e proceder!
Descobrimos sempre, no fulcro da inimizade, algo de travão à nossa vaidade ou empecilho que se ergue em frente e nos leva a pensar que ficamos em baixo. É o que origina a falta de humildade e puro cristianismo!
Será desprimoroso ter inimigos? Revela isso quebra de princípios, na pessoa atingida?! Creio facílimo responder à pergunta. Não os teve Jesus Cristo?! Julgo até honroso, nobre e excelente haver inimigos, por estas razões! Não têm fundamento! Se é, na verdade, o valor pessoal, a integridade moral, e o carácter impoluto, que originam esse facto, só motivo de orgulho isso deve causar! O que há desequilibrado medra por fora: não dentro de nós.

Lxª. - Alcântara 4-1-1982
Ensino Oficial ou Particular?
Sendo os próprios pais a educar os filhos, não há problemas. Não podendo fazê-lo, por qualquer razão, escolhem eles o tipo de Ensino, que melhor se adapte e mais convenha aos seus princípios. Surgem, por vezes, grandes obstáculos, que se opõem tenazmente, sem deixar caminho, para escolher. Assim, por exemplo, a falta de meios ou de experiência, a fim de julgar e bem resolver. Impede-o também a carência de tempo ou grande absorção, em dado mister.
Removidos, pois os vários obstáculos, supondo nós que se encontram ao par, qual dos Ensinos devem escolher?! É algo difícil a resposta geral, aplicável, sem detença, em todos os casos. Imaginemos agora, que o Oficial é algo suspeito, no campo moral, tecnológico ou social. É dever dos pais evitar a desgraça, que impende sobre os filhos. Não havendo obstáculo de qualquer natureza, tendo só em vista o aspecto pedagógico, prefiro desde logo o Oficial, vivendo os filhos na casa paterna. Este convívio é muito necessário a uns e outros. Tal processo afigura-se o melhor.
Há, no entanto, Colégios-modelo que são de aproveitar! Fugir, a bom fugir, de Colégios pequenos. Sendo pagos pelo Estado, o caso já muda! Seria óptimo um Colégio bom, com semi-internato, vivendo os filhos, na casa paterna!

Lxª. – Alcântara 7-1-1982
À Frente goza, torturando outrem!
Há dramas ao vivo que ninguém conhece! Os seus protagonistas são ignorados, vivendo no martírio, sem braço amigo. Triste situação que o nosso bem-estar procura desconhecer! Por que razão não abrir os olhos, levando aos outros um pouco de luz?! Por que não desentranhar-se em actos de bondade, que a outros afligem, por nossa causa?!
Abeiremo-nos um pouco, seguindo com interesse quem vai pela rua. É mesmo em Alcântara. À frente de mim, um jovem fumador rompe açodado, investindo contra o vento. Uns passos atrás, já um tanto alquebrado, caminha alguém, de face constrangida e olhar reprovador!
Não fuma! Sente repulsa ao cheiro nauseabundo que exalam os drogados: ter de ingerir o fumo irritante. Sofre imensamente, por dupla razão: não poder ultrapassar o drogado rapaz, que os anos fazem ágil; ter de ingerir o fumo irritante, que detesta ao máximo. No entanto prossegue, na mira de alcançá-lo, enquanto eu sofro, no meu coração.
Olho aterrado o agir do rapaz, que goza e se deleita, amargurando assim o dito ancião! Por que é que não fumou, quando estava em casa?! Por que lança no ar espirais de fumo, que tudo penetram, causando agonias?! Tenho pena do segundo que agoniza e se dói, enquanto o primeiro mergulha na droga, atolando-se em fumo, que nutre o prazer!

Lxª. - Alcântara 8-1-1982
O 25 de Abril
Alguém perguntou:” Gosta, acaso, do 25 de Abril?!
Calmamente, assim respondi: como posso eu gostar, se apenas amargura daí se originou para o meu coração?! Gostar, afinal, é o mesmo que sentir, de maneira agradável; dar-se a prazer; amar alguma coisa! Ora bem! O 25 de Abril, em vez de alívio, paz e amor, trouxe hecatombes, que dele brotaram, no solo de além-mar, as quais por desgraça, ainda continuam!
A guerra civil! Espancamentos e assaltos na rua; violações e pilhagens; ruína total de milhares de famílias; casais desfeitos; atentados à honra; traumatismos em barda, que não cessam jamais! Apenas a morte os pode terminar! Para mim, está ele manchado com tons abomináveis! Não posso gostar dele!
Por estar demorando, tentaram encostar-me, com esta objecção: Isso, afinal, é o que está pensando, mas o seu juízo não é, certamente, o do povo português!
Atalho eu prestesmente: discordo, por inteiro!
- Apresente as razões!
- Nada mais fácil! Recorro às palavras de António José Saraiva: a prova certa de que o povo português não ama o PREC reside no facto de entregar à AD o governo da nação. PREC significa: processo revolucionário em curso. Nada mais claro! A mim, pessoalmente, deu isso prejuízo, tanto em Angola como em Portugal! Se fora só a mim, beneficiando todos os outros!
Revendo melhor a minha posição, distingo ainda o 25 de Abril, da sua realização. Esta, sim, é que foi detestável, pois veio causar o que atrás enunciei. A abertura foi boa. Talvez a intenção tenha sido esplêndida, mas o agir posterior amargurou o País, lançando-o na ruína!

Lxª. – Alcântara 10-1-1982
Casamento a sério ou Insensatez?!
Alarmam-se as gentes, de tantos divórcios, conflitos e discórdias, entre os casados. Ao fim de alguns anos, se não poucos meses, começa a tragédia. Dissensões, a montes; esfriamento de atitudes; ausências prolongadas; silêncios pesados; insinuações, algo aleivosas; ditos picantes.
Abriu-se o pélago! O plano inclinado torna-se um perigo! Resvaladiço como se apresenta, não trava a corrida! Só a favorece, possibilitando a marcha acelerada. Agora, pois, só palavras que ferem! Provas de amor, espírito alto de sacrifício e compreensão deixam de existir! É já o caos! Horizontes novos se estão esboçando! A vista alonga-se, para fora do lar! Jogam-se ali os interesses mais santos, como os dos filhos. Deus e o Céu, e a vida eterna já nada pesam!
Interessa apenas o gozo da vida! Dispor, sim, enquanto é possível! Eu interrogo: terá o homem consigo a razão da existência?! Poderá sensatamente derrubar a lei moral, que o próprio Deus fez?! “ Não separe o homem o que Deus uniu!” Fala Deus assim, na Escritura.
Não será esse caso rematada loucura?! Como foi preparada essa tal união?! Acto canino de mero encontro, sem nada mais?! Tem o pobre homem o destino dos cães? Onde mora a consciência?!

Lxª. - Alcântara 15-1-1982
Impudor nas Ruas
O 25 de Abril trouxe o desplante! Liberdade total, não importando em quê! Acções e reacções, palavras e atitudes! O que era proibido tornou-se legal ou já permitido! Temas de alcova ou grande intimidade passaram para a rua, com grande pasmo e surpresa das gentes sensatas. Interpretação errada, quanto à liberdade?! Esta, afinal, é sempre limitada. Aonde vai terminar?! Eu digo já! Onde vai começar a liberdade alheia.
Ora, se o meu bem-estar fica afectado e me sinto oprimido, com tais exibições, para onde foi a minha liberdade?! A nada se atende! É o campo do egoísmo! Olhar para si e nada mais! Conveniências? Desaprovação, em ordem aos outros?! Moral tradicional?! Compostura e decência?! Respeito às crianças?! Tudo naufragou! Entretanto, o Evangelho é eterno e veio do Céu!
O único Senhor, que nos há-de julgar, não se desdisse nem jamais cancela preceitos e ordens! O homem não é Deus e tenta parecê-lo! Fique bem claro: somos criaturas e não temos, de facto nenhum outro Deus, que permita desaforos, toleimas e riscos!

Lxª. – Alcântara 16-1-1982
Soltura de Língua
Sendo criança, jamais eu ouvi palavras escurris, grosseiras ou obscenas. No lar, nem uma! No exterior, jamais às mulheres e raro aos homens! Hoje, porém, o quadro mudou! E é grande pena! A delicadeza, quanto a sentimentos, fica muito bem a todas as pessoas e quadra à maravilha a todos os tempos e suas viragens. Linguagem decente, limpa e sensata é claro sinal de peito lavado! Não é a linguagem espelho da alma e fiel instrumento da sua expressão?!
Atendendo, porém, ao que ouço, na rua, às próprias crianças, fico horrorizado! No entanto, os Livro sagrados dizem claramente: ”Certas palavras nem sequer se pronunciem!”
Efectivamente, elas são portadoras de mixórdias e baba, que salpicam as almas. A mulher portuguesa, que foi em todo o tempo modelo de contenção e nobres sentimentos, está sendo agora (há honrosas excepções) alvo de atenção, pelo seu impudor! Língua sebenta a voltear na boca imunda, remexendo o entulho que enlameia as almas, é digna de censura! Esta mulher, educadora e mestra da grande comunidade, para onde caminha?!
Guerra ao palavrão, escurril e baixo, que traz a desonra e dispõe as amas para chafurdar. Campanha mais nobre não creio que haja.

Lxª. – Alcântara 19-1-1982
O que eu preciso agora, já regressado a Portugal, não é demasiado, pois a minha aspiração está confinada. Entretanto, um mínimo há que eu julgo necessário, para levar a existência, adequada ao homem: casinha modesta, mas confortável; carro utilitário; televisão e rádio; biblioteca a meu gosto e um bom acordeão. Aceitaria ainda, provavelmente, lições particulares, mas não em salões de qualquer instituição. Neste ambiente, iriam decorrendo os anos derradeiros, servindo a Deus, em paz e amor.
Viveria parcamente, segundo o costume; ajudaria os famintos de pão e ensino; rezaria concentrado as minhas orações. Também era grato escrever o Diário, vindo a publicar o que trago em mente. Baila no meu espírito uma ideia sedutora: visitar ainda os Lugares Santos do próximo Oriente; a Roma papal e suas maravilhas, dando um salto a Nápoles, Veneza e Turim e também a Milão; depois, à Grécia, ao Egipto fabuloso; reconhecer o Brasil, dando breve giro pelos Estados Unidos.
Será demasiado o que trago em mente?! Acho que não, mas supõe com certeza uma boa economia, para que as migalhas permitam bom êxito. Cauteloso no vestuário; sóbrio no comer, moderado em tudo, haveria que bastasse, para ajudar os pobres e, ao mesmo tempo, distrair um pouco, utilizando as viagens como fonte de progresso, quer espiritual, quer ainda artístico.
Após a carreira, à luz de Deus, havendo combatido pelos nobres ideais, iria feliz, para o seio do Pai! Da vida presente, nada mais quero. De momento, o supremo desejo é fixar-me em Portugal, onde tudo me fala, encanta e sorri Não é ele, de sempre a terra bendita de Santa Maria e do santo Sacramento?! Não foi ali que surgiram as raízes profundas de todo o meu ser?!

Lxª. - Alcântara 20-1-1982
“ Agora, sim, é que vê, de facto, o cu à carriça!
Se bem me recordo, foi à mana Augusta que primeiro o ouvi. Achei graça ao rifão, pelo seu realismo, poder evocativo e crueza de forma. A carriça é uma ave minúscula, tímida e furtiva. Como tal, seria dificultoso avistar-lhe o traseiro, que deve ser miniatura!
Simbolismo? Expressa, com certeza, os momentos amargos que alguém está vivendo, para sair de enredos ou pôr em ordem os seus negócios. No mesmo dia também, diz Carlos Almeida, na Agência Funerária Batista Filho: “Ontem, vi-me da cor das mélroas pretas”
- Então porquê?!
- Não imagina! Cinco funerais! Uma carga de trabalhos!
- Bom! Ouvi, registei e pus-me a discorrer! As ditas mélroas são todas pretas, segundo eu julgo! Acha-se a mais o dissílabo ‘pretas’! Enquanto imaginava, tentando acertar, vem-me logo à ideia outro rifão usado na minha aldeia – Vide-Entre-Vinhas: “ Vi-me da cor da abelha!”
O sentido é igual, variando apenas a cor preferida. Vem a dar no seguinte: Vi-me em aperto! Há, pelos vistos, enorme semelhança, de carácter ideológico, nos três anexins.

Lxª. - Alcântara 21-1-1982
Matrimónio de Prostitutas?
Nada existe na fantasia que não seja provável! Algumas prostitutas foram arrastadas pela necessidade, quando não seduzidas. Por vezes, são as próprias mães que as lançam no abismo! Desemprego e mau exemplo, abandono e desprezo, fagueiras promessas, cargos invejáveis, chorudos vencimentos, ambição e luxo. Não são responsáveis por tanta desgraça, no campo moral?!
Seja como for, é sempre de esperar a conversão de alguém! Deus actua, intervindo amiúde sobre as criaturas. Criou o ser humano para a felicidade. Jamais abandona a obra de suas mãos. É possível a emenda, porque o Céu nos ajuda. Um momento breve de reflexão, um conselho amigo, uma boa leitura, inêxito forte e desilusão tudo são caminhos para Deus agir, influindo nas almas.
Ora, neste caso, dada prostituta, já recuperada e temente a Deus, com princípios firmes de grandeza moral e desvio do pecado, pode ser, na verdade uma boa esposa. Não podemos negar que muitos se convertem, iniciando vida nova, tanto neste campo, como noutros ainda.
Apesar de tudo, eu faço restrições! Se qualquer meretriz não for temente a Deus, garantindo a um homem que o ama intensamente e por ele dá a vida, não creio nisso. Ao surgir pele frente alguém que a deslumbre, terminará decerto as promessas juradas.
Requer-se a religião como único penhor e base essencial de compromissos tomados mais tarde.

Lxª. - Alcântara 28-1-1982
Limpeza Importuna
Afigura-se dislate o cabeçalho da página?! Pois não é tal, como passo a dizer. Nestas andanças, de Belém para Alcântara e daqui para lá, vejo muita coisa, a que dou atenção, fazendo meus juízos. Entre os factos observados, deparam-se quadros, nem sempre louváveis ou dignos de apreço. Aquele que viso, no momento presente, é dos mais asquerosos.
Limpar o nariz, durante a viagem, à luz do Sol, na presença do próximo, não é de louvar. Fazê-lo em casa, logo pela manhã, no acto de lavar, é recomendável Agora, como vejo, durante o dia, fica a impressão de que se trata de ‘pesca’, na qual vários dedos tomam posição! Já o tenho dito, em Diários passados, mas este caso é deveras singular!
Ambas as fossas foram pesquisadas, utilizando para o facto diversos dedos, com muita insistência. O que vi desusado e mais repelente foi o que segue: arrastada a ‘massa’ para o exterior, penetrava o dedo na boca receptiva, onde era depositada e logo recolhida pela acção dos lábios. Nunca vira tal! Bem diz o povinho: Aprender até morrer!
Pois foi, realmente, a nojenta acção que serviu de tema para este Diário! Que mais haverá que eu não tenha visto, ao longo da existência?! Mais asqueroso ainda não vira, mas só Deus é que sabe o porvir ignorado!

Lxª. - Belém 30-1-1982.
Porta Fechada
Nada como isto! Evitamos assim tremendas sltuações: lixo e poeira ficam de fora; os indiscretos e assim mexeriqueiros ignoram decerto o que vai no interior. Por estas razões, surgiu o rifão: “ Se queres viver em paz, teu vizinho louvarás; tua porta fecharás!”
O que vai lá por dentro não há-de transpirar! A nossa porta com as paredes hão-de ser barreira, impedindo contactos. De outro modo, tudo corre mal!
Veio isto a propósito duma coisa diferente. Deu-se ontem no eléctrico. Regressando a casa, juntamente com a mana, abancámos ambos no 27, auto-carro laranja. Havendo alguém pressa, não temos igual, exceptuando o Metro. Este, porém, não vai a toda a parte: apenas Sete Rios, Entre Campos e Rossio bem como Alvalade. O resto é servido por vias diferentes.
Pois à nossa frente, cismava a fundo certo macróbio que abria, de vez em quando, uma boca dilatada. Contra a minha expectativa, mantinha-a bem aberta, oferecendo espectáculo que era digno de lástima! Nem a mão em frente!

Lxª. – Belém 31-1-1982
Cabeça amarrada
Lá por tardinha, entrara no eléctrico. O Sol declinava, mas no interior havia animação e bastante à-vontade. Parecia Abril, tão macio e doce, acariciador, com ar imponderável! Uma vista de olhos, com certa discrição, põe-me logo ao corrente. Lugares devolutos já não existem! Há várias crianças, adultos e velhos, emergindo a cabeleira de senhoras caprichosas.
Faz-me impressão o arranjo dos cabelos e, bem assim, a cor e o tamanho! Estando ao fundo, olho pelas costas e noto somente o contraste das cabeças! Deste conjunto, salientam-se à primeira, dois arranjos diferentes. Enquanto as de outrem se elevam no ar, com grande presunção e ostensividade, avisto duas, amarradas com lenços, evitando olhares e fugindo ao contacto
Impressiona-me o caso. Porquê?! O que para umas é causa de orgulho, torna-se para outras, razão de vergonha?! Pode a gente envergonhar-se daquilo que tem?! Qual o motivo?! Reparo melhor e tento fixar os vultos em causa. Eram duas negras, que se criam diminuídas, em presença das brancas. Dei-me em seguida a longo cismar, não achando explicação para tamanho cuidado! Por isso, aqui vai um conselho:
Envergonhai-vos, sim, de acções condenáveis e actos desonrosos. O exterior não é realmente o que mais importa! Se o vosso agir for digno e honrado, todos vos querem, estimam e aceitam. O que é preciso é cuidada limpeza, maneiras gentis e prestabilidade, ficando o exterior como espelho do íntimo.

Lxª. - Belém 1-2-1982
Findo Janeiro com 31 dias, chega Fevereiro só com 28! É o mais pequeno entre os 12 meses. Além disso, é também frio. Hoje exactamente, está desagradável, se bem comparo a temperatura com a do mês passado. Seja como for, havemos de suportá-lo. Eu digo fracamente: nenhum mal desejo ao mês em questão. É que foi nele que eu vi primeiro a luz deste mundo!
Por esta razão, muito lhe quero e, embora seja frio, não tomo em conta esta anomalia. Desejo, porém, seja mais benigno que o mês de Janeiro! Se hoje, na verdade, faz excepção, tenho para mim que vai ser outro, nos dias que seguem. Que o meu desejo se concretize, para que o dia do meu aniversário decorra em boas graças. A 19. Caem 64! Figura isto um sonho! Uma história de fadas! Um engano voluntário! Não sei que dizer!
Como é que rodaram assim tão velozes os anos da existência!? Onde vai a infância, a minha adolescência como a juventude?! Fui de longada, pelo mar da vida, em frágil barquinho, pensando, iludido que era sempre dia, com sol radioso! Quanto me enganei! Desfez-se a ilusão e, abrindo os olhos, mal tive ensejo de vislumbrar, já longe, o passado tão querido! Ai! Dias saudosos que jamais voltastes! Quem foi que mos levou para lugares distantes?!
Não poder alcançá-los na marcha veloz, que esbate o meu sonho!

Lxª. - Belém 2-2-1092
Crise de Autoridade
Para ninguém é segredo este facto geral: haver, em nossos dias, crises a rodos, ocupando, sem dúvida, lugar proeminente a crise de autoridade. Ante o caso inegável e de efeitos lastimosos, conveniente se torna averiguar-lhe as causas, para de algum modo se barrarem excessos, evitando anomalias.
Sem autoridade, não há bem-estar, falta o progresso, destrói-se a ordem. Para tudo correr bem, há-de haver quem mande e quem obedeça. Assim foi, na verdade, ao longo dos séculos. Entretanto, os desmandos lastimosos, gerados nas cúpulas, originaram revolta nas camadas de base. Por outro lado, o homem do nosso tempo, cioso de seus direitos não tolera nem sofre que estes sejam ignorados. Uma vez neste passo, origina-se a discórdia.
Para solucionar o grave diferendo, importa sumamente que as partes se entendam, chegando a um ponto em que haja humanidade, compreensão, amor e respeito, baseando-se tudo na divina autoridade e obedecendo os homens, com os olhos em Deus. Só esta, de facto, é via segura. Fora de tais normas, apenas violência, retaliações, grande mal-estar, o inferno em vida! Alguém terá gosto, vivendo assim?!
Sem Deus em nossa vida, como tudo é reles, baixo, vil e nauseabundo! Lembra-me a propósito, a frase de Herculano:” Criou Deus o homem e pô-lo num paraíso de autênticas delícias; a sociedade tornou a criá-lo e colocou-o breve num inferno de tolices”.
Citei de cor. Se houve falta, releve quem me ler.

Lxª. – Belém 3-2-1982
Continuação
Sem nenhum diálogo nem compreensão, não vejo saída para o magno problema. Com efeito, as partes em luta arrogam-se direitos, que pecam pela base. Se não vejamos. Aquele que manda não se convence do grande princípio: respeitar a liberdade, pessoa e consciência de quem obedece. A razão e a base de todo o poder encontram-se em Deus. Ora, este não abusa: é santo e justo; amigo sem igual; equilibrado e paciente. Por consequência, o poder emanado para toda a criatura há-de revestir as mesmas características. De outro modo, surge a revolta, a que segue a desordem, geradora do caos!
À outra parte – os subordinados - impõe-se também moderação e respeito, obediência e diálogo. Esta obediência há-de ser voluntária, pronta, geral e harto consciente. A Religião eleva a obediência à categoria de bela virtude. Obedecendo, pois, ao legítimo poder é a Deus que se obedece! Efectivamente, nenhum poder existe que não venha de Deus!
Disse Jesus a Pôncio Pilatos: ”Nenhum poder terias, sobre a minha pessoa, se não te fosse dado lá do Alto Céu!” Destrua-se, pois, de uma vez para sempre, o falso conceito de liberdade total bem como a aspiração de poder ilimitado! Independente só Deus o é! A nossa liberdade termina exactamente, onde vai começar a liberdade alheia.
Quando tais princípios forem reconhecidos, de uma parte e outra, vida nova teremos, com paz e harmonia, vincado progresso e alta ventura.

Lxª. – Belém 4-2-1982
Aniversário da Morte
Ocorreu o passamento de um grande amigo, em 1942. Faz hoje, portanto, 40 anos, que o bom padre Zé Maria se foi de longada. Como o tempo se escoa! Nem advertimos! Nessa altura, faltava só um ano, para eu acabar os estudos teológicos. Em 1943, finalizava o meu Curso, para fazer-me presbítero, em princípio de Agosto.
Anunciara-lhe o facto, algum tempo antes, convidando-o logo para assistir e ser meu padrinho. Acolheu-me sorridente e disse que sim. A morte, porém, não deixou realizar o meu vivo desejo, que era tê-lo presente, no acto festivo. Encheu-me de tristeza o facto ocorrido, mas tenho a certeza de que ele se alegrou e viveu a fundo a minha ordenação. Havia-me baptizado e seguira-me de perto, ao longo da vida.
Saudoso padre, José Maria Martins! Como ficas já distante! Mal te vislumbro, na imensa lonjura, que me separa de ti! O teu exemplo, no entanto, é luz, que me alumia! A semente que lançaste no meu peito de criança, e o teu patrocínio agora, lá no Céu, produzem seu fruto, que eu guardo com amor!
O Senhor te galardoe, nessa Pátria imortal, onde és tão feliz!

Lxª. – Belém 5-2-1982
Quinze minutos para as 17! Encontro-me, à data, no quarto de Belém, rua do Embaixador, capela das Dores. Uma tarde amorosa, com luz e calor! Nem parece Fevereiro! Choveu muito, no passado final de Janeiro, mas os últimos dias, foram divinais! Por esta razão, vi eu no jardim, pessoas descuidadas: umas, passeando, como no Verão; outras, lendo sentadas, em bancos de espaldar.
Pois eu estou só! Já me habituei, ao longo dos anos. Mercê deste hábito, é mais suportável Para isso contribui a luz a jorros, que entra pelas janelas: dá-me conforto e boa disposição. Com ela, de facto, sinto-me bem e vivo melhor. Já escrevo e leio, utilizando o tempo e voando no espaço das minhas preferências. Os outros inquilinos mourejam, a seu modo.
O cunhado Martins lá está para os Jerónimos; a mana Agusta passou a ferro, e foi-se até lá, para dar uma ajuda; o Carlos Alberto luta com os livros, na cidade invicta, onde é universitário; o Isaías agarra-se com alma, na véspera dos Pontos; a Maria Regina faz a mesma coisa, para triunfar. É isto a vida, até que a morte nos acolha benigna e Deus carinhoso nos tome à sua guarda.
Após tanto revés, há-de ser grato habitar, no Céu, onde tudo é belo e nada nos falta de quanto desejamos! Compensação bem larga de tanto desaire, logração e tortura!

Lxª. – Belém 9-2-1982
Sorriso de Primavera
É cedo ainda, para falar de tal assunto, pois o início exacto da jovial estação vem cair somente a 21 de Março. Entretanto, mercê do clima, já hoje pressenti que a Primavera vem perto, ou pelo menos, que não dista muito. Fiquei alvoroçado. A rigor, não me convencia! Podia lá ser! Que foi o que eu vi?! Uma coisa bela, na mata de Monsanto: amendoeiras em flor! Que surpresa agradável! Brancas, puras e belas! Em pleno Inverno, de ano chuvoso, rejubila a alma e deleitam-se os olhos, ao surgir das flores! Não são de jardim nem mesmo de estufa!
Serão elas, de facto, amendoeiras autênticas? Podem não ser, mas isso não conta! O que importa, realmente sãs lindas flores que meus olhos, deliciados, contemplaram em êxtase! Que magia de encontro! Trago na alma o sortilégio da cor, o vaporoso da sua figura, o alvoroço da funda surpresa!
Cheguei a Belém e já tenho saudades, Queria voltar, saudando em Monsanto as graças e prodígios da Primavera! Quando será?! Oxalá não tarde, para que o meu peito, ansioso de encanto, amor e beleza, possa rejubilar e sentir-se jovem!
Vem até mim, gentil aparição, infundindo em meu seio ardor sem fim! Sexagenário embora, sob o teu amparo, ainda sinto arder o fogo da paixão. Reconheço agora que vibro a valer, quando tu me sorris.

Lxª. – Belém 10-2-1982
Como eu te vi
Não sei o teu nome. És pequenina – 4 anos, talvez, ou menos ainda! Achas-te, pois, na infância da vida, que promete ser longa e cheia de ventura. Os doces carinhos e beijos maternos, em que transluz amor sem igual, fazem de ti um ente invejável. Nunca eu te vira! Foi ontem, de manhã que enxerguei o teu rosto, no qual se espelhava enigma terrível.
Olhavas intrigada, confusa e pálida, ostentando nas faces mostras de pavor. Ias ao colo. Não me passaste despercebida. Ocorreu esta cena, em hora de amar gura. Os teus olhos brilhantes, mas espavoridos, os sinais de alvoroço, grande inquietação e alto desespero fixaram-me a ti! Desejava acarinhar-te, embora o não fizesse, mas segui-te de olhar e enchi-me de pena!
No meio de tudo, culpei a mãezinha, que é, certamente a grande e boa amiga de teus dias mortais. Levava-te ao colo, mas ela chorava. Ao pé de ti, mesmo juntinho, gemiam e choravam entes desditosos, ante a morte precoce de um ente amado. Por que te levaram à sala mortuária daquele hospital?! No meu coração, dirigi uma censura à tua mãezinha! Não pude suportar aquela funda angústia da tua alma inocente!
Tais situações não são para ti, que és ainda mimosa, inocente e pura! Irá sobejar a desgraça e infortúnio que a vida te reserva, num futuro incerto! Deus te guie sempre, assista e proteja!

Lxª. – Belém 11-2-1982
Quantas surpresas a vida não tem, desde que nascemos, até ao final! Algumas são gratas e deixam lembranças, que enlevam a alma. Outras, porém, Deus nos acuda! Só a lembrança nos põe inteiriçados! Geram calafrios, apoquentando a alma! A que hoje sucedeu pertence a este número.
De manhãzinha, pus-me a caminho, segundo o costume: Rua do Embaixador, Calçada da Ajuda, Praça de Albuquerque. Uma vez aqui, aproveito o eléctrico ou ainda o auto-carro, se chega primeiro. Tudo normal, sem previsões, de carácter negativo! Passo o Hospital e, um pouco adiante, o carro-laranja estaciona de vez.
Olhando então, noto grande bicha, melhor talvez, diversas bichas, pois eram automóveis, táxis e eléctricos, tudo parado! Vem a pergunta: que há para aí?! A gente não avança?! Consultam-se os relógios, olham de novo, mas nada se adianta! Soam depois vozes oprimidas: ”Ao Calvário, ninguém há que passe! Nem a pé nem de carro! A água atinge ao presente, 1 metro de altura!
Perante o sucedido, resolvemos sair, continuando a pé. Formigam as gentes, por todo o lugar! Um vaivém sem fim! Correm alguns, outros desistem! Este olha ao longe; aquele hesita. Prosseguir ainda? Recuar talvez? Assim estou eu, não sabendo afinal que hei-de fazer. Desejaria avançar, rumo ao Calvário, para tentar acaso o que é impossível: atravessar o enxurro! Entretanto, em Santo Amaro, resolvo outra coisa: enveredar, sem demora, pela Rua de Camões!

Lxª. – Belém 14-2-1982
Qual será melhor?!
Nem amo Ditaduras nem prezo o Fascismo. Detesto a repressão e odeio a tirania. Assim classifico Partido Único. Entretanto, para ver desolado o que observo em Portugal, é preferível um governo forte. Muita coisa vai mal: não são, pois, de bonança os mares que atravessamos. O povo português não está preparado nem jamais se prepara, no sentido profundo que encerra o termo – Democracia.
O temperamento e o atavismo, agravado com taras e vícios adquiridos, não criam ambiente, para viver-se em Democracia, ao menos total e sempre aberta. Há-de ser limitada. Precisamos um governo que realmente governe! Para tanto, impõe-se, desde já, rever em breve a Constituição.
Um povo católico não pode nem deve obedecer a normas de carácter suspeito. Tal processo envergonha a nação, por ele se encontrar ao serviço de estranhos. Não admito um Partido que não seja nacional! Que devemos aos de fora?! Já mandaram alimentos ou outro auxílio que não fosse mortífero?! Tolero sim um Partido, mas sempre nacional, ajudando com esforço a levantar o país e defender os humildes.
Não é com greves, a torto e a direito! Isso apenas avoluma os males existentes.

Lxª. – Belém 16-2-1982
Três dias apenas e cerra-se um lanço, que não é de parede, terreno ou muro, mas de tipo cronológico. Trata-se, afinal, do meu aniversário, em 19 do corrente mês, perfazendo-se, a rigor, 64 anos. Para outrem, nada representa, mas para mim, é algo importante.
Vem isto a propósito, mercê de várias causas, havendo uma, porém, que emerge e sobressai: foi o mero facto de uma leve crise, no coração. O dia ante-ontem levou-me a pensar! Uma noite em claro, sem lograr pôr olho! Se fora apenas isto! O caso, no entanto, reveste-se, ao que julgo, de enorme gravidade. O coração agia descontrolado, parecendo-me um órgão em pleno desespero. Ritmo ou compasso, medida e sossego? Tudo isso perdeu, naquela noite fatal! Arrepio-me todo, só de lembrá-lo!
Enquanto esse facto ocorria desusado, pensava eu e cismava fundo, crendo ser o fim. Não foi, na verdade, mas deixou aviso! O primeiro, a sério! Se caem 64, em 19 do mês corrente, juntarei 18 dias, para que eles se perfaçam. É que o músculo-motor inicia a tarefa, ao 18º dia. Na verdade, trabalhar sem descanso, ao longo de tantos anos, já é coisa de peso! Não devo estranhar que ele vá repousando!
Apesar de tudo, não deixo de inquietar-me! Será este, de facto, o género de morte que há-de vitimar-me? Um colapso cardíaco!? Deus é quem sabe! Esteja eu na graça do Senhor!

Lxª. – Belém 18-2-1982
Cábulas Escritas
Foi de manhã, no percurso do eléctrico, Alcântara-Belém. Eram duas estudantes, que orçariam, talvez, por 15 ou 16 anos. Em diálogo vivo, trocavam impressões, acerca de cábulas. Dizia a primeira, em ar de triunfo: ”Ai, tenho um jeitão, para fazer cábulas! Letra miudinha, quase imperceptível: é uma beleza! Chego aos Pontos, disfarço um tanto e logo zás! Aquilo é manteiga! Copio habilmente e passo o ano! Só que, às vezes, rio sem querer, da minha perícia!
Esvaziado o conteúdo, volve a colega: ” Eu cá não tenho jeito nem preciso de arranjá-lo!”
- Essa agora! Triunfar sem trabalho! Iludi r o professor! É uma vitória de que me orgulho!
- Não penso como tu e discordo frontalmente! Se não repara: usando eu cábulas, passaria por favor, o que era não vitória, mas derrota humilhante! Enganar os outros e a mim também. Nunca o farei! Quero passar, mas à custa de esforço e conhecimento da matéria programada. Nem iludo os outros nem o faço a mim!
Gostei da miúda! Afinal, ainda temos jovens que não são vigaristas, pois tomam a vida com esta seriedade! Desta maneira, ela irá longe, enquanto a primeira será, no porvir, mero verbo-de-encher, quando não parasita e indesejada.

Lxª. – Belém 19-2-1982
A roda fatal acaba, neste dia, a volta 64. É já considerável a folha de serviço, pois 64 anos representam um percurso de alcance notável Acaba o tempo mais válido, pois que, aos 65, já fico aposentado! Resta mais um ano! O cansaço da roda tem implicações na vida pessoal. Tudo vai falhando: vista, ouvido, cabelo, energia física, os movimentos, flexibilidade, memória, agilidade, etc. Lembra isto, na verdade, que o fim se aproxima.
Tivesse eu realizado uma obra importante, nada me ensombrava! Tenha por mim o Senhor do Universo! Que me rala a mim! Ainda que tudo perca, fico na abundância! Quem O tem por si é rico e poderoso! Por estas razões, dou graças ao Céu! Conservou-me a vida, sem eu o merecer; amparou-me sempre; solicitou, não raro, a minha adesão; nunca se indispôs, quando eu me afastava; nada me negou, na ordem natural e sobrenatural. Sinto-me confuso, cheio de vergonha e humilhação, ante o meu agir!
Graças infindas venho dar-vos hoje, Senhor meu Deus, por serdes tão bom! Fazei, de ora avante que toda a minha acção não tenha outro fim que render-Vos glória, amor e gratidão! Abençoai-me, Pai do Céu e tomai para Vós todo o meu ser!
Quando soar a minha última hora, estai a meu lado, para assim rematar uma vida trabalhosa, que se apague e extinga, sob o Vosso olhar!