terça-feira, 5 de junho de 2012

M 43 - 1962? a 1964? - PAPÉIS DE BETO 1ª parte

AS MINHAS MEMÓRIAS 43

(1962? a 1964?)

SOMBRAS DO MEIO-DIA

Prefácio - Caminho Errado

O afecto estreme, que Beto me dedicava, levou-o, certo dia, a confiar-me, de vez, os seus papéis íntimos, de tema literário e sentimental. Como bom amigo, aceitei-os para ler e, ao mesmo tempo, guardar cauteloso. Não queria, já se vê, que ficasse deslustrado seu nome e acções. Passaram alguns anos. Após alterações bastante anódinas, que apenas atingiram a forma exterior, respeitando, no máximo, o seu conteúdo, resolvi publicar este grito de alma, que se afigura protesto, assaz veemente contra a violência, não havendo agir que desdoure o seu nome.

Conheci o Beto ainda em rapaz, quando ele idealizava um mundo sem nódoa, julgando na sua que tudo era bom, sincero e amável. Fazia dos homens alto conceito, medindo-os a todos pelas aparências. Por estas razões, cria-se fadado para intentar algo útil, em apoio generoso do viver humano.

Procedente de uma aldeia, bloqueada e solitária, trazia na alma a flor da candura, dando a impressão de que a falta original o não tinha atingido. Pelo que me toca, chegava, por vezes, a ter emulação, comparando o meu agir com o seu proceder. Efectivamente, era, na verdade, ouro sem mescla. Carácter impoluto, alma generosa e nobre coração, a todos amava, tornando-se querido.

Figurava, a rigor, a superfície tranquila de extenso lago, cujas águas mansas jamais se encrespassem. Adormecimento de ruins paixões, que não tinha explodido? Heroísmo sem par, que se oferecia generosamente, para ser farol, num mundo em treva? Fruto modelado, imaturo e temporão que gerava esperanças, não deixando entrever o que depois se aclarou?

Fosse como fosse, Beto era amado, querido, apreciado. O seu temperamento sanguíneo-nervoso tornava-o de facto sumamente afectuoso. Na verdade, os assomos controlados, que os nervos originam, passavam despercebidos a quem olhasse de fora. Salientava-se apenas o aspecto sanguíneo, que faz as pessoas bastante simpáticas. Sentimentalismo, afectividade, gosto da arte, paixão do amor, generosidade e alma ardente era um pouco do muito que exornava o bom amigo.

Uma vez em presença, orgulhavam-se todos, por haver encontrado tão bela criatura. Vivia para os outros, ignorando-se a tal ponto, que o diriam alheado, se não excêntrico. Numa época de egoísmo, fazia-se notório, sendo por isso apontado a dedo. A vida, porém, é que não ia ser o que ele imaginava! O mundo real para que, em tempos, fora preparado, não existia! Deparou-se-lhe outra coisa, muitíssimo diferente!

Apercebendo-se disso, por pouco não chorou! Afinal de contas, o que via ou ouvia, enxergava ou discutia, distava enormemente de quanto sonhara e de tudo o mais que lhe haviam dito. Uma vez colhido em tal embaraço, fica suspenso, entre o céu e a terra! Uma decepção em extremo dolorosa! Podia lá ser! Não era assim o que tinha aprendido! Na realidade, tudo era diferente!

Como repensar ou dar-se a emendas?! Já não era tempo! Situação delicada! Recuar não podia! Adaptar-se à realidade? Impossível também! Via claramente não ser indicado, para a missão proposta. Nada lhe dizia! Perdia o gosto. Agia sem motivo, dando-se a trabalhos que até desamava!

Caminho errado! Andara de boa fé, deixando-se levar e ser esclarecido. Actuava, de facto, passivamente! Fora apenas receptivo, julgando-se fadado para quanto lhe propunham.

Angústia no Peito

Não lhe tinham dito que devia obedecer?! Que a vontade celeste é que era de respeitar e jamais a sua?! Deste modo se norteara, havendo por divino, ideal e indiscutível o que vinha dos homens. Nunca julgara que estes se enganassem, quando lhe diziam, com grande entono: Beto! Sempre em frente! Jamais recuar ou dar as costas! Os cobardes é que fazem assim! Chama-te Deus a um alto ideal. Se fores traidor, olhando para trás, ficas desde logo como réu de morte! Espera-te o inferno, onde mil diabos actuam com ardor! Sê puro como Anjo! Não entres em contacto, por modo nenhum, com agentes do mal!

Ele ouvia, guardava, meditava, em seguida. Sem privar no exterior, idealizou consigo o que não existia. Por isso, foi grande o salto e amarga a dor! Subira, subira a tão alto cume, que seria mortal a queda lastimosa!

Andaria então pelos 35 anos. O demónio negro do meio-dia estava surgindo, para o revelar como ele era, de facto: um ser mortal, afeiçoado a martelo, sem outra directiva que não fosse a dos outros, matraqueando sempre, repetindo o mesmo: O caminho do Céu é apenas um, querido Beto!

Ele, no entanto, embora tardiamente, descria já de quanto lhe diziam. Via, com efeito, diversos caminhos, todos conducentes ao mesmo fim: Deus-Providência! Não sentia gosto nem alegria. O que ele trilhava era falseado. Invadido então por funda tristeza, começa a devanear. Precisa carinhos, aprecia as rosas, aspira a conforto, deseja um lar seu. Mas esse objectivo estava impedido! A sociedade pusera seu veto, que era de ferro!

Assim amarrado, vai-se arrastando, sem viver a vida. Aparentemente, é um homem insensível, embora em seu peito deflagrem incêndios.

Quer realizar-se, mas tudo se opõe a seus novos ideais, que afinal, são autênticos! Brotam-lhe da alma: quere-os viver. Toma-os como seus! Ninguém lho dissera, mas não era preciso! Ele bem sabia! Desdar o nó como? Se era para sempre! Tratava-se ali de grande nó cego!

Se tentasse fazê-lo, seria incriminado, apontando-o logo como vil traidor! Um Judas moderno! Homem duro, volúvel e sem carácter! Oh que maçada! Uns e outros, já dentro, já fora não podiam entender as suas atitudes! Grande seca! Onde é que estavam os direitos do homem?! Como a vida corria, era na verdade, um ser racional, acabado e livre?! A quem atender? A si mesmo? Aos outros homens? Podiam estes fazê-lo feliz, impedindo a frustração e dando-lhe gosto daquilo que fazia?!

Como estavam longe de tal objectivo! Apenas o culpavam, olhando-o meramente como renegado! Apoio afectivo, compreensão nunca ele vira! Uma palavra de estímulo, um sorriso afável, um volver de olhos, que denunciasse amizade, isso era um sonho! Vendo-se, pois, em mísero estado sem algo de incentivo a incutir-lhe alento, começa de escrever, fazendo-o com verdade, sentimento e paixão!

Não tenta encobrir ou então ludibriar! Só a verdade, a triste verdade, que o traz acabrunhado e já submerso, por haver de ocultá-la! É seu desejo gritá-la forte ao mundo inteiro. No entanto, as conveniências sociais, os falsos amigos, a dureza dos homens e a sua incompreensão atam-lhe as mãos, impedindo-o assim de tomar resoluções que logo extravasem .

Descarrega, pois, em cima do papel, onde lança os gritos que lhe saem do peito. Eles aí vão como os deixou exarados, no peito em angústia.

Gritos de Alma

Não sendo numerosas as páginas escritas, são já suficientes, para delas tirarmos conclusões acertadas. Estas emergem, de facto, com tenacidade, clareza e virulência. Deixam-nos presente a própria realidade, fugindo por sistema, a qualquer artifício, disfarce ou engodo. Verdade nua e crua, registada em seus Diários, que sempre o aceitaram como ele é, realmente!

Não houve adaptações, poeira lançada, fingimento ou fuga. Recebamo-lo, pois, tal qual se apresenta! Nessa data remota, era ele, sem dúvida, um jovem esperançoso, prometedor e assaz completo. Com bastante equilíbrio e nobres faculdades, para logo triunfar, sentiu-se manietado, não podendo expandir-se como era seu desejo, e a vida lho pedia.

Um caminho errado? Quase certo! Contudo, a culpa de tudo não lhe cabia! A outrem inculpava, mas a pura verdade é que ele sofria, de maneira horrível. A quem exporia a situação melindrosa, que já o tolhia, de pés e mãos?! Não havendo solução!... Era ao princípio dos anos 40. Prisioneiro de costumes e leis contestáveis, feitas pelos homens, que tantas vezes são mais exigentes que o próprio Deus, viu-se imergir no lago do abandono, onde a sua alma, generosa e crente se banhava amiúde em ondas de agonia.

Desesperado e só, que podia fazer?! Quem viria então compreendê-lo?! Apenas Deus! Os homens são duros, incapazes e fortes, contra o seu próximo, quando ele é pobre, infeliz e só! Debate-se, pois, em ondas insofridas, ocultando-se à vista de quem o espreita. É um morto que se arrasta, um verme da Terra, um vencido da vida, que chama por ele próprio.

No seu interior há vozes clamorosas, que demandam resposta, um mundo colorido vivo atraente, que lhe fala, encantando. Gostaria de realizar-se, a contento seu: não daquele modo que lhe haviam sugerido e quase imposto. Já durante os estudos, não andava o jovem bem contrariado? Abandonar a aldeia, que lhe sorria meiga, chegando a entontecê-lo, era sempre um castigo! Apesar de tudo, lá ia avançando, para não desgostar nem sequer indispor.

Beto infeliz, por que não reagiste, logo de princípio, seguindo pela via que o peito ditava? As barreiras que se erguiam, ante planos teus, devias calcá-las e passar à frente! Deus do Céu a ninguém violenta: criou o homem livre e assim o conserva, respeita e mantém. Por que não derrubaste esses muros infamantes, que mãos de outros homens ergueram contra ti?! Que podiam, afinal, sobre a tua liberdade, se Deus ta doou?! Erraste, por certo!

Ouvir é bom, o conselho prudente, medi-lo e pesá-lo, mas não se escravizar, de maneira tal, que só ele permaneça! Melhor que ninguém sabemos todos nós o que lavra em nosso peito. Os outros ignoram-no. Cada um, por sua vez, é que há-de estudar a sua inclinação: não a dos outros!

Pobre infeliz! Na tua solidão, esgotaste a vida, o talento e a força! Para quê?! Eras piedoso, bom, crente e são, não obstante o mundo vil, que às vezes te censurava! Mas ele não sabia nem podia compreender-te! O que deixaste escrito e a mim confiaste, por mão de Albano, revela, sem dúvida, o teu ideal - o que podia realmente fazer-te feliz! A tua ansiedade, a aspiração veemente de toda a hora! O sonho tão amado, um lar venturoso! Um cantinho especial, neste mundo reles, onde fosses adorado, compreendido e até apoiado! Os teus Diários falam bem alto a esse respeito! Barraram-te o caminho, foste sempre incompreendido, se não recalcado por uns por outros!

PAPÉIS DE BETO

Impaciente já, fixava nervoso o pequeno mostrador do relógio-cronómetro, cujos ponteiros pareciam imóveis. Algo desatinado, ponho-o logo rente ao ouvido, procurando o contacto, na ânsia fagueira de sondar o maquinismo. Olho uma vez mais, agito e sacudo-o, chegando uma vez a atirar com ele, para longe de mim. Em alternativas, volvo breve os olhos, para um sítio dilecto e, seguidamente, para o ponteiro que marca as horas, o qual figurava imobilidade.

Aproximavam-se as 11. Hora fatal! Do rosário longo das minhas ilusões, caíram por terra as contas mais belas! Grande agitação me percorreu o peito! Quantos suspiros irromperam então de meus lábios trementes! Mas ai de mim! Tudo inútil! Quando imaginava coisas tão lindas e atraentes, caí miserável, estatelado no chão!

Deixaram-me só! Suspirei desejoso, por essa hora fatal, e eis que, ao chegar, me vem ao encontro, sem detenção, apenas para rir e zombarem de mim! Queria ser amparado, no deserto da vida, mas não acho ninguém, que me tome a seu cargo! Contar com alguém? Para quê?! Era mais dolorosa a minha logração!

Vale a pena?! Como sou infeliz! Vivo sozinho! Jamais tive alguém que ficasse a meu lado, segundo cuidava! Luta, minha alma, contra os espinhos da cruel adversidade, tu que um dia pensaste em criar um mundo belo, à volta de ti! Convence-te, realmente, de que zombam de ti e nada fazem que não seja, de facto, para ludíbrio!

Que pensavas, pateta, enxergar em seus olhos, maus e traiçoeiros?! Que é que antevias, nas cores deslumbrantes duns lábios de carmim?! Que julgavas descobrir, em faces marcadas com as tintas da aurora? A matéria, as cores e a tinta poderiam pertencer-te. Não assim o espírito e o próprio coração de quem tu amas!

Cerra, pois, as janelas da alma, chora inconsolável a dor que te prostra e não contes jamais que alguém se ofereça, para dizer-te ao ouvido que há, neste mundo, vislumbres do outro. Se não estás saciado, lança-te de chofre, na voragem infernal que te vai consumindo; grita e vocifera, com toda a energia, iludindo-te ainda uma vez mais, para que a tua alma fique retalhada e já sem esperança. E agora, depois de verteres amargo pranto, põe sobre ti o luto amarfanhante da noite infinita, que já te apavora, a clamar decidido, incrédulo e firme: para mim, solitário não há felicidade.

UM DESABAFO

Só hoje te escrevo, porque, na verdade, não foi possível fazê-lo antes. A minha cabeça anda arrasada, não me permitindo cumprir deveres, cuja dilação não tem desculpa. A tua amizade saberá desculpar-me, embora de facto, eu não mereça. Ultimamente, a vida porfiosa tem sido madrasta para o teu amigo.

Calcula tu que só estou bem, quando sozinho, para chorar, à minha vontade. Não sinto prazer de viver neste mundo que me aborrece. Anteontem já, viajei por largo, aparentando certa alegria para não dar azo a graves censuras ou molestos reparos, mas a minha alma vogava no escuro, como sendo noite. Riam, folgando, para não dar trégua à viva alegria: só eu ruminava a dor amargurante, que me tem dilacerado, há já duas semanas.

Imagina tu que lamentos sufocados! Que palavras e frases entrecortadas! Quantos ais proferidos, sem retumbância, num ponto querido, pelo qual eu sofro! Vinguei-me em chorar! Mereceria tal sorte este pobre amigo?! Não sei! O que sei, realmente é não haver ninguém, infeliz como eu! Que motivos daria, para assim me tratarem?! Amar sem retorno, amar a fundo e ser desprezado, ofendido e vexado, no que tenho de mais belo, no meu coração! Há oito dias, quebrou seus hábitos a fada amiga.

Por que me prendia, se era para isto que andava actuando?! Por que não declarava, antes de ferir-me, que eu, a rigor, para nada servia?! Alguma vez o disse para alguém?! Agora, impiedosa, atira-me para a desgraça, como sucede, em amplo castigo, a quem faz a loucura de amar sem medida! Enfartou-se de mim, ao ver-me seguro! Como sofro, à data, meu bom amigo!

Não contente com isso, entrega-se a outrem, como se fora ingénua criança! Poderei suportar esta grande afronta?! Excedi-me na fé, depositada em quem amo, ainda agora, mais do que nunca! Pendurada confiante no braço dum estranho! Que horror! Que falta de senso e consideração! Quanto sofri, nessa hora amarga! Era segunda-feira, dia aziago, em que esperava ansioso a justificação para a sua atitude, no dia anterior e, ao mesmo tempo, ampla desforra. Mas nada sucedeu, favorável a mim!

Bem ao contrário, cravou-me no peito o acúleo acerado, que penetra o seio, destruindo a existência! Nunca perguntou por qual das razões ando fora de mim. Haverá maior prova de que existo no vácuo e que tudo era vão?! Meu Deus! Não consigo já prender-me à vida, que é tão cruel! Para que serve andar neste mundo, arrastado com violência, em todos os sentidos, pelo mais verdugo de todos os sentimentos?!

Quando esperava achar alívio certo num rosto meiguinho, que prezo e adoro, então precisamente é que ele se voltou contra a minha pessoa, numa atitude agressiva, de veras minaz, como repreendendo severamente, enquanto dizia ser algo pueril e até despicienda a minha atitude! Oh a incompreensão das pobres criaturas! Importa que eu sofra ou precise de alento? Interessa que eu mendigue uma côdea de pão, a meio de canseirosa e árdua jornada?! É duro o trilho! Nada obsta!

Caminharei vergado ao peso desta cruz, alongando amiúde o olhar angustiado para me enganar, ainda mais uma vez. Mas quem sabe?! Terá ela pena de quem sofre tanto, a ponto de soçobrar?! Oh! Já me não pertence. Nada já existe que a prenda a mim! Não me procura! Não me olha tão pouco! Não me fala nem me ajuda; não me alegra nem me beija; não me sorri meigamente nem me abraça generosa, numa entrega voluntária; não sofre, porque eu sofro nem teme por que temo; não chora pelo amado; ri e salta, desdenha e mofa!

Aqui está, pois, o sudário horripilante, que é tal viver! Mas isto não é tudo! Se fora assim, não sentiria o meu peito ansioso e já insofrido! Do meu coração erguem-se chamas, que pronto me queimam e, se não me detenho, este incêndio vivo terá decerto graves sequelas. Estremece fundo todo o meu ser, como se, na verdade, choque forte e eléctrico actuasse em mim. Agito-me todo, com ardência arrepiante. Todo sou, nesta hora, convulsão e nervosismo: “paz dourada” é para mim expressão sem vida. Foi-me cerceado o belo sustento que mantinha o coração e levado talvez a quem era mais digno.

Se morro de fome, se não posso abster-me dessa nutrição?! Será de facto mister que eu desapareça, para que ela se entregue, sem o mísero pudor, a quem me faz sombra?! Serei eu, realmente, barreira intransponível, para levar a cabo seu plano dourado?! Não o creio assim, pois o que fez não tentou escondê-lo. Até me parece que foi propositado aquele acto amarfanhante e assaz leviano! Para um homem qualquer não existe, ao que julgo, afronta igual!

O amor é ciumento e, se o não for, não é verdadeiro, forte, inamovível! Ora, o ciúme leva por força, ao exclusivismo. Trava-se uma luta de vida ou de morte! Quem morrerá, ficando estatelado na poeira do caminho?! Eu que já não vivo; eu, que sou na verdade o ludíbrio grato de toda a gente; eu, que me vejo agora reduzido à impotência; eu, que levo em mim o ferrete da ignomínia, pelo que se erguem, desde logo, vozes que apupam: “Aquele é um bandalho!”

Avalia, pois, o meu estado de espírito.

Imensamente grato, pela tua amizade.

Beto

************

A vinte e três de Janeiro,
Minh’alma sofre dorida:
Este mundo é traiçoeiro
E assim não gosto da vida.

Vivi sonhando a julgar
Ser feliz como ninguém.
Por causa de me enganar,
É que eu sofro também.

Tudo havia confiado
A dois olhos deslumbrantes
Mas agora, desprezado,
São as horas enervantes!

Seu olhar não condizia
C’o sentir do coração:
Morreu já o claro dia
Para vir a cerração.

Os carinhos que me dava
Eram sempre fantasia,
Mas eu, cego, acreditava,
No que a vista oferecia.

Foi-se já o incitamento
Que esta alma extasiava,
Abeirando-se o tormento
Que de longe me espreitava.

Vivi alegre, vivi,
Neste mundo de amargura:
Hoje, não vivo, morri
E este mal é já sem cura!

Hei-de ser forte na dor,
Resistindo a meu destino:
Matarei o grande amor,
Pelo qual eu desatino.

Enfadaram-se de mim?!
É porque eu aborrecia.
Ouvi não, em vez de sim:
Começou minha agonia.

Era parvo, acreditando
Que ela fosse toda minha:
Pois agora estou chorando
A existência que amesquinha!

Vi-a hoje mendigando
O que em mim não encontrava,
Regalada, passeando,
Junto de outro se encostava.

Hora horrível foi aquela
Em que a vi, de braço dado,
Com alguém que lá, por ela,
Deve ser bem estimado.

Para mim, às escondidas,
E com pressa de fugir,
Separando duas vidas,
Que o Destino quis unir!

Se não veio ontem, cá,
E deixa o tempo avançar,
Em seu peito amor não há,
Que outrem folga, em meu lugar.

Foi tão longa esta semana,
Que dela me separou!
Mas como a gente se engana!
E como tudo falhou!

Não veio, fiquei sozinho,
A sofrer na solidão:
Escasseia-me o carinho,
Que alegrava o coração!

Agora sofro orgulhoso,
Sem já ter consolação!
Jamais eu serei ditoso…
Não importa isso, não!

Quem não vem, não ama já,
Quem não fala, já morreu:
Seu amor a outro dá,
Ignorando o que era meu.

Que reparta os seus carinhos
Por quem ela bem quiser.
A outrem dê seus beijinhos:
Não coro, se o souber.

Eu, sombra negra que passa,
Por um vergel florescente!
Flor gentil, foge à desgraça,
Folga, ri, vive contente!

************

Esperei, até agora,
Que viesses ter comigo:
Não quis vir, passou da hora,
E o que penso já não digo.

Aguardei com ansiedade
Que viesses perguntar:
Era assim a caridade,
Havendo nela que dar.

Abeirando-se de mim,
Outra coisa procurava:
Fiquei sabendo, por fim,
Que seu amor me negava.

Não existem já carinhos
Para este desgraçado:
Vou trilhando maus caminhos,
Sob a cruz do negro fado.

Hoje, riu e até mofou
De quem sofre em aflição!
Ela assim bem demonstrou
Que já não tem afeição.

Como tenho suspirado
Que ela venha, carinhosa,
Trazer um beijo inflamado
À minh’alma sequiosa!

Amanhã virá, espero,
Pedir perdão a seu Bem:
Sendo assim, eu já não quero
Seja alvo, por desdém.

Desdenhar? Só aparência!
Minha fuga é simulada,
Mas real a enorme ardência,
Nesta alma angustiada.

Indif’rença não existe,
Como pensa para si:
Meu Amor, eu ando triste,
Porque alegre te não vi!

Amanhã, faz 15 dias
Que já levei, a chorar:
Só vivi com arrelias
Que me fazem torturar!

Quando vens, ó meu Amor,
Para eu poder vingar
Esta grande, imensa dor,
Impossível de ocultar?!

Vem depressa, vem, querida,
Abraçar o teu amado;
Vem trazer-lhe aquela vida,
Sem a qual é desgraçado!

Agora, estou convencido
Que é já nulo o meu valor:
Vivo só e aborrecido!
Faltava mais esta dor!

A tudo renunciei,
Para amar já, sem medida,
Mas, em troca, só ganhei
Um rancor que tira a vida.

Já não gosto de viver
Esta vida de amargura:
Tudo grita p’ra dizer
Que o meu mal não tem já cura.

P’ra onde irei, oh meu Deus,
Sem que veja o meu Amor?!
Que prazeres, fora os seus,
A consolar minha dor?!

Oh! Eu quero loucamente
Àquela que me faz mal:
O meu peito é fogo ardente
Que não apago, afinal!

Eu não quero a mais ninguém!
Eu odeio o triste fado,
Quando intenta pôr, meu Bem,
Triste, só e desgraçado!

Como é grande o meu sofrer,
Neste dia sem igual!
Meu amor não me vem ver,
Nem lhe lembra coisa tal!

Bastaria uma visita,
Um olhar enternecido,
Uma doce palavrita,
Um sorriso indefinido!

Mas oh! Não sou odiado,
Porque eu ontem, bem no vi.
Ficarei esperançado,
Até que ela venha aqui!

A maneira de falar,
Nem leve sombra deixou
De que há tudo a esperar
De quem nunca se afastou!

Erraria?! O que dirão
Do meu ditoso passado,
Em que dera o coração
Que já me tinham roubado?!

Enganei-me, com certeza,
A julgar pelo que vi,
Mas não afrouxa a firmeza,
Que em meu peito já senti.

Quererá, talvez, matar
Esta alma sofredora?!
Seja embora, eu hei-de amar
A minha grande opressora!

Que me importa o que dirão
Certas línguas venenosas,
Se há no peito uma paixão
Que transforma tudo em rosas?

Este grande sofrimento
Quero amá-lo, sim, também:
Há-de vir-me grande alento,
P’ra suportar o desdém.

***************

Os teus olhos são cruéis e matadores,
Quando poisam sobre os meus, em aflição,
Revolvendo, cá no peito, meus ardores,
Mais excitam este fogo de paixão.

****************

Horrível tarde
A deste dia:
Quem eu amava
Não me queria.


Oh! Quanto esp’rei,
Em aflição;
E que encontrou
Meu coração?!

Pedi, pedi,
P’ra ontem já:
Esp’rei em vão,
E não foi lá!

Viver assim,
Não posso não:
Meu peito é fogo,
Já sem travão!

Amar assim
É bem pesado:
Arder em chama,
Ser desprezado!

Desinteresse:
Nada mais vejo,
E este peito
Arde em desejo!

Acompanhou
Com quem lhe agrada…
E o pobrezinho
Ficou sem nada!

Já me não beija
Nem já me abraça:
Toca-me o nada,
Veio a desgraça.

Tenho chorado
Mas sempre em vão
E neste peito
Há solidão.

Sabe que sofro
Em agonia
E que, p’ra mim,
Já não há dia.

E não se importa,
Não me diz nada:
Minh’alma sofre
Desesperada.

Ouviu alguém
Que a dominou;
Assim morri:
Já nada sou!

É só desprezo
O que me oferta.
Feliz, aquele
Que a tem já certa.

Amar assim,
Sem ser amado!
Oh, grande inferno
P’rò desgraçado!

Estou sozinho:
Ninguém é meu.
Fujo de todas.
Escarneceu!

Eu já morri
P’rà minha amada,
Por isso, choro
Esta maçada!

Tudo feliz,
Ao pé de mim!
Só eu, tão bom,
É que ando assim!

Eu quero provas,
Certos sinais…
Assim, é pouco,
Exijo mais!

Então, resolve
A tua vida
E vem curar
A minha f’rida!

Estou esp’rando,
Oh meu Amor:
Vivo sozinho
E sem calor!

Se tu me deixas,
Quero morrer!
Oh! Não o faças,
Para viver!

Se tu me faltas,
Que mais me resta?
Ai pobrezinho,
Acaba a festa!

Se tu morreres,
Eu vou também!
Não quero estar
Cá, sem ninguém!

Se tu fugires,
Eu chorarei.
Só quero alívio
De quem eu sei.

Se alguém me beija,
Não gostarei:
Só quero a ti,
Porque te amei!

Se alguém me abraça,
Que farei eu?
Não sei, não sei.
Sou todo teu!

Sou procurado,
Com insistência
Mas eu não quero
Abrir falência.

Oh, fada amiga,
Vem-me beijar,
Unir-te aos lábios
E assim ficar!

Só quero a ti
E a mais ninguém:
P’ra tudo vai
O meu desdém.

É grande dita
Um beijo teu…
E eu quero muitos
P’ra ver o Céu!

Ouço cantar
Os passarinhos:
Vão arranjando
Seus lindos ninhos.

É, na Tapada,
Este cantar,
Com lindo sol
P’ra alumiar!

Só eu não tenho
Calor nem luz,
Pois que não vi
Quem me seduz!

As aves cantam,
Sempre à porfia:
Só eu perdi
Minha alegria!

Falam de amores,
Em seus gorjeios:
E como vivem
Seus devaneios!

Só, para mim,
Escuridão,
No mar, sem fim,
Do coração!

Reina alegria,
Na Natureza,
Mas para mim,
Só há tristeza!

Os beijos teus
É que dão vida!
Oh, vem curar
A minha ferida!

Tu não me escreves
Nem dizes nada:
Eu sofro tanto!
Oh que maçada!

Em teus papéis,
Fala de amor,
P’ra aliviares
A minha dor!

Eu bem mereço
Tua afeição,
Pois que não vejo,
Na escuridão!

O teu sorrir
É suavidade.
O teu olhar
Só claridade.

É só em ti
O meu pensar:
E vivo aqui
Só p’ra te amar!

Sou tão sozinho
Em minha vida!
Vem para mim,
Vem, ó querida!

Se tu vieres
Oh, então, sim!
Reentrarei
No meu jardim.

Quero viver
Só p’ra te amar:
Quero morrer,
Se o não lograr.

Em ti pensar
É meu viver:
A ti amar,
Até morrer!

Só a beijar-te
Eu estou bem,
Só a abraçar-te
E a mais ninguém!

***************

Línguas más e invejosas
Tentearam separar
Duas vidas carinhosas
Que nasceram para amar.

Separá-las não puderam,
Que o Destino as bem uniu:
Amor forte, amor igual,
Nunca a Terra assim o viu!

Venha o mundo traiçoeiro
Flagelar meu coração:
Eu não deixo o meu Amor;
Não me importa o que dirão.

Eu nasci, para te amar:
Minha sina está marcada;
Em vão, lutam coca-bichos
Espreitando a minha amada.

E se Lobo fedorento,
Com olhar arregalado,
Tem barriga volumosa
Como touro empertigado,

Que ele fosse, não me importa,
Por nojentos tremedais:
Já vi porcos a fossar…
Como ele há muitos mais.

Língua má, tão acerada,
Em estrume vá metê-la,
Pois ali descansará,
Que é o lugar mais próprio dela.

Sua boca dilatada
Fique aberta, no porvir,
P’ra que saiba a Humanidade
Quanto é porca no cuspir.

Vou fazer dali goteira
De nojenta porcaria,
Que o mundo inteiro, ao passar,
Sempre a veja e logo ria.

E, à cabeça excomungada
Arranjarei um labor,
Que fique bem a matar
Ao mais reles estupor!

Chamarei o carpinteiro
Fazendo logo um pedido:
Longo cabo p’ra varrer,
Com seu cabelo comprido.

Para as mãos, destinarei
Um mister apropriado:
Revolver, numa retrete,
Quanto seja despejado.

Mas, às pernas embuchadas
Que missão lhes hei-de dar?
P’ra suporte de espantalho,
Ficarão logo a matar.

…………………………

Minha bela, meu Amor,
Minha vida, meu alento,
Meu amparo na amargura,
Meu alívio no tormento!

Anda, lança-te em meus braços,
Acarinha o teu Amor.
Não me deixes, ó querida,
Não me largues, por favor!

Este peito que se inflama
Sofre muito de pensar
Que não pode sempre, sempre,
Teu lindo rosto alcançar!

Eu bem sei que tu és minha,
Pois me deste já teu ser.
É por isso que te quero,
Hoje e sempre, até morrer!

Quanto sofro de saudade,
Por teus olhos sonhadores,
Que eu não vejo, há tanto já,
Neste vale de amargores!

A chorar, é minha vida:
Esqueci minha alegria.
Ando triste, amargurado,
Por não ver, quem eu queria!

Passam anos, passam dias,
Numa esperança fagueira
De beijar teu rosto amado,
Que me alegra a vida inteira!

Vão passando uns oito dias,
Que não procuras alguém
Que te quer já tanto, tanto,
Como não quer a ninguém.

Ouvirás quem nos quer mal,
Procurando-te afastar?!
Não o creio, meu Amor!
Não me queres tu matar?!

Minha dor não é devida
A tais línguas maldizentes.
Não te vendo, logo sofro
Estes males inclementes.

Tudo o mais são bagatelas!
Nada vale para mim!
Sinto nojo e não me curvo:
Eu respondo sempre assim!

Mas viver, sem te beijar,
Apertando ao coração,
Oh não quero, nem eu posso
Aguentar a maldição!

Não te importem coca-bichos
Nem tão pouco fedorentos.
Nosso amor há-de vencê-los,
Sejam eles bem nojentos!

Quem se apressa a investigar,
Por que razão é que eu ando
Sem os olhos levantar,
Tristeza nela deixando?!

Sinto, confesso, alegria
P’ro sofrimento encarar:
A noite volve-se em dia,
C’ o brilho do seu olhar.

…………………………..

Quem é que vela por mim,
Minha vida analisando,
Para logo pôr seu fim
Aos males que estou penando?!

Quem me busca, angustiada,
Para logo se informar,
Desta vida amargurada
Que porfia em me matar?!

Quem não sossega um momento,
Sem trazer consolação,
Quando é grande o sofrimento
Ou vivo na solidão?!

Quem se guarda, para mim,
Toda cheia de cuidado,
Procurando, sempre assim,
Evitar qualquer enfado?

Quem me busca, a toda a hora,
Sem ligar ao que dirão,
Por saber que geme e chora
Seu amor do coração?!

Quem assim é carinhosa,
Minhas faces afagando,
À maneira duma rosa,
Seu perfume irradiando?!

Não te afastes, ó querida:
Tua sombra quero ser.
Eu, sem ti, não tenho vida,
Preferindo, pois, morrer.

Não me deixes, minha vida,
Neste mundo traiçoeiro.
Vem curar minha ferida,
Que eu espero o dia inteiro.

Vem já meu corpo enlaçar
E cobrir-me de beijinhos,
Minhas faces afagar,
Com angélicos dedinhos.

Vem, querida, apressurada,
Pois é triste o meu viver:
Se não vejo a minha amada,
Antes quero então morrer!

NOITE ESCURA

Passei o dia a chorar,
De manhã, té à noitinha…
Nada me pode alegrar!
Ai! Que triste a vida minha!

Qualquer nada me apoquenta
E não gosto de falar!
Já não tenho o que me alenta.
Nada há p’ra, me alegrar!

O meu riso é aparente,
Só há nele afectação:
A minh’alma está doente,
Por amar uma paixão.

Quem eu quero, não me fala;
Quem não quero, vem falar.
Quando eu digo que se cala,
Desata logo a chorar!

Esta noite que passou,
Muito longa pareceu,
Por lembrar-me que chorou
Quem meu fogo reacendeu.

O que pesa mais na vida,
Que eu suporto, paciente,
É lembrar-me da ferida
Que originei, inclemente!

Aqui estou, para pedir,
Da minha falta, o perdão:
Hei-de chorar, no porvir,
Esta minha ingratidão.

Bem sei que nada mereço,
Embora sofra a valer.
Sou criminoso, conheço,
Mas não posso assim viver.

Não tendo pena de mim,
A mais ninguém vou pedir.
Quem pode dizer o sim
Está-me, agora, a ouvir.

Quem me inspira confiança,
Quem me traz consolação,
Quem origina bonança,
Neste pobre coração?!

Não sei, já, que é alegria,
Neste viver isolado,
Tão longe da companhia
Que assim me faz desgraçado!

Até quando viverei,
Nesta vida angustiada?!
Por ti sofro e sofrerei,
Porque és tu a minha amada.

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Sinto hoje mais fundo o tormento de existir. Tempo houve, decerto, em que a minha alma vivia em paz e grande sossego. Agora, porém, nada me alenta, invadindo-me o desejo de não ser criatura.

Impossível descrever ou tentar definir o meu estado de espírito. Nem eu sei bem por que modo se gerou este asco imenso por quanto me rodeia. Será exacto que nada me incita?! Dar-se-á o caso de eu haver morrido para toda a esperança?! Acontecerá então que me julgue, afinal, ao cabo da meta, sem enxergar novos horizontes?

Como entrei eu na senda lastimosa, em que agora me encontro?! Recordo, saudoso, o tempo agradável, em que suspirava que alguém chegasse, para o meu coração retomar a paz. Bastava uma presença, que tudo mudava como por encanto! Ainda alimento anseio de influência? Parece-me bem que noite perdurável envolveu na sua treva o meu peito chagado!

Em boa verdade, tudo na vida me foi adverso! Eventos e pessoas, coincidências várias e não sei que mais! Encontro-me só, lutando afanoso contra inimigos, assaz rancorosos sem armas adequadas ou bons amigos que permitam dominar esta grave situação. Pedir não o faço, suplicar é humilhante e denota fraqueza! Que me resta, pois?! Gemer e chorar, rojando-me qual verme, para servir de ludíbrio a quem passa a meu lado. Sou vaiado?! Sou alvo de apupos?! Afeiçoo-me logo como objecto de atenções para a mofa de todos!

Que importa lá?! Quem já perdeu tudo nada mais tem! Eu perdi tudo: fiquei sem esperança. Poderei reencontrá-la? Não me preocupa esse grave problema. O que me traz nervoso é ter que defrontar-me, não sei por quanto tempo, com obstáculos tremendos! Isto de viver não tem nenhum sabor, quando não se experimenta gosto de existir.

Há pontos luminosos que me prendem a atenção, provocando lágrimas: é uma velhinha, doce e amorosa que pensa a desoras, na minha pessoa, desejando ser ave, para vir, às ocultas, surpreender-me, curvado pela dor; um vulto amável, diluído na distância do Mar sem fim, agitando-se breve e agitando-me, por modo igual ao lembrar tempos gratos, em que ledas harmonias ressoavam, nas almas e que jamais podemos esquecer; uma figura de homem, que procura, a todo o custo, vencer a desgraça; uma sombra amada, cor do luto e da amargura, que volteia a toda a hora; outra sombra amorosa, que me lembra por igual os tempos da infância; um cortejo de amizades, que servem de pasto à minha alma sedenta, donde irrompem abrolhos, que dilaceram o rosto ou flores mimosas que perfumam a vida, afagando na desgraça. Será isto, afinal motivo suficiente, que ligue à existência? Talvez!

Eu, porém, ansiava por outro mundo mais belo, composto de encantos que figuro e não tenho. Queria à minha volta, o ruído constante de meigas crianças; desejava ardentemente escutar, em cada hora, a voz de alguém, que figurasse no rosto os traços do meu; almejava por achar, quando amargurado, uma presença amiga, toda a mim doada, para ajudar-me a vencer os trabalhos da existência. Mas, agora, que é o que noto? Que é o que vejo?! Que é o que circunda, nesta data sem alento?!

Pergunto diligente, mas não ouço resposta; interrogo, pergunto, mas não sou atendido; suplico ainda, mas já não comovo; suspiro, sim, mas não demovo; grito e brado, mas não perturbo; choro e não agito; sofro e não lucro; aflijo-me por vezes, mas não obtenho jamais um olhar de meiguice! Presta alguma coisa fazer a exposição do que sente a minha alma?! A única vantagem é tirar daí motivos, para agravar estas chagas, que doem fundo!

Tudo árido e sáfaro, à volta de mim! Tudo rocha inamovível e empedernida! Tudo eco vão, sem qualquer significado! Vazio sem limite, dentro do qual os gritos lancinantes da minha boca, em frémito, vão apagar-se e morrer por fim.

EXTRATO DO VOLUME IV DE: PAPÉIS DE BETO

É noite cerrada, em meu coração! Na hora da partida, encontro-me só! A minha alma angustiada, em tal ambiente, e o peito em martírio, são chaga viva! Quem me sorri, nesta hora amarga?! Que vejo eu, à minha volta?! Paredes insensíveis, duras e frias. Que ouço eu?! Ruídos agudos, lentos e arrastados, à maneira da vida, que se roja igualmente, por cima dum chão, coberto de abrolhos.

Vou deixar Portugal, meu pátrio ninho, que recebeu comovido as primeiras lágrimas, continuadas agora em tormentos sem fim. Fica tudo o que amo e a que tenho ligado o meu coração. Fica a alma em gemidos; o peito em soluços; a voz estrangulada, em ecos sem vida, entalada na garganta! Para maior desgraça, não tenho a quem revele a minha desventura!

DEUS CRIOU-NOS LIVRES

Que mal fiz eu a esta sociedade, para cercear-me quanto de fagueiro a vida contém?! Por que não a meu lado uns olhos inquietos, que vivessem a fundo meus sérios problemas e, por simpatia, reflectissem pronto, a ansiedade dos meus?! Não terei alguém que se lembre de mim, chamando-me à hora, para jantar, segundo o costume?! Belas despedidas! Meu Deus! Valho bem pouco! Se ao menos chamassem, para comer!

Nem se aperceberam da minha ausência! Se não fora a que está longe, desejaria morrer, pois não gosto da vida! Que me tem oferecido? Desilusões, angústia e sofrimento, lágrimas constantes! Que me promete? Cortejo igual, no longo porvir! Nem já espero que venham consolar-me! É tão agradável, na hora ingrata surgir quem diga: “Deita sobre mim parte do fardo! “ Alguém que nos limpe indiscretas lágrimas, que os olhos vertem, durante a amargura! Mas que noto eu?! Escuridão! Que fiz eu para tanto?! Só me dei inteiramente, razão pela qual devia ser retribuído. A vida, porém, não me sorri! Se é ingratidão, espinho cruel, que penetra fundo, no meu coração!

Mas, ainda assim, ó terra amiga, quero-te muito e deixo-te, afinal, com mágoa profunda. Fora de teu seio, é-me tudo espinhoso. Contigo em redor, ainda sou feliz, mesmo na dor! Falta aqui alguém, por quem vivo ainda e cuja ausência, grande que seja, infunde coragem e dá lenitivo. Esse alguém querido gerou-me sofrendo e continua bondosa a seguir-me na dor. Mas ela não está e os outros de fora esqueceram-me já.

TORMENTOS E ANGÚSTIAS DA SOLIDÃO

Quantas pessoas ficariam sem jantar? Atrevo-me a dizer que nenhuma, talvez, por terem a seu lado alguém que as acarinhe. Mereço isto?! É-me bem-feita, para castigo! Já devia ter juízo, porquanto a História é mestra da vida. Entretanto a paixão cega o juízo, enquanto, por seu lado, falha o raciocínio.

Que me resta agora? Sofrer em silêncio a tendência fatal de ser afectuoso. Deixar correr! O certo, porém, é que a minha cabeça está esvaziada e como aturdida! Tanto já pensei no meu porvir! Que será de mim, com céu enevoado, onde não brilham as cores feiticeiras do meu belo país?! Como absorverei esse ar já estranho, tão longe da Pátria?! Suportarei eu olhares indiscretos, que me hão-de vergastar como a exilado?

Para tudo, afinal, haveria coragem, se partisse crente a minha alma sincera. Assim, porém, com esta amargura, estampada no rosto, já desde ontem, à maneira dum enfermo, desenganado dos Médicos, ensaiarei meus passos, no exílio distante, aparentando energia que não tem fundamento. Vou sair do meu berço. Talvez seja melhor! Se pudesse esquecer! Começar vida nova seria o ideal!

Não ser prezado é, na verdade, grande tormento! Num ponto do Universo, talvez encontrasse alguma aceitação. Vivo nessa fé, mas não tenho ainda confirmação. Receio o corte que deve seguir os cálculos humanos. Tudo é efémero, no mundo que habito. Porquê então afeiçoar-me a outrem?! Não é medonha a hora cruel do atroz desengano?! O coração, porém, não tem razões e quer, à força, alimento excelente! Não lho fornecendo, tortura a existência e faz soçobrar.

AMOR ESTÁVEL COMO NÃO HÁ

Já tentei dar-lho, mais de uma vez, e foi um malogro! Afeição e carinho como os de mãe, não há neste mundo. É inigualável o teu coração, oh mãe da minha alma! Não te zangas jamais. Vives e sentes em alvoroço, pelo filho amado! Espreitas sempre, com olhar inquieto a minha chegada! Velas paciente até que eu adormeça. Receias, a valer, que tudo na vida me corra mal!

Sofres ainda, se eu, acaso, não for apreciado! Não queres, em troca, nenhuma recompensa! Almejas tão só por que eu seja feliz! Não reparas em ti e nas tuas carências ou comodidades! Quando tu sofres, é porque eu sofro! A tremer, fixas e estudas meu olhar conturbado, para leres aí o martírio sangrento da minha pobre alma!

A minha vida é a tua: por isso, a tua vida é a minha também. Voltarei a ver-te, querida mãe?!

DONDE VEIO A ESCRAVATURA E OUTRAS ANOMALIAS

Embuçado, geralmente, em vestes negras, vedes um homem de sorriso leve, que traz no peito o coração em ferida. É ele um produto, feito à pressão, elaborado à força, não tomando em conta as realidades sociais de alcance psicológico. Por meio de compressão e actos repetidos, habituou-se, desde sempre, a ter como bom o que é, por estrutura, bem desumano.

Aqueles que trabalharam neste sentido eram ingénuos; alguns deles puros fanáticos; outros ainda simples máquinas. Todos eles tramaram, pelo seu agir, a perdição de alguém. Acaso serão os homens obrigados a arrastar esta carga enorme, lançada aos ombros, na idade generosa, em que é fácil dizer sim a todo o sacrifício?! Serão constrangidos a afirmar, a toda a hora que não têm coração ou que, se o notam é pura ilusão?

Certos homens, por abuso enorme de autoridade, quiseram ultrapassar o próprio Deus, impondo um fardo, que reputo inaceitável. Verdade se diga que nem todos o alijaram, mas se alguns o preferiram deliberadamente, foi obra de sua escolha, sazonado produto de sua liberdade. Para a grande maioria, não vou acreditá-lo!

Quereis tirar ao vento a sua deslocação, havendo no ar pressões desiguais?! Quereis evitar que as ondas furiosas se lancem denodadas contra a falésia que lhes barra o caminho?! Figura isso, efectivamente, constranger os produtos de toda a erosão a deter-se no lugar, onde se realizou a desagregação?!

Que é o que intentais?! Dizei às correntes que suspendam a marcha, através do Oceano. Interrogadas, hão-de responder: “Não cabe em nós sujeição aos homens!” Pedi ao Sol que obscureça a face, a brilhar, lá no alto. Ouvir-lhe-eis logo estas palavras: ”O meu destino – iluminar e aquecer – não posso destrui-lo”.

Rogai ao Oceano que interrompa as marés! Objectará logo que sois patetas! Procurai alguma vez trazer ao de cima os peixes do fundo e eles, num pronto, vos escaparão, se é que, impedidos, não exalarão seu último suspiro.

Tentar o impossível!

QUEIXAS E LAMENTOS

Oito e trinta! Sou agora dominado por ideia acabrunhante! Não veio ter comigo, a saber exactamente o que havia acontecido! Foi um tormento o dia inteiro. O que mais afligia é que ela estava alegre, rindo e falando com estridor! Não merecia, assim julgo eu, tão aberto descaro! Se estava zangado, não era com ela! Nunca me zanguei, por tal razão! Triste, sim, mas não irritado! Ninguém, afinal, veio consolar-me! E sofro tanto!

Que outrem não viesse, pouco me importava, mas aquela boneca, para quem vivo, em que penso, a toda a hora, que não posso ver triste ou cheia de amargura! Como isto é duro! Foi injusta para mim! Sem obter a certeza, nada era exacto. Tinha ela asseverado que jamais faria que eu voltasse a chorar! Fora a 2 de Março! Lágrimas escaldantes me queimavam as faces, mas infelizmente não seria caso único! Ontem e hoje repetiu-se o mesmo.

Mereceria, pergunto, uma coisa destas?! Ontem, precisamente, estive meia hora olhando embevecido para o teu retrato, que beijei ternamente, uma e muitas vezes. Hoje, o tempo disponível, pela manhã, consagrei-o a matéria que agora te ocupa. Para quê?! Para ver-me abandonado?! Que fiz eu de mal?! Só bem tenho feito.

MINÚCIAS E SURPRESA

Costumavas olhar para certa janela, sempre que passavas, a caminho do jantar. Hoje, afinal, que mais precisava, nem um esboço chegaste a fazer! Aborreço, talvez, por muito querer?! Só vejo esta causa! Sentes prazer no meu sofrimento?! Nem mesmo assim te desejo mal, pois na verdade te quero e amo, ainda mais! No momento da angústia, surge por vezes a ideia da fuga. Como, porém, fugir de ti? Se eu tenho a vida ligada à tua?! Poderei dividir-me? Impossível!

Mas, se te aborreço, continuas a desprezar-me, cuspindo no meu rosto; passa por mim, indiferente sempre e galhofeira; olha desdenhosa ou então nem olhes sequer, porque eu não mereço! Foi assim que fizeste, injustamente! Corta a alma ao vivo, podes bem crê-lo! Entretanto, de que vale queixar-me, se tu não ligas e folgas até, com a minha dor?!

Se as coisas mudassem, que feliz eu seria! Como é que virá o dia 29? Um cortejo de lágrimas a acompanhar um cadáver?! Um montão de ruínas, em que outrem retoiça?! Uma gama ininterrupta de fundas palpitações, bastante angustiosas?! Um amplo cemitério, em que o mundo se transforma?! Ainda acaso virá para este infeliz uma hora ditosa, com céu de bonança?! Por mais que tentemos, não há meio eficaz, para afastar de vez a agulha magnética, do rumo imposto pela Natureza. Ela busca, por força, aquela direcção. Também no meu peito doudeja o coração, que figura tantas vezes a agulha magnética. Sente-se impelido, num rumo fatal! Venha quem vier, suceda o que suceder, nada o afasta dum ponto ideal.

É pequenino esse norte demandado, mas encerra tanta graça e relevo tamanho, que a pesar meu, não amo nem quero, não olho nem desejo, não sinto nem busco outro encanto, que seja diferente! Como eu deliro e estremeço de júbilo, observando o teu labor, num cantinho fascinante! Nesse canto do meu céu, figura, a toda a hora, formosa estrelinha que, de vez em quando, oculta seu brilho, para logo surgir, prazenteira e afável, tornando-me a existência agradável e doce.

Estrela bendita, nunca te apagues! A minha vida centra-se em ti!

Como foi angustiante o final da tarde! Tudo perdi! Já nada tem graça! Desapareceu do belo firmamento a estrela condutora! Quando voltará, para adormentar as agruras e males da vida presente?! Que aridez tão grande eu sinto no peito! Se vale a pena viver sem o brilho inebriante de uma luz acolhedora! Oh! Quando poiso em ti meu olhar angustiado, sinto logo o peito em frémitos de gozo! Não sei, não, que eflúvios de magia se escapam de teu seio, para me transformarem o rumo da vida!

Posso estar melancólico, abatido, alquebrado: se te vejo surgir, no horizonte da vida, embora velada, tudo sorri, acabando o inferno! E que sedução! Não sei, mas há com certeza uma força oculta, que se verga e domina, encerrando o mistério da minha ventura!

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Soube por alguém que a sua adorada fora punida. Preferia ser ele objecto de castigo. Apresentar-se Arlinda na presença dele, abatida, humilhada! Fixá-la no rosto, de olhar tristonho, amortecido e quase a findar! Ver o corpo dobrado e tão amolecido, era de morrer! Ser castigada?! Porquê?! Por amar?! Por ser dedicada a quem venceu pela alma gentil?! Quem separa corações que nasceram para amar-se?! Sim, cá no mundo não há decerto poder tamanho! Bem ao invés: estes obstáculos excitam mais ainda a uma grande união. Como ele censura o castigo brutal e o reputa injusto! Hoje, o tempo rodou, com ele a chorar! Nenhuma coisa mais foi possível fazer! Tudo nesta data lhe causa lágrimas!

Escrevesse Arlinda palavras mágicas, que apenas ela sabe de cor e têm condão para aliviar torturantes dores! Mas, no dia que passa encontra-se envolvida por treva densa! Em sua casa, ninguém a acarinha e Pancrácio Teles é forte carrasco! Como em 2-3 chorou ele abundante e assim continuará! Horrível dia, mas velado ainda por débil esperança, até às 4 e 30. A esta hora, vem firme decisão: o suicídio.

Era a 7-5. Tudo preparado! Foi um momento! A mente obscureceu-se! É noite cerrada! Uma loucura! Um muro em frente! Um automóvel a 100 à hora! Valeu-lhe a Providência que evitou o desenlace.

MUDANÇA E PAIXÃO

O nosso Beto passou o dia inteiro mergulhado em treva, cheio de saudade. Longas horas decorreram sem ver a sua amada. Que lentidão esta, quando espera ansioso, uma vez e outra ainda, que o tempo avance um pouco! Mas, enfim, lá surge ela, de fato alvejante, semelhando uma pomba, de gestos sacudidos, o que é, desde logo, sinal de bom humor. Quanto ele aprecia vê-la deste modo, cheiinha de regozijo, a soltar alegria, distribuindo sorrisos, aqui e além e parecendo ignorá-lo! É que, dali a pouco, no momento do “beicinho”, ela tem artimanhas que ao Demónio esquecem.

Arranja tais criancices e dá tal jeito ao olho esquerdo, que não digo nada! Aquilo, então, é remédio santo! Pode o mísero Beto estar para chorar, que do Céu lhe vem a cura! Não há dúvida! Fica logo outro! Só a muito custo, sustém a compostura! Vá lá a gente explicar! É verdade! Ela penetra-lhe o íntimo, desvendando os segredos. É assaz amiguinha. Por esta razão, não a pode ver triste. Para mitigar-lhe qualquer sofrimento, a muito se expõe. Mas faz o que deve, pois ele é sincero e louco por ela!

Não admite que lhe batam nem tolera jamais ouvi-la tossir! Logo um caso de fraqueza, desleixo inadmissível por parte da família! Que alguém a censure! O pobre do rapaz tem nela o ai-jesus, a consolação, direi até a sua mesma vida! É de ver como ele olha, meiguinho e sorridente, os seus movimentos! Como fala à boneca, sempre com brandura e fundo enlevo! Como dardejam sobre ela seus olhos inquietos! Como se orgulha de a amar, sendo ela perspicaz, meiga e delicada!

Foram talhados um para o outro, não havendo poder que logre desuni-los.

* * *

Acabam de soar as 23 horas! E que faz o pobre Beto, amando a secretária? Escreve as Memórias, de pensamento cravado na doce Arlinda. Antes de mais, olha enternecido para o seu retrato, em que sacia, a capricho, os olhos famintos. Só ela dá calor, na geleira deste mundo! Apenas os seus olhos confortam e enleiam, destilando no peito eflúvios suaves!

Mas que podes albergar, minha linda feiticeira, para atordoares o amado noivo?! Algumas vezes, mete dó, coitado! A certas horas, vêem-no sozinho, cara enjoada, a ninguém dando troco! Mas, que apareça a boneca! Tudo se altera como por encanto! Todo ele é sorriso, modificando-se o rosto, que transpira júbilo, por todas as partes! Faz-se mais ágil o corpo rebelde, que se arrastava, na vil tristeza e no gelo da morte.

Diz, Arlinda: como alcançaste poder tamanho sobre o grande admirador e apaixonado amante? Se tu lhe queres muito, ele bem o merece! Às vezes, fala sozinho, sustentando uma conversa, em que surge o teu nome! Pergunta e responde. Diz a si mesmo: “Vale a pena sofrer, para ter uma garota, assim meiga e gentil!” Hoje, olhava discreto para uma fila de várias bonecas, enquanto dizia, por não te alcançar: “Aquela decerto não é a minha!”

Já lhe pertences! Fazes parte integrante da sua própria vida! Passou à tua porta, olhou, olhou, mas veio-lhe a tristeza, por não te vislumbrar.

UM MURO A VERTER SANGUE!

O Beto inditoso anda hoje mais triste. Contava, pela manhã, ser alvo de atenções, que Arlinda lhe dispensa, de vez em quando. À data, porém tudo foi em vão. Quando isto sucede, fina-se de dor. Tudo o enjoa; nada lhe sorri! Acaba-se prestes o gosto de viver! Várias diligências, levadas a efeito não tiveram êxito! Falhou, pois, a ocasião de obter o maior gozo que é dado experimentar. Assim, mete dó o pobre rapaz!

- Então, Beto, andas hoje mais alegre?

- Oh! Não tem comparação! A doce Arlinda é que tem o segredo para a minha ventura! Quando ela quer, não fico angustiado. Logo pela manhã, no primeiro encontro, fez ela pressurosa o sinal salvador havendo-o repetido, ainda uma vez, durante o dia. Gosto imensamente de vê-la assim, desejosa de mudar-me e fazer que sorri.

- Folgo em extremo de ver-te assim, amigo Beto, cheiinho de vida e fora de cuidados, vendendo saúde e atirando sorrisos a toda a gente! Não pareces o mesmo!

- É verdade! Quando sou acarinhado, fico logo diferente! Se ela imaginasse quanto lhe quero e como sofro, por sua causa!

Ela aprecia-o de modo igual, pois lhe falta, ao que julgo, o carinho da família. Há, por aí, quem lhe deseje mal, só por inveja, armando em carrasco.

Beto espera ansioso pela sua Arlinda que, há muito já, não vê de bem perto e sem constrangimento. Tanta pergunta que reserva para ela! “Soaram as 12, ainda agora. Mais duas horas e será chegado o momento ditoso! Virá ela contente, de encontrar-se comigo?! Só desejava que sentisse agora o mesmo júbilo que vai no meu peito”.

O que o entristece e deveras incomoda é trazer ela uma tosse esquisita. Pode enfraquecer, mercê do trabalho! Não esquece também que se encontra agora na fase de transição. Vive sempre a fundo seus vários problemas e nada lhe é estranho, incómodo ou alegre.

“Querida Arlinda, já tens saudades do Beto infeliz, que vive agora imolado e longe de ti, pensando na maneira de fazer-te ditosa?! “

- Amigo Beto: Faz hoje 8 dias que pensaste a sério numa tragédia. Como foi, meu amigo, que tiveste essa ideia?

- Nem eu sei, amigo Albano. Nunca tinha sucedido. Tudo, tudo se varreu então: irmãos e sobrinhos! Também senti que a negra morte, qual sereia embaladora, me sorria aliciante! Houve uma vertigem, uma atracção, harto forçosa! O meu funeral já no dia 8! Como interpretaram o meu procedimento? Quem seria, afinal, o exacto responsável? Também choraria pela minha pessoa?! Que viria a ser de minha santa mãe?! E da querida Arlinda?!

Nem quero pensar, meu Deus e Senhor! Um automóvel a 100, um muro a jeito de granito beirão ao lado esquerdo; uma curva rematada; um desvio, logo perto. Cabeça estilhaçada; o cérebro a sangrar, pela face do muro, um tanto enegrecido. A 2 quilómetros, uma velhinha a morrer, nesse mesmo dia. Dois funerais, duas saudades!

MEU CARO ALBANO

Desculpa o atraso. Não foi possível, antes, dar satisfação à tua ansiedade. Bem sei, há muito, que é pertinente essa curiosidade e, por isso, nada ocultarei, acerca de assuntos que um amigo leal pode revelar. Hoje, o nosso Beto houve um desaire, que o trouxe acabrunhado, a tarde inteira. É muito sensível este amado companheiro da nossa infância. Coisas banais, a que outros não ligam, tem para ele um peso assustador! Mudança de horários, uma observação em nada favorável: ”Não devia consentir!” Foi o que lhe disseram!

Tive pena dele, intentando reanimá-lo, mas eis que então, desalentado e choroso, me volve prestes: “Ai Bonifácio, o que mais tortura a pobre cabeça e fundo alanceia o meu coração é o desamparo em que estou lançado!” Atalhei-o pressuroso, desfechando a pergunta: “Como?! Não és tu feliz, com a doce Arlinda de quem me falas sempre, tão embevecido?!”

- Oh! Sim, balbucia, irrompendo grossas lágrimas de seus olhos triste. - Neste ponto exacto, desvio o meu olhar, para ser discreto. De relance, porém noto surpreendido, que algo importante ficara por dizer. Os seus olhos ansiados procuravam os meus e, entre soluços, consegue exprimir: - A doce Arlinda não veio hoje e tanto precisava de encontrá-la já! Hoje, mais que nunca! Só ela, afinal, me pode valer! Ninguém como ela possui o segredo, para fazer-me esquecer os males da vida. Quando se apresenta junto de mim, é sol radioso que dissipa num momento, a dor e a treva!

Se tu, amigo Albano, o ouvisses falar! Como ele estremece de funda comoção! E os olhos dele?! Esses fuzilam! Há-de querer-lhe muito. Ofereci-me ali, para ir chamá-la, ao que ele se opôs, dizendo o seguinte: “Não! Isso não! Ela virá, ardendo a chama, em seu coração! Pode ter ocorrido algum imprevisto! Não descreio que venha!” Ante o inesperado, arrisquei mais perguntas: “Amigo Beto, por que lhe queres, a esse extremo?! É tão jovem! Não é rica nem pode igualar-te, em cultura geral!”

Suspendi a conversa, pois me convenci de o estar amargurando!

- Olha, Bonifácio, pergunta às nuvens por que é que nos ares se encaminham, a rigor, para certo lugar. Interroga as aves, acerca do mestre, que lhes ensinou a maneira precisa de construir o ninho! Tenta inquirir da prestável abelha qual foi o cientista que lhe ensinou as regras, para construir o favo. Por que amo Arlinda? Faz parte de mim próprio. Como não querer aos olhos que tenho?! Poderei não amar aquilo que é meu?! Com eles precisamente distingo as cores. Agora os meus olhos vêem já tudo, através dos seus! Sem ela, na verdade, tudo é escuro; com ela, é dia claro, em meu coração!

- E merece a pequena o teu sacrifício, tamanha afeição?!

- Não faças perguntas dessa natureza, que me obrigas a sofrer e até me ofendes! Já deu provas sobejas de que bem merece tal adoração!

- E foram elas tão fortes, que não admitam engano?!

- Foram! Em mim, à data, não restam já dúvidas. Mesmo que não fosse o que digo para ti, é o ser mais belo que jamais foi visto por olhos pecadores. Admita, por absurdo, que fosse de facto, grande criminosa! Ainda assim, faria por ela os maiores sacrifícios. Eu adoro-a!

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Uma peça em dois actos. Nove horas a dar, na torre da igreja, e eu a chegar, à Capela solitária, em frente da qual voltei o meu carro. Desta vez, alguém me precedera, o que não era habitual. Não dei quase nada pelo facto inusitado e, verificando atento, verifiquei sem demora, tratar-se duma pequena, que parecia não ter pressa nem dava ares de coisa alguma. Não foi por muito, não, que deixei ali de ordenar-lhe a saída, para deixar-me sozinho, mas como a Democracia vai já invadindo toda a casta de gente, para que não dissesse ter o mesmo direito e precedência no tempo, calei-me pois, sofrendo resignado.

Sentara-se ela comodamente, junto à Ermidinha, no muro baixo, que faz vedação, entre o recinto e a estrada da Serra. Figurava 13 ou 14 anos e nenhuma ideia parecia ocupá-la. Deteve-se ali horas sem conto, podendo sugerir observações malévolas àqueles que passavam. Fosse como fosse, a conclusão era harto errada, pois nos víramos e se eu estudava discretamente os seus movimentos, era por um motivo que já vou apontar.

Depois de me sentar, não muito longe, e haver-se ela inteirado de que eu estava escrevendo, em cima do joelho, não podendo examinar a sua actividade, iniciou desde logo uma série de tarefas, que fizeram arrepiar os meus cabelos. O primeiro campo a sofrer investida foi o nariz. Imaginem-se podendo, trejeitos e artimanhas, de que lançou mão, para fazer limpeza às fossas nasais. Não houve dedo nenhum, excluindo os dos pés, que não entrasse em acção!

Julgo não me enganar, dizendo a propósito, que todos arrastaram pesadíssima carga, pelo tempo gasto, a depor a imundície. E quanto ao destino da farta colheita? Sacudir os dedos, arremessando ao chão a massa pegajosa; esfregar ainda, pesadamente, as unhas viscosas ao nojento vestido; fazer pequenas bolas, enquanto distraída fixava uns pontos vagos, para finalmente as lançar de si, à maneira de berlinde.

Confesso para já que, não obstante o preceito divino de amar o próximo, experimentei, nessa hora amarga, viva repulsa, descansando apenas quando me lembrei da frase célebre de Santo Agostinho: ”Amai os homens e odiai os seus erros.”

Lamento sinceramente que a dita personagem, quase mulher já, tivesse adquirido preparação social, tão deficiente! Que vai ela, amanhã, fazer no seu lar, onde por força, há-de haver limpeza, afim de que o marido não sinta repulsa?! Qual a educação que ela vai ministrar a seus pobres filhos, quando é bem certo que nem talvez o nome lhe conheça ainda?! Que pode esperar a Pátria infeliz, de uma criatura, sem nenhum ideai, que cifra a vida no arraste de imundícies, para o exterior?!

E tanta água como o Céu generoso concedeu à zona! Mas a peça em causa vai só no meio! Aquele, na verdade, foi só o primeiro acto! Agora, pois, vamos ao segundo! Vejamos se este, além de asqueroso, não é dramático e revoltante. Com perícia magistral, imprópria dos anos, reduz ao não-ser, em poucos segundos, cada um dos infelizes, que lhe andavam com os pés, em cima da cabeça! Uma vez entre as unhas, preparava o suplício.

Não julgueis, erradamente, que se trata acaso de empalação ou ainda entaipamento. O pobre insecto era executado, rebentando com pressão! Estrangulamento! Calculei então a crueza do martírio: entre as duas unhas dos seus polegares, apertado com destreza e energia, exalava o desgraçado o último suspiro! Se fosse apenas um! Eram dezenas e mais dezenas, pois a dita operação foi ali repetida vezes sem conto! Os restos mortais eram friccionados ao vestido sebento ou no muro de resguardo, e a horrenda tarefa recomeçava logo, sempre animada!

Aí fica exarado como passam as horas duma bela manhã, por um Julho formoso, havendo tanta água e um sem-número de coisas, mais úteis do que estas!

BONIFÁCIO A ALBANO

Saudoso Amigo:

Por motivo de ausência, apenas hoje me pude avistar com o nosso Beto. De visita a Pedras Alvas, em breve digressão, surpreendo, junto à Ermidinha, o poeta do silêncio. Estava de olhos tristes, e quase apagados. O seu abatimento inspirou-me dó. Encostado à parede, fixava no vácuo os olhos distantes, parecendo entregue a ideias absorventes. Só a grande custo notou vagamente a minha presença! Confesso dedicar-lhe um afecto maior. Vive tão só! Em seus lábios descorados, jamais pairou o sorriso dilatado, que inundava, por hábito, o seu rosto prazenteiro. Dir-se-ia talvez minado por desgostos que o afligem bastante! Como é impiedosa a cruel sociedade!

Abeirando-me dele, pergunto carinhoso:

- Por que é que te isolas, meu bom amigo? Não vês que, assim, mais e mais se avoluma o teu sofrimento?! O pior inimigo é a solidão, sempre que um desgosto amarfanha a alma.

- Ai! Por demais sabes tu que é fácil em extremo recomendar prudência e meios quejandos! Não conheces o aforismo “Bem fala o são ao doente”? Que importam companhias, se apenas uma delas conta na vida?!

- Nem a minha te agrada?!

- Oh sim e muito! Noto a claro que também se faz noite, no teu coração, sempre que o meu vive em angústia! Devo dizer-te que isso me punge, dolorosamente! A verdade, porém, é que a tua presença, embora querida e até suspirada, não cura as feridas que me estão dilacerando!

- Mas olha lá! Arlinda ama-te?

- A este nome, vibro logo em força, como atravessado por faísca eléctrica - suspira fundo, para atalhar, em seguida - Não voltei a vê-la!

Esta frase curta e arrastada marejou-lhe os dois olhos, pondo tremores nos lábios descorados.

Pobre Beto, disse eu comovido, no fundo do meu ser! Quem pudesse aliviar-te ou contribuir para o teu sossego! Refeito do abalo, notei sem esforço que ele se preparava para ali se expressar coisa importante!

- Que posso eu fazer, em teu favor?!

- Se estiveres com ela, diz-lhe, por favor, que o meu coração todo lhe pertence.

O NINHO

Pelas 9 da manhã, Beto pôs-se em marcha, galgando fraguedos, na mira do costume: satisfazer em pleno, a paixão favorita – os ninhos. Como delirava, sempre que uns biquinhos pronto se escancaravam! Olhava, olhava, quase enfeitiçado, fixando aqueles bojos, grandes e informes, em total inconsciência do perigo enorme que então os cercava. Mas, desta vez, mais grata surpresa chamava por ele!

Na Quinta do Feitiço, vislumbrou o nosso Beto, por entre a ramagem de enorme castanheiro, um ninho avantajado. Apurando ali, o melhor possível, o raio visual, inteira-se bem e, satisfeito da vida, murmura em alvoroço: “Hoje, sim, Beto, foi uma pechincha! Não que já os vi treinar-se, além, na ramaria! Vou lá cima já e, como eles, por ora, não têm prática, apanho um figurão e era uma vez uns pais extremosos, que tinham um filho!”

Enquanto se entregava a tais lucubrações, ia fitando com prazer e demora, o ninho amoroso. Era enorme, bem estruturado e dava a impressão de verdadeiro lar, pelo aconchego e ar de conforto. Valia a pena fatigar os músculos e até arriscar-se! As cores tão garridas! Se conseguisse um, metê-lo-ia numa gaiola, arranjando passatempo, de manhã até à noite. Trataria a valer da sua nutrição, proporcionando bebida e atendendo à limpeza. Numa palavra: havia muito a fazer!

Era preciso vigiar cuidadoso a chamada alpista. Haviam-lhe narrado um caso bem triste, a esse respeito. Com ele, agora seria diferente! Homem prevenido, valia por dois! Mal se fixara em novos propósitos, escorrega-lhe um pé, e zás! O pobre Beto está logo no chão, estateladinho! Dera com a testa na pedra do lajedo e ei-lo a sangrar! Costumava andar só, para evitar ruídos e dar atenção, mas agora o recurso é um perigo enorme!

Sem ajuda estranha, perderá muito sangue o pobrezinho! E se houvesse fracturas?! Quem o sabia? Às vezes, o diabo tece-as e, donde se não espera, é que elas vêm. Coitadinho do Beto!

Diversas horas já tinham passado, quando o infeliz voltou a si, abrindo os olhos bastante a custo! Parecia-lhe agora habitar outro mundo e perdera a memória! Onde morava? Que se tinha passado? Estava de cama! Pensamentos diversos lhe invadem o cérebro. Urge responder-lhe, aclarando a situação! Ele, por sua vez, em tais apuros e diligências goradas, esforça-se ao máximo por alargar o campo visual, contraindo as pálpebras. Esforço inútil! O pobrezinho não vê nada! Como fulminado por um raio invisível, desata a chorar, como sendo inconsolável em sua amargura.

Neste comenos, uma voz argentina, melodiosa e suave, murmura comovida: “Beto!” Aquele timbre era familiar! Oh se o conhecia! Mas como?!

- És tu, Arlinda? Tu aqui a velar por mim?! Eu que me julgava só e até desprezado! Como foi bondoso o teu coração. Mas eu não posso acreditar no que estou presenciando! Será talvez que a minha cabeça esteja em crise?! Que sobre uma desgraça outra ainda veio, para tornar desditosos meus dias na Terra?!

- Sou eu mesma, em carne e osso - volve ela, então, pressurosa e gentil. - Não te aflijas, Beto, que tudo vai correndo pelo melhor! Foram envidados todos os esforços e posso afiançar-te que nada aí há que inspire cuidados! Agora descansar! Perguntas a fazer, isso nem por sombra!

- Mas eu não vejo quem me salvou! Onde está o Anjo que me tem acompanhado, em hora tão amarga?!

- Sossega, anda lá, que tornarás a ver!

- E o ninho, Arlinda?

- O ninho, afinal, era este lar, em que vives feliz; a formosa avezinha, por quem te arriscaste, adeja em torno: pertence-te! És ditoso?

- Ó Arlinda, somente agora raiou para mim o sol da existência, que os homens cruéis procuraram em vão obscurecer, no intuito vil de me fazerem escravo.

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Querido Albano:

Escrevo de Monte Verde, estância deliciosa, onde permaneço, durante escassas horas, em contacto directo com a Natureza. Fiel a meu propósito, mais uma vez te ponho ao corrente da vida inglória e sentimental do amigo Beto. Ontem, não o vi, ao longo do dia. É muito provável que não tenha saído. Foge, em regra, de todo o convívio e parece até nada interessar-lhe de quanto o rodeia. É um tipo curioso! Não achas também?! Revela o facto grandes carências, não ficando à margem a necessidade que o Beto sente, de amparo e carinho.

Justifica-se o caso, sem dificuldade. Quase sem família e distante da que tem! Mas vamos antes àquilo que lhe ouvi, pois vale muito mais para o fim que nos ocupa.

Eram 2 da tarde, quando o avistei, sentado numa pedrinha, junto da Ermida. Saudei-o cordial parecendo não ligar, pois estava alheado e, por certo, bem longe do lugar apontado.

- Boas tardes, meu amigo! Então, amarrado sempre a ideias nostálgicas, não é verdade?!

- Sim, a vida é isto! No dia corrente, mais ainda que nunca!

- Sou importuno, violando o silêncio, que te deleita a alma, em extremo saudosa?

- Não! Amigos como tu nunca se repelem! Bem ao contrário, sinto-me feliz, em tua companhia! De ti, afinal, só bem me tem vindo, sem que eu mereça!

- Ó Beto, cultivas a lisonja!

- Olha que não! Aquilo que digo, tenho-o aqui dentro, no meu coração!

- Bom! Não ignoro que és sincero! Expansões de amizade! Em nome desta, penaliza-me bastante, ver-te sozinho É que assim, tudo enjoa! Não te distrais! Não procuras já motivos de interesse! Ri e brinca, sê brincalhão como outrora sucedia! Joga a Sueca, o Ring!

- Não posso, Bonifácio! Isso a mim não me distrai! Antes aborrece! Uma só coisa me alegra e encanta!

- Aquela Arlinda revolve-te o miolo! Já gosto dela, por ser tua amiga!

- Gostas dela também?! É engraçada, não é?! Já reparaste nos modos infantis, que a tornam amorosa?! Quanto lhe quero! Gostaria imenso que vivesses do meu pão! Com isto só, já seria feliz!

- Mas uma coisa: eu supunha-te com ela, à data presente! - Oh! Mas, por azar, eu não tive essa dita. Vai partir daqui e não a verei senão amanhã!

- Beto: ela diz-te os segredos?! Tens a certeza de que ela não te engana?!

- Tenho!

- Eu não intento, de modo nenhum, ser indiscreto, mas…

- Tudo me diz: as coisas mais íntimas, segredos e tristezas, aspirações e logros.

- Ela, de facto, interessa-se por ti?!

- Sem dúvida nenhuma! Ela vive de perto os meus problemas, assim como eu vivo os dela também!

Neste momento, olha para o Largo “ Terreiro Novo”, começando a chorar. Havia partido a viatura odiada, que a furtava a seus olhos. Faltava a vida intensa, que animava e mantinha a sua existência.

Retirei-me discreto, para ele expandir sua alma generosa, sem vistas alheias.

O MOINHO

À Capelinha, em Pedras Alvas, passava os meus ócios, enquanto ao lado, em plano inferior, buscavam remédio para males e dores, as freiras do lugar, minha mãe e tantos outros que a esperança alentava. Havia de esperar uma hora e um quarto. Ora, sendo assim, para que o tempo não desse enjoo, lia o Rodrigues Lapa, escrevia o Diário, sobre o que ferira as cordas anímicas, e estudava a configuração do lugar em foco.

Numa destas pesquisas, descobri, com surpresa, um velho pardieiro que, pelo aspecto, denotava ser moinho. Aproximei-me logo, cheio de curiosidade e, como estava ermo, resolvi entrar. Não foi difícil: a chave da porta acenava de lá. Mais árduo fora chegar junto desta, pois a vereda não era rectilínea, obrigando a movimentos já fora de meus hábitos. Entretanto, como querer é poder, atingi a portinhola. Uma vez aqui, sou levado a esclarecer o emprego do sufixo.

Para tanto, basta o seguinte: a abertura da entrada não vai a metro e meio, em questão de altura! Imagine-se já a grande curvatura de quem ousa entrar! Avanço então a medo, sobre o passadiço de tábuas móveis e, dobrado em arco, acho-me já dentro! É tudo branco, branco, dando a impressão de que a leve farinha fazia parte da estrutura das coisas; paredes e telhado, pedras e madeira, e objectos jacentes. As próprias teias de aranha, em cifra incontável, não faziam excepção.

O soalho fofinho está planificado, pois havia muito, ali se depositara a branca farinha, tapando os interstícios das velhas tábuas. Enleado nestas pesquisas, em lugar solitário, que se afigura poético, o susto é grande, impedindo que se goze, a bel-prazer, a beleza do cenário. E donde vinha que não acalmasse?! Eu digo já.

O meu fato de uso mudou ali de cor, tornando-se branco; as teias de aranha, esfarripadas e sempre oscilantes, ameaçavam logo pendurar-se nas orelhas; as pedras da construção , à maneira de bugalhas, a esmo sobrepostas, pareciam girar, ao ritmo da galga, que moía o cereal.

Não era para susto?! Tu, caro leitor ou formosa leitora, que blasonais de valentes e destemidos, queria ver-vos sozinhos, ante aquela engenhoca, na dança interminável, motivada pela roda, agora accionada pela corrente furiosa do impante Zêzere! Aposto dobrado contra singelo, que ficaria daquela sondagem a amarga lembrança duma aventura, em extremo perigosa, que te emprestara asas para fugir! A tanto não cheguei, pois embora com susto, observei meticuloso o recesso em questão.

Iam-se meus olhos pela tosca engenhoca a moer cuidadosa o pão dos humildes; lamentava dorido a falta de higiene, revelada para logo na vassoura imunda, que varria a farinha; detestava nervoso os pendentes asquerosos, que se balançavam, descontraidamente, prestes a misturar-se com o pão dos famintos.

E a galga aludida, no seu rodopiar, constante e horizontal, parecia não dar pela minha presença! Era um mundo de afectos, um bazar de velharias quanto fixavam meus olhos pasmados! Quantos pobrezinhos matariam a fome, com nacos de pão, dali extraídos! Um pouco abaixo, a roda grande, em sentido vertical, entoava a sua canção, alegre e ditosa, de fazer bem a tantos infelizes! Um tanto acima, num canto, junto da porta, velho tonel, a que já faltavam algumas aduelas, esperava resignado que o moleiro diligente lhe vertesse no bojo um pouco de farinha.

Enquanto isto funcionava, da parte inferior do conjunto afunilado viam-se cair, de maneira lenta, grãozinhos de milho harto dourado, para o centro da galga. Aqui eram eles recebidos em malga de esmalte, grande e asquerosa, a qual, por sua vez, devolvia o milho, com toda a presteza, para o lugar do suplício.

Perdia de vista os louros grãos, e o meu coração doía-se todo pelo seu destino obscuro e inglório - a trituração! Entretanto, ao ver sair, em jeito de esguicho, uns pozinhos brancos, rente ao soalho, de novo a alegria se apoderava de mim, deixando-me feliz no velho pardieiro, sumido numa prega do arrogante Zêzere.

PAPÉIS DE BETO

Viver sem amor é enregelar! Alguma vez, acaso, será possível que o homem vegete, quer dizer, passe, neste mundo, inconsciente e adormecido, qual bloco insensível ou monstro egoísta? Que fome eu tenho de amor sincero! Que ânsia me empolga, dia após dia, só por não ter uns olhos carinhosos, promissores de segredos!

Gostava realmente de ser estremecido, beijado com afecto por lábios amigos e assaz devotados! Como será doce viver neste mundo! Que me vai a mim que a dura sociedade critique os meus actos?! Acaso me oferece o que eu não dispenso?! Que respeito merece quem abusa de mim?! Quem decide e impõe o que não posso cumprir, sem desventura?!

Desejo, sim, um coração de mulher, que me ajude e compreenda, ampare e acarinhe. Quero, de facto, um seio amado, onde eu me recline, saciando a capricho a sede ardente que me tortura! Que vazio imenso vai dentro de mim! A alma ansiada! O coração inquieto! Vivo assim desamparado!

Não aguento o rigor do clima! Nem por esmola, uma réstia de sol, para aquecer o meu peito gelado! Nevoeiro constante, humidade sem fim, vento, chuva e neve! Que paisagem infernal! Por cima de tudo, um interior assaz esfriado, um campo de gelo, uma série arrepiante de enormes glaciares, onde eu me rojo, tremente, desiludido, aguardando sempre, numa ânsia infinita, que chegue a fada libertadora, compreensiva e meiga, para aquecer os meus lábios e assim vitalizar a minha alma em angústia!

Há diversas plantas, cuja sombra afasta. Eu pertenço também ao grupo da espécie, que é odiosa e, por vezes, triste! A minha protecção causa logo enjoo: o que eu ofereço é pronto recusado; o que eu suplico jamais o obtenho!

Por que peço e ofereço?! Para sentir, às vezes, um pouco de alívio, no deserto imenso da vida que me enjoa! Mas por que razão tento ainda iludir-me?! Não obtive a certeza de que a minha presença é indesejada?! Estou condenado à triste solidão. As pessoas que eu tenho por amigas é que fogem de mim!

Serei eu tão leve que ponha confiança em alguém deste mundo?! Tentarei alguma vez iludir a minha dor, julgando erradamente que alguém me acompanha, a fim de minorar o meu sofrimento? Há casos diversos em que tenho rebates desta natureza. Quanto eu rejubilo, em horas tais! Mas veio, por fim, a desilusão, aguar tais momentos de ventura fugaz!

Estou condenado a viver solitário! A sociedade matou-me, e as pessoas que estimo agravam-me a dor, comprazendo-se nisso!

MARAVILHA!

É Natal! Este facto memorável desperta em mim lembranças amargas, não obstante se tratar de bela realidade e ser capaz de excitar não só prazer mas também alegria: reunião de família, convite aliciante ao gosto de viver, sinal de magia, para logo adormentar pesares e vilezas! Ao seu clarão, fogem as sombras como por encanto, buscando refúgio muito longe de nós!

O meu Natal, porém, onde reside? Clamo por ele, do íntimo peito e não me responde! Que vento furioso logrou empolgá-lo, que não voltei mais a repousar, fixando-o por momentos, embora de longe?! Que tempestade violenta arrancou de minha alma o Natal de encanto que embalava o meu ser, em anos decorridos?!

Que espírito malévolo ousou aproximar-se, para deixar-me sozinho, infeliz e mendigo, no mundo traiçoeiro?! Que abismo se abriu, entre mim e ele, que não houvesse mais desses encontros?! Que saudade imensa eu tenho do Natal! Festa do presépio que eu, embevecido, olhava longo tempo! Natal da fogueira, que se erguia no ‘Terreiro’! Cá de muito longe, eu vejo ainda as faúlhas, pairando agitadas, sobre o campanário da velha igreja.

Tentando esquecê-las, mais ainda se avivam, gravando-se a fogo que o tempo não destrói. Para onde te levaram, Natal da minha infância?! Oh! O que tu me oferecias, na quadra maravilhosa que se evolou de meus olhos, qual nuvem fagueira, acossada pelo vento!

Reunião de família que a morte desfez ou exigências da vida, que prestes o levaram para tão longe como a própria morte. Era bem doce viver então! Sem desilusões! Banhado por uma luz, suave e amorosa, que os olhos paternos dardejavam sobre mim; a vida então não tinha desaires nem ousava intimidar-me, como fez mais tarde. Mas eu sei! Fiquei sozinho! Foi então que a má sorte, de garras aduncas, ostentou ferocidade, pronta a devorar-me!

Os meus defensores?! Aqueles que eu tinha como apoio forte, resoluto, indomável?! Uma força poderosa os fez dispersar, lançando na mudez vozes tão mágicas! E eu, sem ninguém, vi-me logo a braços com o cego furor e a peçonha nojenta, que a sua companhia tinha criado! Levantei a voz, gemi, implorei. Tudo foi em vão! Estava perdido!

Os meus sonhos dourados de menino amimado? A chama palpitante que me inundava de gozo, crepitando na lareira, até apagar-se a luz da candeia?! Que importava, no entanto, que deixasse no escuro os olhos cismadores, se havia outras luzes, para substituí-las?! Se ali, em redor, tudo era luz, tudo era amor?!

Mas para quê lembrar o passado, se ele amargura?! Por que avivo a saudade que sei, de antemão, agrava estas feridas, ainda gotejantes?! A ternura, o enlevo; o carinho, a bondade! O mundo todo ao pé de mim! A fé e a crença, a luz de Deus; a confiança ilimitada, um porvir risonho! Tudo era de esperar, mas a roda fatal girou, girou e, com ela, se foram também os sonhos do lar!

O tempo rodou e, quando mais tarde, procurei abarcar a própria realidade, estava sozinho e infeliz. O que eu amara já não se encontrava ao alcance de mim! Ai Natal da minha infância, acode a esta alma, perdida no deserto, e dá-lhe a tua mão, para acertar com o trilho, pois tremenda cerração a envolve e paralisa!

Jesus-Menino, restitui-me carinhoso o Natal de outrora! É este o pedido que hoje formulo! Já que podes tudo, não esqueças, te rogo, a minha ansiedade e faz se me deparem oásis deliciosos, a fim de repousar da extenuante caminhada, que os homens injustos me fizeram empreender, lançando eles próprios, no duro trilho, espinhos e abrolhos, que ferem os pés!

PAPÉIS DE BETO

Para a meia-noite falta hora e meia! Da minha solidão, voo pressuroso, por montes e vales, na mira de encontrar um abrigo seguro. Enxergo-o muito longe, diluído já, nas águas do Oceano, onde meus olhos aguados não cessam de fitá-lo. A cada instante, sorri com magia, estonteando assim a minha cabeça!

É tão bom haver alguém que ampare e acarinhe, prometendo algo mais! Promessa embaladora surja num olhar, todo feito de meiguice! Um olhar enternecido, que destile bonança!

Aquilo que faz bela a nossa existência fugiu para longe! Não é dado alcançá-lo! Contudo eu porfio, a fim de esmagar o querer dos homens! Oh tu, doce realidade, que podes compreender a minha angústia de alma, volta benigna teu olhar para mim! Também vives mergulhada na amarga solidão, sem haver alguém que ouça teus gemidos! Ouço-os eu, embora distante, coados por neblinas e névoas sem fim!

Percebo claramente o gemido angustiante, que lá por horas mortas, se evola de teu peito! Por que não havemos nós de juntar, sem demora, o peito chagado, formando trincheira, a que vamos acolher-nos?! Que importa lá o vozear infernal, quando as nossas almas se entendem a rigor, e os nossos corações batem a uníssono?! Que interessa o vendaval, se dentro de nós corre mansamente a brisa da tarde?!

Que fazes agora, mar de bonança, quando naufrago, suspirando por ti?! Dizem, amiúde, que eu sou feliz, por nada me faltar. Como é doloroso viver ignorado, num mundo venal, em que só tem valor o que não aprecio?! Sou órfão de carinhos e sinto no peito uma chama intensa que me vai devotando! A quem estender este fogo abrasador para não perecer, neste incêndio voraz?! Quem atende esta voz, suplicante, gemebunda?!

Oceano prestimoso, traz bem depressa quem se condoa de meu longo penar e ouça clemente as pulsações insofridas do meu coração que já elanguesce. Julgo sentir o marulho de ondas, que acorrem pressurosas à minha alma agonizante! Quando chegais vós, ondas tão benignas, para eu me banhar em vosso caudal?

Serei autorizado a imergir longamente, revigorando o meu ser, em água cristalina?! Como eu gostaria de viver então, vogando a capricho, nas águas tranquilas de Oceano tão querido!

PAPÉIS DE BETO

Alguém falou
E pôde mais;
Agora falo
Mas só em ais.

Eu já falei
Mas sempre em vão;
Tudo perdeu
Meu coração.

A minha voz
Coisa banal:
Tudo o que eu fiz
Horrendo mal!

O meu olhar
É raio infando:
Ninguém se dói
De como eu ando!

Atraiçoou-me
O belo Amor!
Que resta agora?
Sofrer tal dor!

Está mudada
Já cem por cento…
Não compreendo
O seu intento.

Sacrifiquei
Reputação
Não me importando
O que dirão.

Eu tudo fiz
Em seu favor
E agora, só,
Vivo na dor.

Por que sorriste
Ao meu destino?
Abandonado
Já desatino.

Se fui feliz,
Só a teu lado,
Agora sofro
Desesperado!

Eterno amor
Esp’rava eu:
A Terra assim
Seria o Céu,

Mas quem nasceu
Para a desgraça
Nada consegue
Por mais que faça!

Resta chorar
Por toda a vida:
É incurável
A minha ferida!

Que foi que eu fiz
P’ra sofrer tanto?
A vida assim
Não tem encanto.

P’ra quem dizer
Minhas loucuras?
Foges de mim,
Não me procuras!

És como estranha
Ao meu viver
E apenas teu
Eu quero ser!

Houve por certo
Alguém feliz
Que me enlutou:
Que mal eu fiz?!

Se não me queres,
Sê venturosa;
Mlnh’alma assim
É desditosa.

****************

Antes de partir,
Fui ao teu jardim
Para ver sorrir
Quem é só p’ra mim!

Após a chegada,
Voltei lá, por fim,
E de novo a amada
Sorriu para mim.

Andei passeando
Por entre mil flores
Para ela olhando
Perdido de amores.

Comparei as flores
Em tudo mimosas
E aspirei odores
De esquisitas rosas.

Como tu, porém,
Nenhuma criaste
Porque tu, meu bem,
A mim te doaste.

****************

Grande fonte de atracção
P’ras abelhas é a flor:
Assim, pois, meu coração,
De ilusão em ilusão,
Te procura, meu Amor!

Que é que eu posso a ti dizer,
Ao telefone chegando?
Que minh’alma está a morrer
Por ti sempre suspirando.

Isto dizer, pelo ar,
Vontade enorme seria,
Mas não o vou revelar,
Porque a tulipa feria

E tu, minha branca rosa,
Que à tulipa te doaste
Ficarias pesarosa,
Muito triste a desditosa,
Pelo que nunca aprovaste!

Olhei demoradamente,
Através do arvoredo,
E quedei-me tristemente
A meditar em segredo.

Apenas vejo o telhado
De uma rica habitação;
Fico triste, angustiado
Nesta amarga solidão.

Pedras Alvas, encanto meu
E sedução de toda a hora,
Ficai sabendo que sofreu
Quem isto escreve, enquanto chora.

************

Aquela casa é muda: já me não fala;
cega, já me não vê,
cruel já se não condói;
austera
já não sorri
surda: já me não ouve.
Mas é tão sedutora!

Dez horas e trinta!

Afinal, a casa amiga,
Que eu julgava não sorrir,
Abriu ontem suas portas
E fê-lo de par em par!
Foi um dia feliz
Para o meu coração!
Que tanto se apoquenta!
Tantas mágoas profundas
Nele se aglomeraram
De modo traiçoeiro!
No intuito velado,
De o fazerem parar!

UM LAR SEDUTOR

Entrou já nos meus hábitos a vinda a esta casa, onde tenho passado os serões de Inverno, por modo confortável, delicioso e agradável. Quanto este facto me seja caro e desejado, não se diz em palavras, pois nada existe, que valha o prazer de boas companhias.

Por esta razão e outras ainda, que não faz ao caso, enumerar agora, também eu hoje não podia furtar-me ao que tenho por hábito: quebrar a monotonia de labores constantes, durante a semana. Entretanto, razão especial acresce neste dia, pela minha comparência: o grato aniversário de quem é, na verdade, modelo de esposa, mãe e mulher – a Dona Mariana.

O meu convívio, se não é bastante longo, é já suficiente para aquilatar dos belos predicados, que lhe exornam a alma. Muito honrado me julgo eu, por ser recebido, neste lar amoroso como pessoa da casa, à margem de cerimónias que muito constrangem.

Pela gentileza de que tenho sido alvo, pelas muitas atenções que, já recebi, imerecidamente, pela justa admiração, que sempre votei à Dona Mariana, levanto a voz, para mostrar aqui a minha gratidão e, ao mesmo tempo, felicitá-la muito cordialmente, pelo seu aniversário, expressando mil desejos de que sejam inúmeras as comemorações dos seus anos de vida.

Junto à esposa idolatrada, está o bom marido que a preza e adora; a mãe estremecida, os filhos que a acarinham; também a filha, hoje ausente, a lembra com afecto, enviando de longe parabéns e beijinhos; e, lado a lado, mudas e quedas, na contemplação de um quadro maravilhoso, pessoas amorosas que se deixam cativar pelas suas qualidades de esposa e mãe, pois realizam plenamente o significado alto da palavra ‘mulher’!

Falta cá, bem sei, uma voz deliciosa, para ser completa a bela sinfonia. Lá distante, na cidade invicta, reza, no entanto, ocultando as lágrimas, a filha adorada, para quem a mãezinha está hoje mais perto! Quer-me parecer que o ar em movimento vai trazer-nos a voz e, sendo assim, nada falta a uma data que, a todos os títulos, fica assinalada, a letras de ouro, nos anais privados desta família!

Estou, nesta hora, deveras satisfeito, por me ver associado a tantos louvores e peço a Deus, fervorosamente, que encha de graças e cumule de favores a esposa ideal, o marido amável e os filhos adorados.

ECOS DO RUNDO (ÁFRICA)

Decorreram 9 anos, mas não se apagou, na minha alma saudosa, o eco retumbante duma veemente e profunda amargura. Logo pela manhã romperam, açodadas, lágrimas atrevidas que, a pesar meu, desceram pelas faces.

Era meu pai que, num lindo sorriso, vinha dizer que não me esquecera, na pátria da verdade, em que já se encontrava. Também eu igualmente, o não tinha esquecido! Como era formoso seu espírito gentil, ao fixar embevecido meus olhos aguados!

Entretanto, procurando o seu corpo que me servira de apoio, inabalável e forte, esse vulto deslumbrante, que me sorrira tantas vezes, numa expansão delirante de amor e carinho, vi-o reduzido a um montão de ossos! Tremo, às vezes, só de lembrá-lo!

Meu pobre pai, que fizeram os vermes do teu corpo adorado?! Que mão atrevida, grosseira e vil ousou levantar-se, para te roubar e até deformar?! Odeio essa mão, negra e disforme, que ousou profanar o meu excelente e maior amigo!

* * *

Era em Monte Branco, durante a manhã, precisamente como hoje, na segunda hora. Amarga coincidência! A campainha do velho telefone soa vibrando, para transmitir dolorosa novidade: a lenta agonia do meu saudoso e querido pai.

Como então fiquei não é dado à gente reconstituí-lo! Que barafunda nos sentimentos! Como se apresentou a vida na Terra! A minha cabeça era um caos autêntico e o meu ser estremecia de horror! Onde estás agora, morto querido que jamais te vi, precisando embora da tua presença?! Por que não me falas?

Deixa-me ouvir tua voz deliciosa, que encantou meus ouvidos quando era criança! Hoje, por má sorte, ruídos molestos é o que a vida me oferece! Onde estás, pai extremoso, que me deixaste sozinho, no meio do vendaval?! Preciso de ti, à maneira do pão que alimenta o corpo! Mas é vão clamar!

A morte impiedosa cerrou os teus olhos, para que jamais se fixassem nos meus, cá neste mundo!

PAPÉIS DE BETO – UMA CARTA

Ela queria, por força, uma carta minha! Mas para quê?! Para os curiosos anotarem um segredo que deve ocultar-se, no íntimo peito?! Quem lança ao papel que todo o mundo lê, suspiros e ais, que seu peito gemeu?! Quem foi alguma vez tão leve e imprudente, que expôs à curiosidade o que só pertence, por direito nato, a dois entes que se amam?!

Escrevo, sim, a carta da amargura, a carta saudade, a carta bem longa da minha aflição! Não posso, não, deixar de escrevê-la, cheio de tristeza, por verificar não haver confiança nas minhas palavras! Não ter eu a dita de ser compreendido! As minhas expressões não têm valor! Por mais que as repita, nada consigo!

Como estou angustiado! Meia-noite, menos trinta e o corpo a doer-me! Após o regresso, já fiz duas cartas, em língua inglesa. Não te lembras, Amor, que só intervenho, por estar convencido que vou ajudar-te?! As minhas palavras não bastarão?! Por que me obrigas a sofrer assim quando o meu coração anda já esfacelado?!

Falta-me agora disposição para tudo: comer e trabalhar e, às vezes, também para viver! Hoje, no regresso, bailou-me no espírito a ideia do suicídio! Ninguém me dá crédito! Que prazer me dá a vida, nestas condições?!

Que podemos confiar a uma simples carta?! Nada de jeito! Banalidades em cartas são perda de tempo! Coisas de amor, lançadas em cartas são profanações.

PAPÉIS DE BETO

Nove horas da manhã! O dia é triste, húmido, escuro! Os dançantes do Clube, pela noite fora, são mais ditosos. Pelo menos, fogem à manhã, que estamos vivendo, numa terra ingrata, em que a ninguém é dado contemplar alguma vez, o nascer do novo dia.

Sem que o intente, o olhar angustiado foge pela janela, na mira de encontrar qualquer remanso. Galgados em breve os escassos quilómetros que nos aguardavam, na linha do horizonte, só rochedos avelhados então se nos deparam, assim como igualmente farrapos de neve, lançada a esmo, por aqui e por além.

Para mais constranger a ânsia de liberdade, luz e calor, um sobre céu espesso de chumbo e poeira, que se vai adensando, cada vez mais! Lá muito em baixo, encostadas à vertente e conformadas já com seu destino cruel, casitas humildes porfiam em sorrir-nos, mas lá no íntimo choram a sorte que lhes coube em herança.

Tudo sorumbático, neste dia assinalado que, por ser o primeiro do Ano Novo, devia ser alegre, claro e prometedor Lá fora, na rua, ouço tanger guizos de ovelhas, cujo som é mortiço. Observo melhor a carroça do lixo que desliza, na estrada, vendo-se atrás um homem embuçado.

Continua chovendo. É uma chuva miudinha, atrevida e, diria, atrevida. Fica-se em casa, junto do lume, fazendo companhia às moscas importunas e zombeteiras. Minha cabeça! Nem me lembrava de que agora não as há! Antes houvesse! Ao menos, tinha alguma coisa que me falasse de vida, obrigando a movimento! Assim, estagno aqui, dia e noite, noite e dia, suportando enervado a lentidão das horas, que parecem não andar!

Lembro-me de ontem! Foi, na verdade, um dia maravilhoso! Mas, se o comparo com o de hoje, a diferença é nula! Não passei todo o tempo em amargos pensamentos?! Família já não tenho, desde que a morte cruel roubou o meu tesouro - aquela mãe tão querida! Em 11 de Novembro de 63, tudo acabou! Agora, portanto, resta apenas a solidão, companheira amiga dos que nada esperam da vida presente!

Que podia, afinal, esperar-se dela, se foi sempre adversa?!

E da sociedade? Essa detesto-a, porque na base da minha desventura, tomou ela assento! E de mim que esperar?! Só desenganos, lograções, desabamentos, decepções e ruínas! Quem se diz meu amigo, é-o na verdade, mas dele e não de mim! Restam alguns, em franca minoria, mais dedicados, mas os seus nomes não encheriam a palma da mão!

Estes, porém, têm suas vidas, negócios e cuidados, exigindo atenção. Não levo a mal! A lei da vida é trabalhar! Adianta isso algo importante, no que respeita a mim?! O homem não é livre, como Deus o criou. A sociedade procura manietá-lo, ficando, pois sujeito a caprichos diversos, vítima de concepções, joguete de estimativas!

É por isso que te odeio, sociedade homicida, que censuras e verberas regimes totalitários, não te lembrando talvez de que fazes o mesmo! Perdi-te o respeito. Para mim és a soma de zeros, sem conta nem medida! No meu coração detenho o libelo que há-de ser-te apresentado, quando já em frente do Supremo Juiz!

De mim nada esperes senão desdém, repulsa e ódio! Que o Supremo Senhor te ajuste contas, pelo que tens de ousada! Já morreste para mim! Essa morte, porém, não foi total, porquanto a malfadada acção continua a exercer-se na minha pessoa! Por que é que a morte, em vez da minha mãe, não te empolgava, levando-te breve para muito longe?!

Que mal é que eu tinha feito?! Por que me enganavas?! Proibiste, sem detença, o que Deus fez para todos! Quem te deu a faculdade?! Por que sou excepção?! Criaste um dia ambiente fictício, para arrancares o ruinoso ’sim’. Há muito já que eu disse ‘não’. Não posso, de facto, viver assim: incompreendido e sem ninguém!

* * *

À medida que avança a roda fatal, sinto à evidência, que o terreno me falta, debaixo dos pés e que um vazio, medonho e profundo, se abre e avoluma, dentro de mim. Qual peixe fora de água, assim eu também, descentrado já, por mão estranha, que me tocou, na adolescência, imprimindo no meu ser a marca do infortúnio, continuo vegetando no oceano de amargura, que é todo o meu viver.

Por isso é que a existência é nula de interesse: essa a causa básica de não me radicar; esse o grave motivo por que não medro, para só definhar, a olhos visto. Fiz muito mal em não desviar essa mão criminosa: errei a valer, ao deixar-me impregnar de um belo ideal, (mas que, na verdade, não era o meu), fora de matrimónio.

Aquela, na verdade, foi a voz da sereia, para os meus ouvidos! Se não existe a causa mitológica, outra pior e mais terrível ainda, operou decerto a minha desventura.

Hoje, sinto-me frustrado, sem gosto de viver, não tendo sequer o que exige a Natureza e a ninguém se recusa! Amor e carinho, imolação, estima e família, compreensão e aconchego.

Deus do Céu e Senhor da Terra, a quem eu adoro e, mais que tudo, prezo e amo: os homens são corruptos, verrinosos e sabujos, torcidos e hipócritas, pois me impuseram o que…

- Que tens, caro Beto, que não te vejo sorrir?! Viverás contrariado, no belo mister, que a todos preferiste?!

- Hoje, na verdade, perdi altura! Eu próprio reconheço, mas não posso aguentar! Já tentei reagir: tudo foi em vão! Cada um é na vida o que vale, realmente. Isto de encobrir para nada serve! Só para os outros se não rirem de mim! Interessa lá que alguém ande triste ou que viva alegre?! Que é que vai nisso à pobre Humanidade?! Que dano aí há, se uma areia se perder?! Não tem biliões, triliões até, só uma das praias?! Nada é, pois, esta minha dor, perante o mundo inteiro, que passa endurecido, em frente dela! Sou tão mesquinho, em ordem ao todo!

- Mas podias recrear-te e encarar a vida, por outro modo! Choramingar, entendo na minha, que não resolve problemas. Oferecemos pasto à língua depravada, enquanto na alma se adensam as trevas!

- Tu, na verdade, não podes compreender-me, embora a tua amizade seja grande e sincera! Faltou-me decerto um pouco de luz, e essa falta para mim origina a incerteza, a insegurança, a irrealização à base de tudo quanto me aflige, pois é causa de males, após ter-se convertido em espessa treva.

* * *

É hoje sexta-feira; por isso, nesta hora, respiro já, um pouco à-vontade. Que eu, afinal, mal dou pelo tempo que passo absorvido em lidas constantes. Canseiras de uma parte, diligências da outra, urdem uma tela, em que é projectada a vida que levo. A fim de variar a paisagem mental, acercam-se ainda as Ciências Naturais, que estudo com alvoroço e genuíno apreço! Quando chega o Alemão, é noite cerrada, pois que remata as minhas canseiras.

Assim vou esgotando tempo e a vida, sem me lembrar de que valho alguma coisa! Para quem trabalho?! Para mim?! Confesso desde já, a minha incerteza! Para a sociedade? Não me parece, à data, que valha o sacrifício do meu duro labor, uma vez que só mal é que ela me fez! Para Deus? Gostaria, realmente, de empregar-me em serviço, que muito lhe agradasse. Mas, infelizmente, por mal de meus pecados, encontro-me triste, num beco sem saída, não vendo solução que dê fim a meu caso.

Apenas o Papa, em suma compreensão, daria rumo novo à existência amarfanhante!

SOL QUE NÃO AQUECE NEM ALUMIA!

Onde estão os sonhos lindos da infância distante?! Onde esses ideais, a custo medrados, que gente sem tino me sugeriu?! Onde, por modo igual, a realização de tantas fantasias, que jamais vi expressas, na prática diária?!

Vai tudo morrendo, por jeito gradual, preparando assim o final da existência. Será ela acaso, feita a rigor, de mortes parciais, que se vão operando, ao longo da vida?! Se não é assim, bem parece que o seja! Que longos momentos, divagando acriançado! Quantas horas dispendidas em altas lucubrações! Quantos anelos, assaz avolumados e sempre nutridos pela imaginação, em tempos que foram!

Onde está o que eu amava?! Onde mora o que gerei, no fundo amoroso do meu coração?! Onde vivem os dois seres que me compreendiam?! Por que é que tudo se foi, para ficar eu só, angustiado e triste, sem nenhum ideal nem qualquer esperança que avivente o meu ser?! Por que não fui também, evitando assim ficar testemunha de quanto perdi?!

Nada haverá, no longo porvir, que seja para mim alavanca forte e esteio seguro, na existência atribulada?! Jamais raiará o Sol prestimoso, que aquece e alumia?! Estarei condenado a flutuar para sempre, no frígido lago da incompreensão, onde morre em breve a flor mimosa do afecto salvador e se gera prestes o veneno letal da vida presente?!

PAPÉIS DE BETO

Mais uma semana, um passo indeciso, que não teve rumo! Quantos dentre eles o teriam já dado? Julgo o seu número difícil de achar!

A tarde resfriada aproxima-se do fim e, neste fundão, ficamos sem luz, três horas antes dos outros mortais! Como é oprimente um lugar assim! Nem sol nem luz, nem carinho nem amor!

Em contrapartida, cinge a montanha níveo cordão, que a toda a hora esfria a cabeça e esta frescura, deveras importuna, insinua-se na alma, que passa também a viver em geleira!

É tudo cinza quanto me rodeia! Tudo só gelo quanto me cerca! Ruínas sem fim, guardadas pelo tempo, que observou impávido o triste desabar de inúmeros sonhos! Como posso medrar, sentir na minha alma um pouco de ardor, que é próprio da vida e não da morte?!

À minha roda, porém, forte vendaval surgiu ameaçador! Foi tão grande a agitação e forte o seu ímpeto, que nada poupou seu furor incontido! Deixou-me somente a tristeza de viver, contemplando os lugares que julgava paraíso, quando bom e ingénuo me fiei inteiramente no que era mentira!

* * *

Quem me dera recuar, fosse embora pouco, no tempo que foi, a fim de sentir a vida esgotada que nunca vivi! Hoje, é tarde em excesso, pois se o não fora, pedia a dispensa. Ainda não assentei, por maneira peremptória, no que hei-de fazer. Criar os filhos e educá-los, aos 49 anos, não pode encarar-se de ânimo leve. Mais idade para avô! Portanto, formasse eu embora um lar ideal, não podia facilmente educar a prole.

Ao meio século, falta vigor e também paciência, para agir com proveito, no aglomerado! Em contrapartida, um lar sem filhos é céu sem estrelas, astro sem luz, escrínio sem jóias! Ainda assim convém no entanto. Quem nos ampara, durante a velhice?! Quem olha às caturrices a que não vamos furtar-nos?!

Como há-de ser triste a pesada velhice, numa casa estranha, notando que, à volta, só gelo e tédio se vão acumulando! Não poder sossegar o coração e a mente, num lugar de sonho, gerado e mantido pela nossa vida, num sorriso belo, acalentado pela alma em êxtase!

A insegurança, a apagada tristeza, a vida e a morte, o presente e o futuro não atormentam daquela maneira!

* * *

A época actual caracteriza-se agora por um sensualismo deveras soez! E quem origina tal situação é, infelizmente, a mulher dos nossos dias. Ela que, afinal, devia primar, em todas as coisas, pelo recato, com que tudo ganhava e nada perdia, é quem abre a porta ao enorme desaforo, que se agita e avoluma, desenfreadamente!

Apresenta-se ela de maneiras tão livres, que raro será o homem que nada reaja! Para onde caminhamos?! Será esta já a ressurreição da carne?! Algumas delas nem se lembram talvez que, por disformes e inestéticas, são extintoras ou apagadoras, convindo alongar e jamais reduzir aquilo que as salva!

Francamente, chego a ter nojo de tanto impudor! Sinto funda náusea de tanta desfaçatez! Onde esta o pudor?! Onde a delicadeza?! Onde o aprumo bem como a distinção?! Se tudo é besta, volvemos o mundo em enorme estrebaria! E bem parece que o seja, de facto, avaliando o assunto, por tantas coisas, que me têm comprimido e amassado os flancos!

Que pretendes tu, mulher deste século, com maneiras tão livres?! Adoração? Não é assim!

Ressalvo aqui as jovens sensatas, que muitas há!

VOLUBILIDADE

A mulher, assim livre, será digna, a rigor, do sacrifício dum homem, quando afectuoso e deveras honrado? Parece-me que não! Evidentemente, no correr de uma paixão, de modo especial quando parte dela, como de facto no caso presente, momentos há, em que o ser humano, vendo-se objecto de tantos carinhos e alvo de gentilezas, fica logo inclinado a tudo sacrificar, na ara da renúncia.

E então movido pela fantasia, que tudo enriquece, o que ele não arrisca! Honra e fama, proveitos e materiais, situação e prestígio! Tudo! Estreita-se firme no seu pequeno mundo, confina-se ali, deixando quanto seja estranho. Falem-lhe acaso de certas realidades, algo sugestivas, que ele não atende! Estes sentimentos de quase idolatria geram na mulher, objecto deles, tamanha vaidade, que roça já pelo delírio.

Entretanto, de um momento para o outro, opera-se a viragem; ela cai no enjoo, entra no enfarte, acobarda-se até, ante a crítica mordaz e, num volver de olhos, dá costas a tudo!

PAPÉIS DE BETO (Savedra)

Entre os rapazes, cujo nome lembro, com horror e escândalo, figura este, que é hoje alguém. A conversão é um facto inegável, na História da Igreja, sendo aos milhões os casos verificados. Contudo, fiquei tão chocado, que me tornei insensível, perante um facto de autêntica viragem. Andava eu então, no primeiro ano; ele, no terceiro ou então no quarto. Por terras de uma vila, arrastava-me eu, em 1933, intrigado e dorido, pelo que via e ouvia. Objecto de sevícias e trato brutal, como julgo não haver entre os mesmos Cafres, tentei um dia fugir, do meu Internato, para o doce remanso do lar carinhoso.

Mas as dificuldades eram tão grandes! Muitas em número e insuperáveis! Momento oportuno, dinheiro para a viagem, desgosto de minha mãe! Entretanto, o nosso convívio era feroz e muito detestado, principalmente, durante os recreios. As horas mais ingratas da minha existência passaram então! Os veteranos eram piores que o mesmo diabo! Falo sincero! Preferia tratar com o próprio mafarrico a ter de fazê-lo com alguns deles! Se pelo fruto se conhece a árvore….

PAPÉIS DE BETO

Acabam de soar as 21 horas. Estou só nesta sala, testemunha perpétua de surdos gemidos e de momentos assaz felizes, que a minha alma viveu, em doce convívio. Que fiz eu hoje? Domingo como é, bem pouco realizei: três horas de ajuda, o pobre Diário, deveres atinentes ao dia do Senhor, cópia de diários, feitos na Alemanha, uma carta ainda e pouco mais.

Nenhuma convivência, nenhum contacto, social ou artístico, para aliviar ou quebrar esta monotonia! Os entalões da vida puseram-me alerta! Confiar nos outros?! Fiar de alguém a minha doce paz ou ainda o futuro?! Eu e só eu me posso compreender! Eu só me adivinho e prezo devidamente! Só eu e mais ninguém tenho pena de mim. Que posso eu fiar de qualquer outra pessoa?! Os outros homens vivem enclausurados no seu egoísmo e quando saem dele, é unicamente para se firmarem no terreno que pisam.

A convivência não me chama já! Ouvir dislates, atender a conversas, que de modo nenhum me dizem respeito, rir sem vontade?! Não! Não quero mentir!

* * *

À sombra amiga dum pinho milenário, na encosta próxima de S. Geraldo, passo as horas da manhã, contemplando o panorama, enquanto vou reflectindo, sobre a vida e seus contras. Não me passa em olvido o dia memorável de Portugal! Dia da raça, dia dum homem, que foi grande em tudo, sem excluir a própria desgraça!

Sofrer e chorar é destino fatal da própria Humanidade! Viver é sofrer. Nascer e viver, sofrer e morrer são actos diversos, mas apenas um Drama! Quatro roxas flores de um ramo desditoso! Mas, se bem reparo, foi a própria desdita que fez do Poeta um luzeiro sem par!

No meio do conforto, que haveria legado às Letras Pátrias?! Uns lânguidos sonetos, umas pobres canções! Assim, afogueado e impelido pelo acicate da dor, objecto frequente de vil traição, envolto nas águas, turvas e sujas do cruel desespero soube tirar prestes, de seu peito em fogo, acordes eternos de infinita harmonia! Quem não deixa arrebatar-se, ante a beleza excelsa de seus versos imortais?! Bem hajas, pois, vate lusitano, meu irmão na dor e na incompreensão, filho dum destino, cruel como o meu que não posso também saciar de vinganças!

Parabéns sinceros, visto que brilhas, no céu lusitano como estrela de primeira grandeza, enquanto eu não passo, além de pirilampo, que o tempo desgastou!

* * *

É repulsivo, triste e injusto falar da mulher, que desonra o seu sexo, praticando acções e assumindo atitudes, que revoltam e enjoam! E, se acresce ainda um bigode farto ou fala de homem?! E se cheira a tabaco?! Credo! Será de fugir, sem nenhum controlo! Sem medida nenhuma, seja qual for a sua natureza!

Em casos destes, perde-se a fé no sexo fraco, sobrevindo prestes grande mal-estar, semelhante ao dos náufragos. Nada mais resta, seja a quem for, senão escapar-se, aproveitando ao máximo, o recurso das pernas. E aquelas impudicas que tentam aliciar, pela indumentária, já de si escassa e tão condenável?! Pertencem também ao número das feias que são um perigo para a vil sociedade, em que estamos vivendo.

Por tal razão, devem ser chamadas e metidas na linha! Julgam elas que são admiradas e tidas em conta, porque o olhar do homem, leviano e sensual, as segue e procura! Coitadinhas! Como se enganam! Esses olhos que as seguem, fazem-no somente, para condená-las. Acaso alguém as procura, para mãe de seus filhos?! Isso sim! Com esta finalidade, tenta o homem descobrir mulher ajuizada, que não exponha à desonra o seu corpo honrado!

A fealdade moral não é menos daninha, senão mais perniciosa que a deformidade física! Sendo as coisas assim, importa sobremodo a bela virtude, para que não enxameiem esses espantalhos, estafermos sem vergonha; elementos daninhos, de que fogem sempre os que projectam constituir um lar; ignomínia e desonra do sexo feminino; ruína e descrédito de um povo infeliz!

Quando tivermos decerto mulheres formosas, que o sejam de facto, em toda a acepção que a palavra tem, passaremos na rua, sem constrangimento, sentindo nós orgulho daquelas que são filhas, esposas e mães!

PAPÉIS DE BETO

É dia de consoada! Por toda a parte, reina a alegria, que se traduz claramente, em atitudes lestas ou maneiras corteses que acarinham e prendem. Deslocam-se os pais, com grande alvoroço, no peito ardente; guardam os filhos, com raro entusiasmo, vivo, incontido! É o dia da família, o dia do amor, em que se experimenta quão terno e suave é ter alguém que nos queira a valer, ame e embale! Alguém que nos fite, com olhar amoroso!

Oh recordações agridoces! Que me trazes tu, 24 de Dezembro de 1965?!

Estou agora na sala de visitas deste grande complexo. Aqui, precisamente, é já costume velho reviver tempos idos, pois suspensos, das paredes, fixam-me rostos, de alguém influente, que desempenhou um bom papel, no proscénio da vida. Medita-se aqui, por força e jeito.

Já não conheci os vultos expostos que, em sua linguagem, dizem claramente que tudo acaba, não ficando senão a memória da virtude ou a grata lembrança de uma dedicação, abnegada e forte. Já fiz parte dum lar. Era tão feliz! Pudera eu voltar ao ninho aconchegado, que sempre me embalava, com enorme desvelo!

Mas a ventania dos grandes temporais a maldade dos homens e até, por vezes, a minha ingenuidade, consumaram a desgraça! A quem me junto eu, neste dia e lugar?! Se tirito de frio, no corpo e na alma! É ao vácuo imenso, à minha desventurada, triste e negra sorte?!

O QUE PRENDE À VIDA

Por entre a multidão, que se apinha na rua, vai rompendo a custo o pachorrento eléctrico. É tempo de lembranças para os membros da família. Os pequerruchos tinham já insinuado as suas preferências, que foram registadas secretamente por alguém amoroso.

À minha frente, vai um papá, que figura sonhar. Não dorme, bem entendido, mas o seu pensar vai longe dali! Um triciclo novinho cativa o seu olhar, embevecido e quase estático. Antevê o regozijo, que o filhinho vai ter e este facto dá-lhe voltas ao miolo!

Ele ainda é jovem: tem aspirações! Eu já sou velho: por isso, não as tenho!

Olho mais ao largo: são tudo lembranças, envolvidas adrede, com vista à surpresa! À minha volta, porém, há imenso vazio, fundo e gelado, que destrói a vida; não sou realmente o que desejava: antes, sim, o que outros quiseram, impondo-me em tempos amarga solidão! Com ela estagno, me afundo e abismo!

AMARGO ADEUS (1937)

Corria o ano da Graça – 1937. Havendo já concluído o seu 4º ano, Beto e Saturno foram dar uma volta pela cerca do Internato. Razão para tanto?! O último adeus às plantas amigas que viram crescer e tantas vezes tinham regado, em dias calmosos. Eram familiares os muros de resguardo e conheciam a fundo a história curiosa de cada planta! Queriam, pois visitar de espaço aquela zona, deveras saudosa!

Ficava por ali boa parte da vida, que passara em canseiras e, muitas vezes, em incompreensão. Talvez por isso, ligara-se a alma às próprias coisas, sendo penoso separarem-se delas! Era então por fins de Junho e aguardavam que chegasse o comboio. Entretanto, por falta de relógio, houve algum descuido, o que era justificável, dadas as circunstâncias, acima expostas.

Na chegada à sala de jantar, houve um pouco de atraso! O que vós fizestes, ó Beto e Saturno! Vem de lá o faz-tudo, com maneiras desabridas, sem comedimento, de espécie alguma, censura duramente a atitude assumida, com aspecto ”horrendo, fero, ingente e temeroso”.

- Nesta casa, não há quem governe?! Cada um faz o que quer?

Quais mansos cordeiros, empolgados até pelo fascismo reinante, assim se mantiveram, sem tugir nem mugir! A breve trecho, viria o comboio, para libertá-los daquela opressão. Desta maneira, ficou o rancor no seu coração, pois os chefes-verdugos não viviam de facto os problemas dos jovens nem amavam decerto os seus educandos. Assim, à data, era a pedagogia daquela época!

MEDIR FORÇAS

Entre as coisas mais selvagens que vi praticar, naquele Internato, estavam por certo as lutas renhidas, entre os veteranos e os recém-chegados – os pobres caloiros! Que fim haveria, nos pedagogos do tempo?! Ignoro-o por inteiro! Ainda hoje, por mais voltas que dê à pobre imaginação, não consigo descobrir a razão de tais factos, aprovados pela cúpula.

Ninguém, por certo, faz a mínima ideia, acerca do furor e da brutalidade, que essas lutas revestiam! Era, na verdade, um ataque em forma, já canibalesco, já praticável, na Esparta de outras eras. As armas de ataque eram improvisadas, no próprio momento, servindo para isso quanto se deparava: cintos variados, de fivela para fora; pedras de arremesso; tutores das árvores; etc., etc. Um despropósito!

De quem era a culpa? Do Chefe, por certo, e do grupo manobrado, seu fiel servidor! Enquanto ele, pelas cercanias, folgava alheado, os pobres rapazes debatiam-se em espasmos, entre o receio de ser expulsos e os magros haveres que seus pais detinham. Uma forma rara de escravatura, levada a efeito por homens da mesma cor! Exploração abjecta da condição humilde?! Desmoronamento e ruína total da personalidade, que ficava amarfanhada para todo o sempre?!

* * *

Dez horas da manhã! Lá fora, nevoeiro espesso, lá dentro, ambiente pesado, soturno, frio. Faltam ali vagidos infantis, correrias loucas para a chaminé, alvoroço esfuziante, surpresas desejadas. O que faz a vida um tanto agradável, atraente e bela fora proibido! Impuseram-lhe um fardo, a que não se adapta, sujeitaram-no ainda a certas convenções, que vão contra o seu querer.

O ambiente em que vegeta fá-lo egoísta, contra vontade. Lidar com alguém, sem compreensão, formado outrora na escola da rudeza; suportar caprichos de gente sem cultura, nem delicadeza; ouvir comentários de povo indesejável será fascinante?! Estimulará no próprio coração desejo de ser útil?! Mas a quem?! Talvez a uma pedra?! A seres pensantes, que não passam jamais de simples aberrações?! A mesma frieza e indiferença de que estão sendo alvos?!

Ai! Mas se ele tivesse filhos, as coisas mudariam! Haveria a seu lado o fogo de seus beijos; a carícia leve de suas mãos puras; o aconchego de seu peito; a delícia incomparável da sua candura; o feitiço de seus olhos; a vida que sonhara!

ORIGEM DO TÉDIO

Quando falta na vida centro de interesse, vem logo o tédio. Que representa, no tocante a mim, a existência que levo, no mundo que aborreço?! Que vale para mim o egoísmo disfarçado, a hipocrisia velada, a frouxa santidade?! Creio sinceramente que haja fortes motivos a encher em pleno a vida de outros. Na verdade, os que gozam a ventura de ter filhos seus, rebentos genuínos do próprio ser, têm razão de se apegar ao tempo, diligenciando, a todo o custo, angariar o necessário, para tornar agradável a existência do lar.

Assim a vida é pautada por uma linha viva; o próprio tempo é consumido sem náusea; a existência humana reveste para logo um aspecto fagueiro, que prende e fascina. É este o grande centro do verdadeiro interesse, que pode encontrar-se na vida presente. Isto vem confirmar, de modo inequívoco, esta grande realidade: a mola real da existência humana é, a bem dizer, o próprio egoísmo. A esposa e os filhos interessam deste modo, porque são nossos e nos amam também. Vemos em todos a imagem de nós próprios e apresentam-se a nós como amigos leais e defensores capazes.

Fora deste mundo é tudo mentira! Os próprios homens são de facto os lobos dos outros homens. A sabedoria antiga havia-o já condensado num prolóquio famoso: “homo homini lupus”! O grande alcance que tem o rifão! Que mundo extenso e novo a ser explorado! Que sólidas razões me prendem à vida, tal como a vivo?! Nenhumas! Quando tinha os meus pais, via neles razão forte, para eu viver. Precisavam de mim e era grato socorrê-los! A isso levava a minha gratidão!

Mas agora?! Sem esposa nem filhos, sem as fortes amarras que nos ligam e prendem a este mundo, que representa ele para a minha pessoa? Um charco sujo, onde os homens dia a dia vão mascarrar-se; uma piscina imunda, em que fingem todos ou pretendem lavar as nódoas infamantes de vergonhosos crimes; um antro imenso, em que manda a hipocrisia, a iníqua doblez! Os mais astutos desfrutam os ingénuos, caricaturas humanas e puros escravos da tirania!

À margem deste caos ficam apenas os Santos de Deus!

SERÁ CRISE?

Fala-se muito em crise de obediência. Pelo que me toca, não creio realmente que seja verdade! O que há, de facto, é uma atitude de inconformismo com o que chamaríamos “abuso de autoridade”. Foi esta exorbitância, vinda de cima, que gerou, por força, esse estado de coisas.

Portanto, o que urge corrigir, não reside nos súbditos, mas nos Superiores. Logo que eles mandem, segundo a equidade, não servindo o egoísmo nem os gostos pessoais, fica aberto o caminho, para se chegar à tomada de consciência, por parte dos súbditos.

O mal está em cima; não decerto em baixo! Não quero dizer com isto que nada haja para corrigir, nos chamados subalternos. Entretanto, as coisas só mudam, quando o reviramento começar por cima.

AO PRESTAR DE CONTAS

Fernando de Córdoba conquistara Nápoles para a coroa de Espanha, no reinado glorioso de Fernando de Aragão. No final, porém, apresentou ao Rei umas contas de tal ordem, que se tornou proverbial a frase seguinte: ”Cuentas del gran Capitan”.

O caso aludido passou-se deste modo: 100.000 ducados, para balas e canhões; 10.999 para luvas odoríferas, a fim de evitar contágios maléficos; 160.000 para reparação de todos os sinos que proclamaram a grande vitória do exército espanhol; 200.000 para indigentes e religiosos, e “Te Deums” em acção de graças; 100.000.000 pela paciência com um Rei que pede contas a seu vassalo, havendo este conquistado um Reino famoso para a sua coroa.

PAPÉIS DE BETO

Um dia sem cor, um espaço de tempo bastante insípido; um intervalo detestado e cheio de amargura! E a vida é feita assim! De parcelas desbotadas que, reunindo-se todas, a pouco e pouco, a esgotam e destroem! Não é só que foge, sem intento de reavê-lo: é o que se despende em intensa vibração. Para quê, pergunto eu, estas mágoas tão fundas?! A que propósito vem uma tempestade, assim violenta?! Que lucro, afinal, de sofrer assim, e deixar esmorecer o meu coração?! Foi isto afinal com os subalternos, mais em evidência.

Por que não deixar correr, olhando sem interesse, para quanto me rodeia?! Alguém me rende graças, por tão funda amargura?! Seriam capazes de rir à minha custa, uma vez que tal coisa é mais consentânea. Sofrer comigo já não há quem o faça, que apenas em família isso pode acontecer!

Há, sim, quem persiga; corações de gelo, sem nunca fundir, em que a polidez não mora nunca e, muito menos, doce carinho! Reina ali amor de cão, onde o sexo é tudo e a afeição quase nada! Que valor será este, se conta apenas o sexo, ficando tudo mais sem preço nem valia?! Onde a gentileza, que a todos encanta?! O carinho estreme que nos domina?! A compreensão que nos abraça e confunde?! Vivendo entre feras, que podemos esperar?! Apenas um caminho: fugir, fugir, desabaladamente!

* * *

Acabei de jantar. A companhia desfez-se, mas eu fiquei só. Melhor: também formo grupo, já que a solidão, a amargura e o silêncio me fazem companhia! Em tertúlia permanente, os grandes amigos dialogam baixinho, com receio enorme de gente curiosa, indiscreta e má! Em conversa franca, o tema habitual é só a tortura. Jamais a discussão, como se os infelizes, pressentindo a desgraça, antevissem, de longe, a urgência premente de forte união.

Olho-os atento: inspiram-me simpatia. Tão irmanado já vivo com eles, que mal os distingo do meu próprio eu. É por isso que os amo e lhes quero tanto, que não posso arrancar-me de seus braços amigos! Que seria a minha vida, sem eles comigo?! A quem recorrer, nas horas adversas, que são tantas na vida?! Levado por esta ideia, agarro-me a eles, como única tábua da minha salvação.

Amigos meus e tiranos também, nunca me deixeis! Se a dor é minha herança, com ela morrerei.

* * *

Um dia quentinho, em plácido Outono, embora não logre verter em peito uma réstia de si! Para quê, afinal, tentar iludir-me, se tudo perdi, se já não tenho ninguém a quem possa abrir o meu coração?! Parece haver largado para remotas paragens, em busca da ventura e que, vencidas que foram enormes distâncias, volto sem nada à casa paterna! Melhor diria: volto, sim, mais pobre e miserável, pois deixei no caminho a luz da esperança! Encontrei alguma coisa, nesse longo percurso?! Só ilusões que paguei bem caro! Sonhos amados, que degeneraram em longa tragédia! Desenganos vários que assaz me oprimiram! Traições cruéis que logo me torturaram!

Entretanto, quando a vida me sorria, tinha gosto de viver: preocupações e maus bocados, tudo se evolava, quando ela, meiguinha, me instilava no peito unguento de magia, para lenitivo da minha angústia. Hoje, porém, que resta desse tempo, que tantas saudades me deixou na alma?! Destroços e ruínas, estilhaços a montes, pó, cinza e nada! Como sinto a nostalgia penetrar-me no peito, onde se anichou, talvez para sempre! Só vivo de tristeza, desilusão e pesares, não sabendo procurar-me qualquer outro alimento!

Mas eu, a rigor, não fiz mal a ninguém! Como pode ela ser tão cruel, para abrir-me a cova, se vivo ainda?! E no entanto ela foi para mim um deus terreno! Uma paixão violenta, forte e ardente! Sonho dourado e orgulho da vida! Quanta esperança nela depus! Quanto carinho eu lhe dediquei! Quanto alvoroço, no meu coração, por tudo aquilo que lhe respeitava!

Se algum dia souber como era prezada, no interior do meu peito e como lhe queria ardentemente, embora por vezes o não mostrasse, irá sentir amargo remorso. Será tarde já, porque eu assim não posso viver! Querer um arrimo e não encontrar onde ponha a cabeça! Esperar conforto, deparando-se escolho! Almejar com ânsia por oásis de paz e mover-me guerra aberta! Oh como é negra tal desventura!

Posso dizer que já não tenho ninguém! Sozinho! Horrivelmente só! Como esta palavra é chocante e ingrata! Como ela soa mal ao ouvido enamorado! Julgo, por vezes, ser um dobre a finados! Um dobre plangente, a repercutir-se, de quebrada em quebrada, galgando montanhas e transpondo vales! Que fazer então, perante as ruínas, que vejo em montões?! Morrer, procurando silêncio, a paz dourada que jamais encontrei! E os sonhos de ventura, em comum delineados?! Aonde foram parar e ocultar-se de mim?! Que vento furioso arrastou para longe horas e momentos, que jamais voltarão?!

Onde morais hoje horas tão belas do meu viver?! Soou meio-dia, ouvindo-se mal o arrastar ondulante da última pancada! As horas escoam-se, os dias também e com eles me vou eu, chorando sempre a minha desventura! Se pudesse alterar o curso da vida! Se na mão tivesse a cura dos males! Mas não! Está fora de mim! Quem podia fazê-lo já me esqueceu!

Voltarás ainda, ó felicidade?! Longe de quem amo apaixonadamente, nada me encanta Se a tiver perdido para todo o sempre, levantarei no peito um altar de flores, para nesse segredo lhe prestar meu culto. É o maior amor que se pode votar, por ser a rigor, desinteressado: não espera recompensa. É um amor sacrificado, pura devoção, que talvez me dê alento, para acabar meus dias.

Há tanto egoísmo, pelo mundo além! Vejo tanta hipocrisia! O ambiente que me envolve regurgita de micróbios, deletérios e vorazes! Um amor assim é incomparável e até sem igual! A minha amada não lerá jamais estes breves dizeres, em que ponho a alma e que foram testemunhas de lágrimas sentidas! Para que hão-de servir?! Para volver ao passado e renovar, deste modo, as chocantes impressões, que me estão esmagando.

Entretanto, não são para aventar os tristes clamores que eu e mais ninguém posso entender, porque são pedaços de alma estrangulada! Ó casinhas sorridentes do bairro Santiago que tantas vezes olhei enternecido, em horas de ventura, gozada no lugar, onde agora pranteio! Vou dar-vos, pois, o meu último adeus!

Bem hajais então pelo bom acolhimento que sempre me destes e pelo conforto, que nunca me negastes. Reflectíeis para mim os raios dourados, encaminhando-os logo para a minha janela. Que pena eu sinto de vos ir deixar! Mas a vida é atroz! Obriga, por vezes, a assumir atitudes que harto repugnam e a praticar acções, que fundo acabrunham!

Adeus ó esteio, onde fica a minha alma, para o qual desejo as maiores venturas! Que o futuro próximo lhe seja favorável e não sinta nos pés cravarem-se espinhos, que possam magoar! Bem ao contrário, uma chuva de rosas lhe atapete os caminhos, em que fui desventurado! Lugar inolvidável! Repetirei comovido, através da existência, as letras amadas que formam o teu nome, sem haver alguma força, por mais poderosa, que ouse arrancar-mas do peito que as guarda!

Profundamente gravadas, na minha retina, ficam para sempre as linhas elegantes dos teus contornos, esperando confiado que esta imagem formosa avivente um dia o meu coração, já quase destroçado.

PAPÉIS DE BETO

Saí de casa, por volta das 14, no intuito fagueiro de achar lenitivo, para a alma atribulada. Tão infeliz tem sido a minha existência, que só a muito custo a vou suportando. Crêem-me ditoso! Pensam talvez que nado em ventura! Como distam os juízos e as mesmas aparências, da crua realidade e quanto ela diverge do que outros imaginam!

Em 12 e 13, vivi chorando, envolvido já numa luz tão débil, que mal posso avistar o que então ocorreu! Com temor o faço, embora as palavras escasseiem, de momento! Para a meia-noite, faltava hora e meia. Momento fatídico! Por bem pouco não ia trazendo a suprema tragédia! Minha pobre mãe quase agonizava! O amor dos amores a ponto de arrancar-se da minha alma em ferida! Para sempre, cá na Terra! Jamais veria aquela que tanto me quer! Jamais contemplaria aqueles olhos tão lindos! Como pode ser, meu Deus e Senhor?!

E esse dia chegará! Poderei resistir a um golpe tão cruel?! Serei capaz de medrar, sem a graça incomparável do sorriso materno?! Deixarei, no futuro, de ser já criança?! Haverá no mundo uma força poderosa, capaz de arrancar-me de seus férreos braços?!

Ai! Como sinto agora a minha alma vazia, sem coragem bastante, para arrostar com o peso da vida! Então sozinho, sem peito amigo, que infundisse algum ânimo, estremeci, de horror e viva paixão! Pensei a fundo, nessas horas amargas, que ainda agora requeimam o íntimo da alma, em alguém que estava longe, muito distante, mais longe ainda, que eu podia supor!

É assim a minha cruz! Confiado, pois, em que eu, de facto, buscava lenitivo, só achei então quem fundo cravasse, na minha alma dolorida, este espinho agudo que a vai dilacerando! Por esta razão, escrevo e choro, derramando em vão dessoradas lágrimas. Se eu não tenho ninguém! A quem me chegarei, na mira de socorro?! A resposta certa é um longo silêncio, pesado e mudo como sepultura! Tudo funéreo e silencioso, cheio de amargor!

Gostaria de morrer, junto a minha mãe! Quem perdeu a esperança, em que pode estribar-se?! Quando nada resta e é tudo vazio, desaparece breve o gosto da existência! Viver para quê? Mais desilusões?!

* * *

Não me escreveste! É porque, na verdade, eu nada pesei no teu viver! Escusavas então de havê-lo dito, prometendo enleada, pois estive aguardando, sem nenhum resultado! A quem podia realmente fazer eu falta?! Como fui cego em crer um dia nas tuas promessas! Eu não te procurei! Foste tu em pessoa que bateste à minha porta, que não ousei fechar! Acolhi-te em sobressalto, espanto e fervor! Julguei ser o céu que vinha ao meu encontro e fui venturoso!

Por que viraste?! Já perdi tudo quanto era valioso, para o teu coração?! Relegaste-me em breve, para o montão horroroso das coisas molestas! Queria morrer! Ainda assim, não quero vingar-me nem desejo o teu mal. Sei claramente estar morto para ti. Não me resta dúvida! Estou ciente. Não me esperavas?! E eu a julgar que me estavas esperando, com ansiedade!

Foi este o primeiro e terrível choque, assim que avistei a tua família. Por mais que tente, não acho explicação para um facto assim! Dói-me a cabeça: para tanto basta pensar na minha desventura.

Não me perguntaste pela minha mãe! Isto, no mínimo, pareceu-me grave. Não admira! Já não vives de perto os meus problemas. Ocupas o tempo com outras coisas! Não admira, pois!

Não chegaste ao pé de mim! Foi para isto que me convidaste?! Se pudesse adivinhar, não teria vindo! Como estou arrependido, assim como de tudo quanto houve entre nós! Vim amargurar o meu coração, em chaga viva. Coração infeliz, coração martirizado que lançaste no abismo! Enganaste-me sempre atendendo ao que vejo. Fui tão louquinho!

Que fé inabalável depositava, cego, em tuas palavras! Essa fé morreu hoje. Ficou sepultada na funérea casa, onde alguém declarou, abertamente, que passavas as férias e passeios, e outras diversões de outra natureza, acompanhando alguém.

Por que dizias então, que nunca dançarias?! Por que disseste à mesa que tinhas saudades de Pedras Alvas?! Cavaste assim a minha desgraça, mas sê feliz, que viverei pregado na cruz odiosa que tu ergueste!

São 23 horas e 20 minutos!

CONTINUAÇÃO

Quatro horas e meia desta horrenda manhã. Não consigo dormir. É enorme o desânimo. Poucas vezes na vida terá sucedido! Queria evadir-me e não sei para onde! Talvez para a morte. É ela o refúgio dos que são atraiçoados, recebendo como herança o triste sofrimento! Horrível destino! Mísera sorte!

Aqui juntinho, dormem felizes, a sono solto! Eu, porém, não consigo repousar! A cabeça atordoada vai repercutindo o latejar violento do meu coração. Que faço na vida?! Não seria melhor a fuga dela que assistir a cenas, que me vão consumindo, de hora a hora, momento a momento?!

É certo e sabido que a ventura de uns se faz à custa da angústia alheia. Mas eu não fiz mal a pessoa nenhuma! Por que será que me querem matar?! Em Pedras Alvas, abeiram-se de mim, dizendo sem entraves que devo estar preparado, pois é lei da vida! Que devo realmente encarar as coisas segundo elas são. Aquela gente deseja matar-me! Por que me tratam assim?! Por que é que me falam em coisas dolorosas?!

Aqui então, onde estou agora, fiquei horrorizado até à medula! E era nisto, afinal, que eu punha confiança?! Haverá aí alguém, infeliz como eu?! Oh como anseio por uma vida serena, em que o vivo estuar de fogosas paixões não tenha já vez! Poderei ter paz? Encerrado num Claustro, longe do mundo e fora de mim?! Que haveria na Terra, mais semelhante a jazida funérea?!

Em morrendo minha mãe, já nada espero! Oh esse amor é grande e santo, incomensurável, sagrado e constante, firme e crescente, desinteressado, harto generoso e sempre delicado! No entanto, vou perdê-lo! Como sou infeliz! Que me resta depois? A morte, o não ser! Ainda os infelizes que vivem na ilusão! Andam enganados, mas não experimentam o fel da amargura que me está consumindo! Andam iludidos, mas não se apercebem de seu triste fado! Mas eu! Que triste fadário! Ser informado, logo à chegada, por quem se encontra a par de tudo o que vai!

Não há sombra de dúvida! Não se trata, afinal, de simples conjectura! É um caso triste com tantos outros! Será isto a vida?! Valera a pena suportar um fardo que tanto me pesa?!

É, na verdade, assaz lastimoso que, onde a gente espera vida, se depare a morte! Jamais farei de ti a minha aspiração! Vou, desde já, procurar esquecer-te, se for capaz! Ontem, perdi tudo: saúde e esperança, alegria e paz! Que mais resta perder?! Só um pouco de vida!

Dorme a sono solto, já que és feliz com o meu destino, cruel e sanhudo. Não te importe o caso de haver, neste mundo, quem aumente o número dos grandes infelizes!

Começa agora a cantar o galo que desperta sonolentos ou grandes felizardos. Eu, porém, já não sei o que isso é nem já preciso despertador, porque velo sempre! Quem me dera esquecer-te! Não pensar em ti! Lançar uma pedra sobre o meu passado. Será possível?! Quanto mais anseio, buscando o olvido, tanto mais se aviva e eu me consumo, despertando um sentimento que me fazia ditoso! E então, para maior desdita, hei-de mostrar-me assaz contente, deveras satisfeito, muito agradável e reconhecido.

Como é diferente a crua realidade! Esta vida que levo é feita de enganos, duplicidades, hipocrisia, só aparências! Procurarei lutar, denodadamente! Este amor de azar, que me fez desgraçado, hei-de queimá-lo, dentro do peito, venha embora por isso a morrer abrasado! Oh quem dera acabar meus dias, rumando a Pedras Alvas! Eram dois enterros: o meu próprio e o de minha mãe! Seria tão feliz! Deixava de sofrer, fazendo companhia a quem nunca me traiu! Escreveu sempre em letras de fogo e jamais olvidou o filho tão amado!

Foi esta, pois, a dolente visita! Adeus para sempre, ídolo da alma, que a pesar meu, continua a lembrar-te!

DECEPÇÃO

Sempre que alguém, por tendência natural, após haver contactado os caminhos da vida na vasta sociedade, opta por um da sua preferência, inicia de vez o norte da ventura. Mas, se ao invés, logo em tenros anos, surgem influências, a gravar porfiosas, na massa informe, sinais de intromissão, estamos, na verdade, em presença de abortos, formados com violência, os quais porão em risco o infeliz ser humano.

A princípio, não se dá conta da triste realidade, pois o ambiente é como de estufa. Aos 20 anos, sem qualquer experiência nem conhecimento da vida humana, é fácil em extremo levar alguém desprevenido a pronunciar o sim, num ambiente construtivo de mundo à parte. Mas este não vai ser aquele, em que se vive, posteriormente!

O pior de tudo é quando a realidade se apresenta desnudada! Hora assaz ingrata de altos remorsos, ocasião extemporânea de queixas abafadas, momento de suspiros que é urgente esconder no mais íntimo do peito!

Deixemos a cada um tornar-se o que deseja: um grande santo ou até um da boémia! Deus nos quer livres! Se alguém, por ideal, quer ser violento, que o seja consigo, criando para logo em volta dos outros uma atmosfera de grande bem-estar, de paz e ventura. Abaixo, para já, os assassinos da liberdade! Morram depressa e fiquem sepultados debaixo das ruínas, por eles amontoadas!

Criticam-se em geral os membros duma classe, não olhando ao seguinte: por via de regra, não são eles, de facto, que merecem ali a repreensão. Se não vejamos: onde está o crime de ser mal preparado para a vida real?! Haverá culpa em viver torcido e contrariado, por ser vítima infeliz de um sistema educacional?! O defeito, em regra está na sociedade bem como nos meios por ela utilizados.

Sendo isto assim, atiremo-nos a ela, incitando-a a usar os meios adequados ao fim que se pretende. A cada um já basta, de facto, o martírio inglório de haver sido logrado nos seus ideais. A verdade triste é a seguinte: apercebendo-se do caso, é já tardíssimo para recuar. Outras vezes temem com razão um passo em falso, já por crítica mordaz, já por falta grave de acomodação a nova etapa de vida.

Começar é sempre difícil! Aprender de novo, tornando-se criança, quando já velho, dá rebelião contra a inconformidade, protestos veementes! Cada um só é feliz no seu mundo peculiar - o que elegeu para si, voluntariamente, sem intervenção de qualquer espécie! Os outros violentam, contrários, por vezes, à própria tendência. Quem assim faz é verdadeiro assassino, torcendo a natureza e impondo directrizes.

Degola na forca ainda seria pouco para tais abusadores!

PAPÉIS DE BETO

Havia longos meses que vinha presenciando cenas ingratas, enquanto verificava atitudes estranhas que não se enquadravam, por modo algum, nos hábitos de outrora. Era tudo isto incógnita horrível. Quem eu adorava fazia dislates, dando comigo em Rilha Foles! Enigma, sim, desorientação, mistério e dúvida, furor também, enjoo de tudo era na verdade o que eu sentia.

Tenho comigo a chave do mistério, se bem me informaram. Proibição rigorosa, vigilância apertada, ameaças tremendas, persistente espionagem, onde quer que seja! Mas isto, garanto, há-de solucionar-se! A bem ou a mal! Se preciso for, recorre-se pronto aos grandes meios! Quem é que pode obstar à violência do peito?!

O amor é forte como a própria morte, e não há que ter-lhe mão, porque vence os obstáculos e tudo submete. Após a morte dum ente adorado, já resolvo o problema! Em vida sua, era doloroso tomar resoluções que o ferissem na crença, na alma e na vida! Respeitarei, pois, a sua presença, mas, por fim, todos os obstáculos serão removidos.

Hoje, por má sorte, sofri enorme desgosto, que me fez perder a tramontana.

Por duas vezes, cheguei a um precipício com ideias funestas. À segunda vez, ia mesmo decidido e apenas me conteve a ideia amarga de ficar só no mundo a pobre da minha mãe! Como é já velhinha, ia fazer-lhe falta! Era um homem a menos! Que importava isso?! Há tantos deles capazes de fazer aquilo que eu faço e mais ainda!

Alguém teria pena?! Foram momentos de terrível desespero, até que, vindo à fala, expostas as mágoas que fundo atormentavam, ouvi-lhe dizer: “Quero dar-te um beijinho!“

Nessa hora exacta, todo o mal esqueceu, nova fase se abriu e a bela Primavera voltou sem demora, raiando fagueira, nos horizontes da vida. Pouco depois, consumava a traição: Fiar… só em Deus!

Tu é que um dia bateste à minha porta! Eu não te chamei. Por que é que, depois, te foste embora?!

* * *

O final de ontem, foi uma alvorada, que se ergueu louçã, para desforrar-me de males e penas, que me conturbavam. Hoje, em boa lógica, devia ser também o seu prolongamento, não o sendo afinal, por causa da ausência. Posso ficar num sítio, em que o fulgor de seus olhos deixou já de brilhar?! Mesmo a sofrer era bem feliz!

Quem me dera ir também a caminho da Praia, dando margem aos anseios da minha alma sequiosa! Ser guardado à vista é uma situação harto deprimente e gera no peito funda tortura! Jamais sugeri o problema da fuga, com pena dos pais, mas se ela o tem posto, várias vezes já, é natural que eu reveja o assunto e, mercê das circunstâncias, lhe dê solução, na devida altura.

Não é de suportar ambiente como este! Não posso! O coração amarrado está cheio de ânsias!

PAPÉIS DE BETO

São 9 e 30 de quente manhã, enaltecida e cantada, em frescos soitos e verdes salgueirais, por gaios janotas, melros sonhadores e poetas rouxinóis. É nas cercanias de S. Gonçalo, tão conhecido pela famosa fábrica da família Augustinha.

Gosto de fugir ao bulício dos homens e acolher-me tranquilo, à sombra protectora dum castanheiro gigante, cuja solidez e frescura aliciante me chamam para si. Como sinto à data percorrer-me o seio vida exuberante, aurida aqui no contacto directo com a mãe-natureza! Nada do que é humano agora está presente.

Apenas um desejo, inseguro e vago, que não se concretiza, de uma realidade que não posso esmagar: uma bela companheira, gentil e adorada, que me falasse a preceito, de um mundo melhor; harto me enlevasse, pela sua beleza; fosse o meu orgulho pela sua lealdade e profunda afeição; me ofertasse rebentos do nosso convívio em grande amor, os quais seriam de facto retratos perfeitos dos seus progenitores, prolongando a existência, para lá de nós mesmos.

Seriam eles, sem dúvida, os olhos da alma; eco e voz do coração; enlevo e conforto de tantos dias amargos; vida e razão da própria existência. Tal mulher existirá?! Temo bem que não exista qual eu a ideei, no íntimo da alma! Mais vale passar além! Quero fugir, sim, mas a verdade é que tudo em volta me fala de amor!

O rio sonoroso, em sua melopeia, constante e agitada, sugere-me aferro a estâncias e lugares, que percorre, há séculos e que por isso lhe são muito queridos. As próprias avezinhas, em seus gorjeios, variados e sugestivos, que não dizem elas?! Que não me segredam, quando olho deslumbrado, para os seus graciosos e artísticos lares?!

Porquê então hinos sem fim?! Por que emprestam à voz mágica unção que vem insinuar-se em peitos amargurados?! Só porque elas desdobraram a sua existência noutras diferentes; porque se deram aos filhos dilectos do próprio sangue. Isto, só, faz que alegrem bosques, matagais e selvas, e variem sem medida o seu reportório; que vivam felizes, em torno de seus lares.

Não há dúvida! A vida que se reprime transforma-se em morte; a doce alegria que se refreia, redunda em tristeza. O amor é o sol da vida e quando a haste, sôfrega de luz, se alonga para ele, só lhe resta morrer, se os raios luminosos não podem alcançá-la.

Que ocorre também, no grato acordar da mãe-natureza?! Não é, de igual passo, manifestação de vida e amor?! Por que se vestem as plantas de flores graciosas?! É que estas, afinal, dão origem ao fruto, em que vai o embrião de futuras vidas. Desdobrar a existência, a vida genuína, projecção de cada um e não enganosa e frouxa adaptação de vidas estranhas que não alvoroçam, porque nada nos dizem, é lei geral de toda a criação

Compare-se a madrasta, a ama, a enfermeira, ainda que se trate de casos excepcionais, de invulgar dedicação, com a mãe das crianças! Vereis de um lado o Sol, com vivo esplendor; do outro lado, um pobre planeta, escuro e montanhoso, que pretende iludir-se, julgando ter luz, verdura e Sol. É a luz e a treva, a noite e o dia, o nascer e o pôr-do-sol; oásis fecundo e deserto árido.

É a luz e a treva, a noite e o dia; o nascer e o pôr do Sol; oásis fecundo e deserto árido; a campina e a veiga, o limbo e o Céu.

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