sábado, 21 de novembro de 2009

Memórias 33

NYANGANA
1977- 06- 20.
Na Sala de Aula

Professor e alunos formam um corpo, requerendo-se unidade e colaboração. O centro de comando e origem de tudo é a cabeça. Refiro-me aqui à vida intelectual. Ora, sendo assim, não faz sentido que haja, por vezes, desintegração! Este assunto é de grande importância. Pois todos sabem, há muito já, que os alunos, em regra, apreciam a matéria, se gostam do professor.
Vem a propósito, uma frase satírica, ouvida por mim, a um professor Liceal, acerca duma aluna: Fulana anda afadigada, estudando em excesso a matéria x!
Era um caso sabido! Ela gostava, excepcionalmente do seu professor! O caso referido parece anedótico mas, geralmente, exerce influência.
O prestígio firmado, bem como a simpatia de que goza o Mestre, leva os alunos a dar-se ao estudo. É de suma importância que não seja uma ‘pedra’a transmitir noções. Que não encontram ‘bom chão’. Em tal caso, não há bom êxito!
No meu tempo de estudante, era chaga geral ou quase o seria. O Professor, em boa verdade, figurava, a nossos olhos, um ente sobre-humano. Não baixava até nós, faltando o que existe, nos vasos comunicantes. Entidade longínqua, surgia nas aulas revestido de corpo, mas bem diferente dos seus alunos! Por vezes, nem ria!
Metido no casulo, mantinha-se apático, não lhe interessando os nossos problemas. Não havia intercâmbio.
Fala-se muito nos tempos de agora, em segregação e até racismo. Que era aquilo, embora entre brancos?! Não acho termos que melhor o exprimam!
Divinizar a pessoa ultraja a Deus! Somos todos homens e, se algo nos distingue, é a virtude! Quanto ao mais, não há distinção.
Cessem, pois, os Mestres frios e acabe o gelo que entorpece as almas! O respeito, afinal, não vem daí! Vem, sim, duma boa formação e do amor entre todos.
Professor-estátua, só após a morte, caso a mereça! Haja vida e calor, entre Mestres e discentes!

Liceu Linus
1977- 06- 21

Professor-Funcionário
Não censuro ninguém, pelo facto de ganhar! A remuneração é básica na vida, pois que sem ela não podemos alcançar os meios necessários à subsistência. Donde vem o alimento, a nossa habitação, vestuário e calçado, e outras coisas mais que a vida impõe?! Por outro lado, o fruto do esforço equivale a nós mesmos, visto resultar da nossa aplicação. Demos a inteligência, aplicámos o querer, defraudámos o corpo, em vigor e energia. Sendo assim, tudo isto é nosso ou brota de nós. Logo, inauferível o direito sagrado, que nos assiste, à remuneração.
O que é digno de censura reside, sim, na maneira de actuar, em ordem a um fim. Aquele professor que vê só dinheiro, sem que lhe importe o bom desempenho da missão que tem. Chegar tarde e sair cedo; prender-se nas aulas com assuntos estranhos; matar o tempo; não se preparar devidamente; não estar em dia, acompanhando solícito os progressos da técnica; passar de largo, quanto a dificuldades e problemas que surgem, não amar os alunos; viver alheio ao mister, que apenas considera, pelo fruto que origina!

Eis, em resumo, o professor-funcionário. Para ele, só conta o ordenado: o mais é secundário! Ora bem! Pondo as coisas ao invés é que ficam certas! Ao menos, pôr as duas realidades em plano de igualdade!
Eu, porém, tenho para mim que o primeiro lugar há-de caber ao sério desempenho da sua missão. De outra maneira, haverá grandes brechas no exercício do múnus.

Liceu Linus
1977-06- 22
Professor avariado
Foco nesta epígrafe a faceta doutrinal: de modo nenhum o desarranjo da mente! Doutrinas e sistemas passam com os homens, que hoje reputam mau o que, há pouco ainda era tido por bom. Às vezes, princípios há inteiramente falsos; outras vezes, meramente suspeitos; outras ainda, com parte defensável e outra condenável.
O caso, porém, torna-se grave, quando tais princípios brigam claramente com doutrina indiscutível, já no campo religioso, já no mundo científico. O papel do professor não é intoxicar, envenenando o espírito. Se acaso o faz, é traidor! Na verdade, os pais entregam seus filhos, não para a morte, sim para a vida.
O Mestre e docente há-de colocar-se na linha dos pais, já que vai substituí-los. Não pode ignorá-los nem opor-se a eles. Educadores natos os pais é que o são. Quando estes não sabem ou então não podem, delegam no Mestre, com esta cláusula: “Segue a mesma linha! Não haja desvios!”

É razoável e justo que seja assim. O direito natural concede aos pais esse privilégio e nunca a sociedade ou poder algum deve contrariá-lo!
Portanto, se o Mestre em questão vive ou professa doutrina contrária, há-de abster-se de pô-la em foco! Guarde para si o que os pais reprovam!

Sistemas filosóficos, doutrina científica ou de cunho religioso merecem de nós a máxima atenção! Quando reprovados pelo senso comum ou não admitidos pela gente sensata e com idoneidade, não devem transpirar para mentes indefesas que, em vez de ar puro, iriam recolher óxido de carbono, intoxicando a vida e sujeitando-a a naufrágio.

Liceu Linus
1977-06-25

Ontem, 24, foi dia saudoso, que me trouxe à memória um passado feliz: o S. João! Dois factos relevantes andam associados a este nome gozoso, os quais vão prender-se com a minha adolescência: a feira anual, realizada na Guarda, e as belas fogueiras, tradicionais e alegres da noitePrecedente.
À volta disto, quanta poesia! Quanta emoção! Quantas expansões de de efusiva alegria! Quanta expectativa, alvoroçando o peito!
A feira desejada e suas novidades para o ano seguinte; as lembranças gratas para a família! As diligências, harto engenhosas de um viver melhor!

As fogueiras! Que vibração não trazem elas ao peito juvenil! Alecrim e belas-luzes perfumam os ares, enquanto se cruzam, de rua em rua, alegres cantares! Velhos e novos, sem distinção, acodem à festa da noite jubilosa! Pelas aldeias e lugares solitários, que maravilha de cenas e cantares!
Trago no ouvido enamoradas canções que o tempo e a vida não chegam a apagar! Pela noite fora, até alta manhã, cantam as gentes, olvidando seus pesares. Casais enamorados, aconchegadinhos, vivem altos momentos, segredando suas mágoas! Infelizes em amor? Rezam ao Santo que valha na aflição. E a fé não se esvai do povo fiel, que toma S. João como seu protector!
Fogueiras saudosas, gerai animação, que desmaio no Cavango, onde reina a tristeza! Passei o dia inteiro, encerrado no quarto: ora leio ora escrevo, a recordar o passado, que aviventa a alma.

Nyangana
1977-06-26
Fez ontem dois anos, que o Coverno Português entregou Moçambique à sua triste sorte, chamando esse facto independência.

Olhando, porém, à dor e privações do povo infeliz, pergunto eu agora: onde reside, afinal, a liberdade, a paz e o trabalho, o pão e a ventura?! Onde o respeito a dignidade e a honra?! Onde o progresso e o bem-estar dos povos?! Nas machambas do Estado ou aldeias comunais pode haver alegria?
Povo inditoso, que foste logrado! Passaste a viver bem mais oprimido que no regime anterior. Ensinaram-te inimigos a chamar nomes feios aos bons Portugueses, sem tu perceberes que o faziam por inveja! O que eles intentavam não era o vosso bem. O seu plano infame cifrava-se nisto: expandir o domínio sobre terras e gentes.
O 25 de Abril não queria assim, como agrada pensar! Se o projecto fosse bom e vos desse bem-estar, até eu me alegrava! Mas assim, povo infeliz, em franca servidão, amargurado e tão oprimido, confesso me faz pena e causa desalento! Testemunhos veementes eu ouço. dia a dia, que fazem comover as mesmas pedras! Mais ainda os nossos corações!

O Abril, 25, ficou para vós como cifra de azar! Atribuí as culpas a quem o deslustrou! É luto nacional, em vez de triunfo, apoteose e glória!
Como eu vos lamento e fundo me condoo do vosso destino! Espero em Deus que há-de ajudar-vos! O sangue inocente clama ao Pai do Céu por
Um povo em massa! Crimes e abusos, traições e vilanias bem como as torpezas hão-de ter o seu fim e o seu vingador!
Deus é Pai: não é tirano! Chegará vós o momento ditoso da libertação.

Nyangana
1977-06-27

Professor Presumido
Designamos alguém com tal adjectivo, quando forma de si elevada
Opinião. Este grave defeito é sempre nocivo, aumentando a gravidade, ao
tratar-se de Mestres. Quando têm de si demasiado conceito, sucede o mesmo que aos pratos da balança. E também aos caldeiros, na ponta de um eixo, com o fim de tirar água: quando um sobe, precisamente por isso, tem
o outro de baixar. Atribuindo a si demasiada estima e consideração, diminuirá necessariamente, em ordem aos outros. Sendo as coisas assim, já podemos figurar quão graves hão-de ser as consequências, num docente
presumido.
Não atende, por norma, às necessidades; jamais desculpa ou se torna humano Balão inchado não consente que lhe toquem nem consente
alguma vez que o incenso lhe falte. Desculpar não é com ele! Recebe, de bom grado, louvor e homenagens, repelindo com fúria atitudes descuidosas
ou olvidos inocentes. Ai de quem não afine pelo seu diapasão! Há-de
ouvi-lo em breve, ficando a saber quanto ele merece! Que podemos esperar dum janota assim?!
Sendo a educação uma obra de amor. grande paciència e generosidade, vê-se, desde já, que tal professor está deslocado. Que frutos esperar duma árvore má?! As pobres crianças, ao bafo pestífero de tais elementos, ficarão
diminuídas, receosas e tristes.
Não podendo expandir-se como a idade exige, serão distorcidas e até falseadas, Algumas haverá que se tornam hipócritas, ao verem que a lisonja é caminho atraente.

Nyangana
1077-06-28
Um Passatempo
Domingo, 26, por tarde soalheira, convidou-me o Padre Hermes

Para um passeio. Não recusei, por várias razões, sendo as principais: estar enclausurado e prezam extremo a sua companhia. Partimos, pois, em seguida à merenda, juntando-se a nós a Irmã^Margaret, alemã de origem.
A Ford 43 é nova e potente. Nada a temer, embora as ‘picadas’sejam arenosas e e piso irregular. Por entre espinheiras, cortámos à esquerda, ao sair da Missão estacionando, em breve espaço, à frente da vivenda do professor Andrew, natural do Cavango. Acompanhou-nos também e prestou bons serviços.
Ao fim de uma légua, em desvio à esquerda, mora Shashipapo, o rei da tribo. O septuagenário estava ausente, Encontrámo-lo depois, na berma da estrada, ao pé do tractor. O nosso Padre Hermes levava um recado:
Chegaram três famílias, naturais de Angola, que viviam além Rundu, num Campo de Refugiados.
Demandaram logo o Hospital e, naturalmente, desejam ficar. Era, pois, necessário comunicar o facto ao rei da tribo. Uma vez em presença, trocamos saudações, que ele aceita ridente, com rara simpatia e fidalga deferência. Mantém-se em pé e tem um ajudante. Católico piedoso, após o seu baptismo, despediu três mulheres, ficando a primeira a fazer-lhe companhia.
Saudei-o em Inglês, pois ele sabe a língua; os outros, em Dirico, idioma nativo. Também falado em Angola, na outra margem do rio Cubango. Em tais saudações, há duas palavras que nunca faltam: Ompa e Pandula (Senhor e Obrigado)

Nyangana
1977-06-29
Cont,
Em conversa amena, o bom Padre Hermes corria para a esquerda, estacionando a Ford , em frente do Cubango. Um abismo, sobre o rio!
Olhando cá de cima, causa arrepios! Apesar de tudo. Vi, lá no fundo, com enorme surpresa, muito gado vacum a beber água. Fico pasmado! Como é possível não descambar?! Já refeito do susto, rumo à direita, (para fazer, excepção), andando a pé mais de 100 metros.

Que vejo então? Um cercado elegante, junto do rio, cuja margem direita se corta a pique, a enorme altura. Esta paliçada erguera-se, havia pouco e tem de altura 1 metro e 60. Nem um prego! Os pretos, neste caso, não utilizam peças de metal. Vão à floresta, donde tiram lianas, que torcem a capricho, sem que elas partam! Enleado, penetro logo no interior, sendo todo olhos, para observar.
Veio receber-nos uma das Irmãs que trabalham no Hospital. É enfermeira. Com ela se encontrava a nossa Doutora, relaxando os nervos, em cima de uma esteira.
O mais curioso estava por ver: elegante cubata, feita com gosto e no mesmo género! Nem telhas nem pregos! Entretanto, elegante e airosa, e cheia de poesia! Coberta a capim, protege do Sol e veda a chuva! Corro para ela e entro sem demora! Tem um átrio pequeno que dá logo acesso.
Vasculho tudo, com vivo entusiasmo. Ao centro, há ligeira divisão, donde resultam dois compartimentos.
Admirável! Depois de saciado, volto-me para o rio. Um deslumbramento! Que vista maravilhosa! Que exuberância de vida! Mas tudo no mundo apresenta duas faces. Logo pertinho, na margem esquerda, fica Angola!
Olho nervoso e torno a olhar, perdendo-se a vista, ao longe e ao perto! Vou eu tão longe, que chego a Luanda! Quão diferente dos outros é o solo querido. Onde os meus antepassados, para defendê-lo, perderam sangue, derramando suor, misturado com lágrimas!
Ali, precisamente, é agora assassinado o povo nativo ou morre de fome! Entristeci-me e logo chorei!

Nyangana
1977-o6-3o
Um Sorriso
Foi ontem, precisamente, após a merenda. Não houve palavras: só os olhos falaram, cruzando-se nos ares, enquanto no rosto havia uma certeza que desceu às almas. Veio de Vinduque e está entre nós o Bispo do Sudoeste: Rudolf Koppmann, de origem alemã.
Ele ia com pressa, rumo à igreja, onde estavam aguardando a sua chegada. Apesar de tudo, ainda houve tempo de lançar na minha alma um pouco de bálsamo.
Não estranharia, habituado como estou a que outrem avance, não prestando atenção. Duas pedras tão só, rolando estranhas, com rumo oposto! Não foi assim todo o meu viver?! Que me veio de cima, a não ser desilusão?!

Aqui, porém, embora exilado e cheio de amargura, fiquei sabendo que em certos peitos a luz não se apaga. E foi esse lume, já tarde encontrado, que me fez reflectir ! Nem tudo são trevas ! A rigidez estatual;
A compostura solene; a gravidade afectada foi chão que deu uvas!
Tornou-se infecunda!
Lembra velhos tempos em que a humana rabulice teve artes e jeito para convencer ingénuos e simples de que certas pessoas eram de outro metal1 Que terá ganho a pobre humanidade , com essa mentira?! Só mal é
que veio para quem rastejava. Instalados na cúpula, recebiam incenso e, vendo as gentes prostradas a seus pés, sentiam-se bem, procurando manter a sua posição. Não foi o que vimos, nas velhas monarquias?!

Este jeito, porém, deixou de aceitar-se. Contestado e repelido, levou muitos chefes a mudar a atitude. Humanizaram-se; baixaram de nível;
Ombrearam com os outros.
Nestas circunstâncias, tornaram-se queridos; ganhando eficiência o mister desempenhado.
Tão breve sorriso banhou de luz intensa as trevas da minha alma.
Foi pouco! Um nada talvez, mas o bastante, para eu me convencer de que não sou um zero ou triste ruína que a ninguém interessa!

Nyangana
1977-07-01
Mães e Afins de Seminaristas
Algumas vezes, por devoção, outras ainda, por falta de meios, gera-se nas mães o desejo ardente de ter filhos padres. Não é condenável tal aspiração pois que, sendo o sacerdócio instituído por Jesus, representa, sem dúvida, o mais belo ideal que existe sobre a Terra. Já o mesmo não ocorre, em ordem aos meios que algumas utilizam.
Que sucede, em geral? As ditas mães fascinam de tal modo o coração e o espírito; fazem tais promessas de presente e de porviur; utilizam tais cores, na pintura do quadro; recorrem a tais processos, na pesquisa e actuação, que o rapazinho, deveras enleado, ouve somente aquilo que lhe dizem.
A isto se junta o ambiente criado; vigilância rigorosa de companhias e livros; frequência da igreja, por modo abusivo; isolamento do pobre menino que, sendo a mãe tão boa, a segue e não discute.
Tudo se conjura para o mesmo fim: comadres e compadres; tias e madrinhas; amigos velhos e simpatizantes.
O miúdo, por sua vez, sente imenso gosto em alegrar sua mãe.
Bem longe dele causar-lhe desgostos! Vive totalmente na sua dependência.

Nem sequer admite causar-lhe perturbação! O pai biológico, que devia exercer papel moderador, para afastar excessos e artificialismo, por via de regra, não intervém .Acha-se ausente ou é passivo ou ineficaz. O que conta, pois, em ordem ao rapaz, é sua mãe. Esta adivinha-lhe os gostos, satisfaz vontades; elogia atitudes; incrementa os processos., engenhando-se ao máximo porque sejam conducentes ao fim almejado.
Ora, a esse estado de coisas, que eu reputo deletério, cabe-me fazer alguns reparos.
Princípio geral: qualquer dependência, quando exagerada, em ordem seja a quem for, é nociva ao homem. De modo especial, no tocante à mãe, se o pai não actua. A razão é evidente: um rapazinho, em tais circunstâncias, cria no seu espírito, lastimosa inadequação, relativamente â vida e problemas vários que vai encontrar. Pensa pela mãe; ouve por ela:
Sente por ela, esmerando-se, a rigor, por fazer apenas o que ela intenta.

Preso deste modo, não tem personalidade; não é indivíduo; não é livre nem pode escolher. Numa palavra; virilidade, personalidade e liberdade não existem nele. É um fantoche a quem a vida, mais tarde, vai provocar amarga desilusão

Nyangana
1977-07-02
Continuação
Em presença deste arranjo que, afinal de contas, é protótipo de muitos, pergunto eu: teremos ali genuína vocação?! Se respondo eu, cabe-me dizer: Não! Só por acaso! A vocação há-de ser espontânea, fluente e natural! Jamais forjada! Nunca elaborada, a partir de fora! Há-de ser o próprio que, tocado por Deus, avança firme, contente e resoluto. Então, sim, nada haverá que o faça demover! Sucede até haver efeito contrário, nas razões manhosas que tentem opor-lhe!
Não inveja os demais, que seguiram na vida caminhos diferentes;
Não se entristece pela escolha que fez; sente prazer, na sua actividade;
Numa palavra – é feliz!
Entretanto, a dependência excessiva, que a mãe envolve numa aura de grandeza e superioridade, levada talvez por motivos divinos ou até humanos, é de molde a criar “vocação artificial”. Entre estas razões, podem figurar: ser esse filho amparo de seus dias, nos anos maus; à sombra dele, casarem as irmãs ou tirarem cursos os outros irmãos; arranjar trampolim, que os magros recursos não permitiriam.

Havendo artificialismo, quanto ali vemos é tudo postiço. O próprio: vive enganado por auto-sugestão! Não sendo livre! Tudo orienta, num sentido único Não olha para trás nem para os lados: apenas em frente!
Uma vez neste rumo, se alguém lhe pergunta: Qual é a via que tu preferes?
- Em frente!
É incapaz de outra resposta! Vive iludido, criando-se, na verdade, uma falsa posição.
Assim, temos a mãe a traçar um caminho que leva o filho à maior desgraça!

Nyangana
1977-07-03
Dia de S, Pedro
Passa tal festa a 29 de Junho, havendo em certos lugares fogueiras e danças, que se prolongam de véspera, pela noite fora, Assim acontece, no meu país. Aqui, porém, nada me lembra o dia que é.
Estou em férias e o tempo decorre, sempre igual, sempre monótono.
Se não fossem, realmente, os livros e a pena, que jamais descansa, morria de pasmo!
Entretanto, a 29 de Junho, ia ter surpresa. Foi já tarde, ao ir para a cama. Antes disso, haviam-me dado muitos parabéns, como se, na verdade, eu fizesse anos. Fiquei a cismar, por haver nascido em Fevereiro. Lembrei-me então que há na Espanha costume igual:
Comemoram-se os anos, no Santo do nome.
Agradeci, muito reconhecido e nada, além disso, preencheu o meu dia. Às 21 e 30, ao entrar no meu quarto, vejo sobre a mesa um grande sobrescrito. Pensei, de início, tratar-se de carta. Algumas aguardava! Abrindo, porém, noto o volume: um postal ilustrado e 50 randes!
Não estava mal! O Padre Hermes, na sua bondade, nunca me esquece! De quantas finezas lhe sou devedor! Sensibilizei-me, até às lágrimas! É um belo amigo este Padre tão bom!
Delicado e sensível, generoso e prestável, amoroso e afável!
Incarna em si o papel de mãe! Que Deus lhe pague, já qu eu não posso!
A noite passou. Em 30, de manhã, encontro um bolo e um vaso
Com flores, na sala de jantar! As Irmãs pediram desculpa de não sabê-lo antes!
Na minha solidão, vai o Senhor abrindo caminhos!

Nyangana
1977-07-04
Hoje, por sorte, chegaria a Vinduque, pois tinha dois carros e boa companhia: o Bispo do Sudoeste e o Padre Stekmann. Melhor ensejo não seria possível! Tratava os dentes e tirava o passaporte, cujo prazo expira, no mês em curso. Do mesmo passo, ordenava outras coisas de suma importância.
Como estou longe, nem sempre é dado fazer tal viagem. Por outro lado, o nosso Padre Hermes ofereceu-se ainda, para levar-me ao Rundu mesmo de noite, emprestando-me dinheiro, caso fosse necessário
Quando. Porém, me surgiu a ideia de que não tinha o Permit, oh desilusão!
Tudo gorado! Maldito Passe! Melhor talvez: maldito egoísmo! Desde Janeiro, a pedi-lo, com instância! O velho passaporte expirou em Dezembro! Daqui a pouco, vai o ano findar! Já me envergonho de falar no assunto!
Sendo em Portugal, dava-se o mesmo?! O que eu lamento é que, noutras circunstâncias, já o tinha há muito! Não veio juntamente o seguro do carro e a licença requerida, para conduzir?! Por serem pagos?! Triste Humanidade!
O pior, no entanto, está para vir! Serei operado lá em Vinduque! Terei problemas? Nem então alcançarei o maldito papel?!
Oh sacanice humana! Sem amor, por base, não há cuidados e, à margem destes, reina só o gelo! O enorme transtorno que isto origina!
Além do mais, ficar em Nyangana, encerrado no quarto, de manhã até à noite, durante as férias! Merecerão tal nome?! Figurões! Não me
convencem de que os não prezo! Não baixam a cerviz! Estou furioso, porque, sendo refugiado, mereço atenção! Justifica-se lá um caso destes?!
Seis longos meses a pedir um documento! Parece história, mas é real!
Estou saturado! Bolas e cardas para tamanha incúria ou falta de gentileza!

Nyangana
1977-07-05
Fernão de Magalhães
Entre os vultos notáveis, de relevo e fulgor, que Portugal rejeitou,encontra-se decerto Fernão de Magalhães. Tamanha injustiça o mundo viu nisso, que autores estrangeiros meteram ombros à nobre empresa: tirá-lo do escuro. Assim fez Marshal, escrevendo a Novela Histórica “ The Wind
at Morning. Acabo de a ler, em língua inglesa.
O conceito do autor, sobre Magalhães e o seu feito imortal, não foi novidade, porque eu julguei sempre de modo igual. O meu espanto proveio somente de ser um estrangeiro a desafrontar e logo exaltar a figura do grande Capitão.
Para Marshall, é Magalhães o maior navegador de todos os tempos bem como lugares, chamando à sua viagem o feito mais audaz, realizado
Pelo homem.
Para demonstrá-lo, salienta a primor as sérias dificuldades e perigos iminentes, que teve de enfrentar, não sendo o menor deles a inveja dos espanhóis, que tentaram arrumá-lo, por várias vezes. O que faz a inveja!

A morte de Magalhães, ocorrida em Cebu, ilha das Filipinas, foi ocasionada por falta lamentosa de colaboração e devida a um ardil.
O grande chefe, por motivo religioso, havia ordenado que templos e ídolos fossem destruídos. Alguns Rajás submeteram-se logo; outros, porém, ofereceram ali forte resistência, ameaçando vingar-se dos recém-batizados
O Capitão Magalhães resolve prontamente dar uma lição e defender, ao mesmo tempo os novos cristãos apresentado o seu plano, em grande Conselho, logo verificou não ter apoio. Houve até quem dissesse:” Vimos, realmente, por especiarias e não salvar almas!”
Saiu, pois, mal armado e com pouca gente.
Uma seta ervada atingiu mortalmente quem a morte e a cobardia, os perigos e o medo não haviam subjugado.

Nyangana
1977- 07-06 Cont
Marshall põe em foco, de maneira atraente, os casos difíceis que Magalhães encontrou, durante a viagem: o mar desconhecido; o clima rude;
A fome e a sede; o desânimo profundo que abateu os seus homens. Salienta, porém, que o maior dos perigos era a traição, por parte dos espanhóis.
Entretanto, a consumada perícia, entusiasmo e coragem, o ideal científico e a vontade inquebrantável superaram habilmente perigos e ciladas.
Realizada tal viagem, a mais assombrosa que o homem já viu, cai para sempre, varado por uma seta, na ilha de Cebu. Que pena! A empresa imortal estava no fim. A sua coragem havia triunfado, levando de vencida os tímidos espanhóis que não queriam seguir. Pelo Oriente, os portugueses haviam chegado às ilhas Filipinas. A volta ao mundo foi portuguesa.

A morte inglória do grande navegador encheu de pasmo os seus contemporâneos. Outros portugueses chefiaram a Armada, até que, por fim coube a sorte a Elcano, afim de avançar com o Trinidad, ficando outros marinheiros a consertar o Concepcion. Triste sorte os aguardava, pois, foram assassinados! Os que restavam fizeram-se piratas.

Do S. na Espanha, arribaram apenas 19 marinheiros, daqueles 277, que haviam partido. Dos 5 navios, só um aportou.
Entre os 19, havia um portuguès, sobrevivente único, dos 29, que chefiavam a Armada. A inveja, porém, levou a mais um crime: o português Vasco foi assassinado. A documentação, respeitante a Magalhães, foi inutilizada. Tentando pôr na sombra o heroísmo e a grandeza do imortal navegador.

Nyangana
1977-07-07 Mães e Afins de Seminaristas (cont. de 1-7-\977)
Feita a Primária, recrutam o menino, frequentando, para logo, o Seminário Menor. Não fora ele a escolher! A ideia, afinal, viera-lhe de fora. Ele vai, pois, mas é um autómato. Tem cabeça de facto, mas não adianta!
Depende inteiramente de quem mais ama e sabe insinuar-se.
Parece haver gosto em tal sujeição. Dificuldades enormes que hão-de surgir nem são apresentadas nem as pressente. Vive ele assim uma vida artificial.
Uma vez no Seminário. O processo é igual, com certos apêmdices.
Internamento rigoroso; privação de contactos, fora do recinto; ambiente angelical; omissão de tudo o que lhe lembre ser homem; obediência rigorosa;
Castigos severos, nos primeiros anos; ameaças frequentes de toda a ordem; vigilância extrema, no tocante a livros; ablação de páginas que falem do mundo.
Desta maneira, vive entaipado! Obedece às vozes; ouve a campainha;
Reage à sineta, escuta o assobio. É um autómato!
Não vê um sorriso nem ouve uma voz que lhe fale ao coração! Torna-se gelo! Ele, ingénuo que fora para ali, sendo recrutado e não por gosto próprio, sente-se mal com o novo regime. Impõe-lhe sacrifícios! Divaga por longe e surge-lhe o lar, com todo o carinho!

Como as férias se aproximam, reveste-se logo de enorme coragem!
Será compensado! Veio ao lar e gostou imenso! Quanto havia bom tudo encontrou! Carinho dos pais; estima dos irmãos; vénias e lisonja de beatas encartadas; surpresa, admiração de seus colegas da Escola Primária. Estes iam ficando pelo caminho! A mãe do rapaz é figura central. A vigilância torna-se rigorosa, fora do lar. É anjo; come-se mal.
Antes de ele chegar, havia privações! Chega o menino e surge a fartura! Os pais mourejam todo o santo dia, tentando a mãe fazê-lo ciente de quanto sofrem por ele!
Mais aferro ainda à figura central! As paixões não falam, que vive noutra esfera!

Nyangana
1977-07-08
Cont.
Acabam as férias, impondo-se logo o retorno à faina. Interiormente, surge a relutância, mas vai, no entanto, porque a mãe é ditosa e o pai sente orgulho. Por outro lado, os meios são escassos. Liceu? E dinheiro bastante?!
Não sente coragem para desprender-se!
Pensa por ela; sente por ela; guia-se por ela! Continuará, pois, no mesmo sentido!
À data que passa, já não é adolescente; muda-se a voz; aparece a barba; surgem as paixões; alonga-se a vista: surge nova estrela!
Se o dito rapazinho tem vocação, sentindo alegria naquilo que faz, tudo irá bem. Mas recrutado em criança, pensando por outrem, sem contacto com o mundo, nem ele sabe quem é nem outros o sabem.

Começa o drama que vai prolongar-se, por meses e anos. Quem sabe?! Talvez uma vida inteira!
Que lucro haverá, num caso destes, em ordem a Deus, à própria Igreja, como à sociedade?! Saldo negativo, com mais um infeliz! Seria diferente, se houvesse contacto, e a mãe enveredasse por outro caminho. Deus não quer à força. Respeita a liberdade. Basta dizer que nos deixa pecar e até ofendê-lo! Não nos castiga, após o pecado: espera paciente e continua ainda a dar protecção, convidando à mudança.

Jamais constrange! Ele é que chama, a partir, já se vê, do nosso querer. Não se recrutem pobres crianças e meninos sem ‘asas’!
Mães de seminaristas, não sejais criminosas! e for espontânea a vocação religiosa, respeitai-a, pois, e servi-lhe de amparo! No entanto, jamais a forjeis Há nisso vaidade, ambição e egoísmo, representando um crime! De mães que dais a vida, passais a matá-la.
O vosso filho será desditoso, amaldiçoando quem o faz infeliz!
É tempo de exame, sobre este assunto.

Nyangana
1977-07-09 Cont.
Os anos passaram, em dramas e lutas. Arrepiar caminho? Dizer que não volta? Será possível? E a mãe? Não vai ele ser causa de angústia e dor?
Terá ela, de facto, energia bastante, para suportar o violento embate?
Pensa e reflecte, optando sempre e em todos os casos, pela negativa.
Outros factores o vêm torturar: olhos carinhosos o perseguem de longe; insinuações várias de um belo porvir, que se antolha ridente:
recriminações, entoadas a fio, no Seminário, contra os desertores.
Convence-se, por vezes, ser actor duma peça, que outros escolheram, mas de que ele não gosta!
A ninguém se abre, que não tem confiança! Luta e sofre, levado na corrente, à qual não opõe qualquer resistência. Os seus problemas não foram tratados: muito menos resolvidos! Não tem ajuda: vai já naufragando!
Revelando qualidades e tendo equilíbrio, dizem-lhe ao ouvido:
“Faz-te padre!”
Inexperiente e sem adjutório; absorvido o seu querer na vontade materna; sem o mínimo contacto com o mundo exterior, que espera por ele, atira-se ao mar.
Que há-de ele fazer?! Sem vontade própria! Sem visibilidade! Sem personalidade! Na sua vida, só obedeceu! Algum dia, na verdade, teve ele querer ou mostra de vontade?! Campainha, assobio, vozes de comando!
Ralhos e censura, irreflexão e automatismo fizeram dele um rapaz destroçado! Assim continua, pela vida fora, sofrendo na alma e gemendo no peito!
Será no futuro um peso para si e também para outros! Se lhe falta energia, que acção desenvolver?! É um vivo já morto! Um actor a mais, que não vive o seu papel! O pior de tudo ainda está para vir!
O contacto com o mundo a que não fora habituado faz-lhe ver claro o seu desacerto! O drama avoluma-se, atingindo o auge com a morte da mãe.
Então, sim. É planta sem raiz! Ser misterioso que ninguém compreende! Ele e a solidão! Ele e a morte!

Nyangana
1977-97-1
1977-07-11 Vocações Tardias
É costume velho chamar deste modo aos que seguem o ideal, na Idade madura. Este período varia ao máximo, abrangendo realmente aspectos diversos da existência humana. Cursar primeiro Direito Civil, ingressando após, no Seminário; frequentar o Liceu, para seguir depois a vida eclesiástica ou professar ainda numa Ordem Religiosa. São exemplos de casos, que revelam justamente vocações tardias.

Apraz-me agora tratar em pormenor o curioso assunto, mercê de factos, por mim observados, tanto em Angola como no Sudoeste. Seja exemplo disso o bom Missionário, que preside em Nyangana. É um padre alemão, com 30 e poucos anos. Frequentou o Liceu, indo em seguida para a Alta Escola, onde cursou Electricidade, junto com Mecânica.

Uma vez especializado, resolveu ordenar-se, entrando no Seminário, para ali se preparar em Filosofia e Teologia. Posteriormente, ele vive para os outros e não para si! Ensina e prega, reza e ensaia, repara motores, faz instalações, presta serviços, vive feliz! A sua presença irradia conforto, paz
e alegria, Todos o adoram. O que é, na realidade um chamo autêntico!
Quando ele surge, é como Sol, que a todos alegra, trazendo bem-estar! Os ‘recrutados’ não fazem assim!

Nyangana
1977-07-12
Jorge Sangumba, Secretário da UNITA, fez saber há dias que, dentro em breve, será criada em Angola, a nova República, de tipo socialista, ficando a haver dois Estados simultâneos. Juntou, porém, que um dia mais tarde invadirão o Norte, conquistando Luanda, para deste modo unificarem Angola.

As fronteiras decisivas do novo Estado são as seguintes: Oceano Atlântico, pelo Ocidente; Sudoeste Africano (Ovamboland e Cavango), pela banda Sul; Zâmbia, a Nascente; a Norte, porém, seria divisória o paralelo 11, desde Novo Redondo a Teixeira de Sousa.

Politicamente, a acção da UNITA exercerá influência no futuro de África e será um punhal no flanco do Marxismo!
A invasão do Zaire foi já debelada. A FLEC de Cabinda i intenta, por seu lado, a independência daquele território, sendo outra farpa contra o Marxismo, uma vez que se opõe ao MPIA. Este, assim, ficará sem petróleo, fonte de receita que tem à mão.

Por outro lado, a SWAPO, combatida pela UNITA já não tem apoio, junto da Namíbia. A política desta é, obviamente, orientada e seguida pelas potências, ditas ocidentais, em colaboração com a África do Sul. Vai ser, portanto, uma viragem total.
Além disso, a vizinha Zâmbia, que tem hesitado em pender para Leste ou Oeste, resolverá, de pronto encostar a Savimbi, por causa dos transportes.
Assim, falharão decerto os planos de Leste: dominar inteiramente a África Austral.

Liceu
1977-07-13
Dentre os meus anseios, já de longa data, há um que nunca realizei: tocar acordeão. Andava-me na ideia, bailando e cantando, no peito desejoso! Entretanto, os anos rodavam e, por falta de ensejo, a ideia esmoreceu.
Em 1964, vi um em Mainz, Alemanha Federal, que assaz me prendeu! Como tive de optar, por serem escassas as minhas finanças. Nada avancei. Um belo acordeão, com 120 baixos! Ora, havia igualmente um lindo gravador e um pequeno rádio, que me convinham também, por causa das aulas. Desejava, nessa data, gravar na aldeia a voz de minha mãe.
Tinha, pois, de escolher o que fosse mais útil! Assim o tempo se escoou, levando com ele o anseio tão querido, que vinha já de criança.
Agora, porém, aos 59 anos, deparou-se ocasião.
Arrumado a um canto, na Missão de Nyangana, jazia um objecto, ainda em bom estado. Roguei ao Padre Hermes que o deixasse usar, ao que ele acedeu. Ora, está comigo o velho acordeão, trazendo-o logo para o Liceu Shashipapo.
Não aprendo de cor! Isso não interessa! Estou em campo, vai para três dias, tentando averiguar as relações dos baixos. Precisava um livro.
Segundo consta, há um no Tondoro ou coisa no género. O Padre Manfred não precisa dele, que é mestre consumado. Ando, pois, entusiasmado!
Quando regressar ao berço natal, já hei-de tocar, ao menos de leve.

Liceu
1977-07-14
O meu tempo de exílio vai já diminuindo, quero eu dizer: passa de metade! Planeei em 76 ficar só três anos, abrangendo 76, 77 e 78 Por enquanto, não foi alterado o programa inicial. Deviam ser 4 anos, mas isto satura!
Só vejo espinheiras, à volta de mim. Por outro lado, estou longe de tudo o que pode aviventar-me! Família, amigos, o céu azul veludíneo, a terra portuguesa! Basta de sofrer, em zona semi-desértica! Clima insuportável! Isto no físico! No moral, é deserto consumado!
Inteiramente isolado, nem a língua me aproxima! Aqui, no Sudoeste, ou línguas nativas ou Africânder! Ora, esta língua para mim não tem relevo! Também se fala Inglês e um pouco de Alemão. Entretanto, evitam-nas, para falar aquela.
A língua Africânder só aproveita aos que vivem cá. Nestas circunstâncias, o meu estado habitual é o silêncio. Não será trágico?! Nem um Português, para aliviar a minha depressão! Eu e Deus! Mais ninguém!
Nunca estive tão só! Mas, por outro lado, aproximei-me do Céu! É bem visível a sua protecção Que Ele, por bondade, continue a ajudar-me!
Tenho, no outro mundo, excelente advogada – a minha santa Mãe!
Com este período, iniciei, de facto, a segunda metade! Sendo assim, corre mais veloz o tempo que falta!

Liceu
1977-07-15
Estou a escrever na minha varanda. Aqui em frente, logo a dois passos, é a foz do Cuito, Desemboca no Cubango, que chamam Cavango, nesta região. Os colonos ingleses chamaram-lhe Okavango. Seja como for, encontro-me juntinho à foz do rio Cuito.
Esta varanda abrange toda a casa para o lado de Angola, ou seja, para Norte. Há uma rede, a toda a extensão, por causa dos mosquitos. O mesmo processo é usado nas janelas. Os tais insectos constituem um perigo, originando a malária, causadora, em geral, de graves perturbações: febres muito altas, desarranjo intestinal, dor de cabeça e transpiração.

Provoca a mordedura enorme comichão, tão persistente, que não pode aguentar-se. Vale-se a gente de coçar amiúde, mas é puro engano! Aumenta o prurido, em vez de enfraquecê-lo!
A porta de saída, cá para este lado, que afinal de contas, se opõe à da entrada, só tem o caixilho: quanto ao resto, é formado, todo ele, por uma rede. Tudo vem a propósito.

À direita, a pouco mais de 1 metro, vive uma ninhada. Por esta razão, deixei de abrir a porta. É que o ano passado a andorinha enjeitou! Para não repetir, imobilizei a porta. Sucede, pois, que junto de mim, há um lar feliz.
Já que eu o não tenho, respeito sempre e guardo zeloso o lar da andorinha. Os meus olhos inquietos seguem a azáfama dos pais carinhosos. Sempre na lida, trazendo alimento para os filhos
implumes!

Liceu Dirico
“ Sem Papas na Língua” (Memórias)

1977-07-16
Foi o caso há dias, ao ler o Século de Joanesburgo, em Língua Portuguesa. Uma crítica acerada ao livro daquele título, sem lhe aproveitar fosse o que fosse! Fiquei sem fôlego! Será possível haver uma obra sem valor nenhum?! Será justa uma crítica, atendendo somente ao lado negativo?!

Não conheço o livro que tem como autora a pessoa notória de Beatriz Costa. Poderá essa crítica ser rigorosa! Não sei. Tenho as minhas dúvidas! No campo dos princípios, vejo as coisas por este prisma: há duas facetas a tomar em conta, no livro censurado – beleza da forma; excelência das ideias. Falhando uma delas, aproveita-se a outra. Dizia o crítico não haver interesse na vida de Beatriz. Em parte, concordo e não.

O aspecto negativo processa-se deste modo: se a vida em questão é exemplo construtivo, digno de imitar-se, já reveste interesse. Admitamos que sofreu, lutou e reagiu, para atingir o seu ideal. Em tal caso ficará o seu exemplo como luz a seguir.
Agora, suponhamos ainda que o fundo é banal, frouxo e insípido. Resta a forma: riqueza notável de vocabulário, mimo de expressões, propriedade de termos, viveza de estilo, harmonia da frase, recorte fino, ritmo perfeito e o mais que falta.

Não é também apreciável o aspecto focado?
Fiquei algo surpreendido, ante aquela saída. Gostaria de ver, para tirar conclusões! Estranha o articulista o alto número desses exemplares, em três edições!
Não será isso mesmo a prova cabal de haver injustiça, nas suas afirmações?! O tempo o dirá!

(Falta: de 16-7 a 17-8)

Liceu Linus
1977 – 08- 18 Professor preguiçoso

Este novo padrão, que é dever eliminar, chega tarde à liça, em que há-de agir. Possivelmente, levanta-se a desoras, ficando o seu horário bem comprometido. Não prepara as lições ou fá-lo à pressa! As aulas acontecem, porque ele, desmazelado, não tem um plano que haja de seguir. Dúvida séria, que algures pareça:
dificuldades, que surjam de momento, não são esclarecidas!

Não resolve problemas, porque o seu desleixo não permite jamais que esteja em dia e cumpra o dever. Só está pronto e sempre alerta, para abarcar, num ápice, os chorudos honorários.
Espera-os, em regra, com sofreguidão e olhar de lince!
Que lucra a sociedade, em tais circunstâncias? Bastante menos do que deseja. Convém, pois informar o Mestre, por boas maneiras, acerca do caso, exprimindo a estima que têm por ele.

Modificando-se, fica tudo normalizado, a contento de todos
O vencimento há-de ser a expressão de um dever cumprido! Então, sim, pode usufruí-lo, porque lhe pertence: equivale, na verdade, ao esforço dispendido, à solicitude e ao zelo, que pôs nos seus actos, para que os alunos se preparassem bem.

Investiu algum dinheiro, na compra de livros, para actualizar-se. Artigos modelares da sua especialidade; revistas e brochuras do mesmo assunto; livros auxiliares e outras fontes que importava consultar, não ficam excluídos.
O provérbio latino continua sustentando: Labor omnia vincit O trabalho porfiado vence todos os obstáculos.
Podemos inferir: sem esforço contínuo, nada conseguimos.
É assunto de monta para uma sociedade que deseja progredir!

Liceu Linus
1977- 08- 19
Professor - prodígio

Pode suceder que ele o seja, de facto ou pretenda, sem razão, que o julguem tal. Em ambos os casos, chama, desde logo a atenção das gentes.
Que vem a ser, afinal, um professor-prodígio?Inteligência rara que, pela sua acuidade, apreende, num momento, as razões dos factos sejam eles embora os mais abstrusos. Pela grande intuição, entra breve e fundo, enquanto o parceiro gasta mais tempo ou não consegue.
Sendo isto assim, procura o primeiro baixar ao nível dos seus alunos, o que não é fácil, mas necessário. Tal empenho é de louvar e gera simpatias nos educandos e seus familiares.
O caso do segundo traz dissabores, durante algum tempo, mas vai reagindo, por modo lento, sem nervosismo e com persistência. Atende às necessidades, amavelmente, guardando em geral, para o dia seguinte, os casos duvidosos, que depois apresenta, bem esclarecidos. Uma vez ou outra, recorre sem demora ao pronto favor de colegas amigos e dedicados.
A boa compreensão, o desejo de acertar e o esforço empregado resolvem problemas, criam bem-estar e trazem como efeito a felicidade.

Liceu
1977- 08- 20.
É já casada: tem dois filhinhos, que são bebés, Ignoro, no entanto, se cursou a Faculdade, à maneira do marido. Seja como for, trata-se afinal de pessoas com nível, que têm compromissos, de ordem moral e até social. Apesar de tudo, vejo-a arrastando-se, deveras interessada em pessoa elegante que não é o marido.
Cai-me tão mal a sua atitude, que sinto repulsa de tê-la presente. A mulher, após o casamento, há-de ser fortaleza, em que nada se infiltre, vindo de fora. É que, na verdade, foi compromisso que ambos tomaram, dando sim, para a união! É este, a rigor, o conceito permanente do qual a Escritura nos fala amiúde.
Os dois enamorados fazem só um em afecto e pensamento, amor e caridade. Se, em vez de dois, o número é três, há corrupção, falha em fidelidade: verdadeira traição!
Ela que não ria e pouco falava, mudou por completo. Que falta de senso! Que ofensa tão grave à honra familiar, aos filhos bebés e a Deus do Céu, que preside a seu lar! Esposa e mãe é, por dever, sentinela constante do mundo familiar!

Que diríamos nós, se a própria vigia duma fortaleza introduzisse o inimigo no interior?! Não só lhe não impede a entrada franca, senão que a facilita ou garante em absoluto.
Eu, pessoalmente, não sei que faria, num caso destes, mas estou ciente de que ficava logo bem desiludido! Perderia a cabeça?! Faria desatinos?

Nyangana
1977- 08- 21
Decorreram, se não erro, 35 anos, aproximadamente. Nessa altura, andava ele pelos 35. Ao presente, roçará, talvez, pelos 70, caso viva ainda. Era bom Médico e arguto professor. Espírito raro e excelente amigo, que deixa saudades!
Nunca mais o vi. Separa-nos, pois, um longo espaço e, provavelmente, enorme distância.

Mas, como veio ao de cima, nesta ocasião, de modo especial?!
É que ele, afinal, tinha em mau conceito as mulheres todas!
Celibatário ainda, nessa ocasião, ignoro se mudou. Lembra-me o seguinte: um dia, em conversa amiga, insinuei-lhe o casamento, as alegrias do lar, o encanto dos bebés e o apoio duma esposa, escolhida a capricho.
Disse redondamente que jamais casaria.
Deixando-me intrigado, perante a saída, avancei um pouco mais, ao que ele obtemperou: Olhe, meu amigo, fiquei tão enjoado, em face do que vi e tentaram, às vezes, insinuar-me, nos tempos de Coimbra, que até as aborreço!
Não insisti. Apenas observei que nem todas são iguais, havendo bastantes, que fogem à censura. Ele, porém, incrédulo já e assaz porfioso, não concordou, citando episódios, para contestar a minha afirmação.
As palavras dele saíram do passado, vindo até mim, à hora presente. Que foi o que as trouxe? A atitude nojenta de certa esposa, que persiste no ‘flarte’, descaradamente.
Também eu me revolto e sinto desprezo, pelas acções de certas farsantes!
O casamento é belo, mas desta forma há-de ser tremendo! Safa, duas vezes, para tais mulheres!

Nyangana
1977- 08- 22
A meio da semana, houve grande alvoroço. Ouvia o noticiário, achando-me absorto nos sucessos do mundo. Nisto,
bem perto de mim, esfuziam as balas, com enorme presteza.
Fico assustado e julgo o pior! Mil suposições e funda algidez em todo o meu ser! Iríamos, em breve, ser trucidados?!
Última hora da vida mortal?! Sempre era certo ficarem meus despojos, em terra africana?!
Desligo o rádio, para deslindar e tento esclarecer o que vai sucedendo. Nem mais um tiro! Apago a luz e espreito, em seguida, pela janela. Não vejo ninguém, em frente da casa.

Conjecturo, de novo, mas tudo em vão! Queriam, talvez, pôr fogo à morada?! Passados momentos, enxergo um clarão, nas traseiras do sótão. Enorme fogueira se erguia açudada! Que pensar?! Morrer assado?! Até as feras escapam, mas eu…

Acorro à porta que dá para fora e noto com espanto, soldados armados, em acto de agir, enquanto do lado se vigia o lume, de mangueiras em punho. Outros ainda seguram cuidadosos lanternas eléctricas. Mas que aparato!
O nosso Reitor, ao ver-me, pela rede, exclama, elucidando:
Snakes in the grass! Don’t be afraid!
Sosseguei então. Eram duas mambas (serpentes mortíferas) que tentavam matar.
A pessoa mordida tem 5 minutos, para fazer as despedidas!

Liceu Linus
1977- 08- 23,
Cont,
Cheguei a Nyangana, onde repousei, por fim de semana. O casodas serpentes bailava-me na mente e quase assediava.
Entretanto, em casa todo era olhos, não fossem esconder-se, atrás de algum móvel! Certa palavra actuava como espada, na minha cabeça. Mambas! Perigosíssimas! A pessoa vitimada tem 5 minutos, para arrancar deste pobre mundo!

Fiquei alarmado e fora de mim! Era então certo haver perigo mortal, juntinho de nós?! Colho informações e dizem que sim! Duas mambas enormes, ao pé da vivenda!
Após a mordedura, não há salvação?! - perguntava eu logo, em sobressalto.
Há, sim senhor, injectado com soro, logo em seguida. Vendo o meu interesse, elucidam-me então, sobre o modo de agir.
Após a mordedura, injectam o soro, com enorme presteza, enviando um rádio à capital do Cavango. Logo um helicóptero é
mandado, com urgência, para levar o doente à África do Sul ou
mesmo a Vinduque. Logo que chegue, usam um aparelho, para ajudar os pulmões, na respiração.
Pelos vistos, não podem actuar, sem que essa máquina entre em função, Prestada a assistência, a pessoa fica salva. De outra maneira, não tem remissão.
Agora, é o tempo das serpentes: começa a aquecer. Procuram o sol, em macios relvados: quem as perturbe já sabe o que leva!
Impõe-se, como é óbvio, extremo cuidado, ao passar na relva, junto de maciços, formados por arbustos ou árvores de porte.

Liceu
1977- 08- 24

Caso do Dia: a Guerra em Angola.
Vêm diariamente refugiar-se aqui dezenas de Angolanos,
Fugindo à morte e buscando asilo. Contam o pior, acerca da guerra. Falam de roubos, espancamentos, violações atrevidas e assassinatos. Um horror sem fim!
Em 12 e 15, foi ali no Dirico. Ouvia os morteiros, com nitidez! Autêntico inferno! A UNITA de Savimbi viera de Leste,
(Caprivi), para atacar o MPLA, aqui junto a mim, bem perto do local, onde o rio Cuito desagua no Cubango.
Após a fuga em pânico do MPLA. A UNITA avançou, rumo ao Calai, onde haviam de encontrar as forças do Poente, afim de atacarem ambas as bases inimigas.

Foi no dia 20 que horríveis morteiros se ouviram no Rundu, capital do Cavango. Nessa mesma data, o Calai rendeu-se às forças da UNITA, debandando o inimigo em grande confusão!
Ao que dizem, a faixa sul já foi varrida, A vila do Cuangar
havia caído! Sobre a vila e a Missão, recebi há pouco notícias frescas.
O colega do Tondoro deslocou-se ao Cuangar, para ver com seus olhos o efeito da luta. Um pavor! Tudo esburacado! Os vidros partidos! Os bancos da capela feitos em bocados!
Perante a ousadia, levou dali o órgão e com ele dois cális, para a Missão do Tondoro.
Em seguida, foi à vila. Casas incendiadas e objectos enterrados!
No pequeno vale, a caminho do Cuangar, achou, em abundância,
Armas e munições, objectos de uso e também calçado que o MPLA não pôde levar, por falta de tempo.

Liceu Linus
1977- 08- 25

Depois de amanhã, vai fazer dois anos, que teve seu início o meu peregrinar! Vinte e seis de Agosto! Se bem me recordo, a enorme coluna passara, de manhã, Avançava indecisa, não sabendo para onde. Olhos tristonhos, a dor estampada, o sorriso
perdido! No entanto, prosseguia, em marcha sem fim.

Nós, boquiabertos, a vê-la passar, com intenção de permanecer! Apesar de tudo, o nosso coração ficava oprimido!
Eu, na berma da estrada, imóvel e triste, olhava agonizando para o rosto de todos, Alguns deles falavam chorando; a outros, porém, embargava-se a voz; outros ainda arrancavam das entranhas palavras de espanto: Ainda ficam?!
Decidimos ficar!
A coluna passara, durante a manhã.
Já pela tarde, gente de Cachingues aconselha meu cunhado. A juntar-se à coluna, abandonando o Chitembo. Eles, por sua vez, fariam o mesmo.
Sou interrogado, porque eu, na verdade, resolvera ficar.
Pergunto as razões e, perante a resposta, digo que sim.
A coluna engrossa e a dor aumenta. Corpos sem alma, rumo á desgraça!
Agora, através da floresta, por extensos areais! Sol de rachar! Sede que horroriza! Corações que soçobram! Ficara tudo, em zonas distantes, onde a alma sofrera tormentos sem fim!
Voltaremos?! Muitos de nós julgam que sim, bailando nos olhos uma arreigada esperança!
Ficara ali tudo: o suor de uma vida; canseiras e vigílias; horas de alegria¸ um passado longo que volta e seduz, à medida que se esvai!
Ficavam jazendo membros queridos, que o ódio cego havia imolado!

Liceu
1977 - 08 - 2

Ontem já, por terras da Beira, no amado país, realizou-se, em Trancoso, a feira anual do S. Bartolomeu. Não posso esquecê-la, que a tenho gravada, a letras de fogo, na alma saudosa.
O querido Pai amava esta feira, a que nunca faltava. Com
Dinheiro ou sem ele, tornara-se um hábito. Preparava de longe o que era essencial e, no dia exacto, nada o retinha.

Por estar quente, vivíamos no Carvalhal, pequena propriedade que agora me pertence. De lá, partia o chefe, cuja vinda esperávamos, com ansiedade! Sempre a pé, no longo caminho, ficávamos tristes, de vê-lo sofrer! Mas ele saía, de rosto alegre.
Comprava mais gado, vendendo o seu, Talvez (quem sabia?) uma égua linda? Um bezerro façanhudo! Uma junta de bois de alta qualidade?! Nisto e mais pensava ele e a esposa adorada!
Eu, porém, com meus irmãozinhos alongávamos a vista, pela fita da estrada, que ao longe se desenha, a caminho de Trancoso. O tráfego intenso bem como os faróis, durante a noite,
Eram coisa de ver-se!
Ele voltaria, mas sempre a pé! Entretanto, em cada viatura, que assomava ao longe, pensávamos nós que ele vinha também.

As horas passavam e só já tarde, pela noite de breu, aparecia
risonho o pai tão amado! Com ele vinha tudo: alegria e presentes, amor e paz! Eram uvas novas, utensílios de casa, gado para engorda e, chegando o dinheiro para tal fim, lembranças variadas que faziam delirar uma guitarra, uma boneca, um pifarito, uma ‘santinha’!

Liceu Linus
1977- 08- 27

A roda fatal gira morosa, não tendo em conta o meu sofrer.
Desejo se apresse, mas é insensível, crua e surda! Julgo, por vezes, que faz o contrário dos meus desejos. Quanto mais ansiedade mais lenta se torna em seu deslizar! Três anos aqui, isolado de tudo quanto amo e adoro!
De hoje a 15 dias, começam as férias do 3º período: 11 dias apenas! Trabalho não falta e, do mesmo passo, graves cuidados!
Por um lado, é bom, uma vez que me absorvem!
Junto de mim, há livros manuscritos, rádio e gravadores. Não falta ainda o amigo acordeão e o harmónio eléctrico. Belas companhias! Deus e elas é o que tenho! Nada mais!
O belo acordeão é refúgio seguro, no maior desalento! Quando o peito escurece, recorro a ele e volvo ao passado, assim me embalando como as crianças. Executo em júbilo canções da infância, a que seguem depois, outras diferentes.
Se não fora assim, ignoro o que seria a minha existência!
Corrigir os Diários, finalizar escritos e pôr-me em dia…
Apesar de tudo, um grande vazio se recorta e afubda em todo o meu ser.
Soará, ftnalmente, a hora ansiada? Poderá ter fim a grande aventura?! Contemplarei, mais uma vez, o céu de Portugal, onde o Sol amigo aparece fulgente e a Lua é de prata?!

Nyangana
1977- 08- 28
Dizia-me alguém, na vila de Manteigas:”Passamos o tempo a comer do que não gostamos!”
Agora, vejo ser exacta aquela afirmação. Quanto me cerca tudo me é estranho.
Onde o mavioso da língua portuguesa, cuja doçura encanta alma?! Onde a ternura de uns olhos portugueses, que falam e cantam, na sua mudez?! Onde o sorriso, meigo e suave de uns lábios frementes, que a terra lusitana abriga no seio?! Onde os lugares que prendem e cativam, alegrando a alma e dando ao peito um ritmo novo?!
Se olho à minha volta, nada se depara, que fale a meu ser!
Não brilha o céu, que poeiras sem fim o toldam a rigor! Que tenho para ver, ouvir e deleitar-me?! Vejo a solidão, ouço que desamo e sinto no peito o horror do exílio!
Agora, precisamente, conversa, a meu lado, um par destas bandas. Esmeram-se os dois por adoçar e florir a língua materna!
E soa a meus ouvidos qual duro garrancho, que pronto dilacera.

Qualquer língua é bela, quando tem origem nuns lábios de mulher! Aqui, porém, arranha o ouvido, não sendo capaz de
aguentar-lhe o efeito. Estas guturais fazem-me irritar. Não posso já com tal arranhão! Maior tormento não há para mim!

Às vezes, até eles se engasgam, “ Lat ons began”.
O esforço de garganta para a silaba final da palavra’began’!
Língua assim desconsolada, inestética e dura jamais encontrei!
Se mais não houvesse, isto só bastaria, para a minha desventura!
Quão diferente não é da língua portuguesa!

Liceu Linus
1977- 08- 29
Hoje é domingo, já terceiro dia, por fim de semana!
Bem acolhido este espaço de tempo! Docentes e alunos foram para Andara, região do Caprivi, o sítio mais belo de todo o Sudoeste (ao menos que eu saiba)
Também me convidaram, mas recusei, por motivo de saúde.
Dormem no mato, lá comem e folgam, quebrando assim a monotonia das aulas diárias. Pena tenho eu de os não acompanhar!
Os Sul-Africanos são muito práticos.
Em Portugal, não se fazia uma coisa destas! Isto, pelo menos, enquanto lá vivi. Aqui, no Sudoeste, faz-se mais de uma vez.,
Durante o ano. Esta digressão é já a segunda.

Quanto os nossos jovens apreciam e desejam coisa semelhante! Pois não admira! Ao longo do ano, desporto em barda, jogos e canções, trabalho do campo, cessões de cinema e longos passeios! Um dia mais tarde, lembrarão com saudade, a
Escola e os Mestres. Esta mocidade rejubila de gozo! Vivem seus
amores, sem intromissão! Há pão e ensino! Folgam e riem!
Os transportes são gratuitos! Que mais desejar?!
Pagam só 20 randes, pelo ano inteiro! Em compensação, vem o necessário: materiais escolares, cama e mesa, e ensino liceal!
Quanto melhor não vão os nativos de hoje, no Sudoeste Africano, que as gentes rudes da minha aldeia, quando eu era jovem! Não fui para o Liceu, por falta de recursos! A quantos e
quantos não terá sucedido a mesma coisa!

Nyangana
1977- 08- 30
Segundo apuraram testemunhas oculares, predominam ali três grupos raciais: Macondes, ao Norte; Quimbundos, ao centro, mas para Oeste: Umbundos, no centro do grande país.
Ao último grupo aderem também as restantes tribos: Lundas, Quiocos, Ganguelas e Quamatas.
A parte Norte é hoje liderada por Hólden Roberto: a do centro Oeste, por Agostinho Neto; as outras que restam, por Jonas Savimbi. Tem a primeira 25% de toda a população; a dos Quimbundos igual percentagem; a de Savimbi 50%,
Segundo vários críticos, procedentes do estrangeiro, que viveram no mato, deslocando-se a pé e observando in loco, o viver dos guerrilheiros, a UNITA de Savimbi, no mês de Outubro de 1976, dominava cabalmente 5 belas províncias, exercendo influência, política e militar, no centro e no Sul.
Os grupos referidos não se dão entre si., sendo já secular a sua rivalidade. Esta, de facto, é responsável, ao menos em parte, pelos graves problemas que fazem de Angola um campo de batalha.
O povo, em geral, adere a Savimbi, pois dizem as gentes que respeita as tradições, costumes e hábitos. Agostinho Neto dispõe da tribo que é mais evoluída. O seu posto avançado é constituído por brancos e mestiços o que muito desgosta a população. Assim era já, no sistema colonial, em que brancos e mestiços ocupavam sempre os lugares de relevo,
Isto é, na verdade, o que dizem as gentes, que ouço amiúde.

Liceu Linus
1977- 08 – 31
Cont.
Pensam alguns que Savimbi é racista. Por este motivo, foi interrogado, respondendo então: Nós não somos racistas: somos nacionalistas.
É de notar que, mesmo assim, persistem dúvidas, segundo tenho lido. O nome curioso que o Chefe Savimbi intenta dar ao novo Estado é o seguinte: República Socialista Negro-Africana do
Estado de Angola.
As palavras ‘negro e negritude’ que ele muito emprega, irão cavar um abismo, entre negros e mestiços. Estes, realmente, são mais evoluídos., tèm mais iniciativa e atingem 1 milhão.
Futuros problemas? Savimbi, ao que parece, intenta bater-se pela
Negritude.
O grupo dissidente do MPLA tinha isso em vista: derribar prestesmente o governo de Neto e criar nova forma, em que os Pretos de Angola e não outros, é claro, levassem a palma. Bem
triunfava, se não fossem os Cubanos, A Rússia, nessa altura não deu os parabéns a Agostinho Neto, por sair ileso!
Savimbi respondeu, um tanto irado, quando fez referência a António Jacinto, que era Ministro da Educação. Disse ele. em resumo: ‘Que fez este branco pela cultura, de origem africana?!
Importa eliminar a cultura portuguesa e pòr no seu lugar a cultura africana!
Segundo me parece, o chefe exímio estava nervoso, ao falar assim! Ninguém jamais poderá banir a cultura portuguesa: ficou entalhada na alma de todos, ao longo dos séculos. E não foram tão poucos! Quinhentos anos! Por outro lado, é factor de valia caldear
as duas. Isso está certo!

Liceu Linus
1977- 09- 01
Há poucos dias, repontei exaltado a certa medida que o governo de Pretória tomou sobre mim! Um colega do Liceu comunicou-me o seguinte: Para lhe darem o Permit é necessário
fazer um depósito de 600 randes!
Eu já andava mal disposto e com muita razão! Admite-se lá uma coisa destas! Desde Janeiro, a pedir mo enviassem e nada feito! Agora, já no fim do ano, é que saem com esta! Fiquei indignado! Fazem propaganda, para todos requererem o tal documento, juntando logo que é gratuito. Afinal, as coisas são diferentes!
Protestei vivamente, enquanto o professor, muito calmo w composto, tentava justificar a atitude de Pretória. Eu argumentava: não é justo, afinal, fazer assim! Tenho bem pouco e até esse nada me vêm tirar! O grava problema dos refugiados não se toma em conta! A nação é tão rica! Por que faz então uma coisa destas?! Pelo que vejo, tenho de pagar, se quero residir, neste local! Não compreendo!

Garantia firme de pagamento, quando for embora, em 78 ou 79? Como garantia, serve o Banco Barclay e o livro-documento.
Alonguei-me assim, expondo razões e alegando queixas!
Dizia o colega: A nação não precisa dele! É simples garantia! Muitos aí há que tudo gastam, ficando as viagens, por conta do Estado! Se fosse para a Zâmbia ou então para o Zaire,
arranjava trabalho?
Desfez-se em argumentos. Eu, por fim, rematei deste modo:
Faço o depósito, porque sou obrigado, mas não aprovo nem fico satisfeito!

1977- 09- 02
Nyangana
Ao chegar à Missão, por fim de semana, encontrei uma carta de Vide-Entre-Vinhas. Olhando à letra, pareceu logo de minha irmã. Sempre é bem vinda uma carta assim, mas desta vez, fez-me
surpresa, visto que , há pouco ainda, recebera de lá notícias frescas, Palpitou-me logo que havia problemas!

Afinal de contas, obrigaram a sair, da Pensão facultada, onde estavam hospedados, Pagava o IARNE. Deram 30 contos, acabando assim a protecção dispensada a estes infelizes! É assim que se resolvem problemas de tanta monta!

Se Deus não existisse, como eram lastimáveis as pessoas desprezadas! Assim, quando o mundo tripudia, sobre a imensa desgraça, fica ainda uma esperança a luzir no caminho: Deus e seu amor! Não é Ele Providência?! Eu creio no seu amor e na Suma Providência, que tudo governa!
Foram seguramente para a terra de origem! Por um lado, é agradável, mas tem os seus contras! Quem viveu fora, durante muitos anos, containdo novos hábitos, já se não adapta.

O cunhado Martins saíra da beira, havia 40 anos, aproximadamente, e minha irmã, para cima de 20. Como vão adaptar-se?! Não vejo, realmente, possibilidades! Além disto, que já não é pouco, surge um mundo novo, inteiramente alheio,
Estranho, indiferente! Mas, enfim! Fatalidade tem muito poder!

É preciso aguentar! A vida é o que é e temos de aceitá-la como se apresenta! O marido, pelos vistos, é pessoa arruinada!
Aumentam as dores, que já antes o prostravam.
O que agora precisam é calma acentuada e fé na Providência. Com o tempo a correr, melhorarão, penso eu, as circunstâncias da vida, para voltar de novo a paz e o bem-estar.
Os problemas são enormes, pois se estendem amplamente a campos diversos: económico e físico, moral e climatérico.

Que o Senhor os acompanhe e encha de coragem, para enfrentarem a grave situação. Como vão eles aguentar o Inverno,
sem condições mínimas, para viver na aldeia?! Casa esburacada!
Nem vestuário nem lenha nem provisões!

Liceu Linus
1977 – 08- 18
Professor preguiçoso

Este novo padrão, que é dever eliminar, chega tarde à liça, em que há-de agir. Possivelmente, levanta-se a desoras, ficando o seu horário bem comprometido. Não prepara as lições ou fá-lo à pressa! As aulas acontecem, porque ele, desmazelado, não tem um plano que haja de seguir. Dúvida séria, que algures apareça:
dificuldades, que surjam de momento, não são esclarecidas!

Não resolve problemas, porque o seu desleixo não permite jamais que esteja em dia e cumpra o dever. Só está pronto e sempre alerta, para abarcar, num ápice, os chorudos honorários.
Espera-os, em regra, com sofreguidão e olhar de lince!
Que lucra a sociedade, em tais circunstâncias? Bastante menos do que deseja. Convém, pois informar o Mestre, por boas maneiras, acerca do caso, exprimindo a estima que têm por ele.

Modificando-se, fica tudo normalizado, a contento de todos
O vencimento há-de ser a expressão de um dever cumprido! Então, sim, pode usufruí-lo, porque lhe pertence: equivale, na verdade, ao esforço dispendido, à solicitude e ao zelo, que pôs nos seus actos, para que os alunos se preparassem bem.

Investiu algum dinheiro, na compra de livros, para actualizar-se. Artigos modelares da sua especialidade; revistas e brochuras do mesmo assunto; livros auxiliares e outras fontes que importava consultar, não ficam excluídos.
O provérbio latino continua sustentando: Labor omnia vincit O trabalho porfiado vence todos os obstáculos.
Podemos inferir: sem esforço contínuo, nada conseguimos..
É assunto de monta para uma sociedade que deseja progredir!

Liceu Linus
1977- 08- 19
Professor- prodígio

Pode suceder que ele o seja, de facto ou pretenda, sem razão, que o julguem tal. Em ambos os casos, chama, desde logo a atenção das gentes.
Que vem a ser, afinal, um professor-prodígio?
Inteligência rara que, pela sua acuidade, apreende, num momento, as razões dos factos sejam eles embora os mais abstrusos. Pela grande intuição, entra breve e fundo, enquanto o parceiro
gasta mais tempo ou não consegue.
Sendo isto assim, procura o primeiro baixar ao nível dos seus alunos, o que não é fácil, mas necessário. Tal empenho é de louvar e gera simpatias nos educandos e seus familiares.
O caso do segundo traz dissabores, durante algum tempo, mas vai reagindo, por modo lento, sem nervosismo e com persistência. Atende às necessidades, amavelmente, guardando em geral, para o dia seguinte, os casos duvidosos, que depois apresenta, bem esclarecidos. Uma vez ou outra, recorre sem demora ao pronto favor de colegas amigos e dedicados.
A boa compreensão, o desejo de acertar e o esforço empregado resolvem problemas, criam bem-estar e trazem como efeito a felicidade.

Liceu
1977- 08- 20.

É já casada: tem dois filhinhos, que são bebés, Ignoro, no entanto, se cursou a Faculdade, à maneira do marido. Seja como for, trata-se afinal de pessoas com nível, que têm compromissos, de ordem moral e até social. Apesar de tudo, vejo-a arrastando-se, deveras interessada em pessoa elegante que não é o marido.
Cai-me tão mal a sua atitude, que sinto repulsa de tê-la presente. A mulher, após o casamento, há-de ser fortaleza, em que nada se infiltre, vindo de fora. É que, na verdade, foi compromisso que ambos tomaram, dando sim, para a união! É este, a rigor, o conceito permanente do qual a Escritura nos fala amiúde.
Os dois enamorados fazem só um em afecto e pensamento, amor e caridade. Se, em vez de dois, o número é três, há corrupção, falha em fidelidade: verdadeira traição!
Ela que não ria e pouco falava, mudou por completo. Que falta de senso! Que ofensa tão grave à honra familiar, aos filhos bebés e a Deus do Céu, que preside a seu lar! Esposa e mãe é, por dever, sentinela constante do mundo familiar!

Que diríamos nós, se a própria vigia duma fortaleza introduzisse o inimigo no interior?! Não só lhe não impede a entrada franca, senão que a facilita ou garante em absoluto.
Eu, pessoalmente, não sei que faria, num caso destes, mas estou ciente de que ficava logo bem desiludido! Perderia a cabeça?! Faria desatinos?

Nyangana
1977- 08- 21

Decorreram, se não erro, 35 anos, aproximadamente. Nessa altura, andava ele pelos 35. Ao presente, roçará, talvez, pelos 70, caso viva ainda. Era bom Médico e arguto professor. Espírito raro e excelente amigo, que deixa saudades!
Nunca mais o vi. Separa-nos, pois, um longo espaço e, provavelmente, enorme distância.

Mas, como veio ao de cima, nesta ocasião, de modo especial?!
É que ele, afinal, tinha em mau conceito as mulheres todas!
Celibatário ainda, nessa ocasião, ignoro se mudou. Lembra-me o seguinte: um dia, em conversa amiga, insinuei-lhe o casamento, as alegrias do lar, o encanto dos bebés e o apoio duma esposa, escolhida a capricho.
Disse redondamente que jamais casaria.
Deixando-me intrigado, perante a saída, avancei um pouco mais, ao que ele obtemperou: Olhe, meu amigo, fiquei tão enjoado, em face do que vi e tentaram, às vezes, insinuar-me, nos tempos de Coimbra, que até as aborreço!
Não insisti. Apenas observei que nem todas são iguais, havendo bastantes, que fogem à censura. Ele, porém, incrédulo já e assaz porfioso, não concordou, citando episódios, para contestar a minha afirmação.
As palavras dele saíram do passado, vindo até mim, à hora presente. Que foi o que as trouxe? A atitude nojenta de certa esposa, que persiste no ‘flarte’, descaradamente.
Também eu me revolto e sinto desprezo, pelas acções de certas farsantes!
O casamento é belo, mas desta forma há-de ser tremendo! Safa, duas vezes, para tais mulheres!

Nyangana
1977- 08- 22
A meio da semana, houve grande alvoroço. Ouvia o noticiário, achando-me absorto nos sucessos do mundo. Nisto, bem perto de mim, esfuziam as balas, com enorme presteza.
Fico assustado e julgo o pior! Mil suposições e funda algidez em todo o meu ser! Iríamos, em breve, ser trucidados?!
Última hora da vida mortal?! Sempre era certo ficarem meus despojos, em terra africana?!
Desligo o rádio, para deslindar e tento esclarecer o que vai sucedendo. Nem mais um tiro! Apago a luz e espreito, em seguida, pela janela. Não vejo ninguém, em frente da casa.

Conjecturo, de novo, mas tudo em vão! Queriam, talvez, pôr fogo à morada?! Passados momentos, enxergo um clarão, nas traseiras do sótão. Enorme fogueira se erguia açudada! Que pensar?! Morrer assado?! Até as feras escapam, mas eu…

Acorro à porta que dá para fora e noto com espanto, soldados armados, em acto de agir, enquanto do lado se vigia o lume, de mangueiras em punho. Outros ainda seguram cuidadosos lanternas eléctricas. Mas que aparato!
O nosso Reitor, ao ver-me, pela rede, exclama, elucidando:
Snakes in the grass! Don’t be afraid!
Sosseguei então. Eram duas mambas (serpentes mortíferas) que tentavam matar.
A pessoa mordida tem 5 minutos, para fazer as despedidas!

Liceu Linus
1977- 08- 23,
Cont,
Cheguei a Nyangana, onde repousei, por fim de semana. O caso das serpentes bailava-me na mente e quase assediava.
Entretanto, em casa todo era olhos, não fossem esconder-se, atrás de algum móvel! Certa palavra actuava como espada, na minha cabeça. Mambas! Perigosíssimas! A pessoa vitimada tem 5 minutos, para arrancar deste pobre mundo!

Fiquei alarmado e fora de mim! Era então certo haver perigo mortal, juntinho de nós?! Colho informações e dizem que sim! Duas mambas enormes, ao pé da vivenda!
Após a mordedura, não há salvação?! - perguntava eu logo, em sobressalto.
Há, sim senhor, injectado com soro, logo em seguida. Vendo o meu interesse, elucidam-me então, sobre o modo de agir.
Após a mordedura, injectam o soro, com enorme presteza, enviando um rádio à capital do Cavango. Logo um helicóptero é
mandado, com urgência, para levar o doente à África do Sul ou
mesmo a Vinduque. Logo que chegue, usam um aparelho, para ajudar os pulmões, na respiração.
Pelos vistos, não podem actuar, sem que essa máquina entre em função, Prestada a assistência, a pessoa fica salva. De outra maneira, não tem remissão.
Agora, é o tempo das serpentes: começa a aquecer. Procuram o sol, em macios relvados: quem as perturbe já sabe o que leva!
Impõe-se, como é óbvio, extremo cuidado, ao passar na relva, junto de maciços, formados por arbustos ou árvores de porte.

Liceu
1977- 08- 24
Caso do Dia: a Guerra em Angola.
Vêm diariamente refugiar-se aqui dezenas de Angolanos,
Fugindo à morte e buscando asilo. Contam o pior, acerca da guerra. Falam de roubos, espancamentos, violações atrevidas e assassinatos. Um horror sem fim!
Em 12 e 15, foi ali no Dirico. Ouvia os morteiros, com nitidez! Autêntico inferno! A UNITA de Savimbi viera de Leste,
(Caprivi), para atacar o MPLA, aqui junto a mim, bem perto do local, onde o rio Cuito desagua no Cubango.
Após a fuga em pânico do MPLA. A UNITA avançou, rumo ao Calai, onde haviam de encontrar as forças do Poente, afim de atacarem ambas as bases inimigas.

Foi no dia 20 que horríveis morteiros se ouviram no Rundu, capital do Cavango. Nessa mesma data, o Calai rendeu-se às forças da UNITA, debandando o inimigo em grande confusão!
Ao que dizem, a faixa sul já foi varrida, A vila do Cuangar
havia caído! Sobre a vila e a Missão, recebi há pouco notícias frescas.
O colega do Tondoro deslocou-se ao Cuangar, para ver com seus olhos o efeito da luta. Um pavor! Tudo esburacado! Os vidros partidos! Os bancos da capela feitos em bocados!
Perante a ousadia, levou dali o órgão e com ele dois cális, para a Missão do Tondoro.
Em seguida, foi à vila. Casas incendiadas e objectos enterrados!
No pequeno vale, a caminho do Cuangar, achou, em abundância,
Armas e munições, objectos de uso e também calçado que o MPLA não pôde levar, por falta de tempo.

Liceu Linus
1977- 08- 25
Depois de amanhã, vai fazer dois anos, que teve seu início o meu peregrinar! Vinte e seis de Agosto! Se bem me recordo, a
enorme coluna passara, de manhã, Avançava indecisa, não sabendo para onde. Olhos tristonhos, a dor estampada, o sorriso
perdido! No entanto, prosseguia, em marcha sem fim.

Nós, boquiabertos, a vê-la passar, com intenção de permanecer! Apesar de tudo, o nosso coração ficava oprimido!
Eu, na berma da estrada, imóvel e triste, olhava agonizando para o rosto de todos, Alguns deles falavam chorando; a outros, porém, embargava-se a voz; outros ainda arrancavam das entranhas palavras de espanto: Ainda ficam?!
Decidimos ficar!
A coluna passara, durante a manhã.
Já pela tarde, gente de Cachingues aconselha meu cunhado. A juntar-se à coluna, abandonando o Chitembo. Eles, por sua vez, fariam o mesmo.
Sou interrogado, porque eu, na verdade, resolvera ficar.
Pergunto as razões e, perante a resposta, digo que sim.
A coluna engrossa e a dor aumenta. Corpos sem alma, rumo â desgraça!
Agora, através da floresta, por extensos areais! Sol de rachar! Sede que horroriza! Corações que soçobram! Ficara tudo, em zonas distantes, onde a alma sofrera tormentos sem fim!
Voltaremos?! Muitos de nós julgam que sim, bailando nos olhos uma arreigada esperança!
Ficara ali tudo: o suor de uma vida; canseiras e vigílias; horas de alegria um passado longo que volta e seduz, à medida que se esvai!
Ficavam jazendo membros queridos, que o ódio cego havia imolado!

Liceu
1977 - 08 - 26
Ontem já, por terras da Beira, no amado país, realizou-se, em Trancoso, a feira anual do S. Bartolomeu. Não posso esquecê- la, que a tenho gravada, a letras de fogo, na alma saudosa.
O querido Pai amava esta feira, a que nunca faltava. Com
Dinheiro ou sem ele, tornara-se um hábito. Preparava de longe o que era essencial e, no dia exacto, nada o retinha.

Por estar quente, vivíamos no Carvalhal, pequena propriedade que agora me pertence. De lá, partia o chefe, cuja vinda esperávamos, com ansiedade! Sempre a pé, no longo caminho, ficávamos tristes, de vê-lo sofrer! Mas ele saía, de rosto alegre.
Comprava mais gado, vendendo o seu, Talvez (quem sabia?) uma égua linda? Um bezerro façanhudo! Uma junta de bois de alta qualidade?! Nisto e mais pensava ele e a esposa adorada!
Eu, porém, com meus irmãozinhos alongávamos a vista, pela fita da estrada, que ao longe se desenha, a caminho de Trancoso. O tráfego intenso bem como os faróis, durante a noite,
Eram coisa de ver-se!
Ele voltaria, mas sempre a pé! Entretanto, em cada viatura, que assomava ao longe, pensávamos nós que ele vinha também.

As horas passavam e só já tarde, pela noite de breu, aparecia risonho o pai tão amado! Com ele vinha tudo: alegria e presentes, amor e paz! Eram uvas novas, utensílios de casa, gado para engorda e, chegando o dinheiro para tal fim, lembranças variadas que faziam delirar. uma guitarra, uma boneca, um pifarito, uma ‘santinha’!

Liceu Linus
1977- 08- 27
A roda fatal gira morosa, não tendo em conta o meu sofrer.
Desejo se apresse, mas é insensível, crua e surda! Julgo, por vezes, que faz o contrário dos meus desejos. Quanto mais ansiedade mais lenta se torna em seu deslizar! Três anos aqui, isolado de tudo quanto amo e adoro!
De hoje a 15 dias, começam as férias do 3º período: 11 dias apenas! Trabalho não falta e, do mesmo passo, graves cuidados!
Por um lado, é bom, uma vez que me absorvem!
Junto de mim, há livros manuscritos, rádio e gravadores. Não falta ainda o amigo acordeão e o harmónio eléctrico. Belas companhias! Deus e elas é o que tenho! Nada mais!
O belo acordeão é refúgio seguro, no maior desalento! Quando o peito escurece, recorro a ele e volvo ao passado, assim me embalando como as crianças. Executo em júbilo canções da infância, a que seguem depois, outras diferentes.
Se não fora assim, ignoro o que seria a minha existência!
Corrigir os Diários, finalizar escritos e pôr-me em dia…
Apesar de tudo, um grande vazio se recorta e afubda em todo o meu ser.
Soará, finalmente, a hora ansiada? Poderá ter fim a grande aventura?! Contemplarei, mais uma vez, o céu de Portugal, onde o Sol amigo aparece fulgente e a Lua é de prata?!

Nyangana
1977- 08- 28
Dizia-me alguém, na vila de Manteigas:”Passamos o tempo a comer do que não gostamos!”
Agora, vejo ser exacta aquela afirmação. Quanto me cerca tudo me é estranho.
Onde o mavioso da língua portuguesa, cuja doçura encanta alma?! Onde a ternura de uns olhos portugueses, que falam e cantam, na sua mudez?! Onde o sorriso, meigo e suave de uns lábios frementes, que a terra lusitana abriga no seio?! Onde os lugares que prendem e cativam, alegrando a alma e dando ao peito um ritmo novo?!
Se olho à minha volta, nada se depara, que fale a meu ser!
Não brilha o céu, que poeiras sem fim o toldam a rigor! Que tenho para ver, ouvir e deleitar-me?! Vejo a solidão, ouço que desamo e sinto no peito o horror do exílio!
Agora, precisamente, conversa, a meu lado, um par destas bandas. Esmeram-se os dois por adoçar e florir a língua materna!
E soa a meus ouvidos qual duro garrancho, que pronto dilacera.

Qualquer língua é bela, quando tem origem nuns lábios de mulher! Aqui, porém, arranha o ouvido, não sendo capaz de
aguentar-lhe o efeito. Estas guturais fazem-me irritar. Não posso já com tal arranhão! Maior tormento não há para mim!

Às vezes, até eles se engasgam, “ Lat ons began”.
O esforço de garganta para a silaba final da palavra’began’’!
Língua assim desconsolada, inestética e dura jamais encontrei!
Se mais não houvesse, isto só bastaria, para a minha desventura!
Quão diferente não é da língua portuguesa!

Liceu Linus
1977- 08- 29
Hoje é domingo, já terceiro dia, por fim de semana!
Bem acolhido este espaço de tempo! Docentes e alunos foram para Andara, região do Caprivi, o sítio mais belo de todo o Sudoeste (ao menos que eu saiba)
Também me convidaram, mas recusei, por motivo de saúde.
Dormem no mato, lá comem e folgam, quebrando assim a monotonia das aulas diárias. Pena tenho eu de os não acompanhar!
Os Sul-Africanos são muito práticos.
Em Portugal, não se fazia uma coisa destas! Isto, pelo menos, enquanto lá vivi. Aqui, no Sudoeste, faz-se mais de uma vez.,
Durante o ano. Esta digressão é já a segunda.

Quanto os nossos jovens apreciam e desejam coisa semelhante! Pois não admira! Ao longo do ano, desporto em barda, jogos e canções, trabalho do campo, cessões de cinema e longos passeios! Um dia mais tarde, lembrarão com saudade, a
Escola e os Mestres. Esta mocidade rejubila de gozo! Vivem seus
amores, sem intromissão! Há pão e ensino! Folgam e riem!
Os transportes são gratuitos! Que mais desejar?!
Pagam só 20 randes, pelo ano inteiro! Em compensação, vem o necessário: materiais escolares, cama e mesa, e ensino liceal!
Quanto melhor não vão os nativos de hoje, no Sudoeste Africano, que as gentes rudes da minha aldeia, quando eu era jovem! Não fui para o Liceu, por falta de recursos! A quantos e quantos não terá sucedido a mesma coisa!

Nyangana
1977- 08- 30
Segundo apuraram testemunhas oculares, predominam ali três grupos raciais: Macondes, ao Norte; Quimbundos, ao centro, mas para Oeste: Umbundos, no centro do grande país.
Ao último grupo aderem também as restantes tribos: Lundas, Quiocos, Ganguelas e Quamatas.
A parte Norte é hoje liderada por Hólden Roberto: a do centro Oeste, por Agostinho Neto; as outras que restam, por Jonas Savimbi. Tem a primeira 25% de toda a população; a dos Quimbundos igual percentagem; a de Savimbi 50%,
Segundo vários críticos, procedentes do estrangeiro, que viveram no mato, deslocando-se a pé e observando in loco, o viver dos guerrilheiros, a UNITA de Savimbi, no mês de Outubro de 1976, dominava cabalmente 5 belas províncias, exercendo influência, política e militar, no centro e no Sul.
Os grupos referidos não se dão entre si., sendo já secular a sua rivalidade. Esta, de facto, é responsável, ao menos em parte,
pelos graves problemas que fazem de Angola um campo de batalha.
O povo, em geral, adere a Savimbi, pois dizem as gentes que respeita as tradições, costumes e hábitos. Agostinho Neto dispõe da tribo que é mais evoluída. O seu posto avançado é constituído por brancos e mestiços o que muito desgosta a população. Assim era já, no sistema colonial, em que brancos e mestiços ocupavam sempre os lugares de relevo,
Isto é, na verdade, o que dizem as gentes, que ouço amiúde.

Liceu Linus
1977- 08 – 31
Cont.

Pensam alguns que Savimbi é racista. Por este motivo, foi interrogado, respondendo então: Nós não somos racistas: somos nacionalistas.
É de notar que, mesmo assim, persistem dúvidas, segundo tenho lido. O nome curioso que o Chefe Savimbi intenta dar ao novo Estado é o seguinte: República Socialista Negro-Africana do
Estado de Angola.
As palavras ‘negro e negritude’ que ele muito emprega, irão cavar um abismo, entre negros e mestiços. Estes, realmente, são mais evoluídos, têm mais iniciativa e atingem 1 milhão.
Futuros problemas? Savimbi, ao que parece, intenta bater-se pela
Negritude.
O grupo dissidente do MPLA tinha isso em vista: derribar prestesmente o governo de Neto e criar nova forma, em que os Pretos de Angola e não outros, é claro, levassem a palma. Bem
triunfava, se não fossem os Cubanos, A Rússia, nessa altura não deu os parabéns a Agostinho Neto, por sair ileso!
Savimbi respondeu, um tanto irado, quando fez referência a António Jacinto, que era Ministro da Educação. Disse ele em resumo: ‘Que fez este branco pela cultura, de origem africana?!
Importa eliminar a cultura portuguesa e pôr no seu lugar a cultura africana!
Segundo me parece, o chefe exímio estava nervoso, ao falar assim! Ninguém jamais poderá banir a cultura portuguesa: ficou entalhada na alma de todos, ao longo dos séculos. E não foram tão poucos! Quinhentos anos! Por outro lado, é factor de valia caldear as duas. Isso está certo!

Liceu Linus
1977- 09- 01
Há poucos dias, repontei exaltado a certa medida que o governo de Pretória tomou sobre mim! Um colega do Liceu comunicou-me o seguinte: Para lhe darem o Permit é necessário
fazer um depósito de 600 randes!
Eu já andava mal disposto e com muita razão! Admite-se lá uma coisa destas! Desde Janeiro, a pedir mo enviassem e nada feito! Agora, já no fim do ano, é que saem com esta! Fiquei indignado! Fazem propaganda, para todos requererem o tal documento, juntando logo que é gratuito. Afinal, as coisas são diferentes!
Protestei vivamente, enquanto o professor, muito calmo w composto, tentava justificar a atitude de Pretória. Eu argumentava: não é justo, afinal, fazer assim! Tenho bem pouco e até esse nada me vêm tirar! O grava problema dos refugiados não se toma em conta! A nação é tão rica! Por que faz então uma coisa destas?! Pelo que vejo, tenho de pagar, se quero residir, neste local! Não compreendo!

Garantia firme de pagamento, quando for embora, em 78 ou 79? Como garantia, serve o Banco Barclay e o livro-documento.
Alonguei-me assim, expondo razões e alegando queixas!
Dizia o colega: A nação não precisa dele! É simples garantia! Muitos aí há que tudo gastam, ficando as viagens, por conta do Estado! Se fosse para a Zâmbia ou então para o Zaire,
arranjava trabalho?
Desfez-se em argumentos. Eu, por fim, rematei deste modo:
Faço o depósito, porque sou obrigado, mas não aprovo nem fico satisfeito!

1977- 09- 02
Nyangana
Ao chegar à Missão, por fim de semana, encontrei uma carta de Vide-Entre-Vinhas. Olhando à letra, pareceu logo de minha irmã. Sempre é bem vinda uma carta assim, mas desta vez, fez-me
surpresa, visto que , há pouco ainda, recebera de lá notícias frescas, Palpitou-me logo que havia problemas!

Afinal de contas, obrigaram a sair, da Pensão facultada , onde estavam hospedados, Pagava o IARNE. Deram 30 contos, acabando assim a protecção dispensada a estes infelizes! É assim que se resolvem problemas de tanta monta!

Se Deus não existisse, como eram lastimáveis as pessoas desprezadas! Assim, quando o mundo tripudia, sobre a imensa desgraça, fica ainda uma esperança a luzir no caminho: Deus e seu amor! Não é Ele Providência?! Eu creio no seu amor e na Suma Providência, que tudo governa!
Foram seguramente para a terra de origem! Por um lado, é agradável, mas tem os seus contras! Quem viveu fora, durante muitos anos, containdo novos hábitos, já se não adapta.

O cunhado Martins saíra da beira, havia 40 anos, aproximadamente, e minha irmã, para cima de 20. Como vão
adaptar-se?! Não vejo, realmente, possibilidades! Além disto, que já não é pouco, surge um mundo novo, inteiramente alheio,
Estranho, indiferente! Mas, enfim! Fatalidade tem muito poder!

É preciso aguentar! A vida é o que é e temos de aceitá-la como se apresenta! O marido, pelos vistos, é pessoa arruinada!
Aumentam as dores, que já antes o prostravam.
O que agora precisam é calma acentuada e fé na Providência. Com o tempo a correr, melhorarão, penso eu, as circunstâncias da vida, para voltar de novo a paz e o bem-estar.
Os problemas são enormes, pois se estendem amplamente a campos diversos: económico e físico, moral e climatérico.

Que o Senhor os acompanhe e encha de coragem, para enfrentarem a grave situação. Como vão eles aguentar o Inverno,
sem condições mínimas, para viver na aldeia?! Casa esburacada!
Nem vestuário nem lenha nem provisões!

Nyangana
1977- 09-.03
Recordações diversas me surgem, nesta hora, originadas todas pela data em curso: início das aulas, em nossas escolas: cuidados a montes, para a grande feira do S. Francisco, na cidade egitaniense; celebração do simpático Santo, fundador dos Franciscanos.
Só agora me lembro de que antecipei um mês! Imaginemos, pois, que está decorrendo mês de Outubro e não Setembro.
Quando falo nestas coisas, refiro-me, sem dúvida, a 1972, pois que desde então é bem natural ter havido mudanças, de modo especial, no pós Abril de 75. Daí para diante, o meu campo de acção tem sido a África: primeiro,
em Angola e depois no Sudoeste. Cinco anos apenas, mas cheios de emoção!
No tocante à feira, celebrada anualmente, íamos a pé, saindo na véspera. Geralmente, dormia-se em Porco ou ainda na Faia, para arrancar, logo de madrugada.
A viagem orçará talvez por 25 quilómetros ou coisa parecida.
Que impressão me fizeram as casas da Guarda, ao vê-las de perto, a primeira vez! Habituado como estava ao granito escuro de Vide-Entre-Vinhas, afiguravam-se aquelas perfeitos brinquedos! Um deslumbramento!
Algumas de cor amarela; outras a vermelho; outras ainda ostentando garbosas várias colorações
Ruas tão lindas, que jamais tinha visto! Lembravam-me então as do berço natal, encharcadas e estreitas, em grandes torcicolos; diminuídas amiúde por balcões exteriores

Liceu Linus
1977 – 08- 18
Professor preguiçoso

Este novo padrão, que é dever eliminar, chega tarde à liça, em que há-de agir. Possivelmente, levanta-se a desoras, ficando o seu horário bem comprometido. Não prepara as lições ou fá-lo à pressa! As aulas acontecem, porque ele, desmazelado, não tem um plano que haja de seguir. Dúvida séria, que algures apareça: dificuldades, que surjam de momento, não são esclarecidas!

Não resolve problemas, porque o seu desleixo não permite jamais que esteja em dia e cumpra o dever. Só está pronto e sempre alerta, para abarcar, num ápice, os chorudos honorários.
Espera-os, em regra, com sofreguidão e olhar de lince!
Que lucra a sociedade, em tais circunstâncias? Bastante menos do que deseja. Convém, pois informar o Mestre, por boas maneiras, acerca do caso, exprimindo a estima que têm por ele.

Modificando-se, fica tudo normalizado, a contento de todos
O vencimento há-de ser a expressão de um dever cumprido! Então, sim, pode usufruí-lo, porque lhe pertence: equivale, na verdade, ao esforço dispendido, à solicitude e ao zelo, que pôs nos seus actos, para que os alunos se preparassem bem.

Investiu algum dinheiro, na compra de livros, para actualizar-se. Artigos modelares da sua especialidade; revistas e brochuras do mesmo assunto; livros auxiliares e outras fontes que importava consultar, não ficam excluídos.
O provérbio latino continua sustentando: Labor omnia vincit O trabalho porfiado vence todos os obstáculos.
Podemos inferir: sem esforço contínuo, nada conseguimos.
É assunto de monta para uma sociedade que deseja progredir!

Liceu Linus
1977- 08- 19

Professor - prodígio
Pode suceder que ele o seja, de facto ou pretenda, sem razão, que o julguem tal. Em ambos os casos, chama, desde logo a atenção das gentes.
Que vem a ser, afinal, um professor-prodígio?
Inteligência rara que, pela sua acuidade, apreende, num momento, as razões dos factos sejam eles embora os mais abstrusos. Pela grande intuição, entra breve e fundo, enquanto o parceiro gasta mais tempo ou não consegue.
Sendo isto assim, procura o primeiro baixar ao nível dos seus alunos, o que não é fácil, mas necessário. Tal empenho é de louvar e gera simpatias nos educandos e seus familiares.
O caso do segundo traz dissabores, durante algum tempo, mas vai reagindo, por modo lento, sem nervosismo e com persistência. Atende às necessidades, amavelmente, guardando em geral, para o dia seguinte, os casos duvidosos, que depois apresenta, bem esclarecidos. Uma vez ou outra, recorre sem demora ao pronto favor de colegas amigos e dedicados.
A boa compreensão, o desejo de acertar e o esforço empregado resolvem problemas, criam bem-estar e trazem como efeito a felicidade.

Liceu
1977- 08- 20.

É já casada: tem dois filhinhos, que são bebés, Ignoro, no entanto, se cursou a Faculdade, à maneira do marido. Seja como for, trata-se afinal de pessoas com nível, que têm compromissos, de ordem moral e até social. Apesar de tudo, vejo-a arrastando-se, deveras interessada em pessoa elegante que não é o marido.
Cai-me tão mal a sua atitude, que sinto repulsa de tê-la presente. A mulher, após o casamento, há-de ser fortaleza, em que nada se infiltre, vindo de fora. É que, na verdade, foi compromisso que ambos tomaram, dando sim, para a união! É este, a rigor, o conceito permanente do qual a Escritura nos fala amiúde.
Os dois enamorados fazem só um em afecto e pensamento, amor e caridade. Se, em vez de dois, o número é três, há corrupção, falha em fidelidade: verdadeira traição!
Ela que não ria e pouco falava, mudou por completo. Que falta de senso! Que ofensa tão grave à honra familiar, aos filhos bebés e a Deus do Céu, que preside a seu lar! Esposa e mãe é, por dever, sentinela constante do mundo familiar!

Que diríamos nós, se a própria vigia duma fortaleza introduzisse o inimigo no interior?! Não só lhe não impede a entrada franca, senão que a facilita ou garante em absoluto.
Eu, pessoalmente, não sei que faria, num caso destes, mas estou ciente de que ficava logo bem desiludido! Perderia a cabeça?! Faria desatinos?

Nyangana
1977- 08- 21
Decorreram, se não erro, 35 anos, aproximadamente. Nessa altura, andava ele pelos 35. Ao presente, roçará, talvez, pelos 70, caso viva ainda. Era bom Médico e arguto professor. Espírito raro e excelente amigo, que deixa saudades!
Nunca mais o vi. Separa-nos, pois, um longo espaço e, provavelmente, enorme distância.

Mas, como veio ao de cima, nesta ocasião, de modo especial?!
É que ele, afinal, tinha em mau conceito as mulheres todas!
Celibatário ainda, nessa ocasião, ignoro se mudou. Lembra-me o
seguinte: um dia, em conversa amiga, insinuei-lhe o casamento, as alegrias do lar, o encanto dos bebés e o apoio duma esposa,
escolhida a capricho.
Disse redondamente que jamais casaria.
Deixando-me intrigado, perante a saída, avancei um pouco mais,
ao que ele obtemperou: Olhe, meu amigo, fiquei tão enjoado, em face do que vi e tentaram, às vezes, insinuar-me, nos tempos de Coimbra, que até as aborreço!
Não insisti. Apenas observei que nem todas são iguais, havendo bastantes, que fogem à censura. Ele, porém, incrédulo já e assaz porfioso, não concordou, citando episódios, para contestar a minha afirmação.
As palavras dele saíram do passado, vindo até mim, à hora presente. Que foi o que as trouxe? A atitude nojenta de certa esposa, que persiste no ‘flarte’, descaradamente.
Também eu me revolto e sinto desprezo, pelas acções de certas farsantes!
O casamento é belo, mas desta forma há-de ser tremendo! Safa, duas vezes, para tais mulheres!

Nyangana
1977- 08- 22
A meio da semana, houve grande alvoroço. Ouvia o noticiário, achando-me absorto nos sucessos do mundo. Nisto, bem perto de mim, esfuziam as balas, com enorme presteza.
Fico assustado e julgo o pior! Mil suposições e funda algidez em todo o meu ser! Iríamos, em breve, ser trucidados?!
Última hora da vida mortal?! Sempre era certo ficarem meus despojos, em terra africana?!
Desligo o rádio, para deslindar e tento esclarecer o que vai sucedendo. Nem mais um tiro! Apago a luz e espreito, em seguida, pela janela. Não vejo ninguém, em frente da casa.

Conjecturo, de novo, mas tudo em vão! Queriam, talvez, pôr fogo à morada?! Passados momentos, enxergo um clarão, nas traseiras do sótão. Enorme fogueira se erguia açudada! Que pensar?! Morrer assado?! Até as feras escapam, mas eu…

Acorro à porta que dá para fora e noto com espanto, soldados armados, em acto de agir, enquanto do lado se vigia o lume, de mangueiras em punho. Outros ainda seguram cuidadosos lanternas eléctricas. Mas que aparato!
O nosso Reitor, ao ver-me, pela rede, exclama, elucidando:
Snakes in the grass! Don’t be afraid!
Sosseguei então. Eram duas mambas (serpentes mortíferas) que tentavam matar.
A pessoa mordida tem 5 minutos, para fazer as despedidas!

Liceu Linus
.
Cheguei a Nyangana, onde repousei, por fim de semana. O caso das serpentes bailava-me na mente e quase assediava.
Entretanto, em casa todo era olhos, não fossem esconder-se, atrás de algum móvel! Certa palavra actuava como espada, na minha cabeça. Mambas! Perigosíssimas! A pessoa vitimada tem 5 minutos, para arrancar deste pobre mundo!

Fiquei alarmado e fora de mim! Era então certo haver perigo mortal, juntinho de nós?! Colho informações e dizem que sim! Duas mambas enormes, ao pé da vivenda!
Após a mordedura, não há salvação?! - perguntava eu logo, em sobressalto.
Há, sim senhor, injectado com soro, logo em seguida. Vendo o meu interesse, elucidam-me então, sobre o modo de agir.
Após a mordedura, injectam o soro, com enorme presteza, enviando um rádio à capital do Cavango. Logo um helicóptero é
mandado, com urgência, para levar o doente à África do Sul ou mesmo a Vinduque. Logo que chegue, usam um aparelho, para ajudar os pulmões, na respiração.
Pelos vistos, não podem actuar, sem que essa máquina entre em função, Prestada a assistência, a pessoa fica salva. De outra maneira, não tem remissão.
Agora, é o tempo das serpentes: começa a aquecer. Procuram o sol, em macios relvados: quem as perturbe já sabe o que leva!
Impõe-se, como é óbvio, extremo cuidado, ao passar na relva, junto de maciços, formados por arbustos ou árvores de porte.


Liceu
1977- 08- 24

Caso do Dia: a Guerra em Angola.
Vêm diariamente refugiar-se aqui dezenas de Angolanos,
Fugindo à morte e buscando asilo. Contam o pior, acerca da guerra. Falam de roubos, espancamentos, violações atrevidas e assassinatos. Um horror sem fim!
Em 12 e 15, foi ali no Dirico. Ouvia os morteiros, com nitidez! Autêntico inferno! A UNITA de Savimbi viera de Leste,
(Caprivi), para atacar o MPLA, aqui junto a mim, bem perto do local, onde o rio Cuito desagua no Cubango.
Após a fuga em pânico do MPLA. A UNITA avançou, rumo ao Calai, onde haviam de encontrar as forças do Poente, afim de atacarem ambas as bases inimigas.

Foi no dia 20 que horríveis morteiros se ouviram no Rundu, capital do Cavango. Nessa mesma data, o Calai rendeu-se às forças da UNITA, debandando o inimigo em grande confusão!
Ao que dizem, a faixa sul já foi varrida, A vila do Cuangar
havia caído! Sobre a vila e a Missão, recebi há pouco notícias frescas.
O colega do Tondoro deslocou-se ao Cuangar, para ver com seus olhos o efeito da luta. Um pavor! Tudo esburacado! Os vidros partidos! Os bancos da capela feitos em bocados!
Perante a ousadia, levou dali o órgão e com ele dois cális, para a Missão do Tondoro.
Em seguida, foi à vila. Casas incendiadas e objectos enterrados!
No pequeno vale, a caminho do Cuangar, achou, em abundância,
Armas e munições, objectos de uso e também calçado que o MPLA não pôde levar, por falta de tempo.

Liceu Linus
1977- 08- 25
Depois de amanhã, vai fazer dois anos, que teve seu início o meu peregrinar! Vinte e seis de Agosto! Se bem me recordo, a
enorme coluna passara, de manhã, Avançava indecisa, não sabendo para onde. Olhos tristonhos, a dor estampada, o sorriso
perdido! No entanto, prosseguia, em marcha sem fim.

Nós, boquiabertos, a vê-la passar, com intenção de permanecer! Apesar de tudo, o nosso coração ficava oprimido!
Eu, na berma da estrada, imóvel e triste, olhava agonizando para o rosto de todos, Alguns deles falavam chorando; a outros, porém, embargava-se a voz; outros ainda arrancavam das entranhas palavras de espanto: Ainda ficam?!
Decidimos ficar!
A coluna passara, durante a manhã.
Já pela tarde, gente de Cachingues aconselha meu cunhado. A juntar-se à coluna, abandonando o Chitembo. Eles, por sua vez, fariam o mesmo.
Sou interrogado, porque eu, na verdade, resolvera ficar.
Pergunto as razões e, perante a resposta, digo que sim.
A coluna engrossa e a dor aumenta. Corpos sem alma, rumo â desgraça!
Agora, através da floresta, por extensos areais! Sol de rachar! Sede que horroriza! Corações que soçobram! Ficara tudo, em zonas distantes, onde a alma sofrera tormentos sem fim!
Voltaremos?! Muitos de nós julgam que sim, bailando nos olhos uma arreigada esperança!
Ficara ali tudo: o suor de uma vida; canseiras e vigílias; horas de alegria¸ um passado longo que volta e seduz, à medida que se esvai!
Ficavam jazendo membros queridos, que o ódio cego havia imolado!

Liceu
1977 - 08 - 26
Ontem já, por terras da Beira, no amado país, realizou-se, em Trancoso, a feira anual do S. Bartolomeu. Não posso esquecê- la, que a tenho gravada, a letras de fogo, na alma saudosa.
O querido Pai amava esta feira, a que nunca faltava. Com
Dinheiro ou sem ele, tornara-se um hábito. Preparava de longe o que era essencial e, no dia exacto, nada o retinha.

Por estar quente, vivíamos no Carvalhal, pequena propriedade que agora me pertence. De lá, partia o chefe, cuja vinda esperávamos, com ansiedade! Sempre a pé, no longo caminho, ficávamos tristes, de vê-lo sofrer! Mas ele saía, de rosto alegre.
Comprava mais gado, vendendo o seu, Talvez ( quem sabia?) uma égua linda? Um bezerro façanhudo! Uma junta de bois de alta qualidade?! Nisto e mais pensava ele e a esposa adorada!
Eu, porém, com meus irmãozinhos alongávamos a vista, pela fita da estrada , que ao longe se desenha, a caminho de Trancoso. O tráfego intenso bem como os faróis, durante a noite,
Eram coisa de ver-se!
Ele voltaria, mas sempre a pé! Entretanto, em cada viatura, que assomava ao longe, pensávamos nós que ele vinha também.

As horas passavam e só já tarde, pela noite de breu, aparecia
risonho o pai tão amado! Com ele vinha tudo: alegria e presentes, amor e paz! Eram uvas novas, utensílios de casa, gado para engorda e, chegando o dinheiro para tal fim, lembranças variadas que faziam delirar. uma guitarra, uma boneca, um pifarito, uma ‘santinha’!

Liceu Linus
1977- 08- 27
A roda fatal gira morosa, não tendo em conta o meu sofrer.
Desejo se apresse, mas é insensível, crua e surda! Julgo, por vezes, que faz o contrário dos meus desejos. Quanto mais ansiedade mais lenta se torna em seu deslizar! Três anos aqui,
isolado de tudo quanto amo e adoro!
De hoje a 15 dias, começam as férias do 3º período: 11 dias apenas! Trabalho não falta e, do mesmo passo, graves cuidados!
Por um lado, é bom, uma vez que me absorvem!
Junto de mim, há livros manuscritos, rádio e gravadores. Não falta ainda o amigo acordeão e o harmónio eléctrico. Belas companhias! Deus e elas é o que tenho! Nada mais!
O belo acordeão é refúgio seguro, no maior desalento! Quando o peito escurece, recorro a ele e volvo ao passado, assim me embalando como as crianças. Executo em júbilo canções da infância, a que seguem depois, outras diferentes.
Se não fora assim, ignoro o que seria a minha existência!
Corrigir os Diários, finalizar escritos e pôr-me em dia…
Apesar de tudo, um grande vazio se recorta e afubda em todo o meu ser.
Soará, ftnalmente, a hora ansiada? Poderá ter fim a grande aventura?! Contemplarei, mais uma vez, o céu de Portugal, onde o Sol amigo aparece fulgente e a Lua é de prata?!

Nyangana
1977- 08- 28
Dizia-me alguém, na vila de Manteigas:”Passamos o tempo a comer do que não gostamos!”
Agora, vejo ser exacta aquela afirmação. Quanto me cerca tudo me é estranho.
Onde o mavioso da língua portuguesa, cuja doçura encanta alma?! Onde a ternura de uns olhos portugueses, que falam e cantam, na sua mudez?! Onde o sorriso, meigo e suave de uns lábios frementes, que a terra lusitana abriga no seio?! Onde os lugares que prendem e cativam, alegrando a alma e dando ao peito um ritmo novo?!
Se olho à minha volta, nada se depara, que fale a meu ser!
Não brilha o céu, que poeiras sem fim o toldam a rigor! Que tenho para ver, ouvir e deleitar-me?! Vejo a solidão, ouço que desamo e sinto no peito o horror do exílio!
Agora, precisamente, conversa, a meu lado, um par destas bandas. Esmeram-se os dois por adoçar e florir a língua materna!
E soa a meus ouvidos qual duro garrancho, que pronto dilacera.

Qualquer língua é bela, quando tem origem nuns lábios de mulher! Aqui, porém, arranha o ouvido, não sendo capaz de
aguentar-lhe o efeito. Estas guturais fazem-me irritar. Não posso já com tal arranhão! Maior tormento não há para mim!

Às vezes, até eles se engasgam, “ Lat ons began”.
O esforço de garganta para a silaba final da palavra’began’’!
Língua assim desconsolada, inestética e dura jamais encontrei!
Se mais não houvesse, isto só bastaria, para a minha desventura!
Quão diferente não é da língua portuguesa!

Liceu Linus
1977- 08- 29
Hoje é domingo, já terceiro dia, por fim de semana!
Bem acolhido este espaço de tempo! Docentes e alunos foram para Andara, região do Caprivi, o sítio mais belo de todo o Sudoeste ( ao menos que eu saiba)
Também me convidaram, mas recusei, por motivo de saúde.
Dormem no mato, lá comem e folgam, quebrando assim a monotonia das aulas diárias. Pena tenho eu de os não acompanhar!
Os Sul-Africanos são muito práticos.
Em Portugal, não se fazia uma coisa destas! Isto, pelo menos, enquanto lá vivi. Aqui, no Sudoeste, faz-se mais de uma vez.,
Durante o ano. Esta digressão é já a segunda.

Quanto os nossos jovens apreciam e desejam coisa semelhante! Pois não admira! Ao longo do ano, desporto em barda, jogos e canções, trabalho do campo, cessões de cinema e longos passeios! Um dia mais tarde, lembrarão com saudade, a
Escola e os Mestres. Esta mocidade rejubila de gozo! Vivem seus
amores, sem intromissão! Há pão e ensino! Folgam e riem!
Os transportes são gratuitos! Que mais desejar?!
Pagam só 20 randes, pelo ano inteiro! Em compensação, vem o necessário: materiais escolares, cama e mesa, e ensino liceal!
Quanto melhor não vão os nativos de hoje, no Sudoeste Africano, que as gentes rudes da minha aldeia, quando eu era jovem! Não fui para o Liceu, por falta de recursos! A quantos e
quantos não terá sucedido a mesma coisa!

Nyangana
1977- 08- 30
Segundo apuraram testemunhas oculares, predominam ali três grupos raciais: Macondes, ao Norte; Quimbundos, ao centro, mas para Oeste: Umbundos, no centro do grande país.
Ao último grupo aderem também as restantes tribos: Lundas, Quiocos, Ganguelas e Quamatas.
A parte Norte é hoje liderada por Hólden Roberto: a do centro Oeste, por Agostinho Neto; as outras que restam, por Jonas Savimbi.. Tem a primeira 25% de toda a população; a dos Quimbundos igual percentagem; a de Savimbi 50%,
Segundo vários críticos, procedentes do estrangeiro, que viveram no mato, deslocando-se a pé e observando in loco, o viver dos guerrilheiros, a UNITA de Savimbi, no mês de Outubro de 1976, dominava cabalmente 5 belas províncias , exercendo influência, política e militar, no centro e no Sul.
Os grupos referidos não se dão entre si., sendo já secular a sua rivalidade. Esta, de facto, é responsável, ao menos em parte,
pelos graves problemas que fazem de Angola um campo de batalha.
O povo, em geral, adere a Savimbi, pois dizem as gentes que respeita as tradições, costumes e hábitos. Agostinho Neto dispõe da tribo que é mais evoluída. O seu posto avançado é constituído por brancos e mestiços o que muito desgosta a população. Assim era já, no sistema colonial, em que brancos e mestiços ocupavam sempre os lugares de relevo,
Isto é, na verdade, o que dizem as gentes, que ouço amiúde.

Liceu Linus
1977- 08 – 31 Cont.
Pensam alguns que Savimbi é racista. Por este motivo, foi interrogado, respondendo então: Nós não somos racistas: somos nacionalistas.
É de notar que, mesmo assim, persistem dúvidas, segundo tenho lido. O nome curioso que o Chefe Savimbi intenta dar ao novo Estado é o seguinte: República Socialista Negro-Africana do
Estado de Angola.
As palavras ‘negro e negritude’ que ele muito emprega, irão cavar um abismo, entre negros e mestiços. Estes, realmente, são mais evoluídos., tèm mais iniciativa e atingem 1 milhão.
Futuros problemas? Savimbi, ao que parece, intenta bater-se pela
Negritude.
O grupo dissidente do MPLA tinha isso em vista: derribar prestesmente o governo de Neto e criar nova forma, em que os Pretos de Angola e não outros, é claro, levassem a palma. Bem
triunfava, se não fossem os Cubanos, A Rússia, nessa altura não deu os parabéns a Agostinho Neto, por sair ileso!
Savimbi respondeu, um tanto irado, quando fez referência a António Jacinto, que era Ministro da Educação. Disse ele. em resumo: ‘Que fez este branco pela cultura, de origem africana?!
Importa eliminar a cultura portuguesa e por no seu lugar a cultura africana!
Segundo me parece, o chefe exímio estava nervoso, ao falar assim! Ninguém jamais poderá banir a cultura portuguesa: ficou entalhada na alma de todos, ao longo dos séculos. E não foram tão poucos! Quinhentos anos! Por outro lado, é factor de valia caldear
as duas. Isso está certo!

Liceu Linus
1977- 09- 01
Há poucos dias, repontei exaltado a certa medida que o governo de Pretória tomou sobre mim! Um colega do Liceu comunicou-me o seguinte: Para lhe darem o Permit é necessário
fazer um depósito de 600 randes!
Eu já andava mal disposto e com muita razão! Admite-se lá uma coisa destas! Desde Janeiro, a pedir mo enviassem e nada feito! Agora, já no fim do ano, é que saem com esta! Fiquei indignado! Fazem propaganda, para todos requererem o tal documento, juntando logo que é gratuito. Afinal, as coisas são diferentes!
Protestei vivamente, enquanto o professor, muito calmo w composto, tentava justificar a atitude de Pretória. Eu argumentava: não é justo, afinal, fazer assim! Tenho bem pouco e até esse nada me vêm tirar! O grava problema dos refugiados não se toma em conta! A nação é tão rica! Por que faz então uma coisa destas?! Pelo que vejo, tenho de pagar, se quero residir, neste local! Não compreendo!

Garantia firme de pagamento, quando for embora, em 78 ou 79? Como garantia, serve o Banco Barclay e o livro-documento.
Alonguei-me assim, expondo razões e alegando queixas!
Dizia o colega: A nação não precisa dele! É simples garantia! Muitos aí há que tudo gastam, ficando as viagens, por conta do Estado! Se fosse para a Zâmbia ou então para o Zaire,
arranjava trabalho?
Desfez-se em argumentos. Eu, por fim, rematei deste modo:
Faço o depósito, porque sou obrigado, mas não aprovo nem fico satisfeito!

1977- 09- 02
Nyangana
Ao chegar à Missão, por fim de semana, encontrei uma carta de Vide-Entre-Vinhas. Olhando à letra, pareceu logo de minha irmã. Sempre é bem vinda uma carta assim, mas desta vez, fez-me
surpresa, visto que , há pouco ainda, recebera de lá notícias frescas, Palpitou-me logo que havia problemas!

Afinal de contas, obrigaram a sair, da Pensão facultada , onde estavam hospedados, Pagava o IARNE. Deram 30 contos, acabando assim a protecção dispensada a estes infelizes! É assim que se resolvem problemas de tanta monta!

Se Deus não existisse, como eram lastimáveis as pessoas desprezadas! Assim, quando o mundo tripudia, sobre a imensa desgraça, fica ainda uma esperança a luzir no caminho: Deus e seu amor! Não é Ele Providência?! Eu creio no seu amor e na Suma Providência, que tudo governa!
Foram seguramente para a terra de origem! Por um lado, é agradável, mas tem os seus contras! Quem viveu fora, durante muitos anos, contraindo novos hábitos, já se não adapta.

O cunhado Martins saíra da Beira, havia 40 anos, aproximadamente, e minha irmã, para cima de 20. Como vão adaptar-se?! Não vejo, realmente, possibilidades! Além disto, que já não é pouco, surge um mundo novo, inteiramente alheio, estranho, indiferente! Mas, enfim! Fatalidade tem muito poder!

É preciso aguentar! A vida é o que é e temos de aceitá-la como se apresenta! O marido, pelos vistos, é pessoa arruinada!
Aumentam as dores, que já antes o prostravam.
O que agora precisam é calma acentuada e fé na Providência. Com o tempo a correr, melhorarão, penso eu, as circunstâncias da vida, para voltar de novo a paz e o bem-estar.
Os problemas são enormes, pois se estendem amplamente a campos diversos: económico e físico, moral e climatérico.

Que o Senhor os acompanhe e encha de coragem, para enfrentarem a grave situação. Como vão eles aguentar o Inverno, sem condições mínimas, para viver na aldeia?! Casa esburacada!
Nem vestuário nem lenha nem previsões!.

Nyangana
1977- 09-.03
Recordações diversas me surgem, nesta hora, originadas todas pela data em curso: início das aulas, em nossas escolas: cuidados a montes, para a grande feira do S. Francisco, na cidade egitaniense; celebração do simpático Santo, fundador dos Franciscanos.
Só agora me lembro de que antecipei um mês! Imaginemos, pois, que está decorrendo mês de Outubro e não Setembro.
Quando falo nestas coisas, refiro-me, sem dúvida, a 1972, pois que desde então é bem natural ter havido mudanças, de modo especial, no pós Abril de 75. Daí para diante, o meu campo de acção tem sido a África: primeiro,
em Angola e depois no Sudoeste. Cinco anos apenas, mas cheios de emoção!
No tocante à feira, celebrada anualmente, íamos a pé, saindo na véspera. Geralmente, dormia-se em Porco ou ainda na Faia, para arrancar, logo de madrugada.
A viagem orçará talvez por 25 quilómetros ou coisa parecida.
Que impressão me fizeram as casas da Guarda, ao vê-las de perto, a primeira vez! Habituado como estava ao granito escuro de Vide-Entre-Vinhas, afiguravam-se aquelas perfeitos brinquedos! Um deslumbramento!
Algumas de cor amarela; outras a vermelho; outras ainda ostentando garbosas várias colorações

Ruas tão lindas, que jamais tinha visto! Lembravam-me então as do berço natal, encharcadas e estreitas, em grandes torcicolos; diminuídas amiúde por balcões exteriores! Como tudo era belo, na cidade egitaniense, que
sorria a meus olhos, fazendo negaças!

Se não fora o cansaço, motivado pela viagem; a noite mal dormida; a minha cabeça, de encontro ao penedo, fazendo assim “ouvir as ondas do mar”; a chuvada abundante que reteve meu pai, durante dois meses, preso à cama, teria sido esplêndida a viagem inolvidável!

Quanto ao fundador dos Frades Menores, lembro com saudade os festejos dos Capuchinhos, em 4 de Outubro, na
Capital do Norte, onde passei feliz 8 belos dias.

Liceu Linus
1977- 09- 04
Ultimamente, cheguei a conclusões que não havia previsto
Parecia, no princípio, que os alunos do Cavango eram pacatos e até avessos ao terrorismo. Agora, porém, sou de outra opinião.

Pelas atitudes, que verifico nas aulas, convenço-me, realmente, de que há terroristas. Comparado a Angola é muito pior o caso do Sudoeste! Estou a lembrar-me de atitudes provocantes, durante as aulas. É claro! Faço-me anjinho, para bem do meu físico! Ai do aluno que, no meu país, fizesse o mesmo!
Leccionara ali uns 27 anos, mas nunca sucedeu um caso parecido! Por minha parte, procurava também ser compreensivo!
Mas ignoro, a rigor, o que sucederia, apesar de tudo, se algum aluno fizesse como estes! Posso algum dia perder o controlo!
É fácil, talvez após a tragédia, ocorrida em Angola,
Descomando-me, às vezes, até sem querer, à mínima causa. Vamos ver, pois, se aguento assim, até pôr o remate, em 78 ou 79.
Tentarei ao menos!
O terrorismo está de facto, no peito de cada um.. Devido, naturalmente às circunstâncias políticas, de maneira especial, à propaganda malévola e tendenciosa das grandes potências, tudo por cá é barril de pólvora. Refiro-me à Rodésia, Sudoeste Africano e África do Sul. Não podemos jamais levantar os olhos!.
Há logo vinganças, podendo ocasiona-se lastimosa desgraça. Tal situação vai de mal a pior, já que roubam impunes e notam que os brancos andam com receio!
Assim, mais e mais avançam, no caminho perigoso da ousadia.
Por mais esta causa, anseio vivamente que a tarefa entre mãos acabe depressa, Hoje, qualquer branco é para os negros o diabo em carne. Apenas lhes disseram que são
exploradores, ladrões e tiranos. Acreditando logo, puseram a confiança nos falsos profetas. Um dia virá, para
rgetorcer de orelhas.
Consta-me já, de fonte segura, que os pretos de Angola clamam bem alto pelos Portugueses. É ao destempo! Reconheceram, por fim, ser grande mentira o que lhes tinham dito. Os Portugueses serão, em todo o
tempo, os melhores amigos !
Quanto mais lidarem com povos de outra origem melhor vão reconhecer esta grande verdade! O português é dado, simples, folgazão e muito sincero. Vive em camaradagem, não é ambicioso, não proíbe os casamentos, devido à cor, não faz zonas estanques, não odeia as outras raças!
Será humilhante a colonização? Todos os povos foram colonizados, o que permitiu o seu progresso.
É ver o caso da China e as consequências da ‘grande muralha! ‘
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Liceu Linus
1977- 09- 05
Cancros em África
A vista cobiçosa das grandes potências é um dos maiores. Aproveitando habilmente os ideais de liberdade e
explorando-as a fundo, em proveito próprio, lançam os indígenas em guerras sem fim! Ora, é já sabido que a temerosa guerra não dá pão a todos nem traz ventura.

Fornecem canhões, em vez de alimento; aconselham ódio. em vez de amor; ateiam a fogueira que devora tudo, em vez de extingui-la! Será este, na verdade, o caminho certo para a liberdade?!

O segundo mal reside precisamente na ambição
desenfreada e também na incompetência dos chefes negros. Com algumas excepções, por sinal bem honrosas,
constituem eles, pelo seu despotismo, falta de humanidade, acepção de pessoas e alto desamor ao povo miserável, autêntico martírio, que só poupa os da tribo ou
do mesmo partido.

A falta lastimosa de chefes competentes, honestos e justos atira o Continente para a destruição. Nestas circunstâncias, o viver dos nativos é mais infeliz que no tempo vivido em colonialismo..

Os laços existentes entre as várias potências e os grupos separatistas são novos problemas de grande ressonância. Uma vez colocados em situação de favor, (recebem dinheiro armas, tudo), mais se avoluma a sua dependência.
Passaram, deste modo, a neo-colonizados.
Terceiro mal: total dependência dos novos senhores!
Esta situação é muito pior que a dos séculos passados.
De facto, os novos intrusos não amam as terras que lançam na fogueira. Nada ali os prende que não seja, a rigor, imperialismo e vantagens materiais.

Os povos antigos que lá se encontravam, criaram
raízes, que prendiam à terra e às próprias gentes,
contribuindo esse facto para a boa harmonia e progresso dos povos.
O quarto mal de que enferma o Continente, não falando já dos ódios tribais, ´o caso das fronteiras..
Também este cancro não é somenos, em sua importância.
As fronteiras de séculos, algo artificiais mantinha-as o poder e o respeito dos tratados. Agora, porém, já é diferente-
Só grandes chefes, amados pelo povo e por eles defendido podem salvar o Continente Africano.
Requer-se também auxílio pronto e desinteressado, qu venha de fora e seja verdadeiro, hunanitário e filantrópico. De outra maneira, o adusto Continente terá os dias contados, em poucas gerações.
Ao sabor dos ventos novos, sem Norte nem bússola
Servirá tão só para cevar a cobiça alheia.

Liceu Linus
1977- 09- 06

Psicologia do Negro, em certas épocas.
O estado psicológico dos nativos africanos é efervescente. Assumem para logo atitudes irritantes, provocam os brancos e são importunos. Nada os satisfaz e julgam, na deles, que todo o mundo é seu! Pensam, ingénuo, que as outras pessoas só têm deveres.

Quanto a si próprios, já o caso é diferente! Direitos, sim! Apenas regalias! Recebendo um favor, nem sequer agradecem. Por outro lado, são provocadores.

Caso o processo não dê efeito, criam situações de que outrem ruborize, para ser vaiado e até envilecido. O ódio no peito alimenta-se e cresce. Pata eles o Branco é o grande inimigo! que importa eliminar, depois de humilhado! Encontra-se em jogo o Branco do passado. Podendo roubá-lo, nada lhe deixam!

Mais tarde já, reconhecem o erro, quando a fome e a desgraça os fazem pensar! Mas então não há remédio!
Julgam, levianos, que ser independente é nada fazer! Ter
quanto precisam! Apontam a dedo as casas dos Brancos;
sorteiam-nas logo, marcando o destino..

Também, não escapam os meios de transporte, filhas e esposas! É um horror viver no meio deles, em tais circunstâncias.
Soprou de longe a campanha inimiga.! eles ouviram e acreditaram. Potências invejosas pregaram doutrinas que o Diabo forjou! Não é, por certo, o amor destes Negros que
leva outras gentes a pregar a subversão! Apenas inveja, ambição e injustiça; espírito diabólico de mal fazer

Criar zonas de influência, vastos mercados internacionais, garantir o bem-estar, para os seus conterrâneos!
Os Negros, em geral, desconhecem tais aspectos, que são os verdadeiros. Não é com armas que se dá instrução, mata a fome às gentes e levanta um povo! Não é também por mio de tanques, semeando a morte, que se ergue uma nação! Não é com ódio instilado nas crianças, desde o tempo escolar, que prepara a juventude negra para a glória dum povo!
Não é com Marxsmo, importado de longe, que se fabricam modelos, para outros envergarem! Interessa de facto um aspecto diferente e oposto àquele!

Humanidade, compreensão, amor e simpatia, colaboração e modos gentis, para levara bom termo problemas vitais.
Não falte equilíbrio, tempo bastante, discernimnto
espírito prático e boa vontade! O resto é mentira, injustiça e erro, hipocrisia, destruição e morte.