terça-feira, 5 de junho de 2012

M 44 - 1962? a 1964? - PAPÉIS DE BETO 2ª parte

MEMÓRIAS 44

(1962? a 1964?)

PAPÉIS DE BETO ( 2ª parte)

Como é doloroso viver no Planeta, à mercê do acaso! Sozinho e triste, contando apenas com azar e vácuo, tal o meu estado, no momento que passa! Não há voz amiga a dizer condoída: Coitado! Tudo lhe corre em mau sentido! Bem parece até que um destino cruel o persegue e afronta!

Não! Vozes amigas não as tenho já, se é que alguma vez as tive na vida! Provavelmente, haverei tido, sim, mas nesse caso foi sol de pouca dura! Lábios devotados, com sorriso franco a diluir maus bocados, isso é lenitivo a que o meu coração deixou de ater-se, há muito já! Olhar enternecido, portador de venturas, oh! Para onde ele foi!

Estou abandonado, qual pedra do caminho, em que o mundo tropeça, irreflectidamente. Ainda se fosse pedra, não tendo consciência de vida melhor! Mas não! Inútil decerto aspirar a outro rumo! Nem posso ater-me a quem foi meu amigo! É daí precisamente que vem o sofrimento! Hei-de ser ditoso?! Como?! Privado de tudo o que faz a ventura; desprezado e cuspido, ostensivamente, por quem eu adoro (e talvez porque adore!) poderei usuftuir um pouco de alívio?!

Só a desventura me coube em sorte! Por que razão é que hei-de remover qualquer aspiração a ela tendente?! Dias houve, no passado, em que eu lamentava determinada gente, por ser infeliz em seus amores! Hoje, sou eu, na verdade, o tal infeliz, sem haver alguém que se entristeça, a meu respeito.

Havia, porém, determinados motivos para compaixão. Num ponto só, eu fiz consistir a minha felicidade, julgando firme que nem o inferno poderia abalar esse ninho querido que, em sonhos deliciosos, criara para mim. Mas passou pela vida o tornado inexorável e, num acesso de ira, varreu da minha alma o que a fizera ditosa.

Esse ponto mortífero divisara-o um dia, faz anos agora, em lugar bem remoto, perdido no Oceano. De longe o avistara, já embevecido e assaz gostoso, como sendo um refúgio, na alta maré. Corri para ele, desprezando tudo o mais, que então me ofereciam. Larguei à desfilada, embelezei esse ninho, fazendo então ouvir canções deliciosas, que o peito em alvoroço arrancava de si.

Num impulso desmedido, que roçava já pelo mesmo orgulho, desafiei o rouxinol. Nada invejava e tudo me sorria. Tinha-me ali como um soberano! Aquele reino era só meu e de mais ninguém. Vivi, em pouco tempo, agradáveis sensações, que o Amor prodigaliza; senti no meu peito harmonias estranhas que, para almas ditosas, furam compostas; notei delirante, que a sorte maligna se prostrara a meus pés, rendida e humilhada, por me haver contrariado anos a fio.

Perdoei-lhe o descaro e tratei-a com blandícia. Acamaradei com ela, fazendo-a comparsa da minha felicidade. Todo o mundo esquecera. Era senhor dum reino, cuja bela rainha me enchia de meiguices. Que mais precisava?! As aspirações do meu coração estavam satisfeitas. Que mais desejava?! Tinha somente um desejo vivíssimo: comunicar breve à minha adorada parte da ventura que me inundava a alma.

E que par engraçado! À volta, era o Éden! A Ilha Formosa mirava-se altiva no espelho das águas e sentia orgulho das belas paisagens; o arvoredo frondoso, de porte gigante emprestava-lhe também um ar de mistério; as aves canoras disputavam, por seu turno, melodiosas partidas, em que o rei dos bosques ganhava sempre. Nem quero lembrar o ar de mistério que essa ilha tinha para mim, essa Ilha adorada!

Um dia, porém, quando tudo era um sonho, eis que o solo estremece! Um tremor de terra, a que seguiu um naufrágio! Que seria feito da minha adorada?!

Vagas alterosas arremessavam-me em fúria, para todos os lugares. Eu, solitário, desamparado, impotente, chorava, lutando, enquanto no peito morria uma esperança – perder sem remédio, o que tanto amava. Ai! Que fundos suspiros! Que vozes magoadas e gemente queixume! Que gemidos frementes, capazes de abrandar a dureza do granito!

Alimentaria a esperança fagueira de abraçar ainda quem tanto amava?! Estaria já perdida irremediavelmente?! De vez em quando, roçava por mim um feixe de cabelos, que julgava serem dela. Nesta ocasião, esfacelava-se a alma, de não ser tão poderoso, que obviasse aos males, que ali tão perto se estavam desenrolando, nos horizontes da vida.

A esperança, porém, não me abandonara. Podia ser muito bem, que a negra desdita não levasse tudo à suprema desgraça. Poderia ser que um feliz acaso atirasse ainda para meus braços quem fora o enlevo da minha alma enamorada!

O momento ditoso veio por fim, quando já falecia todo o meu alento. A minha alma estava chagada e no meu ser não havia um só ponto que oferecesse calma. Tinha de submeter-me ao sagaz e duro império do cruel destino, pensava eu, já desiludido. Quando, porém, vi num relance fulgurar os belos olhos da minha adorada, recobrei forças, tomando logo ânimo.

Quem sabe lá - conjecturava eu - se virá generosa livrar-me da morte, agindo denodada, contra as ondas furiosas?! Neste momento, abeira-se de mim, numa intermitência e, com ar de mofa e viva repulsa, gargareja, impiedosa aquilo que segue:

“Venho já ler o meu testamento e dizer-te adeus! Não fui ditosa, junto de ti! Agora, soou o momento da libertação! Que ela seja bem-vinda, pois foi por ela que eu sempre ansiei. A tua morte vai ser redenção! É que eu brinco e folgo, à superfície dos mares. No entanto, fica-te para aí a braços com o destino! Jamais nos veremos, porque eu em breve hei-de alcançar a minha alforria!”

Dito isto, nunca mais a vi. Quando estes factos estavam ocorrendo, ia no fim o abalo violento que fizera imergir a Ilha do meu sonho. A actividade interior foi diminuindo, a pouco e pouco e perdi seguidamente a noção da existência. Passado tempo, voltei a mim, deparando-se uma praia de águas barrentas, que haviam depositado seu escorrimento no bojo das rochas. Arrastei-me a custo, procurando abeirar-me de terra firme, para viver ali uma história amarga, só de lembrá-la!

Tem sido ela, na verdade, o alimento diário. Hoje, pois, desiludido e só, aguardo com ansiedade, a minha libertadora: a suspirada morte! Que ela seja bem-vinda.

Para mim não raiou jamais o sol da ventura!

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Acabara o sonho!

Até ao presente, jogaste comigo, a bel-prazer, não me poupando os maiores dissabores. Atingi, na verdade, o que chamam, às vezes, saturação. Já nada me interessa que a ti respeite! A resolução, inabalável e firme, que acabo de tomar, havia já surgido, no meu pensamento, por mais de uma vez. Levado, no entanto, pela minha cegueira que a tudo sobreleva, desistia sempre dos meus propósitos.

Umas vezes, mercê da prostração em que te via lançada; outras ainda, impelido e arrastado por uma força hercúlea, que me vinculava à tua pessoa. Esse tempo acabou. Devido a frequentes e vis atitudes, mataste em meu peito, com perversa ruindade e propósito ímpio, os germes arreigados de um amor sem medida.

A minha disposição não era passageira! Muito ao contrário! Foi sempre intuito dar-lhe seguimento e viver a situação. Tu, porém, decidiste que um amor devotado não te convinha e, por essa razão, resolveste sufocá-lo, à custa de indiziveis e cruéis dislates. À força, não quero. Perdoo-te, sincero, as extensas horas de cruel ansiedade, que me fizeste passar; os momentos amargos, que o meu coração, anelante de amor, teve de carpir, já que houve apenas efémeros prazeres, de raro em raro.

Vivi, na verdade, momentos ditosos, na crença amorosa de que o teu coração era só meu! Delirei a fundo, na grata expectativa de poder legar-te imagens do meu ser e fruto de canseiras. Desprezaste leviana provas ardentes, que tentei oferecer-te.

Quantos dias de angústia! Quantas horas trágicas houve de remoer, a sós comigo, entre os muros deste quarto, que agora se apresenta de cores mais suaves! Houveste por bem, à custa de mesquinhez, incompreensão e vil desprezo, ofensas graves e mal-entendidos, indelicadeza e até aleivosia, apagar no meu ser escravo do teu, os laços profundos que o haviam atado!

Quanto foi árduo romper, eu mesmo, estas sólidas malhas, em que todo o meu ser estava enredado! Assim o quiseste, fazendo tua dita, à custa da minha! Sim, foi o teu desdém que inoculou em meu peito o veneno mortal, portador de agonias! Foi a tua obstinação em fazer sempre o que te agradava que gerou, a breve trecho, o pensamento amargo de vir a deixar-te!

Pedias perdão! Era talvez para gozares mais, segundo o teu capricho! Por que repetias vezes sem conta, frases saborosas, que traziam minha alma aprisionada à tua?! Impunha-se a verdade, logo no princípio, quando notaste que eu, realmente, não era ideal para o teu viver! Mas passe tudo! Hoje, é certo, não sinto já o fogo intenso, que me havia abrasado! Tiveste maneira de fazê-lo abater! Como foi possível, se era ele, afinal, a razão da minha vida?!

Se eu tudo fiei do nosso grande amor?! Se nada mais eu queria senão o teu e a ti mesma?! Serás feliz? Desejo a valer que se realize aquilo que previste, levando-te a praticar essa feia acção, que gerará remorsos até ao final! Agora, nada mais peço. Puseste a minha alma em ruína e destroços. Outra coisa não é o que ali depositaste. No entanto, sê feliz!

Se precisares de mim, terei imenso gosto em dar contributo a quem me desgraçou. As tuas palavras, nos últimos dias, andam no ouvido, em surdina arrepiante, que me enche de pavor! “Não me interessa de nada! Hei-de dançar, pelo S. João. Alegre-se com isso ou entristeça-se, é-me indiferente!”

Foi tudo isto e, mais ainda, tuas obras repelentes, que me viraram todo, se bem que à força e no meio de lágrimas. Mas nada interessa! Se verti amargo pranto, só o recordo, ao ler o meu Diário. Ninguém jamais saberá quanto hei sofrido. Aprendi a ser vil, com as maneiras próprias de quem se julgava estranho a estas fraquezas. Se eu tivesse dado causa, ainda passava! Mas nunca em meus lábios surgiu impulso, que não fosse beijo terno, revelador de mil ânsias que se geram, no peito.

Nunca em meus braços houve outra posição, que não fosse a de um longo e sentido abraço. Jamais de meu seio rompeu emanação que não tivesse por objecto quem eu adorava.

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Para que hei-de lembrar coisas tão amargas?! Valerá bem a pena recordar ainda o que me encheu de ilusão?! O que dá consolação, nesta dor sem fim, é pensar agora que não fui eu, afinal, quem rompeu os laços que prendiam nossas almas. Sendo isto conforto, nesta hora ingrata? Viverei de tão pouco?! Será isto vegetar ou viver a vida?!

Admito o facto de ela vir suplicante, junto de mim, implorar perdão. Não sei o que vou fazer, perante a sua face, pálida, chorosa! Ante alguém generoso, que se doou no passado, embora ao presente deslustre o seu nome e a minha reputação, com atitudes soezes que me fazem corar! Não posso antever qual a minha reacção.

Virá ela invocar as provas sinceras, que outrora me deu, em sinal irrefragável de não me haver atraiçoado?! Resistirei então ao pedido carinhoso de quem amei loucamente e que, mesmo ferido, prossigo em amar, embora as palavras insinuem o contrário?! Apesar de tudo, não me sinto agora já tão amarrado ao que julgava estável! Respiro desafogado, nada esperando também. Ao menos assim escuso de ser logrado, como fui até aqui.

Enquanto esperei, iludindo-me com arte, a toda a hora, sofri o que Deus sabe, pois queria as provas dum grande amor, para que este se nutrisse. Faltaram, há muito, e como sem elas não posso viver, morri para o amor. Vou criar um ambiente, em que a vida amorosa se abisme para sempre. É boa verdade que não vai faltar alguém que retribua sincero a minha afeição, com desinteresse!? Poderei ser ainda mais venturoso do que até agora!?

Como a gente se engana a fazer suposições! Mas quê?! Aguentar, resoluto, os funestos destroços dum peito humilhado?! Sofrer impávido o aspecto sinistro, que os destroços oferecem ao olhar desalentado?! Não fui o causador! Quando ela voltar, sentirei no peito imenso desejo de logo perdoar, mas é assaz provável não o fazer, porque a minha vontade está hoje ferida, mais do que nunca!

O que seguiu o baile não deixa dúvida, acerca do caso. Escuso agora de me andar a iludir, pois tal assunto ficou bem claro! Que mais provas dessas eram precisas?! Necessitava eu de alguma coisa mais?! Mas, cego como andava, nada vislumbrei, ao vê-la prostrada, não sabendo já que fazer-lhe em benefício. Por isso, voltei de meus propósitos! Jamais farei tal!

Os dias volveram e, juntamente com eles, a desilusão. Exigi então provas seguras, mas não vieram! O que eu noto, realmente, com alto desespero é que ela prossegue, acamaradando com os mesmos parceiros do baile infamante. Pensando nisso, caí de muito alto! Como não ser grande a queda e o efeito?! Poderia acaso ficar ileso?! Ninguém o esperava!

O meu infeliz ser não aguarda conforto, pois fui renegado como vil criatura! Perante um inêxito, assim desagradável, vou ganhar ânimo, a fim de que, ao menos, se não ria de mim!

Afivelarei pronto a máscara – capa do grande sofrimento - para que não transpire, embora a minha alma esteja num sudário. As últimas provas são já concludentes.

PAPÉIS DE BETO (continuação)

Chegou para mim a hora cruel, adversa e trágica. Hora horrível, angustiadora, e assaz maléfica! Hora amarfanhante, que faz dos meus olhos fonte perene, deixando o peito em chaga viva! Se tu imaginasses o que tenho sofrido! Nunca imaginei que uma alma cristã pudesse fazer face ao mundo tormentoso, que há sido o meu!

Primeiro, o sofrimento moral; depois, o físico também. Não queria dizer nada, para não te afligir.

Se não olhava, era simplesmente para não chorar, em presença alheia. Ao mesmo tempo, estranhava assaz que não me perguntassem o que tanto amargurava a minha existência, para assim andar. Se eu tivesse comunicado a angústia de alma, não estava a braços com o grande infortúnio, que agora me atormenta!

Foi no sábado. Vi-te acompanhada por certa pessoa, que me fez muito mal, e a ti igualmente. Qualquer ofensa, dirigida a mim, também a consideravas ofensa tua. Desde essa hora, jamais pude ter um momento de paz. Era uma pessoa de quem te falara, mais de uma vez, e que me tinha provocado enormemente. Foi por isso que não tive coragem, para falar contigo. Deixei correr o tempo: falta de apetite, noite velada, desgosto e enjoo de quanto me rodeava, náusea de todos! Só de ti é que não!

Mas nunca perguntavas nem escrevias, a inquirir das razões, na mira de confortar-me! Agora, talvez seja tarde e horrivelmente fora de propósito! Tremo e choro, de alma e coração, ambos em ferida, sem peito amigo, para descansar! Nunca minha alma fora assim provada, sem lenitivo! Perguntam-me que tenho, quase me forçando a pormenorizar, mas apenas tu é que podes conhecer os segredos da minha alma e bem assim os escaninhos do meu coração.

Agora me lembro: algumas vezes, tentei aproximar-me; entretanto, passavas fugindo, como se eu, na verdade, houvesse já feito acção criminosa. Segunda-feira seguinte, após o sábado tão malfadado, regressava do trabalho. Olhando, por acaso, que noto eu? A mesma cena, o mesmo companheiro, em vez de mim! Se o meu coração ninguém ali consente! Já não comi! Fui prestes deitar-me. Desde essa hora, tudo mudou! Tudo perdeu logo a cor e a graça, tornando-se vã qualquer iniciativa, para distrair-me.

Houve também, ao longo da semana, tonturas como as tuas. Mas eu estava só, não tendo a sorte de ver um rosto querido e amável. Socorri-me dos móveis e já não sei bem o que é que sucedeu. Chorei amargamente a minha solidão. Mas, se aquela que eu amo não pode abeirar-se, a quem recorrer?!

Hoje, de manhã, devido a contratempos, que me foram contristando, verifiquei, angustiado, a coisa mais horrível que podia acontecer: hemorragias, no olho esquerdo! Meu Deus, tende compaixão deste infeliz! Que será de mim?! Terei de viver da caridade pública! Serei um farrapo, aos pés de todos! Alegria pessoal jamais haverá! Sim! Jamais um sorriso pode escapar-se de meus lábios tristes! Jamais verei aquela por quem sofro.

Virão brevemente as trevas da morte sepultar-me ainda vivo, tornando-me de facto um ser abjecto! Jamais poderei ver os teus olhos formosos! Tudo perdoo, minha adorada! Até este mal, decerto o maior que podia ferir-me! Até a própria morte! Que Deus me perdoe, se amo em excesso!

Bem sei, na verdade, que já me não ligas, por tornar-me vão, inútil e molesto! O que mais me aflige é não te ver já em posse dum Curso. Parece-me até que não seria tão grande a angústia de alma! Deus me acuda! Já não valho nada! Para nada sirvo! Perdoa os desabafos, mas não tenho ninguém para quem os fazer! Se merece alguma coisa este pobre infeliz, escreve ainda hoje, a fim de que a má sorte não me atire, ainda vivo, para a sepultura. Quero convencer-me de que não seja, a rigor, verdadeira hemorragia! Já não sei nada!

Reza por mim a Santa Luzia e diz à manita que lhe peça também (os meus olhos choram copiosamente!) Rezas por mim? Escreves ainda hoje? Estou tão só! Ai! Meu Deus! Como sou desgraçado!

* * *

Visse eu hoje uma carta, grande, muito grande, qual a imensa dor que me prostra agora, parte dos meus males talvez se evitasse! Não sendo hemorragia, (é mancha enorme, do lado direito), pode ser que levante, após uma noite, passada em calma. Que será de mim?!
Se quiseres ajudar-me e eu o merecer, chegou o momento: agora, mais que nunca, preciso eu de ti!

Ainda, neste dia, me darás um beijinho?! Havia de ser tão grande ventura! Necessito de ti e dos teus carinhos! Sinto os meus dias tão amargurados, sem a luz dos teus olhos poisar nos meus, já quase a apagar-se! Mal imaginas quanto eu já quero à minha adorada! A ver se esta carta chega, ainda hoje, ao destino que és tu! Não tens receio de parecer o que és, aos olhos dos outros?! Lembra-te sempre de que não tenho ninguém e preciso de ti!

Mas, se te aborreço, com esta franqueza, perdoa a moléstia, olvida tudo e esquece-me também, que eu vou perdoar! Se, pelo contrário, alguma coisa valho a teus belos olhos, traz-me ainda hoje alguma gulodice, para alentar o ânimo prostrado. Será esta, na verdade, a última carta?! Jamais verei o Sol a brilhar prazenteiro, sobre a linda paisagem que me enche de encanto?!

Nunca mais, embevecido, poderei contemplar as cores e o matiz da bela Natureza?! Tudo vai fechar-se a este infeliz?! Será, pois, a escuridão a minha companheira, nos últimos dias? E o teu rosto adorado que tantas vezes sorria, procurando suavizar-me as agruras da vida?! Jamais o verei?! Minha adorada, vida e encanto da alma agonizante, infunde alento ao meu coração que já desfalece! Ainda me trazes a grata esmola de teus doces carinhos?! Ainda estás disposta a dar-me um beijinho?! Não te negas a mostrar que amas, de facto, e que este amor te faz ditosa?! Há disposição para abraçar este corpo, que tem envelhecido, nos últimos tempos?!

Não te aflija, suplico, o longo estendal! Basta que eu chore! Tu não mereces que a vida te oprima! És muito criança! Chegará ainda hoje a meus sôfregos olhos a missiva grande e consoladora?! Apenas tu é que sabes curaras minhas mazelas. Galenos e amigos, pessoas de família ficam impotentes, ante o meu caso! Não fiques triste, não?! Que é que me prometes?! Oh! Se eu lesse no papel expressões que já vi e certos dizeres, a vida sorriria, afastando para logo aspectos severos que já revestiu!

Que dizes, meu Bem? O que peço, de momento, é tão-somente que não deixes abater-te. Suplico isto como grande favor. Gostava bastante me informasses do seguinte: estas realidades, choradas por alguém, em franca agonia, fazem-te enjoar? Nesse caso, eu emudecia! Nunca mais da minha boca ouvirias um ai que fosse aborrecer-te! Tudo esconderia, no íntimo da alma, embora soubesse que a morte e a desdita morariam perto.

Se tu és clemente, como ainda julgo; se a minha ventura descobre um peito, cheio de riquezas; se a minha alma ouvir a tua voz; se o meu rosto sentir a carícia leve de teus lábios ardentes, não será tão duro o baque dum sonho que ameaça ruínas.

Adeus, até breve ou até nunca, se o teu coração tal dispuser ou o grande infortúnio me chegar aos lábios o cális amargo da suprema desgraça.

Saudades sem fim de quem nada vale, mas continua fiel até respirar, pela última vez.

O sem ventura

Passaram 15 dias, sobre o malfadado, triste e aborrecido 22 de Dezembro, do ano transacto. O que tem sido o tempo e a vida, a partir de então, impossível se torna descrevê-lo em palavras. Tantas e tão grandes impressões dolorosas! Não há meio possível de recordá-las nem é grato fazê-lo! Noites mal dormidas, horas de amargura, dias infindáveis, incompreensões de vária ordem, o pensamento amargo de que sou rejeitado! Pai do Céu! Que faria, realmente, para assim me tratarem?! Sempre devotado a um rosto querido que eu tanto amo! Por que razão me vota ao desprezo?! À dor constante, minha companheira, já inseparável?!

* * *

Querida amiga:
Agradeço primeiro a grande benevolência, que tens mostrado, interessando-te pela minha pessoa, ao veres-me aferrado aos bens deste mundo. É muito possível que tenhamos um alvo e esse tal – não posso duvidar – é a minha ventura. Se não é isso, por que me visitas, sempre que se aproxima data assinalável, na minha existência, pobre e obscura?! Vivia descuidado e, segundo parecia, feliz e tranquíla corria a minha vida. Aproximam-se os anos, já que, volvidos, sete dias apenas, se perfarão, sem delongas, algumas dezenas de dores cruéis, motivadas por espinhos, agudos e eivados.

Bem hajas, pois, companheira amiga que nunca me esqueces! Foi no sábado. É hoje o terceiro dia que os meus olhos cansados e lavados em pranto, derramado às ocultas, no interior deste quarto, continuam, mas em vão, a chorar, inconsoláveis. Esperei uma carta, nesse mesmo dia, que rezasse deste modo:
“Meu querido! Amor firme do meu coração! Vi-o hoje amargurado e mais amargurada ficou a minha alma, por não saber o motivo dessa estranha dor!
Creia para já que me domina a fundo violenta comoção, ao notar, em desalento, que na sua alma lavra talvez horroroso desespero ou um não sei quê de que eu, na verdade, poderei ser culpada. Não sei ao certo! Por isso, aqui estou, oferecida e pronta a tudo o que fizer a sua ventura, que é também a minha. Diga! Fale sem reserva à sua amável e querida feiticeira, para que esse mal em breve o abandone. Esclareça o que deseja!
Imponha sacrifícios e verá, depois, como é recebido, generosamente!”

Ah! Mas essa carta que traria a salvação, não chegou ainda nem chegará! Eu, na verdade, sou tão infeliz, que ninguém existe, para comparar-se! Quem vai condoer-se do meu sofrimento?! Ninguém! Passo na vida como zero à esquerda! Valerá então a pena viver assim esta vida, que me oprime e assoberba?!

Quantas vezes pensei já noutra amiga certa, que fechou os ouvidos ao grito exasperado da minha aflição! É a morte segredo e sepultura dos males da vida, mas ela não atende meus doridos queixumes nem ouve os meus ais.

Oh! dia de sábado, verdadeiro assassino da minha paz dourada! Para que surgias, com sina execrável?! Para que fulguravas, ó Sol benigno, em dia tão mau?! Seja ele então, para meu castigo! Estou resignado! Nada importa isso, pois já me esqueceu a doce eleita da minha alma sedenta, por quem tenho sofrido! E eu que, embora infeliz, não posso vê-la triste!

Eu que não posso admitir que o vento a moleste; eu que sou louco por ela, eu que estou disposto a tudo, para que a vida lhe corra bem, tudo faria, a nada me negando. Meu Deus, como é pesada a minha existência! Não aguento esta vida!

Sábado! Palavra detestável, dia amargurado, em que alguém impiedoso feriu a minha alma, louca de amor, com horrível acção! Que respeito merece?! Haverá aí sombra de consideração?! Que afecto é aquele que não hesita um breve espaço em torturar-me?!

* * *

“ Eu sei muito bem
Que aquele alguém
De quem tu gostas
Te sacrifica
E à tua desdita
Já voltou costas”

Acabo de ler, uma vez mais, aquelas palavras, que foram escritas pela tua mão. Era eu bem feliz, quando meiga e carinhosa, vinhas ter comigo, a fim de aliviar tantas horas amargas, que atribulavam meu peito dorido. Foi num tempo de incerteza e grande amargura que irrompeste generosa, qual sol radiante, para afastares, da minha beira, as sombras negras que então a envolviam.

Delirei, ao achar-te, nos caminhos da vida, assim prazenteira, fiel e prestimosa, Um mundo novo, todo cheio de esperança, começava a delinear-se. Sonhei noites a fio, e os dias mais não eram que mera continuação do sonho embalador. Que me importava o resto se tinha um coração a mim devotado?! Em ti repousava de fadigas e trabalhos. Quantas vezes sucedia figurar-te presente, a verter no meu peito, cheiinho de saudades, o unguento salvador!

Esperei uma cartinha, durante as longas férias, mas não tive sorte. Entretanto, vim embalado por um sonho lindo, que assaz me arrebatava! Ficar bem perto de quem estimo e a quem muito quero! Cheguei e vi-te mudada. Notei angustiado que não eras a mesma. Como então fiquei! Sozinho no mundo, a quem recorrer?! Pobre de mim! Não tivera eu experimentado já teus doces carinhos, não me custaria! Mas assim, é de morrer! Tenho esperado em vão o dia bendito ou hora feliz, em que surjas, num momento, para secar o meu pranto.

Já nada te importa o meu viver solitário e assim atribulado?! Não me procuras e foges de mim! Como sou desditoso! Deixaste-me só! Foste ingrata e cruel! Não posso mais! Queria haver-te informado, mas não consegui! Faltava coragem! Por esta razão, não podendo sofrer, expus no papel a minha desventura e causas atinentes. Que grande tormento este que me abate! E tu sem ligares! Ainda se ignorasses o que faz a minha dita! Aquela tarde acabou de matar-me! Já não tens pena de quem te ama tanto e assaz estremece?!

Escreve alguma coisa! Desengana esta sombra, que te segue porfiada, sofregamente! Se em teu coração vibra ainda alguma corda, diz-mo claramente, antes que o abandono me aturda a cabeça!

Aproximam-se outras férias que não queria ter, para estar bem perto do ente adorado! Escreves ainda, ao longo delas? Vou agora, sem dúvida, para o cativeiro! Seria tão feliz, se fosses para mim aquilo que já foste! Diz sim ou não. Não me deixes sofrer mais. Toda a gente me estima! Só tu é que não! És terna para todos! Só para mim é que tens frieza e desinteresse! Quando me embalas, querido Amor?! Nada já mereço?! Em ti é que eu penso, não obstante a noite ir muito adiantada! Se o meu coração continua velando, para quê dormir?!

“Venha para o pé de mim!”

Vejo a tua face desenhada em toda a parte e ouço a tua voz! Julguei também ouvi-la, no doce trinar dos belos passarinhos! Eu, afinal, só vivo para ti! Preciso alguma coisa, que me sacie e dê, ao mesmo tempo, gosto de viver, todos os dias, à semelhança exacta do número 27, que foi inolvidável! “ Venha para o pé de mim!”

Eu iria sempre para toda a parte: sou teu escravo! NÃO ME PERTENÇO!

PAPÉIS DE BETO

No meio do sofrimento, que raramente me larga, não devo por isso, crer-me infeliz, vão e miserando, pois o meu Bem corresponde ao amor, que lhe voto, sem medida. Isto, na verdade, traz-me refrigério. Mas por que será que jamais permitiu ler escritos seus?! Não que eu desconfie, bem longe disso, mas sinto em mim necessidade premente de conhecer-lhe os segredos.

Bem me lembro, sim, que revela sempre, de maneira oral, as coisas mais íntimas. Sei-o muito bem. Por que leva tantos dias a escrever uma carta, dizendo, afinal, que ama infinitamente e não quer viver senão para mim? Já mo tem dito! Lá isso confirmo! Mas eu, na verdade, sou um pobrezinho, que necessita, a valer, lhe repitam muitas vezes estas loucuras. Sinto logo amparo, com tais dizeres. Por mais pesada, incómoda e dura que seja a existência, tudo suporto, como por milagre.

Um só olhar dos que ela me volve, é já suficiente, para tornar-me feliz. Que magia de olhos, inquietos, brejeiros, a galgar o espaço, desprezando preâmbulos e conveniências! O que eles me não dizem! Que mundos prodigiosos de encanto e felicidade! Como sou pequenino, em horas destas! A sofreguidão crava, desde logo, suas garras aduncas, sobre o meu peito!

Já o disse, julgo eu, e quero repeti-lo: não devo, pois, julgar-me desgraçado. Só a falta de afeição, profunda e vigorosa, da parte dela, podia ser veículo de grande tragédia! Acerca disto, penso muitas vezes, que seria, na verdade, o mais infeliz de todos os mortais, se visse iludidas as minhas crenças. Não haveria inferno, comparável a este! Amar sem esperança de ver-se embalado! Que grande horror! A vida, assim, tornava-se espinho, que tentaria, em vão arrancar do peito, fazendo mais e mais cravar-se nele.

Pôr os olhos numa jovem e notar que ela é de outro! Há casos destes, infelizmente! O Céu delicioso não sorriria e o próprio Sol, com seu alto esplendor, seria impotente, para fazer luz, na treva da minha alma! Haver alguém tão ousado, a disputar quem eu amo e a quem me entreguei completamente, num inteiro abandono, que dispensa adjectivo e ser ela mesma a procurar esse alguém, para mais subir de pronto a minha aflição!..

Oh! como vivo ditoso, por ser compreendido! Quão fundo sinto não poder satisfazer em grau infinito, a sua entrega cabal ao ente amado! Ela escreveu: “Amor com amor se paga!”

Que felicidade! Quem pode separar-nos?! Nem a morte, por certo, pode consegui-lo, porque ela é mais fraca! Sim! Que podes tu, ó morte, se nos demos um ao outro, sem reserva alguma? Por minha parte, um Nenhum obstáculo surge ante nós! Ela é solteira; eu não tenho compromisso que torne impossível a nossa união.

Que me importa a mim o que diz a sociedade, proibindo a ligação com quem eu amo? Terão os homens o atrevido arrojo de impedir o amor?! Só Deus o podia fazer, mas não o fez, por Ele entender que era coisa absurda! As palavras do Génesis confirmam o que eu digo: ”Crescei e multiplicai-vos”. O próprio Jesus, fundador da Igreja, escolheu, de princípio, homens casados, uma vez que, entre os 12, apenas S. João era solteiro.

CONTINUAÇÃO (1)

São 3 de Maio! Quantas recordações gratas, inolvidáveis, acodem nesta hora, à mente enferma! Que saudade imensa do tempo remoto, em que eu, à solta, descuidado e feliz, me entregava hilariante ao jogo da péla, manobrando, a capricho! Desde manhãzinha, transportando as cruzes de loureiro e oliveira, que haviam recebido a bênção de Deus, na igreja paroquial, vagueava como louco, por lugares favoráveis ao jogo em causa.

Almoço, jantar e ceia nada era comigo! De vez em quando, vaga ideia me assaltava de que o braço paterno infligisse algum castigo, por volta da noite, já que, durante o dia, não seria fácil colherem-me de vista. Só tardiamente, quando o Sol moribundo fazia as despedidas ao cume das montanhas, é que eu virava lesto para os campos de centeio, a instalar a cruz benta, que protegia os cereais, em dias de trovoada. Era esta a crença geral no povoado.

Todo o santo dia passara em correrias, atrás da péla, que me dava prazer, ao passo que garantia uns bons tostões! Como então me julgava ditoso! A minha existência decorria em cenário, julgado incolor, mas na verdade, era cheio de animação, graça e encanto. Que mais era necessário, para alegrar um pobre mortal?! Satisfeita plenamente a aspiração da existência, nada mais a desejar!

E eu, na verdade, nada mais desejava, possuindo o que queria! Quão dissemelhante é o dia que passa! Não são, com efeito os doces folguedos (martírio somente, quando era impossível pô-los em acção) que me prendem agora, entornando em minha alma alegrias e prazeres que a pena incapaz não chega a traduzir. Nesta fase da existência, vivo doente, de mal incurável, já que a Medicina emudece, ante ele, à maneira de um cretino que avalia pelo mesmo a pedra preciosa e aquela que o não é.

Ninguém se pronuncia de modo eficiente, no caso pessoal Para quê, pois, alimentar a esperança de melhor existência?! Para ser mais amarga a vida que levo, cá neste mundo?! Quem me dera regressar aos tempos de outrora, para, descuidoso, mergulhar em cheio no oceano de ventura, que eu, nessa data, não pude apreciar, bastantemente! Ai! Que feridas alastram, pelo corpo doente e assaz enfermiço!

Surgiu radiosa a manhã deste dia, memorando a Santa Cruz! A minha afinal bem pesada tem sido. Que me trará de novo, no incerto porvir?! Quem sabe?! Dentro em breve, já vou encontrar quem faz o meu sofrer e a minha alegria. Como surgirá, perante o infeliz?! Assaz prazenteira, ostentando no olhar mundos de promessas?! Sorridente, esfuziante, afastando do meu peito castelos imensos de nuvens negras, tão ameaçadoras?!

Mágica e fagueira a irradiar logo, já não sei por que modo, centelhas de luz, que deslumbram se as fixo?! Meiga, assim espero, despertando em mim aspirações e planos, que não será possível realizar jamais?! Não reflectir! Ou antes, quero, desejo morrer, com esta esperança, que alenta e conforta, sendo o único esteio a que agora me arrimo. Tudo o mais é nada!

Mundos, riqueza, dignidades e honras, aura imperecível, reinos e tronos, sei lá o quê mais! Que me importa isso?! Trocava, sem demora, essas ninharias por um amor assaz nobilitante, como é o que voto a quem me enfeitiçou. Sem ela presente, não me julgo feliz, mas sem tudo aquilo que o mundo preza, era ainda possível atingir, escorrendo sangue, ao certo, a felicidade.

A esta hora, deve já ter lido as cartas dolorosas, que brotaram dum peito, escorrendo sangue! Que terá acontecido?! Deus o sabe! Quantas lágrimas sentidas não fizeram brotar suas letras humildes e mal combinadas! Que longos suspiros, surdos e fundos não exprimem elas, em sua linguagem, assaz desataviada, mas sincera e dolorida! Terei eu a dita de ser acreditado?! Mas, se eu nunca menti! Se eu sofro tanto!

Ai! Amor, se eu fosse amado, como o faço a ti, seria feliz! De outro modo, incerto do tempo e daqueles sentimentos, que invadem teu peito!.. É que ele, de facto, não se move a rogos e fica duro, como se eu, na verdade, nada merecesse!

Ó dias formosos e inesquecíveis do passado longínquo, dai lenitivo a este coração, que implorou humilde e sofre tanto!

CONTINUAÇÃO (2)

Ó meu Deus! Perdoareis muita coisa que o mundo abocanha! Se mesmo Vós tendes família, como não defender o direito mais sagrado e inalienável ?! Que dizeis, Senhor meu Deus?! Julgo firmemente que estou na razão! Não sou, de modo nenhum, contra a Vossa autoridade! Vós tudo fazeis bem e nada há reparável, na Vossa criação! Mas que venha alguém sobrepor-se a Vós, dizendo altivo: “ Sou mais que Deus! Tens agora que ouvir-me, de preferência a Ele! Disponho de mais poder: só resta curvar-te!”

Sinto revolta em meu peito, de haver alguém, assim tão ousado, que leve o seu arrojo a dizer a qualquer: “Não podes amar!” Pois se eu vejo os animais gozar do privilégio, a seu modo, claro está, serei eu, na verdade, bem menos do que eles?! Se eu tenho no peito fome insaciável de amor e ventura, que me prendem à vida, por que hei-de recalcá-la?! Se todo sou afecto, a quem vou eu dá-lo, sem retribuição?!

Hei-de eu esmagar este eflúvio misterioso, que transforma a existência, em doce paraíso?! Sempre que duas almas se estreitam e amam, a vida presente já não amargura as horas que passam. Quem se arroga então um poder tamanho que achata o homem e o coloca desde logo, em situação deprimente?! Em luta porfiada com a tentação, que o não larga jamais, por ser exigência da estrutura psiquica, (a necessidade de amar e de ser amado) o homem solitário vê-se desamparado, sem um braço amigo, no meio de traições, insídias mil e duros casos.

Que alguém o faça espontaneamente é de louvar, mas chegar a impô-lo, com férrea autoridade, havendo criado um ambiente irreal , não entra de facto na cabeça de ninguém, que seja imparcial.

Que dificuldade é que há, em dizer sim, ao cabo de uma semana, meses ou anos, em que não houve o contacto do mundo exterior?! Isto, após longo tempo de vida conventual, em que se apresenta não o mundo real, em que há-de viver-se, mas um panorama, que gera o olvido para as grandes realidades, em que havemos de imergir!

Hesitará o sujeito em dizer, seguramente, que disponham dele?! Não foi o indivíduo previamente anestesiado, a fim de lhe arrancarem o sim desejado?! Ó Deus e Senhor, é lá possível que Vós aproveis sistemas desta ordem?! Estou convencido, agora mais que nunca: sou livre para amar quem eu escolhi, entre todas as mulheres e que vem preencher, de modo cabal, um vácuo imenso! Oh que abismo pavoroso, em que vejo rodar a minha existência, desconsolada e triste! Quanto eu sofro, no silêncio da alma! Se ao menos o vazio que me envolve e amarfanha, fosse um dia compensado, com formosa realidade, que mais desejo que tudo! Não hesito em crê-lo, mas, na verdade, o que faz cismar é lembrar-me às vezes, que só de raro em raro, sou contemplado com breve cartinha! Mas ela é boa, gentil e meiga! É tão adorável! Sabe como sofro, de maneira horrível!

Adorada eleita do meu coração, que só vive para ti, por que é que não me dás satisfação plena? Não vês, por ventura, que sou todo teu, apesar de tudo , e que nada temo, para fazer-te feliz?! Uma força invisível, bem mais poderosa que tudo o que há no mundo, nos constrange ao amor. Nada há no orbe, que possa desunir-nos . Sendo assim, é vão e inútil qualquer esforço, noutro sentido!

Quantas coisas eu tenho, à espera de vez, para tu as leres! Mas ai de mim! Tu não me escreves! Esqueces-te, às vezes, de que não tenho na vida outro pensamento que o teu olhar doce, a tua ventura! Não te lembras talvez de que a minha sorte depende, a rigor, de fazer-te ditosa! É como digo, eleita minha! Não dizes nada ao teu queridinho?!

Fala, pois, anjo adorado, que vieste ao mundo, só para dizeres à minha alma que já nele se antegoza um vislumbre do Céu! Vê quanto sofro deste modo isolado, por haver de ocultar o profundo mistério que me envolve e esmaga!

Oh! Tempo virá, em que hei-de abraçar-te, sem olhares indiscretos, e unir-te ao coração, demorada, longamente! Então, já não temerás a sociedade cruel. Sociedade! Monstro abominável, que me oprimes cruamente, evitando assim que o Amor se revele, a capricho meu!

Não te apercebes de fazer-me sofrer horrendamente?! Amor! Eu sofro por ti! Eu amo! Eu quero-te!

CONTINUAÇÃO (3)

Já vistes um homem, olhado em roda, sem que se depare um rosto amigo ou ouça deliciado uma voz prazenteira, que lhe fale à alma? Não encontrastes, acaso, um desses infelizes que, nas horas más, arrosta humilhado com a indiferença ou se defronta amiúde com molesto desdém?! Não vos surgiu, no caminho trilhado, já longo talvez, um pobre mendigo, que sente inveja, ao notar, em desalento, que só para ele a sorte foi avara, negando impiedosa o que a outros concede?!

Mas, se não advertistes, no caso exposto, haveis de ter enxergado, ao passar da esquina, um corpo sem vida, que mais se afigura uma pedra solitária desinteressante, muda e gelada! Ou, quem sabe? Em vale profundo, lá bem distante de vistas indiscretas, que só amesquinham, divisastes alguém, cujo rosto macerado as lágrimas desfiguraram, sem retumbância por mínima que fosse, num peito amigo.

Se acaso não sabeis quem é o enjeitado, que a humana petulância relegou para a morte, se ignorais quem chora, a horas já mortas, a dor imensa da longa solidão; se desconheceis quem é que não perdoa aos homens atrevidos o terem emendado os planos de Deus, para mal do próximo, dificultando-lhe a vida, em vez de a aplanarem; se vos não apercebestes de que, no íntimo dum corpo, gelado, na aparência, há mundos de afecto e oceanos imensos de ternura e doação, que esse infeliz tem de ocultar, para que a sociedade o não aponte, escarninha, à irrisão do mundo; se não compreendestes um silêncio profundo, que é forte eloquência; se os vossos olhos permanecem fechados ao nobre sentimento, que é pertença inalienável de todo ser humano, por mais desgraçado, sim; se até agora foram postergadas todas estas realidades, que são pedaços de alma em angústia sufocante, digo-vos eu que sois egoístas, pois não vos interessa o mal dos outros!

Deixai então que eu vos apresente esse infeliz: é aquele pobrezinho por quem eu choro. É o celibatário, o desconsolado e triste célibe, que os homens crus fizeram curvar a um jugo molesto, que vai contrariar os direitos sagrados do pobre mortal!

Por que há-de ser vedado o que Deus outorgou como património do género humano?! Se Deus quisesse uma via diferente, Ele em pessoa a tinha ordenado! Acaso fez questão, recrutando para Apóstolos homens já casados?! A não ser que os homens possam mais do que Ele!

A quem assiste direito de clamar para alguém: ”Não podes amar! Tens que ser diferente dos outros mortais, embora possuas a mesma natureza! És obrigado a ser infeliz! À beira do regato, morrerás de sede, pois que ela, na verdade, é o estado permanente da tua pessoa!” Querias ouvir, em música doce, vozes de crianças? Como?! Tu não vês, ingénuo, que os homens decretaram ser isso um crime?! Importa lá que Deus tenha ordenado por maneira diferente?!

Em horas más e harto difíceis, que procura o ser humano senão pessoa amiga, a quem se abra, de par em par, a fim de expor as suas dificuldades?! Ou vai chegar-se a quem troçaria, chamando-lhe pacóvio?! Por que não fixar dois olhos fulgurantes, a brilhar como o Sol, para seu coração haurir calor, ao contacto deliciante de seus raios dourados?!

Por que não tem para si companheira adorada, que torne mais sofrível a existência neste mundo?! Assim, na verdade, é tudo prosaico, vilão e chato, incolor e sem relevo.

CONTINUAÇÃO ( 4 )

Dez horas e meia! Uma noite sem fim! Depois de chorar copiosamente, recorro à máquina, a ver se coordeno algumas ideias, embora a custo. Sinto a cabeça pesar demais e não tenho alento, para a suportar. No interior, tudo se esvaiu: nem pensamentos nem sentimentos. Todo o meu ser figura, nesta hora, matéria sem vida, que apetece o nada.

Para que ando no mundo?! Estou a mais no Planeta, onde outros são felizes e alegram, de presença, a humanidade infeliz. Eu, porém, vivo mergulhado em funda tristeza. Pois como explicar que passe, chorando, o tempo decorrido, entre o jantar e a hora presente?! Não me perguntem a causa disto. É fácil descobri-la e, por isto mesmo, não indagues mais. Além disso, custa-me dizê-la.

Jamais chorei tanto, ao ler uma carta! Sou uma criança! Não sirvo para nada ou melhor ainda: apenas servirei para molestar! Se não vires em meus olhos brilhar a alegria, é porque ela morreu! Julgo, na minha, será para sempre que imensa tristeza há-de invadir-me! Ainda hoje alguém confessou que não sou o mesmo, pois ando triste como nunca sucedera! Mas, antes de mais, quero pedir que não fiques abatida, porquanto, desse modo, lançarias o meu peito em funda agonia.

O que eu expresso não é mais que desabafo, em razão de não haver para quem o faça. Quem tenho eu?! Uma mulher, à beira do túmulo; outra ainda, em terra adusta, a enorme distância. Vejo-me só, incompreendido! Quero morrer!

Operação? O meu anseio é findar, realmente, em hora feliz e deixar este mundo, onde já sofri aquilo que Deus sabe! Alimentei, sim, uma bela esperança, mas essa morreu, numa ocasião, em que dela precisava. Naufraguei medonhamente, com feio temporal. Que me resta agora? Morrer somente!

Pedes-me perdão! Mas de quê?! És senhora dos teus actos! Ninguém se arroga o direito de impor a outrem a sua vontade. Se me vires decaído, não te dê cuidado, porque eu não mereço! Já nada valho! Bem noto isso, com imensa amargura! É pura verdade! Pensei erradamente que alguém compartilhasse na minha desgraça, distribuindo por dois, o que mataria, sendo apenas um. Mas esse tempo fugiu, para dar lugar à minha solidão!

Se tu imaginasses quanto estou sofrendo! Vou morrer vítima deste sentimento que, à mínima coisa, logo se desafina, torturando-me a fundo! Desejas ouvir a palavra perdão, da minha própria boca?! Que é que te aproveita?! Não atendes, por ventura, a que perdi a valia e que um homem infeliz já não pode arvorar-se em bom passa-culpas?! Mas sempre te digo que estás em situação de fazer a tua dita, abandonando tropeços que apenas servem para ralar-te.

Que te aproveita, de facto, o meu perdão?! Entretanto, se dele precisas conta com ele, mas simplesmente para aliviar-te. Esquecer não posso, embora o deseje. Que longo espinho sinto cravar-se , no íntimo peito! Desculpa lá, se estou sem controlo! O meu estado de espírito é de tal ordem, que só faço disparates. Eu sei cá dentro, que não me levas a mal por me dares razão, mas também não ignoro quão só te encontras.

Bem lamento eu tal situação. Vendo-te abatida, estremece logo o meu coração. Escreveste agora , por me veres caído e andaste bem. Raríssimas vezes terei descido tanto. Mas como não sofrer, se eu realmente vi lançado ao Diabo o que tanto apavora a minha pobre alma!? Isso, em boa verdade, não é traição, para quem vê apenas tua bela imagem, sempre, sempre e em toda a parte.

Como podes querer que eu veja raiar brilhante luz, se as línguas depravadas só vêem maldade, onde nem sempre ela existe de facto?! Poderei, acaso, não sentir repulsa, ao lembrar, envergonhado, o que alguém dirá, cruzando-se comigo?! O que julgam impuro não terá sido o fruto malévolo dum sonho acalentado?!

CONTINUAÇÃO ( 5 )

Para mim, ao presente, já não há ventura! O sepulcro, em remate, apresenta de novo face atraente, pois não deixa saudades, em certos casos. A minha vida, pelo que noto, é certamente empecilho para outrem. Não faltará muito que deixe de o ser. Se as ondas me envolvessem nas pregas extensas, vingariam a desfeita que agora recebi. Bem pode ser que tal aconteça. Sentiria prazer, por então me lembrar que já não era molesto à pessoa amada.

Enquanto, porém, não vier este alívio, hei-de afrontar quem mofe de mim. Meu Deus, por que sofro eu tanto?! Em que mereço tão dura provação?! Foi por amar desmedidamente?! Ai! Como sou agora! Um ser mesquinho de quem troçam os outros!

Sinto, na verdade, a minha confusão e nulo préstimo. Desejava ansioso que a terra fendesse, libertando-me assim dos olhares trocistas de algumas pessoas que vão alegrar-se, na minha angústia! E já era bem pesada a minha cruz! Duvido sinceramente se terei coragem de subir com ela ao cimo da montanha!

Na verdade, um homem alvejado, como hei-de eu ser, não terá gosto de existir, neste mundo! Já se vingaram aquelas pessoas que andavam planeando toda a casta de ciladas, para me afrontarem. Eu nunca cedi, um passo que fosse, de longe sequer, para melindrar-te! Tu, porém, acompanhaste alguém, que disseras odiar fazendo tudo em meu desabono. Não quero já viver, onde recebi o maior enxovalho de toda a vida! Já se vingaram! Não me resta dúvida! Tanta coisa se fez, para abandonar-te! Tanta acusação a que não dei crédito! Tanta insinuação! Tanto cuidado, para te pôr à margem! Eu, apesar de tudo nem um passo recuei!

Ainda bem que não fui eu a expor-te aos olhares do mundo! Foi maravlhoso seres tu, afinal, que me deste a beber a taça amargosa, que envenenou a minha vida inteira! Poderei viver aqui, onde tudo me detesta, inclusivamente os que eu tinha por amigos?! Terei eu coragem de sair à rua, altivo de alguém que não é fiel?! Sentirei desejo de ser alguma coisa, numa região, onde tudo se conjura, para me abater?!

Já não posso agora orgulhar-me de ti, como fiz tantas vezes, em horas de martírio ou de aflição! Quem eu defendia, querendo-a ver longe de todo o contacto, maculou já o ser, que eu adorava, de maneira louca. Agora, sei claro por que é que não mandaste um beijinho ardente, no final da carta! Deixa-me pois ser desgraçado, para todo o sempre! Não te importes! Na semana derradeira, julguei ilusoriamente que mais uma vez a felicidade me batia à porta mas, se aconteceu, foi para sentir, ainda mais fundo, a dor lancinante, que há-de matar-me!

Ó ondas revoltas do mar sem fim, quem me dera já hoje no meio de vós, para me furtardes a este enxovalho, que me rouba a vida! Que importa isso?! Nada me seduz!

Adeus para sempre, lugares amenos! Adeus! Adeus! Ficai repousando, bancos e pedras, em que já derramei puras lágrimas quentes, por quem me vendeu a falsos amigos! Adeus, amigas sombras, que ouvistes os lamentos do meu coração! Adeus! Adeus!

CONTINUAÇÃO ( 6 )

Jamais ansiei por ver-te e falar, como ao presente! Foi hoje um dia, em que tudo correu mal. Raríssimas vezes eu terei sentido um choque tão grande. Só hoje levei a cabo a leitura em pleno da tua carta. Ontem, bem me lembro, ao princípio da parte, em que narras o facto, que me encheu de luto, comecei a chorar, à maneira de criança. Estive assim longo tempo e a noite foi péssima. Pesadelos e sonhos, todos sinistros!

Escrevi outras folhas que só te deixo ler, se prometeres já que não ficas triste. Queria ser ave, para ver o estado, em que agora te encontras e poder consolar-te. Imagino e creio que a tua pobre alma está sofrendo muito! Se não levei bálsamo a teu coração, foi na verdade, por não ser possível. Far-te-ei chegar às mãos esta simples cartinha, para aliviar-te. Como ia dizendo, não li o final, em que afirmas claro ter ido enganada para certo lugar e de muito mau grado.

Choque igual a este nunca eu tivera. Posso dizer que foi o maior de toda a minha vida. Nem a própria morte dum ente querido! Mas tudo perdoo. Assim mo pediste e acho que mereces! Logo que leias, diz-me se gostaste. Quero ver-te feliz, pensando firme que alguém existe que não te abandona. Admitir o invés, seria absurdo! Se longe um do outro não somos felizes! Só junto de ti eu quero estar!

Não venha, pois, o mar traiçoeiro arrancar-nos severo ao sonho de ventura! Muitas coisas dizias a que era grato dar resposta a seguir, mas prefiro fazê-lo, por via oral. Preciso muito encontrar-me contigo. Talvez Domingo, antes das nove! Impossíveis não quero, mas eu sem ti, não sou feliz! Agora, necessito de provas, não por duvidar, mas para desforra de tanto sofrimento!

Hoje, embora sem forças, lá irei então, para fazer-te a vontade, pois assim mo pediste. Não sei dizer ‘não’ a pedidos teus! Para mim é ordem e também felicidade. Só tu me apareces, em toda a parte. Não vejo outra coisa senão a tua imagem! És tu, na verdade, o meu alimento e longe de ti os dias são tristes como a noite escura! Não me deixas? Onde um coração que te ame assim?! Quanto mais desamparada, mais eu te quero! Não andes triste, porque eu a bem dizer, já estou reagindo, contra o desalento.

A tua missiva enlutou-me o coração, mas não posso nem quero fazer-te sofrer! Por isso, aqui tens o meu perdão, sincero e pronto! Já estás satisfeita?! Hei-de fazer tudo por quem me prefere. Se me vires abatido, não te aflijas com isso! Não chores, não, minha adorada! Por que é que falavas em eterna despedida?! Não avalias quanto isso me afronta!

Se algum dia me deixares, lembra-te sempre que sou desventurado, por não ter ninguém! Não te esqueças jamais de vir em meu auxílio. Intentarei fazer tudo quanto me pedires. Nisso terei eu imensa alegria! As cores em foco podes mostrar-mas, para dizer então aquilo que prefiro. Vale a coisa assim?!

Não te esqueças nunca de que vou atravessando uma crise grave. Se mereço alguma coisa, não demores a resposta! Estou vivendo horas de enorme ansiedade e a minha existência é harto amargurada. Alívio seguro só de ti o espero: só o teu é bastante! Tudo o mais é vão e desprezível! Se puderes encontrar-me, antes de Domingo, será vantajoso, a fim de vencer o tormento ingente, que não me deixa repouso! As coisas piores é que surgem na ideia, sobre o presente e o futuro próximo.

Prossegues ainda em ter grande pena de quem nada já vale?! Poderá este infeliz ter acaso a sorte de orgulhar-se de ti, pela dedicação que tu lhe votas?! Terei no futuro dias venturosos?!

A capa do livro está rota no fundo! Já tinhas dado conta?! Então como vais? Já andas melhor da tua doença?! É aquela a que eu antes me tinha referido?! Não favorece o que mais se deseja?!

CONTINUAÇÃO (7)

Olha! A má disposição agrava os males. Se andares bem-disposta, asseguro-te eu que logo melhoras! Fazes-me a vontade?! Projecto levar-te imensa alegria, por esta missiva, que estou escrevendo, com tanto carinho e solicitude. Já se aproximam as 21 horas e decorreram quase 24, após o grande choque. Vou sentindo pena de haver-me afligido. Quando me lembrei de que tu sofrerias, comecei brevemente experimentando algum refrigério nos meus pensamentos. Como eu te quero, minha borboleta!

Dentro em breve, irei ao pé de ti, para levar prestes a quem eu amo ridente alvorada. Somente por isso já sinto na alma um pouco de ânimo. Tudo escasseou, nos momentos horríveis, que vivi, desde ontem. Julguei firmemente que a vida ingrata nada mais tinha que pudesse ofertar-me, a não ser as fezes dum viver amargurado, repleto de incertezas. Não o quis assim o teu bom coração. Como hei-de retribuir?! Se o não conseguir, perdoa-me o resto, sim? Perdoas? Já te sentes outra? Já?!

Como vão correndo os casos particulares? Um pouco melhor? Por que é que te amarguram?! Se és tão meiguinha e tão dedicada! É uma coisa horrível que não logro entender e a que eu também não posso afazer-me! Revolta-me o peito e dá que cismar. Com o tempo avançando, noto distintamente que o sangue se agita, por veias e artérias, em que agora se anima a vida exuberante.

Não tornes a fazer tão feia acção! Desejo imenso que leias outras folhas, a fim de avaliares o grande martírio, que prostrou a minha alma, e este, a rigor, se não continua, é porque eu te adoro, não sendo capaz de ver-te sofrer. Não suplicaste o meu perdão, em ânsia ardente?! Poderia realmente não atender?! Contribuir para o calvário de quem faz o encanto da minha existência?! Tudo eu faria pelo teu bem-estar. Poderia ser causa da tua desdita?! Para longe vá tão ruim pensar!

Ai! Como estou jovial e até pueril, só de pensar que, dentro em pouco, vou aliviar-te! Se tu soubesses como te quero! O pensamento de que estás angustiada, por julgares que eu sofro, traz-me cuidados! Oh! Quem me dera já pertinho de ti, para veres nos meus olhos que tudo passou como vento furioso, a que segue a bonança!

A tua carta foi portadora de grande amargura, que já recalquei, e de grande alegria, por dares a entender quanta afeição reina em teu peito. Andando aborrecida, lembre-te o amor que o meu coração dedica ao teu! Este pensamento far-te-á encarar a buliçosa vida por maneira diferente. Sim, a ideia bem firme de que vivo para ti e não quero mais nada senão viver contigo e dar-me a ti, há-de encher-te de ânimo.

Quero ardentemente que todo o meu viver faça rumo ao teu, para seres feliz. Viver para ti, ocupar-me de ti, dar andamento a coisas tuas, eis o que embriaga a minha existência. Vou trocar a minha ausência, pela adorável presença daquela que me espera como salvação. E por que não levar-ta, querido Amor?! Não tardo. Eu sei de antemão que já estás contando horas e minutos (hoje sobretudo). Por esta razão, até já morto iria procurar-te, minha adorada!

Adeus não digo, pois vou para ti. Que dizer então?! Que vou fazer?! Saudades sem fim e o que tu sabes que eu… Está no fim esta minha carta e só no princípio o que intento dizer-te. Acaba o tempo, mas não acaba a grande afeição que nutro por ti! Esta, afinal, é já sem limites!

CONTINUAÇÃO (8)

Vou hoje escrever uma página bela, das mais sentidas. É meu desejo que fique em memória do estado de alma, que me vinha angustiando. Gosto, além disso, que o mundo atente no modo curioso, pelo qual as minhas mágoas foram dissipadas, fazendo-se dia, na minha existência.

Era mercado, havendo nesse dia rumores festivos de natureza absorvente: realizava-se um encontro de professores primários, com récita infantil, que prometia ser cómica. Havia entusiasmo, no velho aglomerado, esfuziando a alegria, no rosto de todos. Vaivéns amiudados, rua abaixo, rua acima, indício manifesto de grande inquietação.

Eu, porém, dominado então por sentimentos vivos, que me fazem delirar ou subir ao calvário; que me alentam ou prostram, lançando-me às vezes em mar de júbilo e outras ainda, em abismo de incertezas, jazia fechado num quarto escuro. Não permitia que ninguém se abeirasse. Todo o convívio era detestado. Se perguntavam que havia ou tentavam saber o que eu desejava como refeição, respondia logo, com modos sacudidos, levantando surpresa na gente amiga. Nada me interessava ou melhor ainda: uma só coisa enchia a minha alma.

Digo com verdade: nunca vivi tão desamparado! Tudo aridez à volta de mim! Além disso, estava inconsolável! Pensamentos atrozes cruzavam-se amiúde, em grande turbilhão, ameaçando destruir o frouxo equilíbrio do meu pobre ser! Se ao menos alguém se lembrasse de mim, pensava eu então, não esperando nada!

Neste pensamento e outros iguais passava o meu tempo, em que soluços e lágrimas ardentes permitiam fazer trégua. Ai! Meu Deus! Como foi aquele dia, para sempre inolvidável! Que pensamentos funestos vieram torturar-me, durante longas horas! Horas sem fim, horas dolorosas, horas de agonia! Horas tremendas, em que só desejava me acabasse a vida! Quantas lágrimas! Quantos ais fundos, que eu julgava perdidos, no espaço vazio, onde naufragava!

Enganara-me porém, nos cálculos feitos e no raciocínio, que havia seguido. Alguém amado, que era objecto do meu pensamento, seguia de longe, ou melhor, de bem perto, a senda amargosa que eu andava trilhando. Alguém, sim, de olhar aguçado e peito rendido, vagueava em torno, para fazer que brilhasse a luz meridiana, que já me abandonara, e restituir solícita e pronta, a minha ventura.

Afinal de contas, não era desgraçado, como suposera! Não fora esquecido. Pelo contrário, pertinho de mim alguém transitava, observando a claro que eu me encontrava, às portas da morte. Mais que morto estava eu. Tudo me doía: corpo e alma! Perdera por completo o gosto de viver! Tentasse alguém aliviar-me um pouco, ficava irritado! Claro! Nestas circunstâncias, todos fugiam, criando-se em mim enorme solidão!

Oh! mas não me enganara no tempo em que eu, sedento de amor, procurara no mundo um belo coração, semelhante ao meu. Como estou satisfeito, nesta hora feliz, ao verificar, por modo seguro, que não me iludi e que as minhas esperanças foram realizadas. Na hora própria, como por encanto, aparece a eleita, que o meu coração ama vivamente, havendo por mira trazer-me a paz.

Era o Sol de maravilha, que vinha esparzir seus raios benéficos, sobre a minha alma, em treva densa. Como tudo mudou! Não havia de eu querer-te, formoso Amor?! Agora mais que nunca fico para sempre unido a ti! Ai! Que laços férreos me prendem e firmam! Ninguém vai separar-me de quem faz o encanto da vida inteira e, de igual passo, o máximo enlevo do meu coração!

Cheia de riso, veio até mim, quase a agonizar, para tornar-me a vida, que se andava perdendo, gradativamente! Nem disso me pesava já! Quanto eu quero à minha amada! Nem sei agora como agradecer! Oh! Não estava só, que alguém me seguia, bondosamente, com extremos de mãe! Ai, minha vida, eu quero-te muito! Muito! Minha filha dilecta! Meu grande Amor!

CONTINUAÇÃO (9)

O espectro da morte gira macabro, em volta de mim, a fazer negaças para atrair-me. Não sei que é. De noite, vi com certeza a minha salvadora nas águas refulgentes de fundo poço. Uma sedução! Teria mais ou menos 5 metros de altura. Conservei-me ali como em feitiço, horas e horas, fixando longamente aquela superfície, polida e mágica, até que Morfeu batesse à minha porta.

Em baixo, a linfa traiçoeira; mais acima, a tua imagem querida, suplicante e chorosa. Essa atitude punha-me louco! De loucura talvez será o meu estado, pois já não sou como os outros homens! A noite de hoje foi um tormento, e o dia corrente não sei como vai ser. Tentei erguer-me, com certa presteza, mas só morosamente consegui fazê-lo.

Os membros recusavam-se e, dos pés à cabeça, tudo me doía. Isso, julgo eu, é cansaço da vida. Cansaço de tudo! Penso o pior! Só me lembra o que é triste! A esperança morreu! Talvez uma coisa ainda me libertasse deste sofrimento, em que vivo prostrado, mas essa afinal, depende de ti. Sendo objecto dela, ainda raiaria para os olhos chorosos uma aurora de júbilo.

Decidira não me erguer, a fim de evitar molesta figura, diante dos outros que sabem a causa do meu sofrimento. Quem te levou sabia muito bem aquilo que fazia! Mas, para não falarem, lá vou então, com a morte na alma e tristeza infinita no meu coração. A minha vontade era encerrar-me, fechar bem as portas, não permitindo que alguém entrasse.

Que vou fazer lá fora, se a gente ri, mofando de mim?! Ao passar, vou ser vaiado, com riso satânico! Eu sei! Ainda muito cedo, reli a tua carta e, novamente as lágrimas irromperam, num pranto desfeito. Despedidas amigas, separações dolorosas! Oh! Nem sei o que vi por teu punho exarado! Chorei, chorei, no meu travesseiro, que frequentemente regista desabafos do mesmo género.

Desta vez, porém, uma ferida horrenda se abriu e ficou, no meu coração. Verifiquei ontem como te olhavam certas pessoas, tendo clara ideia que pensavam em ti, como simples fêmea. Não digo mais nada, por ser aviltante! Não tive coragem de o pôr em escrito. Sim! Eu vi no seu olhar uma chama intensa, que veio queimar-me, não por despeito, mas por outra coisa, ainda pior e mais lastimável. Não quero censurar-te! É simplesmente para revelar o estado miserável, em que vivo mergulhado!

A água salvadora é o meu pensamento! Estarei, acaso, à porta da loucura?! Já terão morrido todos os meus sonhos?! Serei arrebatado por morte inglória, sem deixar alguém que me abençoe a existência e pense condoído na minha desventura?! Partirei deste mundo, sem um grito lancinante, a clamar por mim?! Tudo acabará, na mesa operatória, longe do mundo que em sonhos criei?!

Tudo é possível, mas antes disso, preferia morrer. Por que é que não será?! Nada me prende! És tu a primeira a falar já nas separações, despedidas cruéis, em mil coisas sinistras que me põem doente, mais do que estou! Encontro-me agora tão deprimido, que não sei, realmente, o que hei-de fazer!

CONTINUAÇÃO ( 10 )

Relendo o que fiz, notei ser cruel, apesar de tudo. Por esta razão, hesito bastante em deixar-te ler o que fundos suspiros e lágrimas ardentes ali entornaram. Uma condição: não ficas zangada nem te deprimes? Não me deixas? Mas que dirão os que… Ai! Que lança afiada se cravou no meu peito! Anotei o pedido que fizeste suplicante: não sei contrariar seja o que for, que parta de ti! Tentarei realizá-lo! Mas, se eu depois não aparecer, é porque as forças me abandonaram!

Neste momento, sofro bastante e ando inconsolável. Só uma coisa me pode, realmente, erguer o ânimo. Entretanto, vale mais não pensar! Pois se, na verdade, havemos de separar-nos! Quem me dera essa hora longe de espias! Quando vai soar o momento ditoso e libertador?! Até lá, irei gemendo, arrastando a vida, que me proporcionaste, ao entregares a outros em feia posição o que só para mim devias guardar. Mas pode ser que tenhas razão!

Apesar de tudo, venho agradecer os teus bons desejos de me veres alegre, embora fizesses o que há-de gerar imensa tristeza, durante a minha vida. Nem a terminação como eu desejava! Nem prometida alguma coisa mais! Nem … O tempo urge: não me deixa seguir! É preciso, pois, terminar já! Infinda, só a minha dor!

CONTINUAÇÃO ( 11 )

Ontem, fi-la chorar, sem intenção. Queria desabafar, para se dar conta de quanto sofro. Entretanto, dilacerou-se a alma, quando vi lágrimas deslizando pelas faces. Oh! Como então desejei com ânsia ardente cobri-la de beijos, para a compensar de maneira avantajada! De outra vez será. Não me sai do pensamento sua imagem triste, respondendo com meiguice! Quanto daria, para que ela não chorasse!

Tenho a impressão de que a terra me falta, debaixo dos pés, quando sou eu que motivo a tristeza. Penso às vezes que me dói mais o seu tormento que a minha aflição! Ela, sempre ela, já no meu sono, em minhas vigílias, já na minha dor, nas minhas alegrias. Estou identificado ao ser que tanto amo! Dois seres humanos só fisicamente vão já existindo, porque na verdade é um só que actua, um só que deseja, um só que vela, um só que sofre ou também se alegra.

Se dois manifestam a mesma alegria ou dor igual, é um só, de facto o seu objecto, princípio e fim. Não pode aí haver maior identidade! Se eu me doo, ela dói-se igual. Se ela sofre, eu sofro também. Como a vida é bela, por este processo! Alegrias e dores, repartidas, a rigor, com meiguice e carinho: aquelas, para aumentar; estas, para diminuir! Sinto-me ditoso e bem-aventurado com tal Amor!

Que seria de mim, sem outrem a olhar para a minha existência, com meiguice e carinho?! Como a vida é prosaica, à margem do amor! Como fica empobrecida, sem a chama viva, que doura a existência e tudo suaviza! Eu quero amor e amar profundamente quem me compreende e vive comigo a dor e a alegria!

Ela é bem digna dos meus sacrifícios e fundas amarguras! Além disso, é o único ser a apontar-me o horizonte, onde tudo se transforma em contacto com a luz de uma aurora radiante! Quero-te, amo e beijo-te! Entrego-me, pois a teu lado, nada me rala: tudo se transforma em ti. A vida é amarga, pesada, sem cor!

CONTINUAÇÃO ( 12 )

Finalizei hoje uma viagem dolorosa, ficando-me a impressão de que ela prossegue. Sinto-me arrastado por fortes cadeias, a um ponto afastado, que não se apaga ao longe, tão remoto e distante, que se perde já no mesmo infinito. Seria, de facto, a última vez?! Oh! destino cruel! Se for como julgo, ainda resta leve esperança: unir-me àquela que vai substituir os antigos amores, que me ligavam à terra.

Uma mulher à beira do túmulo! Uma esperança, radiosa e bela a sorrir para a vida! Minha rica mãe já não me pertence! É do Senhor que a fez tão bela e a quer para Si! Perdi o direito de beijar seus lábios, que tantas vezes adoçaram os meus, em horas de tristeza! Oh! que saudade imensa! Como já vivo em perspectiva, o tormento cruel de perder aquela fada, que tanto me quer! Ante-ontem, chorei inconsolável! Quantas lágrimas verteram meus olhos tristes, durante a viagem, pensando receoso não chegar a tempo de beija-la ainda viva, palpitante de amor!

Afinal de contas, ainda lá estava, sofrendo também com o meu sofrimento, pois adivinhava que o filho estremecido seria torturado por espinho cruel! Encontrei-a sim, cheio de ansiedade. Estava amortecida, angustiada e pálida, na antevisão de perder um dia quem tanto lhe quer! Chorei, chorei, à minha vontade, sem olhos indiscretos, a minha desventura!

Oh! Que percurso horrível! Uma mulher à beira da morte! Uma esperança fagueira a pairar sorridente, no cruzamento da vida! Eram duas realidades, que me andavam perturbando! Abeirava-me de uma e afastava-me da outra! Qual dos tormentos seria o maior?! Não sei! Ambos pungentes! Ambos dolorosos! Diria, até ‘inconcebíveis’!

Agora, porém, volto a aproximar-me daquele que à distância, me fez sofrer muito. Hoje, queria vê-la ao menos de longe! Por infelicidade, nem sequer a vejo! Estou mergulhado em profunda angústia! Se vim pressuroso, foi, na verdade, para encontrá-la! Penso baseado que, junto dela, a minha grande cruz se tornará mais leve. Entretanto, nem isso me é dado! Quando terei a ventura de colar-me a seus lábios, sequioso e mendigo, para então me saciar?!

Eu sei muito bem que ela corresponde e se deu a mim. Sei, de igual passo que ela se entregou e vive somente para quem fez o mesmo e tudo lhe confia. Não duvido, não! Mas faz-me falta imensa, intraduzível, o seu hálito benéfico, a fim de alterar a vida amargurada que agora me prostra.

À minha grande cruz veio outra juntar-se, não menos pesada: esperar, a toda a hora, uma notícia ingrata, que vai assassinar o meu coração. Queres tu valer-me, tesouro da alma?! Como estou pobre e já sem conforto! Pensa ainda como vivo angustiado, ao ver o coração varado por duas flechas!

Uma só já bastava, mas a minha pouca sorte presenteou-me largamente! Se hoje ao menos, recebesse uma visita, seria feliz, no meio da amargura! Mas que é que eu pretendo, se nada mereço?! Também não apelo para mais ninguém, senão para ti! Poderei morrer, mas chegar a outra fonte é coisa improvável! À margem de ti, sinto apenas enjoo, mas contigo presente, nada é pesado nem impossível. És tu a luz que alumia o caminho, agora trilhado.

Até ao presente, fui bem ditoso, com o teu amor, por saberes prendar-me, com tantas meiguices e provas de carinho. Mas hoje peço uma esmola, por caridade. Ninguém me quer bem. Só tu! Mas, se não vens, fico sozinho na estrada solitária, exposto a impropérios, de vis transeuntes. Quem vai acudir-me, na hora adversa, que vem afligir o meu coração?! Quem me protege de cães mordazes, que sinto agora andarem-me em torno?!

Quem é que partilha da minha triste sorte?! Quem chora o pobrezinho que vai percorrendo, lágrimas nos olhos, o trilho ensilvado, em caminhos ínvios?! Somente uma voz é grato ouvir; apenas um ponto me apraz fixar; só um coração me atrai, para amar; só uns olhos chorosos me dizem maravilhas; só uma doce tristeza me prostra na subida; um único chorar vem desatinar-me; só um riso magoado me dói e atormenta; apenas um toque me deixa apreensivo; só uma palidez, com visos de morte me rouba o gosto de viver neste mundo; apenas um olhar de infinda tristeza me confunde e abate.

CONTINUAÇÃO ( 13 )

Há dias, fui em passeio, dirigindo-me a um lugar, que seus pés de fada haviam trilhado quando em férias. Embora sozinho, foi para mim um dia feliz. Quantas cenas belas me vieram à memória, baixando em seguida ao meu coração! Nesse dia venturoso, filosofei a fundo, discorri por largo, andei e senti. As mesmas árvores pareciam confiar-me deliciosos segredos; as rochas seculares, duras embora, apresentavam-se afáveis, como afirmando ser bem poderosa a força do amor; as águas correndo diziam baixinho que a fada amiga passara por ali, meditando a cismar! E eu embalado, seduzido por miragens que o peito criara, cheguei-me prestesmente ao espelho de cristal, para vê-la ainda, qual ninfa celeste a fazer negaças ao fauno indiscreto.

Oh! Não foi decerto a curiosidade que ali me chamou: sim, o amor! Aproximei-me bastante, para esquadrinhar os belos arredores, sem vistas indiscretas que fossem profanar aquela deidade, que Amor guardara, para meu júbilo. Jamais esquecerei essa tarde amena, que tanta delícia gerou no meu ser! Agora, vivo somente de recordações, avultando bastante as de triste memória. É com má vontade e muito desgosto que vejo aproximarem-se fantasmas ingratos, se não matadores. Mas ai! Eu não tenho força, para escorraçá-los da minha presença!

Sou tão pobrezinho! Sinto logo dor arrepelar-me a carne; descubro perplexo o vaivém contínuo de gigantes invisíveis, que se conjuraram na minha perdição! Quem é que me ajuda, cheia de zelo, a ir escorraçá-los para muito longe?! Quem me dá sua mão, prazenteiramente e já condoída, profere palavras, que são de outra esfera?! Quem sorri meigamente, contribuindo assim para que as trevas se volvam em luz?!

Estou só! Agora mesmo, bateram as 5! Já perdi toda a esperança de ver, ainda hoje quem me prende à vida! Só por isso é que eu vim. Haveria, de facto, um poder capaz e tão ousado, que fosse arrancar-me aos braços maternos?! Existiria coisa, por mais apreciável, que pudesse afastar-me, deixando-a só?! E vim. Não posso viver sem este amor. É grata sumamente a estima da família, mas não suficiente, par a dar a ventura! É divinal a afeição dos pais, invejável também a dos próprios irmãos; inapreciável a dos tios e tias. Mas imprescindível, inalienável e necessária a da pessoa amada! Esta, na verdade, faz parte integrante da própria vida! Se a tudo o mais podemos renunciar, embora com a garganta afogada em soluços e o peito varado por férrea lança, isto não cabe em nós doseá-lo sequer! Há que aceitá-lo como dom benigno que o Céu ofertou, a fim de minorar as agruras da vida.

Sinto fome de carinhos, amparo e muito mais! Fica tão longa a África ardente! Fica tão perto o sepulcro horrendo! Que me resta ainda?! A esperança! Esta, verdade seja, noto-a vigorosa, dentro de mim! Que fora a vida, sem ela?! Que ocorreria na subida íngreme, que leva direito ao cume do monte, sem este apoio, tão doce e forte?!

Um ente saudoso, em terra adusta!... Que pode esperar dele, embora muito amigo, quem se encontra separado pelo Mar inclemente?! Que me pode luzir o que a distância lançou para tão longe da minha presença?!

Da sepultura só negras sombras caem, sobre mim. Poderá vir alívio de tão sinistros lugares, tristes, solitários?! Eu julgo até que, se algo de lá vem é dor imensa, angústia desmedida, pranto desfeito, desalento e ruína, que se cravam fundo, lá no mais íntimo da pessoa humana. A quem recorrer?!

Apenas a ti, amor da minha vida, alento firme do meu coração, parte necessária da minha existência, pronto socorro, na adversidade, irmã genuína do meu sofrimento, partilhadora de minhas alegrias, inquiridora de todos os cambiantes, que a dura existência possa trazer-me! Companheira amiga estou sozinho, na medonha encruzilhada! Falta-me a luz da tua alma sincera e o recurso maior, que é pedir a Deus, com muita fé.

Por este caminho, trilharei seguro o piso receoso que falta ainda. Sem estes meios, escasseia o alento, mingua a coragem, sinto frieza em todo o meu ser

CONTINUAÇÃO (14)

Regresso dum acto, no qual tomaram parte dezenas de pessoas. Cantou-se a rigor; houve discursos; trocaram impressões. No rosto de todos a alegria esfuziava! No meio, porém, de tanta harmonia, uma nota discordante logo surgiu: mergulhava eu no abismo lastimoso de infinita dor. Nem sequer tentei dissimular em parte quanto ia no seio. Para quê?! Mais vale isolar-me, para que a angústia ronde à vontade, por todo o meu ser.

Inquiri a preceito se alguém compartilhava da minha ansiedade, mas é certo e provado que ninguém encontrei. Que amarga desilusão! Que outros não ligassem, admitia-o fácil, mas aquela que eu amo! Aquela que rogou dividisse por ela o meu sofrimento, a fim de não custar! Havia lisura em suas palavras?! Haveria sentido no que afirmou, tantíssimas vezes?! Até que ponto crerei nas suas afirmações?! Em que revelou sentir a minha dor?! Vi-a sempre alegre e, ó céus, até espalhafatou! Andasse como eu, que não faria por ela?!

Ou não acredita nas minhas palavras ou me quer enganar. Não justifico a sua atitude! Agora, sinto em peso o amargo da vida! Ninguém haverá a quem eu doa?! Movido assim, a pontapés, vou arrastando o fardo pesado, que a pobre existência me vem oferecer. Ninguém se aproxima! Até aquela de quem eu esperava consolação ri, folga e tripudia, como se, realmente, nada houvesse!

Meu Deus! Por que é que não levais este ser inútil que, para nada, é já prestável?! Por que deixais que sirva de tropeço a quem quer gozar e sentir a vida, sem perda alguma de qualquer natureza?! Ó Senhor, eu sou um triste de quem todos se afastam, sem dó nem piedade! Pois não foge de mim quem é o encanto de meus dias terrenos?! Ela também faz coro, juntando-se a outros! Que será de mim, que não tenho ninguém! Pediu, implorando que lhe cuspisse no rosto, segundo o que disse e até assegurou!

Apesar de tudo, mais havia de amar-me! Estarão de acordo semelhantes palavras, com a sua atitude?! Disse mil vezes não merecer perdão! Estaria, de facto, a gracejar, qual rude maltrapilho?! Em que manifesta o seu arrependimento?! Onde a correcção e emenda de vida?! Não a vi folgar, descontraída, com o tal parceiro, faz Domingo 8 dias?! Não mo disseram, que vi eu próprio! Do que tinha para mim, fez presente a outros, havendo promessas e juras repetidas, que me puseram louquinho!

Por que me enganavas?! Tenho no peito uma ferida a sangrar! Ainda queres saná-la?! Quando?! Sinto asco da vida! Não sei! A bem dizer, quem merece confiança?! Foi em ti, na verdade, que descansou o meu coração, por ver nos teus olhos o tesouro escondido, que procurava, há muito, sem o encontrar. E agora afinal, que tudo rejeitei, com excepção da tua pessoa, vejo-me só e desamparado! Todos me abandonam! Se mais triste me vêem, mais se afastam ainda!

Quanto eu odeio esta sociedade! Apenas alguém tem pena de mim! Nem esperava tanto! Algumas vezes, de quem se não espera é que se obtém. Sou mais infeliz do que tinha pensado! Mas que fazer?! Quem me dera longe, muito longe daqui, para chorar sem peias o meu sofrimento! Só duas pessoas perguntaram já por minha mãe…

Entretanto, a causa real do meu sofrimento é bem diferente da que todos imaginam! Aquela faz-me sofrer, mas sem atingir este grau de intensidade! O que me aflige e assaz angustia é saber, na verdade, que o Amor dos meus sonhos, em vez de alentar-me, usa meios cruéis, para alancear a fundo esta alma desditosa, que não sente já ânimo, para levar a cruz!

CONTINUAÇÃO (15)

Jamais a vi triste. Não faço bem ideia como entende a frase que há dias me dirigiu, em carta sua: “Dividir o sofrimento!” Como pode ser, se ela própria o avoluma, por modo horrível?! E se eu disser ainda que procura, esta época, tão amargurada, para me torturar, não se coibindo de pôr em prática o que mais achincalha meus brios fortes de ser enamorado?!

Não exagero, ao dizer alguma vez que apenas ela é que troça de mim. E hei-de crer nas palavras que há pouco escreveu?! Porei eu confiança no amável sorriso que não atende à minha sorte e vai logo desdizer o que antes porfiara, com toda a alma?! Como acreditar?! O que hoje presenciei não desdiz totalmente?! Não foi, a rigor, desmentido formal para tudo aquilo que, chorosa, afirmara?! Continuarei eu a acreditar nela?!

Que fez ela por mim?! Escreveu, por ventura ou disse alguma coisa que pudesse aliviar-me?! Procurou-me talvez, num beijo ardente, enfrentando a má sorte, que me persegue impiedosa?! Veio ter comigo, bonançosa e meiga, jurando em presença amor sincero?! Depositou ela nos meus lábios ressequidos, chamas intensas de viva afeição?! Se ela viesse, ao menos amanhã, tudo ficaria de bom cariz! Mas ela, na verdade, não quer saber!

Onde o respeito, guardado fielmente, após o dia amargoso, em que verti sentido pranto?! Onde o cuidado em nada fazer, que possa torturar-me?! Não saberá que sofro imenso?! Bastaria, de facto, uma só causa, para eu sossobrar. Espera, talvez, que eu vá dizer-lho?! Será tão inepta que seja necessário tudo esclarecer?! É que eu, realmente, não sou compreendido! Oh! minha escura e triste sorte!

Sinto, na verdade, imenso desejo de não existir! De facto, para quê a vida, se traz apenas dor e martírio?! Quando apreciamos uma boa amizade? Não será nos momentos de intensa amargura?! Alguém duvidará de que é nessas horas de grande aflição?! Pois nestas precisamente, é que sou abandonado! Haverá maior desdita e incompreensão?! Existirá sobre a Terra, quem possa com razão chamar-se desgraçado?!

Onde encontrar alguém como eu, a ser escarnecido?! Alguém será tão parvo, que ouse divertir-se, à custa de outrem, na sua presença?! Não creio, por absurdo! Eu assim triste, e ela contente! Ao pensar nisto, sinto revolta, de ser ingénuo! Fui um pateta, porque só eu é que dou assim causa, para estas cenas! Dizer também que faz tais coisas impensadamente, não parece lógico, em razão de saber a medida exacta, em que me feriu a sua atitude, no Domingo passado!

Serei eu, por ventura, tão pobre de ideias, que nada perceba?! Ou haverá razões, para assim proceder?! Impossível! O que noto decerto é leviandade, ante os problemas, que a vida apresenta. É que, a bem dizer, eu punha tudo nas suas mãos! Hoje, logrado, tenho imensa pena de ser tão néscio, que não me aperceba de que todos se enfastiam! É já tarde, sim, mas é bom, afinal, que sofra a valer! Por quê ser ingénuo, depositando confiança, em quem não merece?!

Estou baralhado, com toda a certeza! Nem sei o que penso! Mas como explicar o que hoje vi?! Isto, de facto, é que me atormenta! O resto a mais era bagatela, mas esse facto não sei realmente como justificá-lo. Divertir-se com alguém, que me pôs à boca a taça amargosa de fel e vinagre?! Jogar à queima-roupa, sem recato nenhum, os dados preciosos, aos quais apenas eu é que tenho direito?! E a fugir de mim!

Para quê, pergunto eu, andar sem rodeios, com alguém que me atraiçoa, à vista de todos?! Continuarei eu a guardar fidelidade àquela que não cessa de tornar-me infeliz?! Ainda de meus lábios surgirá um sorriso, que lhe verta na alma?! Não terei coragem! De minha boca jamais sairá palavra ou dizer que expresse meiguice ou denote ventura! Mentir não sei! Verdade para mim, só amargosa e assassina!

Estão soando as 12, na torre local, e meia-noite no meu coração. Faz escuro na Terra e noite em meu peito, ferido e chagado por mão cruel! Como será o tempo que vai seguir-se?! Chorar é meu fado! Assim desabafo!

CONTINUAÇÃO (16)

Abeirei-me da fonte, em busca de refrigério para a minha dor. Infelizmente, porém, aquilo que eu julgava ser causa de alegria, converteu-se para logo em corrente impetuosa de largo infortúnio! Dia após dia, hora após hora, só vejo crescer o montão de ruínas, que em breve formarão assustadora montanha! De quem esperar algum lenitivo?! Devia convencer-me de que só a desgraça é meu património.

Há que suportar este duro fardo, até conseguir uns dias melhores. Entrementes, resignação e muita paciência. Acedi a um lugar, para mim delicioso e de longe consagrado a belas recordações. E que vim encontrar? Desilusão cruel; remorso de amar quem me não ama; fel e amargura, destilados em mim por negro olvido! Com efeito, fui desprezado e até escarnecido!

Pois que vi hoje, antes do almoço?! Pediu-me perdão, uma e mil vezes, acreditando eu nas suas palavras. Disse-me até que me não merecia, pedindo-me ali que lhe cuspisse no rosto. Deus me livrara de coisas tais! Se forre beijá-la, isso é que sim, me daria prazer, mas cuspir nela jamais o faria! Após isto, porém, que vai sucedendo? A minha cabeça o pode narrar!

Não tive ainda um momento de alívio nem uma hora de consolação! Pelo contrário, tudo me atormenta, para agravar a imensa desdita, que breve caiu sobre os meus ombros! Em vez de meiguices, que é o que vejo? Horrível atitude, que me faz cismar, fundamente, longamente! Pensava eu, na minha ingenuidade, que ela, de facto, evitaria encontros, que provocassem angústia. Parece que a atitude seria razoável! Pedir tanta desculpa, rogar perdões, chorar ansiada, mais que uma vez e, seguidamente, confirmar em grande o que antes fizera! Como explicar o que vai sucedendo?!

Não acho resposta para a minha pergunta. Julgo encontrar-me no campo da razão! Mas que vi eu hoje?! Folgar precisamente com um dos tais, que ajudaram a tecer a coroa dolorosa! Esta me atormenta a cabeça desfeita, penetrando no miolo! Divertia-se com ele, dando o que negara a este desgraçado, que arrasta a vida! Como justificar a alegria esfusiante?! Se eu ando mergulhado em tal aflição, terá ela o direito de fazer espalhafato, à volta de mim?!

Onde afirmar a unidade de vistas, a conformidade que insinua o Poeta?! Onde a renúncia que leva a tudo, para não magoar a pessoa amada?! Onde a solicitude, que evita desgostar o ente adorado?! Onde aqueles bens que sonhei acordado, longe daqui?! Ai, meu Deus, quanto vejo, à roda é tudo escuridão! Aspirar a refrigério, esperá-lo ansioso, até que por fim, no mais belo da vida, surge de improviso, a negra desilusão! Vê-me alquebrado, lutando com a dor, que pode amargurar um peito de amante?

Aproveita o ensejo, levianamente, para lançar-se em busca de maior tormento! Nesta conjuntura, precisava eu dum peito amigo, que tudo arriscasse, para não ver mergulhar no pó o Amor que sofre. Agora, sinto eu precisão absoluta de uma alma gémea, para suportar o fardo enorme, que verga os meus ombros.

Alguém se oferece, para tal missão? Se o calado é resposta, foi o que obtive! Quantos sonhos nutri! Quantas noites em claro, na mira dum objectivo, que me acompanha há muito! Mas que é que sonhava, se um destino cruel me fadou para a desgraça?! Que meditações remoía concentrado, havendo por alvo dar-lhe um sentido novo e belo! Era, na verdade, o lado sério da vida, que me estava escapando, sem nisso atentar! Por que fui ingénuo?!

Agora já tarde, para erradicar um mal tremendo, que lançou raízes tão fundas e sólidas! Que é que faz o náufrago, em luta porfiada com as ondas revoltas?! Que anima um doente, em luta com a morte, que chega decidida?! Que faz ele?! Se as forças lhe minguam, por haver lutado, que há-de restar?! Apenas chorar a sua desdita: somente agarrar-se à única tábua, que nem é de salvação! Agora, é de ruína!

Por que é que formei tão altos castelos?! Por que levantei maciças torres, que vieram a cair sobre os meus ombros?! Por que subi eu às maiores alturas, no intuito falaz de encontrar aí a felicidade?! Por que me lancei de encontro a obstáculos, que roubaram as energias de que tanto preciso?! É tarde já! Mas o peso da vida tortura-me a existência! Já não tenho, afinal, gosto de viver, porque a minha adorada olha indiferente para a dor cruciante que me traz esmagado.

Tudo na vida perdeu sua graça, que deixou de emprestar-lha quem tinha o segredo! Ai! Como sofro! E não ser compreendido! Assim não vale a pena! Ando a mais nesta vida e apenas contribuo para afligir a existência a quem tenta gozá-la, sem peias estranhas! Sendo isto assim, actuo qual tropeço, que obstrui o caminho a qualquer transeunte!

Para quê então fazer reclamações?! Iludi-me, ao que vejo, durante longo tempo, julgando erradamente que alguém compartilhava nos meus sofrimentos, procurando libertar-me! Não vejo eu agora que tudo se conjurava para me perder?! Que espero então?! Defrontar-me animoso com o tal gigante! Não foi ele, afinal, o que destroçou a vida a grandes infelizes?! Lembro, nesta hora, Camões e Bocage!

Se não posso equiparar-me no grande talento, pois disso em mim nem sombra vejo, igualo certamente os grandes imortais, no horrendo infortúnio que me tem avassalado! Como tudo é amargo, na quadra presente! Já usou algum processo que atenue o meu mal?! Por demais ela sabe como há-de tirar os espinhos agudos, que se cravaram fundo, na minha pobre alma! Mas que adianta, se eu não mereço?!

Que lhe interessa a ela, se avistou no horizonte paisagens deslumbrantes e assaz tentadoras?! Isto nada vale, porque a neve pecoce começou já de cobrir as altas cumeadas. Por que não me convenci, antes de entregar-me?! Agora, é tarde em excesso, por nada restar do meu coração! Dei-o inteiramente e sem quaisquer reservas: dele nada ficou! Cabe-me, pois, no momento cruciante, chorar um abandono, que não espera indulgência, nem perante Deus nem perante os homens!

Vivo sozinho! Tudo o vento levou! Só deixou comigo a dor e a saudade, para eu chorar, na amarga solidão, arrastando a vida, no meio do infortúnio. Ainda gostarei de viver assim?! Sentirei algo de prisão à vida?! Quem me dera morrer! Que me importa afinal viver mortificado, a apresentar dia a dia motivos de sofrimento?!

Que valores assumem regiões amenas, cuja vista só, desperta na alma dores cruciantes?! Manterão sortilégio, por mínimo que seja, os lugares tão amados, onde a minha alma, agonizante já, vai ficando retalhada?! Haverá no mundo coisa sorridente, que possa activar, no peito solitário, as cinzas frias que a feia deslealdade nele depositou?! Que haverá jamais que possa erguer alto ou dar movimento a um corpo inerte e prostrado chão?! Uma coisa só fica em presença: chorar amargamente a enorme desilusão.

Julgava-me feliz e só agora vejo quão longe da verdade eu então me encontrava!

CONTINUAÇÃO (17)

Estou bem longe de quanto encheu o meu coração, em dias risonhos, que já se perderam na bruma dos tempos. Família? Onde está ela? O pai extremoso já no sepulcro; a mãe adorada, à beira da cova! As irmãs devotadas, em terras longínquas; o irmão, enfermiço! Eis o que resta do funeral da vida! Será justo, afinal, que eu não atenda a quanto me resta?!

Não terei eu direitos inauferíveis, que a Lei não recusa seja a quem for?! Serei eu tão parvo que me deixe acorrentar por algemas e grilhões, que os homens inventaram para atormentar a existência humana?! Será isto viver, agarrado a preconceitos, que logo escravizam?! Não tornam a vida em puro inferno, impedindo também de alcançar o Paraíso?!

É humano e justo que haja dois infernos?! Um na outra vida, logo após a morte; outro, nesta ainda, lutando ingloriamente por deveres e princípios que os homens impuseram, fazendo-se mais senhores que o próprio Senhor?! Quando Ele afirmou que sancionava depois o que fizessem na Terra, subiu-lhes à cabeça a honra e a glória, dando-se pressa em exorbitar. Por que aumentar os sonhos e as graves dificuldades, em que a vida abunda?! Nunca imaginei que fosse tão dura a vida na Terra nem conjecturei que houvesse razões para tanta dor!

Pesam-me agora três graves problemas, sendo eu, na verdade, um pobre mortal, que mais não faz que gemer em surdina. Sinto claramente faltarem-me as forças, de um dia para o outro. Duas mulheres: uma, a pessoa amada, que passa indiferente por quem se enamorou e que, na hora mais crítica da sua existência, luta sozinha; outra, a mãe extremosa, que agoniza já, num leito de dor, trespassada como está de espadas cortantes, que lhe destroçam o peito mártir.

Eu, então, pobre de mim! Tudo me dói, no corpo e na alma! Já não posso arrastar-me! Força poderosa me neutraliza, procurando avassalar-me, de momento a momento! Julguei no passado que havia sofrido as dores mais atrozes, mas estava enganado! Agora, sim! Vejo claramente desabarem dobre mim as grandes calamidades, não havendo uma força que ajude logo, para aguentar-lhe o duro embate!

Oh! Tive-a já, sim. Como era feliz! Hoje, porém, considero-me abjecto, pois me vejo sozinho e até desprezado pelo ente querido! Perdi já tudo! Nada me resta! Consolação, alento e refrigério bem como sorrisos; beijos leais que aquecem, de pronto, faces geladas; abraços firmes que destroem num momento, vestígios de males; atitudes e segredos, que enlouquecem as almas!

Onde vai tudo isso que me fez ditoso! Aonde arribou essa aurora formosa, que saciou meus olhos e, com fulgor, chegou a deslumbrá-los?! Um só lutador e três inimigos! Como pode isto ser?! Vou ficar esmagado, em combate desigual! Ontem, por acaso, nem um mero passo, nem uma palavra, uma carta breve, mero sorriso! E, no entanto, ela sabe, a rigor, o que me torna, de facto, a vida tão amarga! Ela e mais ninguém, com a pouca estima e nenhum amor, faz-me esta vida quase impossível! Foi ela que gracejou, divertindo-se a capricho, com alto impudor, ante a minha pessoa!

Foi ela, sim, que me destruiu, para todo o sempre, visto que não sai do meu pensamento, o que vi praticar, num dia fatal! Quem me assassinou, com desprezo vilão, que não tem nome?! Quem me roubou o que fazia a glória dum pobre mortal, agora tão mesquinho?! Quem se regozijou, aleivosamente, renegando um amor, que prometia ser forte, sincero e leal?!

Não quero jamais prender-me à vida, seja qual for a razão invocada! O que eu desejo é fugir de vez, para um mundo distante e, logo que chegado, prantear a minha dor, a fim de aliviar este peso enorme, que me faz vergar. Como admitir atitudes e modos, que roubam a paz, sepultam a alegria e cavam a ruína?! Valerá bem a pena jogar alguma vez, com dados falíveis?! Será conveniente arriscar o futuro, subjugando-me a um destino, que só traz infelicidade?!

Quem me prendeu ao mundo de sonho, ardente, inflamado, que me vai no seio?! Acuso e sinto o pungir amargo do espinho acerado que hoje me cravou, sem dó nem piedade!

CONTINUAÇÃO (18)

Já hoje chorei, durante uma sessão, estando ali presentes 15 grados elementos, facto singular na minha existência, em iguais circunstâncias. Não foi, não, um pranto disfarçado ou passageiro. Foi, na verdade, um lento desafogar, em que as lágrimas correram, abundantemente, pelas faces pálidas, quase feitas gelo! Fui incapaz de reter os soluços ou disfarçar então a imensa dor.

Tive pena da assistência, que estava consternada, presenciando tal cena. Vi lágrimas sinceras, em rostos alheios, sinal de compaixão, pelo meu sofrimento! Conjecturas mil haviam de fazer, acerca das razões, que fizeram brotar essas lágrimas ardentes, Diversas, por certo, haviam de ser, mas parece-me bem que não terão acertado, dando ali no alvo. Jamais olvidarei aqueles rostos jovens, impotentes e amigos, olhando-me amiúde, cheios de tristeza.

Entretanto, nem toda a gente me encara assim, recolhendo no meio alguns dos estranhos, que fundo se cravaram no meu coração. Sim! Nem toda a gente! Com que amargura eu escrevo tais palavras, mal soantes a ouvidos, que não podem entendê-las! Como hão-de percebê-las, se não houve no passado coisa semelhante?! Continuo sozinho e de alma esfacelada! Mas, não sei porquê, hoje sinto lenitivo, ao pensar, uma vez mais que todo o meu sofrer deriva daquela que, sendo amada, timbra por acinte em desprezar-me! Estarei louco talvez! Não o posso afirmar, com inteira segurança. No entanto, como hei-de interpretar o que vai neste peito, inflamado e ardente?!

Desejar ventura a quem me faz ma! Ver aumentar a minha afeição, não sendo retribuída! Viver angustiado por quem eu amo e folga delirante, ao ver-me sofrer!.. Imaginai vós, entendidos e sábios o desconcerto que vai na minha alma! Sabes tu, Amor, por que solucei, na presença de todos, sem poder ocultar a imensa dor?! Ignoras a razão, que me fez verter lágrimas?! Não conheces o motivo, que me pôs como alvo, durante minutos?! Se realmente o não sabes, também to não digo!

Quantas lágrimas verteste, por me veres deprimido, diria até desprezado e incompreemdido?! Atendeste, por ventura, a meu estado, assaz lastimoso, recordando, a propósito, que é sobeja a dor que me vem do passado?! Investigando atitudes, assumidas por ti, nunca pude convencer-me de que andasses melancólica, por este infeliz! Sempre alegre e jovial, sempre satisfeita, após o golpe (não digo bem, pois foram dois!) tão fundo, que agora me feriu! Tu conhece-los bem! És afortunada, pois folgas e ris descuidadamente! Basta que eu sofra do modo que sabes!

Mas então por que dizias, em ar suplicante, para me compensares de enorme desgosto, que partilhasse contigo as minhas amarguras?! Por que fizeste soar a ouvidos enfermos esta música celeste?! Agora é mais doloroso o meu grande tormento, por essa razão. Não mo dissesses! Não me pedisses perdão, com palavras fingidas, a que logo dei crédito, sem hesitar. Para que o fizeste?! Fui eu que to mandei?! Alguma vez to impus?!

No meio do abismo, em que já me encontrava (e hoje muito mais), queria morrer, mas para descansar, mas os teus rogos, que ouvi, apaixonado, criaram de novo amor à vida. Aferrei-me a ela, por causa de ti. E que vejo, ao presente?! Compreendes tu a minha afeição?! Mereço eu que me trates assim?! Penso a valer no que estás fazendo! Não passes jamais tão indiferente por um campo de dor, onde vegetam almas, que arrastam corpos! Nesse lugar, já campeou decerto a felicidade, mas os vendavais passaram por ali, tudo varrendo, no seu furor! Somente destroços! Tudo ruínas! As aves calaram-se, para todo o sempre! Nunca mais se ouviu o doce trinar do mavioso rouxinol! É um campo de mortos! Poderá ser, no entanto que juntinho a eles, encontre mais paz, vingando assim ultrajes diversos, que os vivos descarregam, sobre os meus ombros.

CONTINUAÇÃO (19)

Houvera em teu peito o que eu julgava, não o dissipavas como eu próprio vi, amortalhado em dor. Foi este um facto que me derribou de toda a esperança. Jamais hei-de crer, seja em quem for. Onde as promessas que tanto envaideciam, restituindo-me a vida?! Onde aquele pedido, tantas vezes formulado, em que eu acreditei, de maneira cega?! Onde a verdade, naquela atitude, bem mortificante, para o meu coração?!

Tudo, num momento, perdeu a valia, como por encanto! Para quê, afinal, depositar confiança?! Agora, encontro-me só e ninguém tem pena! Ninguém sofre comigo e hei-de suportar o peso da cruz! Maior sofrimento não creio haja aí! A minha vingança é chorar, noite e dia! Este, o meu passatempo! Esta, a minha folgança! Este, o auxílio inerte, muito pobre e vazio!

Ontem, chorei angustiado, soluçando e gemendo! Que mais ainda me está reservado?! Não apareço, que faço má figura! Aconteceu isso, no dia 28! Urgente necessidade levou-me a tomar parte no acto oficial. De outra maneira, não figurava! Apesar de tudo, quem eu supunha andasse acabrunhada, por causa de mim, abundava em alegria, cantando e folgando, sem nada ligar! Que momentos esses tão amargurados, para um coração que ama, sem reservas! Que doloroso tal sofrimento, para quem não liga ao que outros julguem!

Que me importa a língua de quem me quer mal?! Acaso me enriquece ou empobrece a língua viperina?! Em nada a tenho! Com tudo arrostei, só para doar-me a um grande amor! Tudo alijei de mim, para viver plenamente a doce paixão, que me devora e consome, sem achar eco, onde quer que seja! Que houve aí no mundo que não tivesse feito?! E para quê?! Não tenho bem à vista os despojos tristes da humilhante derrota?! Que vale ou aproveita quem me envergonha ou me despreza, na hora da amargura?! De que serve um amor, negado por obras?! Não acreditava, se não houvesse visto!

Ai! Pobre e mesquinho que te iludem assim, lançando alguém poeira a granel, em teus olhos deslumbrados! Admiro, no entanto, como lhe quero ainda, assim ingrata e cruel! Tinha desejo de chamar-lhe agora nomes bem feios, porque só deste modo conseguia relaxar, mas tenho pena de fazê-la sofrer! Já é bastante que eu morra desgostoso. Nem permitirei que todos os escritos das últimas horas lhe cheguem às mãos.

Vale muito mais escrever só para mim, a fim de que, repetindo a leitura, sofra mil vezes o que ela, de outro modo, havia de sentir. Isto dá-me ventura, no meio dos tormentos, que me roubam o ser.

São 9 e 15, nesta linda manhã. Em que pensará e que intenta fazer? Mas eu, infeliz, para que me iludo?! Se quisesse remediar os males que me afligem, vinha ontem aqui ou então procurava-me fosse onde fosse, para asselar o verdadeiro amor e assim libertar-me a carga horrosa, que me está esmagando e faz vergar todo o meu ser.

Ela sabe muito bem como é que se dissipam as nuvens negras! E não quis fazer nada, em meu favor! Eu, em favor dela, tudo faria! Sabe-o claramente, pois já dei provas, uma vez e muitas. Passaria por tudo, a fim de consegui-lo. Mas, com ser isto assim, não te quero mal. Sê feliz e ditosa, se lograres sem mim, o que eu te não dou. Bem na verdade, que os teus encantos já não me respeitam. Como vou remediar tão grande mal? Impossível!

Uma coisa já, te posso garantir: um coração todo teu, louquinho e sedento de quanto me falta. Esse, realmente, é pertença tua. Por isso talvez é que o desprezas?! Então, vinga-te a capricho de um amor sem igual, pois não quero, de facto, que sejas desditosa, entregando-te a mim. Goza a vida à vontade e não te preocupe a minha pessoa.

Nada eu fiz que viesse destoar. Mas, já que assim o entendes, procede como pensas e deixa que eu morra. Pouco falta já. Mais que morto ando eu, pois que não pertenço ao número dos vivos! Os horizontes da vida prolongam-se apenas até à morte. Morrerei com a mãe que me deu o ser e, juntamente com ela, tudo quanto sou e me fez feliz!

Adeus, adeus, amor e esteio do meu coração, oprimido e vexado! Adeus, querida!

CONTINUAÇÃO (20)

Como sou parvo e digno de lástima! O que tive na ideia não pode recordar-se! Tanta desventura, sem razão para isso! Tanta desilusão, que a mente criou! Mas, se houve devaneio, uma coisa foi real: a dor incomensurável, que fundo me atingiu, durante horas longas, pesadas, intermináveis, como tive na verdade, entre o último Domingo e quarta-feira seguinte.

Iria discriminar, ainda que ao de leve, meandros sem fim, onde avultam, a espaços, vestígios de sangue?! Quem ousa percorrer uma senda infamada, ligada a recordações, amargas e tristes?! Oh! Como foi dolorosa esta via sem fim, que os meus olhos desvairados seguiram dolentes, na mira de encontrar, lá muito à distância, um lugar solitário, aonde fossem chorar à sua vontade, fantasias e logros, que agora já noto haverem sido infundados. Mas é tempo sobejo de mudar o andamento à chorada sinfonia bem como o tom mesto de que era repassada.

Já soaram nos ares aleluias festivos, que arroubaram meus ouvidos de jovem enamorado! As notas dolentes de que era entretecida a folha musical, a soar longas horas, no íntimo peito, volveram-se já em melífluos sons, que fazem a loucura do momento presente. Agora, tudo mudou. Já deixou de circundar-me a treva da vida, para raiar de novo a perpétua aurora, que todo me inebria. Vivo outra vez agarrado à existência e, por nada no mundo, quero que ela falte, dado que a eleita do meu coração teve pena de mim.

Já não sou desditoso nem tão pobrezinho como havia admitido, no silêncio pesado e amesquinhante do meu quarto sombrio. Não sei o que sinto, mas vai-me pela alma um reboar incessante de estranhas harmonias, que pronto me enlouquecem e fazem delirar. Desejo sinceramente que todos os homens sejam bem felizes! Neste momento, sinto nas veias o sangue a ferver.

Anteontem, porém, dormiam elas, para nada servindo. Penso até que a morte rondava. Se tal ocorresse, hoje arrependia-me, com todas as forças da alma enamorada. Ainda bem que tal não se deu, pois acertei, a rigor, com a jovem eleita. Fiz-lhe injustiça, admitindo e crendo que não era fiel. Mas eu, realmente, já não sou capaz de manter-me sereno: o meu coração vive insatisfeito e sôfrego de amor. Senti saudades, quase desesperei, julgando, infundado, ser o mais infeliz de todos os mortais!

Numa palavra, entendo ser bom acabar a minha vida, cá neste mundo! Como penso hoje de maneira diferente! Já não morrer! Quero, sim, mas viver, para gozar as delícias, que um amor correspondido me oferece, generoso! Ai! Como estou grato a quem me fez sofrer (melhor diria, por quem sofri tanto!) Sinto imensa pena e asco de mim, por haver pensado que ela, efectivamente, não era fiel como fora em tempos!

Mas não se apagava, no meu pensamento, o baile malfadado, atrevido, assassino! Sofri eu muito e fi-la sofrer, sendo já isto o que mais me pesa! Julgava erradamente que só eu penava, mas enganei-me! Por um lado, também isto me consola, pois mostra claro que me olhava atenta e velava por mim! Como estou agradecido ao formoso Bem! Não sei já como hei-de revelar a minha gratidão, que brota espontânea do peito amante!

Não queria haver feito juízos temerários, que a fossem magoar! Mas agora me lembro de que já prometeu não entristecer-se nem ficar zangada. Entretanto, só queria escrever aquilo que certamente a fizesse ditosa! Coitadinha! Bem lhe chegam já os tormentos e quezílias da vida particular, senão avolumar-lhe também as causas da amargura! É que eu, a rigor, andava quase louco, segundo ela própria confessou, rindo. Ainda bem que tudo passou, à maneira de nuvem, que um Sol radioso logo dissipou!

Depois da noite, o dia claro; após a treva, a luz meridiana; após a tempestade, a grata bonança; após o calvário, a ressurreição! Antes do gozo, tem de vir a cruz, pois só os que a levaram, com muita paciência, vão ter galardão .

CONTINUAÇÃO (21)

Que fora o prazer, não havendo fel?! Sensaboria, que ninguém apreciava! Para ter sabor a deleitação, nada há melhor que o próprio sofrimento! Então é consolador experimentar o gosto ao que era desejado! Chego, por vezes, a amar o sofrimento, que já me torturou?! Pois não foi ele que levou o Amor a proferir certas frases, que fundo inebriaram minha alma sedenta?! Pode haver terreno mais delicioso que uns lábios de mulher, ao dizerem palavras, que logo arrebatam?! Tenho no peito as suaves harmonias, que nele ocasionam!

Mas tanta mulher como há, pelo mundo, e só esta eu quero! Só a esta consinto e tudo permito! Tudo perdoo! Tudo lhe agradeço! Tudo aprecio, ainda o tormento de ver-me desprezado! Se me pedisse o mundo, tinha-o ela certo, estando em minha mão! Se me rogasse impossíveis, ficaria angustiado! Suplicando-me favores, apenas sentiria que não pedisse mais! Perdera a esperança em tudo o que via.

Como sou pateta! Sinto vergonha!

Veio a minha fada, que tornou a vida alegre! Os lugares do costume tomaram, desde logo, feições bem diversas das habituais! As casas sorriem-me, parecendo animadas de vida e colorido! Os caminhos saúdam, quando passo por eles e julgo até que já são outros! O que era intratável volveu-se em afável! O que eu odiava tornou-se amoroso!

A paisagem negra e de cores apagadas animou-se de tal modo, que julgava até encontrar-me no Éden. Sempre é verdade que a mulher amada empresta beleza a tudo que a cerca! Não o tivesse dito o Príncipe dos Vates, Camões imortal!

Também a minha alma sente gozosa o conforto sem par dum amor sincero, grande e operoso, elevado e persistente, sacrificado e inalterável, crescente e bondoso, terno e carinhoso, oportuno e verdadeiro, paciente e provado, capaz de tudo! Isto cria o orgulho de haver acertado! Se houvera falhanço, iria logo dar num ente infeliz, devido à sensibilidade e viva fantasia de que sou dotado.

Praticaria, assim creio eu, os maiores desatinos, como se há verificado, na história dos povos. Durante longo tempo, julguei erradamente que certas e dadas coisas não ocorreriam na vida humana e que só os romances aludiam a elas para desfastio de seus leitores! Hoje, porém, diz-me a experiência que tal e muito mais pode acontecer! Estou quase certo de chegar a loucuras, a fim de ganhar quem um dia me perdeu.

O sofrimento que mata ou destrói, ou o prazer, que anima e salva?! Já não sei viver senão para ela. Nunca pude convencer-me, no passado remoto, que eu algum dia amasse uma mulher. Teorias me empilharam, na cabeça ingénua, que não quero lembrar, com vista directa a ignorar as mulheres!

Acho isso estúpido! Mulher é minha mãe; outras, minhas irmãs; uma mulher é aquela que amo e que por mim seria até capaz de sacrificar a própria vida. Não havia de querer-lhe?! Foram os homens que impuseram isso! Deus do Céu não o proibiu! Poderão eles mais que o próprio Deus?! Deles, pois, me rio eu! De Deus, não, porque Ele, a rigor tudo fez bem.

Que legislador é que teria arrogância, para dizer-me, sem titubear: “Tu não podes amar!” Rio-me disso, porque afinal os homens não podem cercear o que Deus lançou na alma humana! Muitas coisas eu julgo se hão-de aferir, no dia de contas, por critérios diferentes dos que usaram os mortais, presumidos e duros.

Numa palavra, a minha felicidade consiste em dar-me àquela que amo e se dá também. Por ela, sim, tudo eu farei. Quero-lhe tanto como a mim próprio, não importando o que outros, ao lado, possam dizer.

CONTINUAÇÃO (22)

Nem tudo são abrolhos, na vida presente. Nem sempre o diabo é que vai preparar o que traz prazer ou causa amargura! Vagueiam também, pelo mundo pecador, anjos verdadeiros, e levam a existência a pensar no jeito de suavizar um tanto a dor alheia. Esse anjo terrestre, a quem nós devemos profunda gratidão é de facto a mulher!

Não falo deste anjo, enquanto proporciona gozos sensuais, embora estes mesmos andem associados ao que mais impõe as filhas de Eva. Refiro-me, sim, àquela mulher, que não vive para si, fazendo sua delícia a entrega e sacrifício, em favor de outrem. E a que pensa em alguém, que deseja feliz, tudo arriscando, sem hesitar. E a que poisa clemente seu olhar de bondade no pobre caminhante, extenuado já e prostrado a fundo pela fadiga, enquanto cicia ao ouvido enamorado “confia, não temas, pois a minha alma é gémea da tua! Serei o teu bordão, contra a má sorte! Contra o meu peito virão combater as ondas alterosas da vida agitada, sem levar a melhor! Nos meus olhos de fada poderás tu ler as palavras mágicas: resignação e entrega, conformidade, sacrifício e renúncia; amor sem medida; enlevo de alma; afeição ilimitada!”

É aquela que não dorme, passando vigílias, aturadas e longas, a meditar no processo ideal, de suavizar a dor do ente querido; a fada extremosa que não vive para si, a fim de se doar, em corpo e alma, ao objecto caro do seu amor; o braço forte e irresistível, para encaminhar o que jaz em apuros, de não haver encontrado alguém amoroso, que lhe desse a mão!

É quem procura, em todos os seus actos, o bem do infeliz, para quem esta vida começa a mostrar um cariz diferente. É o ente prodigioso, que Deus criou, para tornar possível a vida na Terra. Que seria a existência, à margem dela?! Os homens viravam boçais, atropelando na via fosse quem fosse.

Onde encontrar a delicadeza, criada no lar, pelos sentimentos da casa amiga?! Onde o fino gosto, que brota espontâneo do vivo desejo de agradar à mulher?! Onde a imolação que fundo rejubila de viver em pleno para quem merece tudo?! Eu não sei bem, mas o mundo sem ela, volver-se-ia prestes em imunda estrebaria. O que empresta à vida encanto e relevo, o que lhe imprime, sem dúvida, forma e colorido é a mulher.

Entretanto, ao falar da mulher, tenho enorme receio de má interpretação, por não ser compreendido. É isso exactamente, o que eu não quero! Por esta razão é que volto à carga. Lamento a mulher fácil, pois barateia o que tem de mais belo, em corpo e alma: amor e honra e sensibilidade. Essa infeliz não intento eu que figure aqui, no meu discurso, nem peso as razões, que a levam a tanto.

Tenho para mim que algumas dentre elas hajam sido vítimas de enredos fatais. É muito possível. Neste caso, houve miseráveis, que atiraram para a lama quem se entregara. Mas essas mulheres são asquerosas, não obstante a desgraça. Vendem o corpo, dão-se ao primeiro que surge pela frente e, não tendo amor, perseguem os homens cobiçando as notas ou o físico apenas! Tudo o que seja alma, sentimento e dignidade bem como nobreza não é ali que havemos de ir buscá-lo.

Os grandes sonetistas amaram a seu modo, fazendo abstracção dos encantos físicos, para se deliciarem na beleza moral. Assim, por exemplo, Camões e Petrarca. Eram amantes de seres ideais a quem a forma física nada interessava ou muito pouco. Defenderam tal amor, em composições que ficaram imortais. Para estes génios, era ela, de facto, centelha de luz, pelo bom Deus enviada à Terra, para guiar o homem, no trilho do Céu. Servia de meio: nunca um fim! Só a alma, o coração a vontade! Viviam num ambiente, mais divino que humano!

Efectivamente, esse encanto da vida, que tudo transforma, à volta de si, merece deferência, de modo especial, quando faz de seu viver um hino perpétuo a quem enfeitiçou e a quem somente doou seu amor. De louvor é digna, quando transforma em doce paraíso aquilo que, sem ela, seria um inferno! Ressoam na minha alma vozes de júbilo e eterna gratidão às que fazem da vida cruzada bendita, para tornar felizes os queridos entes, que giram na órbita da sua existência: marido, filhos e filhas.

Quem não se enternece, meditando a valer, na epopeia sublime, vivida por sua mãe, ao longo dos anos?! Alguém haverá que se mantenha apático, ante um hino de glória, entoado ao criador e tão alta maravilha?! E sempre é assim, dado que tenha havido um consórcio de amor! Só a este me refiro; a ele apenas rendo homenagem.

Tudo o mais é cálculo vil, jogo combinado, negócio mesquinho. Revolto-me logo, só de imaginar que alguém tente, ousado, construir o seu lar, na base de um pensamento, aviltante e asqueroso, qual é realmente o de unir destinos como bois ao jugo! Não se coaduna, por modo algum, a ideia aviltante com a mentalidade que para mim criei antes, acerca do lar!

Nisto, é execrável ao máximo contrabandear, pois se trata afinal dum assunto delicado, donde são rechaçados processos ignóbeis.

Mas, voltando ao caso: reitero aqui o meu preito sentido à mulher fiel, que é honra do lar. É deleitável observar atento como segue diligente a marcha dos sucessos, para se imolar, com gosto e devoção, por todos aqueles que nela confiam. Nada aí se lhe atravessa! Inventai obstáculos, imaginai até incríveis dificuldades, criai absurdos, que ela então, não obstante as dificuldades, passará triunfante, por sobre tudo isso, para aclarar os sombrios horizontes daqueles a quem ama!

O que outros não podem apresenta para ela um caminho acessível. Aquilo de que outros se julgam incapazes é para ela coisa natural. Quereis um argumento? Provocai o luto de quem ela ama e vereis prestesmente como entra em campo, dotada de forças, que farão suportar os maiores sacrifícios!

Tenta uma vez, de longe que seja, o dano e a ruína de quem a venceu, lançando-lhe na alma a inquietude amorosa e logo presenciareis inauditos sacrifícios, de largas finezas, que enchem de maravilha o nosso coração! Acautelai-vos sempre de ferir o seu amado, porque, nestas circunstâncias, correreis graves riscos.

Há que suportar uma acção constante, que vai acobardar os mais esforçados. Numa palavra: é excelsa maravilha o entregar do coração a um único homem! O que logrou prender a mulher ideal é bem ditoso e nada tem que invejar aos mais felizes, já que possui o que é realmente a chave da ventura. Mulher assim é mais que um tesouro!

CONTINUAÇÃO (23)

Quarta-feira somente e parece já que mediaram anos! Sinto bem vivo, em meu coração, o pungir da saudade. Ontem, com empenho, encarei-a nos olhos e tive a impressão de serem os mais belos, que já vi, neste mundo. Só outros houve, que eram iguais! Os de minha mãe! Nunca esses olhos se haviam mostrado tão sedutores!

O que eles disseram, em sua linguagem! Quantas promessas neles desenhadas! Desceu à minha alma um perfume inebriante, que logo me inundou de suave odor! Então afigurou-se-me logo que não vivia na Terra, mas preso nela, ensaiava meus voos para um mundo ideal!

Aquele doce olhar que não prolongou e que era a minha vida, ficou para sempre no íntimo peito, à maneira de luz, fulgurante e misteriosa, que não se dissipa com a fúria persistente dos próprios elementos. Que saudades eu tenho dessa hora bendita, para o meu coração! Quando voltará, para dar-me vislumbres de que, em nosso planeta nem tudo é inferno! Se hoje ou amanhã cumprisse a promessa!..

Eu sei muito bem que nada regateia a quem se lhe doou, por forma total, mas experimento anseios fortes de amor, traduzido por maneira que sacie a veemência. Amor sem provas? De que se alimenta o fogo da paixão?! Que lhe nutre a fogueira e o faz avivar?! Que o faz crepitar com intensidade inesperada?! Que é que faz a dita do pobre ser humano?!

Vem, meu Amor, saciar a fome de quem é só teu! Não te demores! A vida é curta! Não sofre delongas! Apressa-te, pois, sedução e enlevo da minha alma sedenta, que só deseja doar-se e viver para ti. Eu sei, não duvido, que hoje ou amanhã, viveremos os dois, num mundo ideal, pois se tu és minha, quem pode furtar-te àquele amor vivo, ardente e forte que já nos consome?! Noto, é claro, que a vida me sorri, no teu meigo olhar; vejo ainda que na Terra habitada, há zonas de sonho e de alta maravilha, originadas, é óbvio, pelo teu sorriso, que entorna loucuras, no meu peito em ânsia.

Sinto, além disso, que o mal se afasta, quando me aproximo do teu ser adorável. Que saudade imensa vai já torturando o meu coração! Mas falta pouco, visto que, em breve, fixarei o teu rosto, que tantas vezes beijei, inflamado e amoroso! São poucos os minutos, mas isso afinal, parece eternidade, em razão do fogo, que não deixa esperar.

Quero ver, uma vez mais, o teu olhar de promessa e fonte de encantos, que breve me lançou em verdadeira loucura e se apresenta ornado, agora mais que nunca, de uma auréola de glória. Já não temo azares, porque alguém, muito meu, vai-me acompanhando, no duro trilho da vida! Não estou só, aguardando inseguro que os inimigos receados caiam sobre mim, para estrangular-me! Alguém muito querido ao meu coração ombreia comigo na longa caminhada, para que o meu passo seja decidido, firme e seguro!

Aquele olhar gerou, no meu peito, imenso caudal de paz e ventura, que já me não larga, a todo o momento! Também assim quero! Viver é isto! Um sonhar longo que desliza subtil, através do meu ser, onde nascem desejos, que me tornam escravo. Que importa isso, quando a felicidade reside ali?!

Minha adorada, guardo no peito as palavras saborosas, que me endereçaste, num dia amargurado! Julgo conservar a música adorável da tua meiga voz! É ela que dá vida e imprime coragem, para arrostar firme com as misérias da vida presente! Não tardes, pois, que o meu coração anseia por ti! Estive, ainda há pouco, onde saciasse a minha ânsia de amor. Contudo, não quis a minha pouca sorte que eu desse cumprimento a esse ardente desejo!

Fui com esperança, mas o regresso foi amargurado. Mudança de parecer?! Como seria tal, andando envolvido nas redes amorosas, por modo que só nelas me sinto viver?! Não! Eu não mudei ou antes, se houve mudança, foi para activar o incêndio interior! Era meu propósito, invencível e tenaz, aproximar-me da querida, para ler, em seus olhos, repousantes e meigos, os sinais maravilhosos, que eu sei decifrar, por haver-me industriado.

Quantas vezes já, no íntimo da alma, assentei firmemente solucionar em breve uma grave questão, para mim inadiável! Mas impossível! Que pensaria logo a minha ínclita fada, a quem já não posso deixar de amar?! Que eu sou ingrato? Se assim julgou, cometeu erro grave e até imperdoável, porque eu arranco, de seu peito amoroso, doces harmonias, que embalam meu viver. Em ti somente eu vou descansar de enormes trabalhos, que algemam e oprimem, dentro de mim este coração!

Companhia infernal e assaz maldita, que não deixou abeirar-me, a fim de matar esta sede ardente, que já me devora! Escolheste logo a mais indesejável, para quem intenta ler em teus olhos belos, promessas loucas! Excomungada pessoa, que age ao invés, para eu ficar ao largo desse aperitivo, qual se apresenta na tua fisionomia! Quantos projectos em meu pensamento! Mas todos falharam, caindo por terra meus altos anelos! Se soubesses o mal que ela intentou, em ordem a ti, nunca te acercavas, mas não vale a pena fazer a tua vida ainda mais amarga!

Adeus, meu enlevo, até não sei quando. O que eu te desejo, na vida e na morte: que a paz e a ventura reinem para sempre, em teu coração! Deus-Pai amoroso, a sorrir, do Céu, clame pelo Beto, na hora final.