1969/03/01
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1969/04/18
Manteigas \\ 1 de Março de 1969
O Presbitério
O velho presbitério fica situado no Largo de S. Pedro! Alguma vez, na vida, eu iria imaginar que pudesse achar ali a minha sepultura?! Apesar de tudo e contra a expectativa, deparou-se funda como o próprio inferno. Já por duas vezes que entrevi a morte, de fauces hiantes e a boca em tenaz. A primeira delas ocorreu em Dax, território francês; a segunda, no Covão. Se não gostava dele! Agora, com razão, estremeço de horror, só de o lembrar! É que em França não me coube, por certo, a milésima parte deste sofrimento! Não tenho palavras nem sequer vibração, para descrever esse momento horroroso! Ficar em pasta, debaixo dos escombros!
Que bela alvorada para o mês de Março! Nessa hora, vi-me sozinho, o que veio aumentar o meu grande pavor! Precisava ali alguém. para dizer-lhe adeus. Mas que vi eu?! Fendas espantosas com sorrisos infernais, traves nodosas e muros avelhados, com acenos arrogantes e por demais descabidos. A noite imensa a envolver o meu peito! Como é triste e duro viver sozinho! Como é doloroso acabar assim!
Manteigas \\ 2 de Março de 1969
Sepultado nos escombros, ficando ali vivo, durante alguns dias, seria medonho! Quem daria comigo?! Talvez amarfanhado por viga monstruosa, debaixo da qual passaria o meu tempo, sem poder virar-me! Como descansar?! E o frio insuportável, que havia de aguentar?! Donde aurir então alento bastante e robustez física, para suportar essa enorme desgraça?! Se houvesse partido a medula-espinal, contorcendo-me em dor, que a ninguém doesse?!
E por quantos dias iria prolongar-se tamanho calvário?! Quem é que então se doeria de mim?! Encontraria alguém, sendo eco perfeito da minha dor atroz?! Causaria impressão, durante uns momentos, o género de morte, mas logo em seguida viria o olvido! A vida é assim! Os próprios filhos o fazem aos pais. Que havia de eu esperar?! Obrigar os outros ao que eles não podem?! O certo é que eu ,mercê do meu Deus, não me encontro ainda sob os escombros!
Vivo sim, escorreito e belo, defrontando a vida e lutando por ela. Que Deus me poupe a outro flagelo, caso contrário, vou-me logo abaixo, ao fim de pouco tempo!
Manteigas \\ 3 de Março de 1969
Acabam de sair as notas de Carnaval, que vêm atrasadas. Em razão disso, apinhavam-se os alunos, em frente do placar, a fim de lerem nas pautas, o fruto do seu labor. Havia, por ali, olhos inquiridores e rostos de palidez, em que grande tristeza se pintava a claro. Noutras fileiras, ostentava.-se a angústia, que não deixava ali proferir palavra.
Gesto aprovador, era coisa que não havia! Sempre o mesmo e sempre igual! O professor jamais terá razão! O aluno sim, esse é que a tem! Pois não é verdade?! Quem duvidará?! Se há coisas evidentes, esta inclui-se também! Se não é ver! Fosse igual o professor para todos os alunos, os tais resultados mudariam logo! É que essas notas vão de facto à luz, pelos olhos lindos e não pelo saber!
Até os pais acreditam nesses desabafos, que são afinal verdades como punhos! Dessem eles cabritos ou levassem presentes, ver-se-ia mudar tudo como por encanto! Enfim, é um dia agitado e cheio de sensações, dia no qual só têm razão alunos e alunas. O professor é um pobre diabo, só tolerável, por não poder banir-se.
Manteigas \\ 4 de Março de 1969
Minha irmã Augusta vai deixar em breve o continente africano, regressando a Portugal com marido e filhos. Já lá vão 16 anos. Era, de facto, em 1953. Contava eu 35. Hoje, estou velho e cansado, não me crendo apto, seja para o que for. Habituado à solidão, não me julgo capaz de afazer-me a outro meio. Vontade própria jamais a tive.
A dos outros é que sempre foi a minha. Quando no lar, a vontade paterna; depois, no Seminário, a dos Superiores; finalmente, a do Prelado. Entendi, porém, embora já tarde, que ninguém, na Terra, deve renunciar à personalidade. Deixar-se absorver? Apenas em Deus!
Absorção em outrem, só realmente em casos de amor, com vista a novo lar. Fora destes casos, é inadmissível que alguém neste mundo, tente de qualquer modo retorcer a existência a pessoas iguais. Que tem a mais um homem qualquer, em relação a outro?! Provavelmente, vileza e maldade! Mas é tarde! Horrivelmente a desoras! Deixem tornar-me aquilo que eu desejo! Não me enganem mais! A Primavera escoou-se e o Verão vai em meio!
Se eu pudera recuar, lançaria em rosto, com voz ameaçadora, a fealdade e o impudor, que a sociedade usou, a fim de lançar-me nesta via dolorosa!
Manteigas \\ 5 de Março de 1969
Um sinal bom ou mau põe o coração em franco alvoroço! Faz hoje alguns meses, contados a rigor. Ao ser-me anunciado, com angústia no rosto, experimentei uma alegria inefável! Iniciaria, por certo, um rumo diferente. A vida particular, com novas directrizes, iria obedecer a novos imperativos. No meu peito amoroso, travava-se um duelo entre dois sentimentos: alegria e tristeza, Apoiando o primeiro, não podia furtar-me a várias consequências, harto dolorosas. Longo combate se travou então, dentro de mim.
Era, afinal, juiz da vida, pela primeira vez. Da minha sentença, favorável ou não, ia depender o futuro de alguém. Meditei longamente, reflecti a fundo e cheguei a conclusões, para mim sagradas! O direito á vida é algo de santo! Apenas Deus pode retirá-lo!, que é Senhor dos vivos e também dos mortos.
Estava assente! Desde aquela hora, resolvido o assunto! O que restava não era já muito. Volvidos breves dias, iria surgir radiosa manhã. Não acredito me tenha enganado.
Manteigas \\ 6 de Março de 1969
As notas de Março originaram crise, em parte dos jovens. Preparam-se exercícios, revêem-se matérias, pedem e rogam certa compreensão, entram pela noite, julgando errados que o dia comum não é suficiente! Tudo se agita e apressa! Mas para quê tamanha ansiedade, sabendo afinal que o dia seguinte é já o fim de tudo?! Valerá bem a pena marchar tão ligeiro, quando a vida é tão curta?
Serão utopia as nossas pretensões?! Que faço eu, dominado pelo sono, que me verga fundamente?! Devo reagir, mas não é comigo! Faltam breves linhas e, com os olhos, percorro, num instante, as pequenas distâncias. Apesar de tudo, quanto menos falta, mais o sono me prostra, revelando acinte e denodo sem par! E eu insisto, volto sempre à carga, embora a cabeça me penda dos ombros!
Doeu livrar-me de todos estes males, para criar um ambiente, que fosse mais humano e também favorável.
Manteigas \\ 7 de Março de 1969
Faz hoje 10 anos, que morreu, neste sítio, alguém prezado. Menina prendada, que a sorte bafejava, casara havia pouco e já contava um rebento a engrinaldar a bela árvore da família Esteves. A imprudência, talvez ou grande azar, não deixou afinal, que o ditoso lar se conservasse, por largo tempo. Um resvalamento operou a desgraça: morte da esposa.
Foi uma bomba, lançada no burgo, quando a notícia ali se divulgou. È que a finada gozava em alto grau da estima geral. Por esta razão, todos sentiram, com grande pesar, a morte inesperada. O facto, porém, estava consumado. Nada a fazer. Perante a morte, o homem chora, confessando-se impotente. Grandes e sábios também não escapam à severa lei que a todos prostra.
Este dia, pois, faz reflectir! Assim acaba tudo o que é material! Só Deus e a virtude é que permanecem. Tudo o mais é fantasia, paisagem aparente. Estabilidade, paz e sossego apenas em Deus é que havemos de encontrá-los. Fora d´Ele, só agitação e intranquilidade!
Manteigas \\ 8 de Março de 1969
Vão já correndo os Pontos de Páscoa. Faltam 15 dias, mas urge começar, para que o tempo não escasseie, Hoje, cabe a vez ao 4º ano. É um exercício, para dar notas. Há esmero nos trabalhos, incerteza e angústia. Com efeito, sendo já esta a segunda média, no ano lectivo, importa elevá-la, para obter passagem ou proposta a exame. O dia de amanhã é sempre um enigma! Terá bom cariz?! Será minaz em seu aspecto?! Que é que nos reserva em seu mistério?! Humilhação ou belo triunfo?!
É por isso, exactamente, que o ser humano actua, persistindo no esforço para remediar as falhas do passado. Aqui, da secretária, onde escrevo estas notas, observo agora, ansioso e comovido, o rosto dos alunos, em que vejo esboçar-se grande nervosismo e profunda angústia. O futuro de Portugal, família e da Igreja encontra-se aqui, no seu embrião. E eu quero a valer que a nova semente venha robusta e prometa aos vindouros um mundo melhor, para não ser improfícua a minha passagem, cá pela Terra.
Eles afirmarão, no incerto futuro, a eficiência pedagógica, alimentada com a seiva, que me brota da alma.
Manteigas \\ 9 de Março de 1969
Os casos familiares de carácter social e também económico deixaram para trás um rasto de sangue. É o passarinho, que deseja realizar-se, no lindo azul, onde a magia o prende e encanta mas, por não ter ainda asas robustas ou por terem ficado algo mutiladas, torna-se impotente. Ei-lo, pois, à mercê de estranhos, que jogarão com ele a bel-prazer!
Aliciamentos e até promessas em aspectos sérios da existência humana; um futuro melhor e mais sedutor; ocultação, já premeditada; aproveitamento hábil da generosidade; ameaça frequente de retirar favores: eis as causas mortíferas dos que não se realizam.
- Que queres ser, meu filho? - Pergunta solícita a mãe extremosa.
- Professor!
- Ah! Isso não! O Liceu é muito caro para nós! Se quiseres ser padre! O Seminário ficava mais barato!
O filho adapta-se à nova ideia. O impossível matraqueia-lhe os ouvidos, ao mesmo tempo que lhe fere a alma. O ambiente está criado! Ser Padre! Ver-se respeitado, querido e amado! A mãe enche-o de promessas! Neste mundo, ter o suficiente e ganhar o Céu!
Manteigas. \\ 10 de Março de 1969
Com regozijo de toda a família, o menino fadado acaba de ingressar na Instituição. À saída, foi um triunfo! Ninguém estudava, e ele sim! Os do seu tempo ficavam na aldeia, a remexer a terra ou seguir os animais, por montes e vales. Com ele, porém, as coisas eram outras! As tarefas diárias são agora diferentes do que haviam sido: Matemática, Línguas e também Ciências. ” Não havia dúvida! Só por isso, valia bem a pena ter abandonado o torrão natal!”
No entanto, as saudades começam de actuar! Vem prontamente a melancolia! É um mundo novo aquele em que actua. Os colegas velhos são algo traiçoeiros. Quase se escandaliza! O silvo do comboio que passa ali diariamente, acorda-o sempre de longo cismar. E se fugisse?! Mas os pais?!
Chegam as férias! É Natal! Que belo tempo! Como sente e aprecia os carinhos da família! Tem desejo imenso de não voltar mais! E como desdar um nó tão cerrado?!. Regressa a custo, iniciando, pois, um novo período. Recomendam-lhe, em breve, mortificação e fidelidade. A quê?! A uma coisa ideal que para ele não existe - a vocação! Continua só: desfalcado, torcido!
Manteigas \\ 11 de Março de 1969
O doutor Melro está “despadrado”. Informaram disto, há pouco ainda, mas não me surpreendo, como é natural, visto que só ele é senhor do seu destino! Que tenho eu que ele vá para a frente ou que volva para trás?! Que me vai a mim, se ele mete de facto por outra via?! Segue aquela rota que julga ser melhor, nada tendo a preocupar-se com pareceres estranhos. Assim devem fazer todos quantos se julgam de má consciência.
Para que serve, afinal, representar na vida?! Precisará talvez a Santa Igreja de novos sacerdotes, sem vocação?! Devemos com efeito ser iguais a nós próprios! Que nos deixem ser o que mais desejamos, acabando para sempre com a camisa-de-forças! Longos e tristes, detestáveis e pesados foram na verdade, os séculos idos, em que o homem ditador e sempre absorvente, se permitia dispor, a bel-prazer, da vida alheia.
Em que eram eles mais que os próprios subalternos?! Pois não findou, em 1453, esse período negro, que chamam Idade Média?! Como pôde prorrogar-se, até aos nossos dias? Se Deus-Providência nos criou livres, por que vieram os homens assenhorear-se logo, indevidamente, das nossas pessoas?! Cada um de nós é que é juiz da sua consciência!
Manteigas \\ 12 de Março de 1969
A minha aspiração era alguém que não voltou! Estremecia-o , como um tesouro. Mesmo assim, figura um gigante que domina tudo, à volta de mim. Por esse alguém é que foram as lidas, todo o meu suor e lágrimas ardentes. Entesourava, impondo limitações, para que esse outrem fosse feliz. Ainda assim, continua presente ao meu pensamento.
Sim, ninguém te vê, mas vejo-te eu, deveras maravilhado e até rendido, no fundo da minha alma. Não tinha ainda sentido a vida e nada me prendia de quanto me cercava. Entretanto, uma hora soou que me fez ditoso. Tudo explicável e bem ordenado! Faltava, na vida, a mola real que tudo justifica e torna aceitável. Embora imaginando, só entendia tua voz de meiguice, apenas ouvia teus pedidos frequentes, nada mais sentia que o murmúrio de teus lábios!
Por que foste embora, amparo de meus dias, esteio firme da vida solitária, esperança radiosa da existência obscura, estrela brilhante dum futuro desejado?
Manteigas \\ 12 de Março de 1969
Continuação
Se não me engano, faltará já pouco, no entanto, figura eternidade. Gostaria, de facto, que os momentos futuros volvessem pressurosos, embora mais tarde afrouxasse o tempo a marcha veloz. ”Quem espera desespera”! Embora se trate dum rifão popular, não o vou tomar à letra, bem entendido, mas estou alvoroçado e cheio de ansiedade.
Era intenso desejo escancararem-se os olhos, para observar, em pormenor, a visita mais bela que Deus do Céu podia trazer-me! Se uma paisagem é tão deliciosa e uma obra de arte inebria a mente ou uma simples pintura nos diz tanta coisa! Que não será, pois, ver face a face pessoas que amamos! Haverá palavras que traduzam cabalmente essa viva realidade?! Se as há, desconheço-as!
Medito e sonho, falo e observo, embeveço-me e rio. A grande expectativa faz-me delirar! É como a taluda que está para sair! Devo até dizer: para mim, afinal, é já um mundo novo, cheio de promessas, abundante em esperanças!
Manteigas \\ 13 de Março de 1969
Para onde quer que me volte agora, o que vejo são Pontos! É Inglês e Francês, é Poruguês e também Ciências. Ano após ano, montões e montões, que só lentamente se vão desbastando! Há dois dias já, que me debruço, incansavelmente, sobre ondas de papel, onde, não raro, sofro violências e até naufrágios. Sucedeu hoje, com o Ponto do 5º, em matéria de Inglês.
Seria bastante roubar-me o apetite, mas infelizmente, como se isso não bastasse, originou-me ainda boa dor e cabeça! O género de notas vai de 4 a 9. Belo panorama, num ano de exame! Com as Provas à porta, havendo já esgotado o meu arsenal, olho amargurado para a messe desfalcada! Que vai acontecer? Aquilo, decerto, que eu nunca vi nem espero jamais: apenas um terço, em propostas a exame!
É vergonhoso, sei-o muito bem e coloca mal o professor dos alunos. Entretanto, nada houve, a que não recorresse! Elogios vários; ameaças repetidas; confiança e destempero! Lições ao vivo, dramatizando inúmeras vezes, e outras partes ainda, que reputava adequadas, para atingir o alvo desejado.
Manteigas \\ 14 de Março de 1969
Vai subindo a maré que os exercícios de Páscoa aumentam, dia a dia. Agora, exactamente, é a vez do 4º ano. É uma classe amável, entre a qual me sinto bem, pois jamais permitiu que eu passasse frio. Boa disposição, interior e exterior é campo azado para um trabalho, deveras fecundo!
Há poucos dias, num exercício do 5º, já tremia de frio. O facto lastimoso é que ele depois se prolongou, durante duas horas. Ninguém então se lembrou do meu grande tormento. Para haver lembrança é preciso amar. Reside aqui a mola real. Apesar de tudo quanto levo feito, pelo ano em causa, representa, sem dúvida, enorme dispêndio, em questão de esforço e trabalho pessoal
Não sei explicar como há tanta frieza, num ambiente de trabalho como este, onde actuo! Mas enfim os olhos ficam postos, não em aparências, mas no meu dever, levado ao termo. Aspectos humanos são muito falíveis. A recompensa maior que eu espero me caiba, acho-a bem clara no sossego da consciência. O que devia ter feito era não aceitar o ano referido, pois sabia de antemão, não ser eu capaz de prepará-lo bem, como habitualmente.
Com poucas excepções, é um ano perdido, que irá fazer corpo, no próximo 4º ano. Quase dou por estragado o esforço dispendido. Fale também o que é responsável pela Matemática! “Pérolas a porcos!”
Manteigas \\ 15 de Março de 1969
Festa dos Reis, Domingo do bom Pastor, início de Outubro! Que datas amargas para o meu coração! Era nessa altura que deixava a minha aldeia, para novas tarefas de tipo escolar! Três meses decorriam, longos, morosos, até que vinha de novo uma aragem fresquinha. Que nostalgia profunda me invadia nessa época! Enterrar-me vivo entre 4 paredes, onde nunca era eu, por ser de facto o que eu não queria. Regime de caserna, terrorismo nas aulas, ameaça de expulsão, à mínima ocorrência, lançamento em rosto do acréscimo exíguo que dávamos ali às finanças da Casa!
Para jovens aldeões era autêntico flagelo. Acepção de pessoas e até desenfado, para não magoar os pais tão queridos, que viviam longe e assaz atribulados!
Ser expulso! Puderam assim recalcar bem, à sua vontade, retorcer o meu espírito, fazer de mim, afinal de contas, um ser atribulado, inútil, melancólico! Foi de facto assim que me achei empobrecido e assaz aviltado, após a extorsão, impiedosa e cruel, que me fizeram ali, em nome da consciência.
Manteigas \\ 16 de Março de 1969
A passos largos caminham para nós as férias de Páscoa. É mais uma semana e logo nos ofertam o descanso merecido. Nunca andei como agora, agitado e ansioso, pois que é torturante dar aulas pesadas ao 5º ano. Detesto, a valer, esse labor! Nenhuma aula me custa dar, à excepção daquela! O pior bocado, mais amargo e desditoso, da minha vida inteira, é essa hora infeliz e sem gosto!
Mas qual foi, na verdade, o crime perpetrado, para ver-me tão mesquinho?! Para que serve, realmente andar oprimido, se o mundo é tão grande?! Que me importa o local, havendo muitos outros, para eu escolher?! Por que é que não tomo a firme decisão, inadiável e forte, que me leve bem depressa, destes ares minazes?!
É excelente mudar de sítio, abrindo horizontes à vida tediosa que tenho levado!
Manteigas \\ 17 de Março de 1969
Daqui a um mês, terá subido já, no horizonte remoto, o Sol mais brilhante da minha vida inteira! Como aguardo ansioso esse dia feliz, que eu reputo o mais belo , com assento neste mundo! Todo sou alvoroço, perante o caso ímpar que vai ocorrer, dentro em pouco tempo!
Deus seja comigo, que surgem cuidados e graves deveres, mas que vêm ao encontro do meu próprio “eu”. Sou eu que me encontro, eu que me revejo, eu próprio, afinal, que chamo por mim! Já tentara isto, mas sem resposta. Chamava, chamava, mas ninguém respondia! Olhava, olhava, mas ninguém me via! Procurava solícito mas tudo em vão!
Agora, porém, se Deus me ajudar, tenho fé que assim seja, tudo vai seguir esse rumo inverso! E as noites molestas, com horríveis pesadelos, volver-se-ão breve, em manhãs radiosas! Dessa maneira, vai logo remoçar a minha sequiosa alma! Sentia-me avelhado, combalido e sem estímulo, agindo contrariado, no vazio da existência, em favor de alguém que estaria sempre longe!
Agora, não! Aquilo que era tortura deixará de existir, Por isso, levanto a cabeça, delirante e festiva, para saudar, no horizonte de prata, o astro benfazejo, que vai inundar-me de luz e calor!
Manteigas \\ 18 de Março de 1969
A linda Primavera já vem sorrindo além, mas, a barrar-lhe o caminho, densos aguaceiros e chuvas abundantes caem agora do plúmbeo céu. É, na verdade, um louvar a Deus, que nos manda este ano tamanha abundância de contratempos! Apesar de tudo, é este para mim, o ano mais belo de toda a vida!
Estou, de momento, na aula do 3º ano e decorre exactamente o Ponto de Inglês. A turma concentra-se no labor exigido, enquanto eu saúdo em minha alma o rosicler da aurora. Além, no exterior, resmunga na ribeira a água açodada que chega das vertentes. O Zêzere medonho vai num rompante!
O nosso João Clara, o Fraga e o Mendes procuram merecer a subida honra de ficar na vanguarda; um pouco atrás, a Ana e a Graça, bem como a Zesita mantêm-se curvadas sobre o Ferraz Franco, onde se encontra o exercício a fazer.
Choca-me deveras o contraste imenso, entre o grave silêncio da sala de aula e o murmúrio refilão da água saltitante, que se apressa no ribeiro, caras ao Zêzere. Dir-se-ia talvez haver sido intimada pelo grande Oceano, a fim de apresentar-se, no mesmo dia.
Manteigas \\ 19 de Março de 1969
Se alguém nos visita, na própria casa, e não mais lá volta, é que algo de mau ali ocorreu. Falta possível de cortesia; deficiência, em questão de urbanidade; escassez de atenções; ambiente desagradável. A quem atribuir a culpa? Foi nossa, julgo eu, e frouxamente do hóspede em causa! Como hospedeiros, cumpria-nos logo ser bastante afáveis.
A certos lugares, não mais voltei. As cordas afectivas não vibram por eles nem me convidam a trazê-los à memória. Sofro até bastante, quando penso no caso. Ingratidão, cá da minha parte? Não! Protesto imenso contra uma acção que reputo abusiva – a deformação da personalidade!
A quem outorguei domínio cabal, para disporem de mim, a seu bel-prazer?! Que lei humana podia barrar a minha escolha livre, quanto a um futuro, que apenas eu iria viver e também realizar?! Ludibriado e já contorcido, gemendo no abismo em que fora lançado, clamo por Deus que me liberte já de peias odiosas, defendendo assim a minha liberdade.
Manteigas \\ 20 de Março de 1969
Todo o santo dia, ontem como hoje, mergulhado em Pontos, verificando totais e acautelando também as responsabilidades, com vista ao exame. Dentre as provas, tenho 10 classificadas, restando uma para dar e duas a corrigir. Fiz a mesma coisa vai para 8 dias, ignorando eu que houvesse diferença, entre o fim-de-semana e os dias restantes. “Strugle for life" dizem os Ingleses. Oh! A dura luta que a vida nos impõe, quando vemos a luz, em condições humilhantes!
Eu amo o trabalho e sinto-me bem, quando o realizo , mas com medida! Saía mais perfeito, vivia-se mais tempo, ganhando-se com isso amor à existência! Escravizar-me assim ao trabalho diário, como sempre tenho feito, é algo aberrante!
Estou bem convicto de que tudo, neste mundo há-de servir o homem, contribuindo em regra, para o seu bem-estar e forjando as condições da própria felicidade. No entanto, se as coisas se passam, de maneira diferente - comparação degradante à máquina absurda, em que só contam as peças materiais - como vai o ser humano ter gosto de viver?! Que tempo lhe resta, para descansar ou entregar-se a outros assuntos?!. Dá-me a impressão de que não há direitos, mas só deveres, para cumprir!
Assiste-me hoje a grata impressão de que o nosso Governo, animado como está de boa vontade, fará entrar o país noutra linha de acção. Pelo que vai feito e se projecta ainda realizar em breve, é de crer, na verdade, que num futuro próximo, todas as coisas serão reajustadas.
Manteigas \\ 21 de Março de 1969
Quem me dera a mim viver isolado, sabendo apenas da minha pessoa e de quem eu amasse! Uma casa modesta, airosa e sorridente, com luz e amor, repouso no coração e paz no meu espírito, seria de facto o cúmulo da ventura Encerrar-me ali, com os meus entes queridos, dar-me todo a eles e nós todos a Deus, sofrendo juntos iguais pesares e gozando em comum alegrias e prazeres!
 volta da morada, um pequeno jardim, onde eu cultivasse delicadas flores, ficando tudo inserto numa quinta de truz, banhada por um rio, de águas tranquílas, espelhadas e mansas! Contemplaria a paisagem, do peitoril da janela, enquanto lá fora, confundidas com as flores, outras flores falantes, mais belas ainda, exalariam de si perfume inebriante.
Como havia de ser bom viver deste modo! O contraste, porém é detestável! Chegar ao fim do dia à mesa do repasto, após haver trabalhado à saciedade, e aguardar-me ali uma presença fria, se não mal cheirosa, coisa é que detesto, em sumo grau!
Mas o cortejo não finda já. Vozes destoantes me chegam por vezes, Foi para isto que me ensinaram um dia a cultivar os bons modos?! Ser inadaptado o mesmo é que ser infeliz! Por que não ministraram algo mais real e assaz concreto?!
Cada vez que reparo me sinto mais estranho, nesta sociedade que eu não entendo nela o que fez, em ordem a mim!
Manteigas \\ Março de 1969
Segundo o monge-cantor, o fado português é um Diário abreviado, e eu afinal, estou em crer que, de facto, assim é. Com efeito, quem há neste mundo que mais ame o fado que eu próprio o faço?! Não fui, realmente, um cultor apaixonado deste ramo virginal?! Como passei eu de fadista a escritor? Talvez, julgo eu, pela grande semelhança que entre eles existe e que é bem sensível.
Assim, pois, mudei eu de fadista-cantor em fadista-escritor
Verão os meus escritos a luz deste mundo?! Contava que assim fosse, não por vaidade: sim, por desejo sincero de que a outrem não suceda o mesmo que a mim. Não quero jamais falar às turbas como incendiário nem pretendo minar os próprios fundamentos desta sociedade. Amante da ordem, respeito o poder que seja legítimo, embora reprove, com toda a veemência, excessos e abusos, que vão estrangular a liberdade humana.
O que eu pretendo alcançar é o modo extemporâneo, persistente e firme como os homens da Igreja, não todos, se agarram ao passado, no que ele tem de cediço e já ultrapassado. Para que serve realmente, nos tempos de agora, esse ar postiço, grave, exagerado, assumido ainda por algumas entidades?! A que vem uma atitude quase celestial, que induz em erro o povo crédulo?!
Não é bom tempo de suprimir costumes e hábitos feudais, que destoam fundamente da época actual?!
O “posso, quero e mando”, esse abuso do poder que fulminava penas, como se fossem raios, de quem foi imitado?! Seria acaso de Jesus Cristo, bondoso e terno, compreensivo e indulgente?!
Manteigas \\ Março de 1969
Solteiro ou casado?
Qual deles punirá com mais violência? Durante longo tempo, julguei erradamente que era o primeiro quem levava a palma, na suavidade. Hoje, porém, penso diferente. Não se trata agora de virar a cara, mas simplesmente de refazer conceitos, a que andava apegado, embora sem razão!
Aquele que é pai vê noutras crianças a figura de seus filhos, ainda antes de nascer. As outras meninas sugerem-lhe as filhas; os outros meninos recordam os bebés! Ante a sua reacção, vemos logo a diferença. O celibatário encara nos miúdos, sem atentar: é, na realidade, simples devaneio ou mera fantasia! Tudo nele é vago, indeterminado, esfumando-se breve, na curva do horizonte.
O segundo inclina-se logo à concretização e atende aos pormenores, sem ligar a conjuntos ou generalidades. Desce amoroso ao caso particular, com vista mais humana do mundo e das coisas.
Quando choram inocentes, apieda-se logo, visto que os seus aparecem na teia como por encanto; se, pelo contrário, eles cantam e folgam, logo de seu peito irrompe a alegria. A paternidade é uma fonte de luz, um oceano de amor, um céu de feitiço e felicidade. Nela existe, por certo, dedicação estreme; generosidade; solicitude; paixão e amor. Como poderia um celibatário viver para os outros e fazer-se um deles?! Pois não é ele o centro de tudo?!
Como iria dar, habituado somente ao acto de receber?! Egocentrista nada mais conta que ele e suas coisas! Primeiro, ele; depois, ele também; finalmente, ele ainda! Claro está que não admite excepções!
Manteigas \\ 22 de Março de 1969
Terminaram as aulas do 2º período. Nesta hora grata, experimento, a valer, a sensação de profundo alívio e a torna suportável. Três meses longos em regime severo de labor intenso, representam de facto enorme sacrifício! Por isso, me sinto vergar, sob o peso ingente, que levo aos ombros, com dificuldade! Em tempos idos, o aluno interessava-se. Hoje, porém, o desinteresse confrange, mata! Por mais que tente e assaz me empenhe, nada consigo! Bem ao invés, em anos anteriores, tudo foi bem, para alegria de todos!
Sendo eu o mesmo e tendo comigo a vantagem da prática e do esforço constante, por que não obtenho o que já foi pertença?! Serão os anos, a falta de paciência?! Não é caso disso! Efectivamente, 51 anos coisa é que se tolera, havendo por certo muito a esperar! Entretanto, como hei-de triunfar da apatia geral?! Como hei-de trabalhar?!
Refiro-me agora, de modo especial, ao 5º ano! Jamais fui capaz de alguma vez os prender ao assunto da aula, a fim de viverem o momento presente! Eram cadáveres, aguardando pacientes a ressurreição! Mas que grande seca! Nem pedidos ferventes nem sugestões de quaisquer ameaças! Tudo foi vão e desperdiçado! Criei pelo ensino certo desinteresse! Eu que tão amigo era de exercer a profissão!
Como se operou tamanha mudança?!
Manteigas \\ 23 de Março de 1969
Após um longo e terrível Inverno, veio por fim a doce Primavera, que ameaçou, desde logo, converter-se em inferno. Era geral o desânimo das gentes, ouvindo-se, a toda a hora, lamentos e ais. Hoje, porém, fomos brindados com um dia (23) belo de luz e calor. A esta claridade, inebriante e suave, nada existe aí que não sinta reanimar-se.
É a Natureza a erguer-se do torpor, em que fora lançada pelo duro Inverno. As meigas avezinhas associam-se também ao jubiloso aleluia de toda a Natureza, entoando canções, prenúncio de paz, amor e bem-estar! Tenho para mim que os seus louvores ao Sol criador e a Deus-Providência, que as abrigou do frio intenso, como da chuva, é prelúdio festivo de um lar amoroso, que vai breve surgir!
É a família – sempre a família – a célula básica de povos e nações! Sem ela presente, redundava tudo em enorme caos. À sinfonia da mágica Primavera não são estranhos os próprios animais. Como eles retouçam frementes e vivos, ao longo dos caminhos e prados verdejantes! Os ternos cordeiros e bem assim os cabritos demoníacos parecem descontrair-se, fazendo cabriolas, desajeitadas e muito nervosas, à carícia deste sol! É a vida nova a recomeçar! Após o despertar, vem logo a aurora, chega também o dia suspirado e a faina porfiosa que trará em breve, azeite e pão, vinho e legumes. Também eu próprio me sinto reviver! Algo me diz, no íntimo do peito: “Levanta-te e caminha, rejubila e canta, pois chegou novo dia!”
À voz intimadora e harto sugestiva, ouço no peito vibrar a uníssono, as cordas mais íntimas, enquanto me disponho para nova caminhada.
Manteigas \\ 24 de Março de 1969
Dois pobres Amigos
À custa de esforço, lá vai ele subindo a escada interior, abordoado num pau, resistente e nodoso. Mora aqui de fronte. Por via de regra, enverga o bom velho uns safões já poídos, que mal tocam nos joelhos. Anda pesadamente, o que leva a pensar no molesto reumatismo
Quanto à idade, penso e não me engano, que dobrou há muito o cabo dos setenta. Entretanto, porfia na luta e, mole-mole, granjeia o seu viver, embora modesto. É-lhe companheiro, humilde e serviçal, um burro avelhado, lazarento e mesquinho, que destrava as patas, com dificuldade. Ainda assim, está sempre ao dispor, talvez compadecido! Neste caso, a bela gratidão não é exclusiva da espécie humana.
Ignoro-lhe o nome, embora na verdade, saiba pormenores da vida quotidiana. A porta de entrada serve para os dois e assemelha-se bastante à de simples cabanal, cujo destino fosse realmente abrigar animais. Logo em frente, num desvio à direita, (estamos no rés-do-chão) passa o jerico momentos deliciosos, repousando em sossego, da lida fatigante, a que o dono o constrange, no dia-a-dia.
Ali, descansado, filosofa e medita, por longo tempo, sobre carências e duras necessidades, congeminando não sei que planos em futuro melhor.
O dono paciente, após breves degraus e seu corrimão, (assim parece, visto de fora), atinge o destino, morando paredes-meias com seu prestável jumento!
Manteigas \\ 25 de Março de 1969.
As Lições da Vida
Soube, há três dias, que o padre Tavares, artista insigne e vulto das Letras passara a velhice em extrema pobreza. Ao vê-lo de perto, mais figurava uma fera do mato que um homem de Deus! Cabelo esguedelhado, sebento e comprido: trajos andrajosos, repelentes, mal cheirosos, atados com arames; a casa de viver, mais ruína abandonada, servindo de covil a uma fera da selva que lugar acomodado a quem servira tão dignamente a sociedade!
Aqui levanto agora um protesto veemente! Quem é que guardou silêncio, debaixo do Sol, perante uma injustiça, que revolta e enfurece?! Cientistas e filósofos dizem assim: “Tudo tem uma causa! Não há efeito sem ela!”
Por que razão se encontra assim um homem prestimoso, que viveu irmanado com nobres ideais?! Que sociedade é esta de homens lisonjeiros, de quem nos vemos agora habilmente explorados?! Onde estão os chefes?! Onde a família?! A quem doara ele aquilo que tinha?! E fecham-se os olhos a esta anomalia?! Não havia, de facto quem o soubesse, para clamar aos mesmos ventos e à própria luz, se os homens, por ventura, não quisessem ouvir?!
Mas que faz ou que diz quem tanto gostava de ser amado como Deus cá na Terra?! Onde a caridade, a paternal afeição, já tão decantadas?! Se de animal se tratara, quase tenho a certeza de que o não deixariam em tamanho desconforto! Ó Céus, pasmai! Que história é essa da “fraternidade”, que granjeia dinheiro, não se sabe para quê?! Que valor é esse que fica passivo, ante a sombra viva do padre Tavares, que serviu a Igreija, com zelo e aprumo?! Onde se encontra, pois, a honorabilidade do estado sacerdotal?! Onde o espírito fraterno que deve animar-nos?!
Manteigas \\ 26 de Março de 1969
Já lá vem a madrugada! Ao brilho do novo Sol, vai logo aquecer o meu coração! E ele anda tão só e pobre de afagos! Há mais de quantos anos, que alberga lindo sonho! Vai ter agora o seu desenlace! Que me importa a mim a voz do mundo e palavras sem eco?! Quem senão eu poderá solucionar os problemas íntimos?! Casos de consciência! Nada representa a voz dos rafeiros, ao passar da caravana! De que vale chover fora e ventar bem forte, se há dia brilhante em meu coração?! Desde longo tempo, sei eu a história, deveras curiosa do Velho, o Rapaz e o Burro. Ao longo da vida, jamais a esqueci! E tem sido frutífera! Esbraceje o mundo, com fúria satânica, eu hei-de lograr, no silêncio da alma, as primícias deleitosas de uma esperança em flor!
Se outros não entendem, compreendo eu bem; se outrem não quer, desejo eu com veemência! Seguirei, pois, de cabeça erguida, enlevado no meu sonho, que breve se volverá em ditosa realidade! Como é prazenteiro alcançar a cumeada que, há tanto já, contemplo ansioso!
Quantas ânsias ocultas! Quantas lágrimas tristes, no escuro da alma! Serei vingado em breve?! Eu aguardo ansioso o romper do novo astro e, na treva do meu peito, começará de romper a risonha madrugada!
Manteigas \\ 27 de Março de 1969.
É quase fim de Março (27-3). O dia corrente aproxima-se do termo e, dentro em breve, cairão sonoras, da torre da igreja, as 5 da tarde! Decorrem as férias, dispondo assim de tempo sobejo, mas não agradável! O que dava conforto era a leitura, mas se eu ainda agora acabei o período! Enjoado de livros e tarefas escolares, enfastiado de tudo, embora saiba claro haver aí alguém que precise do meu pão! É isso, realmente, o que me conforta, no meio do torvelinho, em que a vida me envolveu. Apesar de tudo, estou sozinho, como é já tradição.
Quem me forçou impiedosamente, a esta solidão, que harto me repugna?! A este silêncio, que destrói e me consome?! Quem me lançou, estando vivo ainda, para esta sepultura, onde me encontro?! Encerrado vivo, estando consciente, maior é a dor, mais pesado o tormento! Por isso estou agora em franca revolta! Quem ousou enganar-me, ludibriando alarvemente os meus anos de candura?!
Se grande punição lhe couber em sorte, será castigo leve, para tamanho descaro! Se eu não me reconheço! Pretendo, sim, reconstituir-me e jamais o consigo! Onde estão as peças que formavam o meu ser, para entregar os feios remendos, que fizeram de mim?! Exijo que mas dêem. Se o não conseguir, apelarei breve para o Eterno Juiz.
Queria ser homem e fizeram de mim um ente sem direitos, uma voz sem eco, pessoa sem vida, um ser infeliz! A esses homens que me torceram e logo desfizeram, jogando comigo, à maneira dum cepo, quero eu chamar a contas e pedir se justifiquem de tão pernicioso e feio delito.
Manteigas \\ 28 de Março se 1969
“Ó pai, faz mais!”
Um rasgo curioso, num petiz de dois anos, que fez rir seu pai, num momento cruciante! Acalmara a terra de seu hórrido furor, nesse dia brumoso, Fevereiro, 28. O bebé achara graça aos movimentos do sismo. Por isso, num sorriso largo, confiante e aberto, roga ali breve ao progenitor, repita a bela cena, como se, na verdade, estivera em sua mão tão nefasto lidar!
Assim o pai, numa hora tão má e sempre memorável, (o tremor de terra) teve de rir, a bandeiras despregadas, muito embora o coração anuviasse os horizontes da sua existência. O que é ser criança e não ter, no mínimo, consciência do perigo! Entretanto, é mais desejável essa inconsciência. Não os houve adultos a manter-se inconscientes, como se nada fosse?! Outra espécie de inocência.
Quanto mais perfeito e deveras culto é o ser racional, mais sofre na vida! Daria vontade, embora reprovável, de ficar inculto, evitando assim desilusões e embates. Respeitar os outros, que não nos respeitam; não incomodar quem sente prazer em fazê-lo a outrem; apurar a consciência, para mais nos torturar; moldar-se a gente ao contrário daqueles em cuja companhia se há-de viver…
Que haverá de mais absurdo, numa época infeliz, em que até o menos é tido por mais?! Se não, é ver o caso do maxi bem como do mini! Que alguém diga ser demais ou então que é pouco! Riem-se dele, torturam e mofam, apodam de lorpa e chamam-lhe atrasado!
Manteigas \\ 29 de Março de 1969
Visitei há dias a vila do Fundão. De 1933 a 1937, ali passei os anos, torturado de penas e minado pelas saudades. Foi tempo duro, em que o ser vegetou, enquanto era moldado, na forja severa da vontade alheia. Tinha então 15 anos e, por ser aldeão, era logo um ingénuo de quem podia abusar.se.
De esclarecer, para já: a minha terra natal encontrava-se ainda no atraso maior de que tenho memória. Nem estrada havia nem água potável nem telefone, Apenas contava a base tradicional com algo de belo, mas sendo à mistura efeito nocivo de superstição e muita ingenuidade. Que frutos benéficos haviam de colher-se?!
Fui eu, na verdade, produto necessário desse meio ambiente, uma vez que, não podendo singrar, por vias agradáveis, houve de recorrer ao braço alheio. Até aos 19, fui acorrentado, sempre incompreendido e mal tolerado. Bem nos diziam amiudadas vezes: ”Aquilo que pagais mal dá para pão!”
No fundo, concordava, saindo mais triste desta jogada, harto maliciosa e deprimente!
“ Se não andais direitos, ides logo para a rua!” Como eu tinha receio de que meus pais sofressem tamanho desgosto! Via-os sempre quebrados e um pouco doentes, na mira fagueira de verem um dia! E se chegasse, por fim?! Não sendo realidade, quem seria o culpado?
Chegavam as férias. O meu entusiasmo era logo esfuziante. Espezinhado talvez, contorcido, calcado e feito em pasta, pelos estudantes abusadores assumia o meu ser com os dias felizes, em que era dado ficar à-vontade, no sossego do lar. Nem então me deixava a fúria cega da vil espionagem.
Manteigas \\ 30 de Março se 1969
Oitenta mil em 400.000, é já uma percentagem, bastante elevada: representa um quinto de todos os padres! Afigura-se até debandada geral! O primeiro número é o de quem abandonou as fileiras clericais, mas tenho para mim que o número exacto é maior ainda!
A verdade incontestável é que estes 80.000 já deram o passo. Muitos dos outros aguardam ainda ensejo adequado ao caso pessoal. Uns têm compromissos a que não querem faltar; outros vêem conveniência em não tomar qualquer posição; estes bem querem, mas não têm coragem; aqueles, por seu turno, jamais o farão, não obstante a consciência a isso os convidar!
Seja embora arrepiante a verificação do facto estrondoso, devemos encarar a própria realidade e não fantasiar. Paisagem, cenário, cantiga e doblez é tempo de acabarem! Se daquele total ficassem apenas 200.000… seria muito melhor, para as almas devotas. Pois que é que fazem presenças frias , elementos sem cor, quando não revoltados e actores de tragédia! Enquanto o chefe da Igreja conservar, intolerante, a lei do celibato como obrigatória, muito poucos jovens irão abraçar o sacerdócio católico, sem deserções futuras. Logo que seja livre, tudo mudará.
Quem é que, aos 35, já não digo aos 50, se sente feliz, vivendo sozinho?! Incompreendido! Que anedota é essa de um homem revoltado, que chama pela família, sem que esta apareça?! Os longos gemidos, a sua dor cruciante, a grande tragédia que sempre o devora, esse viver amargo e assaz doloroso quem o atendeu e lhe trouxe conforto?!
Manteigas \\ 31 de Março de 1969.
Dizem por aí que o chamado “Islamismo” é, na verdade, religião de homens, demonstrando a afirmação, com a assídua frequência, verificada, em suas mesquitas. O mesmo se não passa no Cristianismo, pelo menos entre nós. É religião de mulheres, velhinhos e crianças e destas devotas que temem, afinal, o render de contas ao Juiz Supremo!
Não o digo, sem tristeza, pois creio em Deus e nos seus mistérios. Se a Deus fora dado tornar-se infeliz, com tal proceder, nada haveria que pudesse impedi-lo! Para que serve, afinal, essa atitude?! Medo e temor ou ainda o espavento não quadram bem à religião de Cristo que deve apoiar-se apenas no amor. Por que não reformar deploráveis hábitos?! Por que não chamar a nossa mocidade e os homens também?!
Em 1960, estava de passagem pela Suíça. Era em Tun. Depara-se ali, um só templo católico e vários protestantes. À hora própria da Comunhão, vários parzinhos e senhores respeitáveis se abeiram do altar! Isto, assim, causa espanto ao meu companheiro, que nota o facto. Acaso Jesus Cristo morreu no Calvário, só pelos beatos, dementados e varridos?! Esses, na verdade, são os que menos dizem, na craveira social.
Por que é que não vêm os cavalheiroe e de demais pessoas de juízo são?! Por que é que se mantêm a longa distância?! Urge, sem dúvida, que todos amem a Cristo e lhe tributem, generosos e prontos, eterno louvor. É digno de lástima que não haja no templo, senão aleijados, atrasados mentais, velhinhos trémulos ou já imbecis!
Que fazer, com esta massa?! Pouco ela adianta! De alguns deles podia até prescindir-se de ser atendidos! Como elementos de acção, para nada contam, assistindo-lhes no entanto o direito inegável de ser atendidos, pois desejam salvar-se.
Manteigas \\ 1de Abril de 1969
Quinta-Feira Santa
Oito horas da manhã! Devia ser alegre um dia assim, entretanto caiu muita neve e sinto-me doente, desamparado e só! Para onde foste, ó Sol radioso, que tudo inundavas de luz e calor?! Que falta me fazes! Frio, no interior e gelo no exterior! Ninguém me chama! Ninguém me acarinha! Tudo passa indiferente! Cada um segue a rota do seu próprio egoísmo! Como a vida é triste!
Se eu tivesse o meu lar, todas as coisas seriam diferentes! Antero de Figueiredo escreveu uma vez que, havendo lar, a própria cinza fria é capaz de aquecer! E eu creio nisso! Sem lar, neste mundo, nada há que nos aqueça! É só ver: tenho um irradiador, em frente de mim. Que me presta isso?! Enregelado, mal posso mover-me! Entorpecido, à maneira dos lagartos, em tempo de Inverno, é com dificuldade que sempre actuo e vou reagindo! O exterior!.. Nem é bom falar! Uma cova imensa, cheia de humidade! Saraiva a granel, saltitando ao cair: nevoeiro espesso, tolhendo-nos o céu! Encostas altas e enfarinhadas, tristes e mudas! Nada ouço, lá fora! Toda a criação recolheu a seus abrigos!
Onde estais vós, passarinhos amigos, por um tempo assim?! Provavelmente, nos lares fofinhos, com todo o conforto! E vós, brutas feras, que fazeis também?! Em antros escuros deu-vos o Céu agasalho protector. De todos os seres, nestas horas amargas, creio ser eu o mais desgraçado!
Aspirações minhas! Sonho tão belos de tempos idos! Acordai já, que eu vou morrer…
Manteigas \\ 2 de Abril de 1969
- Estás meditabundo e tão solitário! Levanta-te daqui, areja a cabeça, respira a Primavera e dilata os pulmões! É quase mania! Não tens amigos?! Por que não convives?!
- É verdade, sim, que vivo sozinho e gemo solitário. Aguardo uma presença. Quando chegar, o mundo será meu! Começarei então a vive realmente!
- Como?! Só agora?! O melhor já passou!
- Bem sei que assim é, mas fui despojado por homens como eu. As feras condoem- se; o homem é que não!
- Grande é a tristeza que agora te invade!
- Foi grande, no passado, mas vai decrescendo. As novas ideias alertaram ao vivo, comungando também nesse mundo por vir.
- Mas, se bem entendo, falaste há pouco, numa presença que te vai inundar!
- Sim, algum tempo mais e ela brilhará.
- Alguém tão amigo, que te faz vibrar?!
- Oh sim, mais ainda que amigo a quem vou dedicar-me em alta doação! Hei-de querer-lhe imenso! O famoso Miguel Ângelo sentia nobre orgulho e, às vezes, delirava , perante as obras-primas do seu génio criador! Modéstia, àparte, sinto o mesmo orgulho, se não mais ainda, de uma obra que é minha!
- Serás tu algum poeta dos tempos que passam?! Grandes coisas vão dar-se, não resta a menor dúvida! Se bem que doa a muitos, vai raiar novo dia.
Manteigas \\ 3 de Abril de 1969
Amanhã já, uma festa em cheio! Domingo de Páscoa! Hoje em aleluia, antegozamos o triunfo de Cristo! Ressuscitou? Então, é Deus. Portanto, eu devo amá-lO. Este brado festivo inunda a minha alma e vai prepará-la para outro aleluia! Como falta já pouco! Embora doente, reboam no meu peito os hossanas festivos! Sinto um pouco de alento. Olho algo tímido para o Céu distante e alongo os meus olhos, um tanto enevoados!
Que me reservas, Senhor?! Faz-me falta a saúde e preciso da vida! A grave crise que agora me prostra, é, a rigor, uma espada de dois gumes, entre alguém e mim! Atendei o meu pedido, ó Senhor dos infelizes! Alguém referido achará no seu trilho espinhos e também abrolhos, harto dilacerantes?!
Vós sois Pai, bondoso Senhor, por isso confio! Pelas dores que tivestes, ao ser crucificado; pelo muito que sofrestes, durante a Paixão; por insultos e blasfémias, que tanto amarguraram o vosso peito, em tragédia sem igual; pelas chagas acerbas de pés e mãos, de modo especial, a do vosso coração; pelos agudos espinhos da santa cabeça e vergastadas cruéis nas vossas costas; pela agonia do Horto e aquele sangue bendito a derramar-se por terra, venho implorar, Senhor bondoso, que atendais a minha prece.
Há quem espere, fiando quanto existe, do meu braço forte e coração generoso, Se eu ficar enfermo ou inutilizado, convido a Ti, Senhor, para seres guia e Mestre, amparo e protecção daqueles que mais amo.
Manteigas \\ 4 de Abril de 1969
Aleluia! O Senhor venceu a morte! Jesus ressuscitou! Como sinto alegria, nesta hora ditosa! Por que hesito eu, não me dando inteiramente a quem é, na verdade, o Senhor da vida e da própria morte?! Mil hossanas eu erga a tributar-Te louvor! Perdoa meus pecados, que eu gosto de Ti. A vida me ensinou e, de tudo o que apurei, tenho por inegável que és digno de ser amado. Cometi faltas graves, de que muito me pesa, mas a tua balança não actua como a nossa.
Tu bem sabes, ó meu Deus, que fui acorrentado, seguindo um caminho que não era o meu. Jesus do Calvário, Senhor da vitória, infunde em minha alma coragem bastante, para viver! Escasseia a fundo e sinto-me vergar, Senhor da saúde, escrínio precioso de quanto é bom, atendei o meu pedido, para iniciar a vida que me espera e traçar novo rumo.
Que a morte violenta, nos braços da cruz, seja para mim, redenção gloriosa! Após vida tão ingrata, desejo ansioso a tua companhia! O sofrimento que vem da existência é já bastante para amarguras! Desejo ser feliz! Quero só a Vós e a mais ninguém!
Mandai, lá do alto uma réstia de luz, um sorriso divinal, um beijinho de amor! Que falta eu sinto de Vós, Pai Celeste, e do meu querido lar! Duas realidades, que não podem omitir-se! Não atendo aos homens, que não me querem bem! Convosco só, eu quero tratar e com mais ninguém!
Manteigas \\ 5 de Abril de 1969
Estalejam foguetes, os sinos repicam, apertam-se as mãos, os lábios sorriem. Algo de belo se espraia no ar! São as Boas Festas! Trajam diferente, alindam as casas, granjeiam-
-se os precisos: que ninguém, neste dia vá descontente! Biscoitos e bolos, trigo de quartos, vinho de boa marca, pão-de-ló, champanhe e o mais não faltam, por certo! Hoje, tudo é riso! Ninguém, que eu saiba dá parte de fraco! De casa em casa, aglomeram-se aqui, reúnem-se além. O ar é de festa e tudo sorri.
As noivas adoradas ficam mais belas; as crianças, mais ternas; os pais, mais clementes; filhos e filhas, mais carinhosos. Donde vem esta paz, que a todos envolve, transformando a nossa Terra no antegozo do próprio Céu?! Não é vinho nem licores! És tu, Crucificado, que humilhaste bem fundo os poderes infernais! Não é das tabernas ou então dos casinos! Não é dos clubes ou lugares de estúrdia! Não!
Esta paz inefável que eu sinto no peito, embora doente, é de Ti que vem, ó Cristo Jesus! De Ti! Ninguém mais! O resto é ilusão, para nutrir ingénuos! Ópio que deforma e faz desde logo pensar em mudanças!
Foguetes e música, ruído e fantasia, cenário e farsa: não podeis convencer-me de que o meu Deus não é Cristo Jesus! Se Ele, por seu poder, ressuscitou dos mortos, deixando estupefactos os próprios vivos, é porque na verdade é o Filho de Deus e, como tal o Rei do Universo!
Manteigas \\ 6 de Abril de 1969
Véspera dolorosa dum facto lastimoso! Dia triste e carregado, por negar o que mais amo: luz e calor! Sinto-me doente, assaz alquebrado e sem energia. Que vai ser, para mim, a vida no porvir?! O coração baqueou e mal subo um degrau! Esta manhã, para chegar ao nosso Hospital, julguei que rebentava! Não posso realmente fazer nenhum esforço! A mínima acção paralisa-me o corpo! Se cai um objecto, como vou levantá-lo?! Ninguém me cerca: eu vivo sozinho!
Como resolver os problemas da vida?! Não valem cantigas nem sonhos dourados, que alguém imaginou! Por isso, é que choro! Pois não vejo a desdita, em que agora me encontro?! Fantasmas que já fostes, múmias de outras eras, vultos graves e hirtos, embiocados em capas, arranjem outra lida! Torna-se odiosa a vossa missão! Bela em si mesma, fazei-la mesquinha, porque falta saber, doação e argúcia. A mim jamais vistes! Até mim não houve passos! Por que estáveis ali?!
Se algum exerce ainda semelhante papel, fuja prestes de lá, que é veneno mortal, destruindo a vida humana! É preciso ser chamado por ideal superior e não por mesquinhez, com que a vida vos acena! Se as pernas já vos falham, mensageiros da desgraça, chovam táxis do Céu, para afastar-vos daí! Tínheis olhos e não víeis; ouvidos, por igual, mas não para ouvir; língua também, mas não faláveis!
Por esta razão, fiquei eu idiota, perante a vida espinhosa, que não consigo entender!
Hospital de Manteigas \\ 9 de Abril de 1969
Bacilo de Cock
Hidrazida a rodos! Estreptomicina! Um pulmão inteiro, cheio de líquido! ! Quem tal diria?! Parece azeite de primeira qualidade! Mas que vida esta! A morte à espreita! Vai travar-se a luta! Se fosse noutras épocas, era caso liquidado!
Aqui em frente, joga-se agora o meu destino! Entretanto, espero e confio! Grande ansiedade no peito angustiado! Lágrimas nos olhos! Os dois Médicos da vila estão decididos, colocando o espírito ao serviço nobre da minha causa! Como eles se empenham na luta infrene contra a morte!
Jamais esquecerei estes nomes consagrados: Doutor Esteves e Doutor Isabel! Gloriosa missão que defende e ampara o maior e melhor bem da existência terrena!
Hospital de Manteigas \\ 10 de Abril de 1969
Encontro-me agora mais conformado e sinto, ao que julgo, um pouco de alívio. Ao Diário passado vai este servir como de antídoto. Estava, de facto, quase desvairado, mas vou acalmando! Que mais preciso eu?! O quarto é bom e a cama também; o repasto esmerado e a enfermagem não sofrem reparos!
O Médico de mês é o Doutor Esteves e noto, pelo agir, que vive a tarefa. Devo então esperar que tudo vá bem. Assim me ajude o Céu Bondoso, que bem preciso disso! Ele é decerto quem menos falta!
Hospital de Manteigas \\ 11 de Abril de 1969
Passaram, há momentos, em frente da janela! Eram elas, sem dúvida, as meigas andorinhas. Que me trazeis de longe, simpáticas amigas?! Mil saudações, em que vem a saudade! Prenúncio alegre para dias melhores?! Tudo eu vos agradeço! Tanto mais que amanhã é dia festivo! Bela coincidência! Que véspera ditosa para o meu coração!
Bem hajais, pois, avezinhas fagueiras, que trouxestes para mim um raio de luz
Hospital de Manteigas \\ 12 de Abril de 1969
Como saem gorados os cálculos humanos! O homem põe e Deus dispõe! Assim reza o provérbio! Quantas vezes já pensara em ir a Monte Azul, no dia que passa! Pensara eu que nada no mundo poderia obstar! Mas, enfim, tenho agora o que menos queria: doença longa e deveras pertinaz, que retém no leito, durante largos meses!
Apesar de tudo, embora as lágrimas irrompam frequentes, vai-me já tomando um arzinho leve de serenidade! Ir aonde eu queria, isso é que não! Paciência!
Hospital de Manteigas \\ 13 de Abril de 1969
Passou o Domingo, dia de visitas! Como são as minhas? O que tinham de ser! Mantêm-se em pé, com muita cerimónia, sempre aviando! Não haverá quem me traga lenitivo, fazendo esquecer o Hospital e a dor?! Se eu tivesse um lar! Como então seria diferente! Veria o mundo todo, nos olhos de alguém! Assim!..
Meus irmãos tão longe! Os sobrinhos também! Alguns alunos ainda sentem um pouco a minha ausência! A Aninha do 3º lembrou-se de mim e trouxe bolinhos! Que Deus lhe pague! Não vou esquecer quem se lembra de mim!
Hospital de Manteigas \\ 14 de Abril de 1969
Dia limpo de nuvens, quentinho, acolhedor! Dentre as visitas, algumas houve que foram sinceras! Quão grato eu fico aos que sofrem comigo! Mas estes são poucos! Não admira! O mundo do enfermo só quem ama o entende!
Pelo menos, tenho duas coisas que de todo me regalam: calor e luz! Se tivesse, de igual modo, horizontes rasgados!
Quem me dera, Senhor, ver o Sol despontar, podendo também contemplá-lo, ditoso, na suave melancolia do Poente arroxeado!
Hospital de Manteigas \\ 15 de Abril de 1969
“ Hoje está triste!” Frase do Médico, atentando em mim! Estou dominado, em corpo e alma, pelo número de horas, minutos e segundos, que não mais têm, fim! O que vale é o radio, para alhear-me do tempo infinito. Ainda assim, como roda lento, na curva do horizonte!
Tivesse, ao menos, campo dilatado, para nele apascentar meus olhos sedentos! Menos injecções, redução de comprimidos. alta imediata de supositórios. Tudo em barda, incluindo por igual a temperatura! Quando será, porém, o radioso amanhecer?! Alvorada triunfal, assobiada por melros, a que vinham juntar-se muitos rouxinóis! Um dilúvio de luz, um oceano de calor, um mar de saúde, a voz meiga de alguém! E não poder escutá-la!
Senhor meu Deus, que este grande sacrifício leve e destrua as faltas do passado e prepare aos meus amigos um caminho direito, no qual a virtude seja o perfume!
Hospital de Manteigas \\ 16 de Abril de 1969
Ao momento crucial vem juntar-se ainda a horrenda monotonia. Comer sempre a mesma coisa, a horas determinadas; entrada do Médico, por volta das 10…
“Alguma coisa de novo? A temperatura? Dormiu? O que é preciso é muita paciência! Até logo!” Ei-lo porta fora! Todo o mundo entra! Todo o mundo sai. Eu, porém, fico sempre, mas não fico só! Acompanha-me, de facto, a qualquer momento, a dor e a saudade, as minhas lágrimas e a solidão!
Hospital de Manteigas \\ 18 de Abril de 1969
Um Raio de Luz
Já tarde avançada, entrou no meu quarto pessoa amiga, fazendo esquecer o Hospital e a dor. Por isso, vieram ao de cima os versos mimosos de Sebastião da Gama: ”Já não há Hospital.”
Acabou o sofrimento! Esqueceu-me a doença! Velejei com alguém num barco dourado, ao sabor da viração! O primo e amigo, Doutor Ferreira operou a mudança!
Condão excelente de raras criaturas, que existem, no mundo!
quarta-feira, 28 de março de 2012
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